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PÓS-MODERNIDADE, CULTURA E SUJEITO: ALGUNS APONTAMENTOS NECESSÁRIOS ACERCA DA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

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Revista de Psicologia

Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007

Fabio Elias Verdiani Tfouni

Universidade de São Paulo fabiotfouni@hotmail.com

Nilce da Silva

Universidade de São Paulo nilce@usp.br

PÓS-MODERNIDADE, CULTURA E SUJEITO:

ALGUNS APONTAMENTOS NECESSÁRIOS

ACERCA DA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

RESUMO

Este artigo apresenta considerações acerca da relação entre pós-modernidade, cultura e constituição do sujeito. Para tanto, enume-ra caenume-racterísticas típicas do sistema capitalista dos nossos dias, re-lacionadas com produtos culturais atuais – com destaque aos fil-mes Matrix e O show de Truman - à luz da concepção de socieda-de do espetáculo. Neste contexto, estamos diante socieda-de um sujeito do “simulacro”, situação em que há a supremacia da imagem em de-trimento do real, colocando este em questão. Do ponto de vista psicanalítico, considera-se que o Homem foge na verdade do real, não da realidade, e, por meio da reificação ideológica do Capital. Deste modo, ideologia e a alienação constituem da nossa visão de mundo, aliadas ao fetichismo, na medida em que este pode ser outra maneira que o sujeito dispõe para negociar com o desejo formulado no desmentido fetichista.

Palavras-Chave: Cultura, espetáculo, sujeito, ideologia, fetichismo, rei-ficação, capitalismo.

ABSTRACT

This text presents considerations about the relations between post-modernity, culture and the subject’s constitution. To do so, it num-bers up some characteristics of today’s capitalism and relates them with cultural products, such as the films Matrix and The Truman

show, in the light of the concept of society of spectacle. In this con-text, we are in face of a simulacrum subject, in a society where im-age has the supremacy in the expense of the real, what puts the last one in question. In a psychoanalytical approach, we claim that man urges to escape from the real, not from reality, by means of the ideological reification of the capital. In this sense, ideology and alienation build the way we see the world. At last, we state that fetishism constitutes an alternative way to deal with desire.

Keywords: Culture, spectacle, subject, ideology, fetishism, reification, capitalism.

Anhanguera Educacional S.A.

Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP. 13.278-181

rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação

Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original

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1.

INTRODUÇÃO

O tempo vivido nos dias de hoje tem sido nomeado de diferentes maneiras: moderni-dade líquida, para Z. Bauman; modernimoderni-dade tardia ou alta modernimoderni-dade, para Gid-dens; hipermodernidade, para Bech pós-modernidade, para Lyotard, Braudillard, Ja-meson, Santos, dentre outros.

Segundo Santos (1994) e Jameson (2002), uma das principais características da pós-modernidade se constitui no fato de que, o homem pós-moderno teria substituído a realidade por uma hiper-realidade mais interessante que a própria realidade. Esse ponto de vista parece supor, de alguma maneira, que a realidade é dura, difícil, insu-portável, e que esse hiper-real seria, ao contrário, o lugar do prazer, do gozo. Parece que é natural que o Homem busque uma fuga para não ter que enfrentar a dureza da realidade.

Interessante também para a discussão proposta neste artigo acerca das rela-ções entre pós-modernidade e produrela-ções culturais é a seguinte afirmação de Baudril-lard:

O processo da massa e dos meios de comunicação são um processo único (....) O mesmo aconteceu com a técnica, com a ciência e o saber. Destinados a uma práti-ca mágipráti-ca e a um consumo “espetacular”. Aconteceu o mesmo com o próprio consumo. Levando em conta a “teoria das necessidades” e o consenso geral da sobre o discurso da utilidade, para seu próprio estupor, os economistas nunca conseguiram racionalizar o consumo. Mas isso porque a prática das massas nun-ca teve imediatamente uma relação com (talvez nunnun-ca tenha) com as necessida-des. Elas fizeram do consumo uma dimensão de status e de prestígio, de promes-sa inútil e de pottlatch que de qualquer maneira excederia o valor de uso (2004, p. 39).

Jameson (2002) mostra o pós-modernismo como essa hiper-realidade. Ele o co-loca em termos de cultura. Na modernidade haveria ainda a natureza em seu estado verdadeiro, já na pós-modernidade, a cultura teria substituído por completo a nature-za. Do nosso ponto de vista, o grande Outro é a característica da cultura. Sendo assim, pode-se dizer que o Outro, esse computador que contém o código fundamental da nos-sa realidade coloca a realidade (enquanto produto ideológico) como um anteparo: algo que se interpõe entre nós e a natureza (o real). Diz Jameson: “O pós-modernismo é o que se tem quando o processo de modernização está completo e a natureza se foi para sempre. É o mundo no qual a ‘cultura’ se tornou uma verdadeira segunda natureza” (2002, p. 11).

Neste contexto social, estamos diante de um sujeito do “simulacro”, situação em que há a supremacia da imagem em detrimento do real, colocando este em questão.

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E, do ponto de vista psicanalítico, considera-se que o Homem foge na verdade do real, não da realidade, sendo assim, vejamos como o sujeito se relaciona com a cultura nos tempos atuais.

2.

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO: CULTURA, IMAGEM, TEMPO, ESPAÇO E

OS POBRES

De acordo com Debord (2005), a sociedade em que vivemos – sobretudo nas grandes cidades – é regida por imperativos midiáticos, ou seja, pela “cultura do espetáculo” a-liada à ordem da aparência, do consumo, do ter e ainda composta por um sujeito pou-co discursivo. Nesta perspectiva, na tentativa de pou-compreender a subjetividade deste sujeito, optamos pela análise de algumas produções culturais já que a linguagem tem perdido espaço discursivo de expressão na pós-modernidade e tem sido, cada vez, mais e mais, permeada pela imagem.

Na obra A sociedade do espetáculo (2005), o referido autor afirma que nos nossos dias, o sujeito prefere a imagem, a cópia de, a representação ou ainda a aparên-cia de ser ao invés da própria coisa em si. Deste modo, nos locais em que as condições atuais de produção ocorrem há um enorme acúmulo de “representações”, de espetácu-los. Tal espetáculo - parte do tecido social – é a sociedade e a unifica. Entretanto, é, ao mesmo tempo, algo separado, pois é também um foco sobre, uma perspectiva de olhar iludido. Deste modo, a unificação da sociedade por meio do espetáculo se dá por meio da linguagem oficial da separação generalizada. Dito de outro modo, as relações entre as pessoas – base para a constituição entre os sujeitos – ocorrem mediatizadas pelas imagens que cristalizam o mundo e, portanto, constituem o irreal da sociedade real. E aqui, inúmeras são as formas da manifestação do espetáculo. A saber: propaganda, publicidade, as muitas formas de entretenimento possíveis (filmes, peças de teatro, por exemplo) que são, em última instância, a ocupação principal do tempo vivido fora do âmbito da produção nestes tempos.

Ainda segundo Debord (2005), o cotidiano social – cindido em realidade e em imagem- é também a totalidade do real, e já que o espetáculo o cinde e o compõe ao mesmo tempo, faz dos signos que compõem o espetáculo, princípio e fim da produção deste. Em outras palavras, o espetáculo inverte o real e é produzido de forma que a re-alidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refa-zendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. Ou ainda, a realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade

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surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.

Diante da crise do estatuto do real, a idéia de que o desejo é desejo em si mesmo é desejo puro, pura “pulsão” pura tendência a desejar pode ser explorada no sentido de que o sujeito busca saber qual o objeto real do seu desejo. No entanto esse objeto real não existe em si mesmo. Segue-se que a tarefa de preencher esse desejo com algo - com algum objeto ou pensamento - é ideológica. A necessidade de dar um senti-do ao desejo pode ser uma resposta para a questão discursiva da injunção à interpreta-ção. Existe a necessidade de que o universo faça sentido para o sujeito, daí, que a ilusão sobre o universo pode ser uma ilusão discursiva.

O preenchimento do desejo puro é realizado pelo Capital, na medida em que este oferece e impõe produtos a desejar. Nesse sentido quando o sujeito afirma que de-seja algo, quando ele nomeia o desejo, pode estar julgando que aquele objeto é sua verdade, sua verdade interna. Nesse momento, o sujeito reduziria seu eu a um objeto. Esta pode ser a forma da reificação sujeito no Capitalismo tardio. Essa nomeação do desejo só pode ser uma “mentira”, uma fantasia implantada pelo capital. Fantasiamos com um universo que não existe como anteparo frente à crise do real.

Supondo que o universo não existe, a verdade tanto do sujeito como do uni-verso (do real) é o nada, o vazio. Esse uniuni-verso seria todo virtual. Portanto, a reificação não se dá com base em supostos objetos reais, a reificação do sujeito aqui é uma reifica-ção ideológica. Se o objeto desejado não existe fenomenicamente, então, a reificareifica-ção se dá assentada no “efeito de concretude” da ideologia do Capital.

Neste sentido, o comentário de Zizek sobre Kant é bastante apropriado. Este teria ido mais longe que descartes na duvida gerada por este: podemos ler a dúvida cartesiana como origem da duvida sobre a existência do universo. Não se trata de uma simples duvida, Kant tende mais a afirmar a não existência do universo. Zizek comen-ta1: “(...) uma fissura que previne que nós sequer imaginemos o universo como uma

to-talidade. A sexualidade aponta para o escândalo ontológico supremo da não existência do universo” (1993b, p.83).

Como conseqüência, não se pode falar em real e hiper-real sem falar no Outro. O Outro é o simbólico, que estrutura nossa realidade (como já dissemos). Em continua-ção, é nele que reside a nossa alienação constitutiva (cf. Zizek 2003b). No entanto, se

1 Tradução nossa do seguinte trecho: “(...) a certain crack which prevents us from even consistently imagining the

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existe alienação, existe separação também. A separação é o que faz com que o sujeito consiga ver que há uma inconsistência no grande Outro. Segundo Zizek (op cit.), esse grande Outro no qual nos alienamos, é em Matrix o supercomputador que controla tu-do, criando a realidade virtual. O real é o vazio da inconsistência simbólica, o furo do real no simbólico, o nada que é nossa essência. Diz Zizek:

Entretanto, o real não é a ‘verdadeira realidade’ por trás da simulação virtual, mas o vazio que torna a realidade incompleta ou inconsistente; e a função de toda matriz simbólica é esconder essa inconsistência justamente afirmando que por trás da realidade incompleta/inconsistente que conhecemos, há outra realidade sem o impasse da impossibilidade (2003b, p. 264-265).

Por que existe gozo-no-sentido ou gozo ideológico? Uma das respostas para isso vai no sentido de afirmar que o grande Outro se alimenta do nosso assujeitamento ao gozo ideológico, ou seja, do nosso gozo-no sentido. Esse Outro que nos assujeita pode ser encarado como a Matrix. Comenta Zizek:

A única resposta consistente é que a Matriz se alimenta da jouissance dos seres humanos – portanto estamos de volta à tese lacaniana fundamental de que o pró-prio grande Outro, longe de ser uma máquina anônima, precisa do constante in-fluxo de jouissance. É assim que devemos inverter o estado das coisas apresenta-do pelo filme. O que esse filme mostra como a cena de nosso despertar para a verdadeira situação é efetivamente o seu oposto, a própria fantasia fundamental que sustenta nosso ser (2003b, p.281).

Podemos ver o filme Matrix como uma metáfora dos tempos atuais, o que sig-nifica que teríamos uma espécie de Matrix, que fornece nossas narrativas mestras, nos-sa fantasia social. Em alguns momentos, surgem nódulos do real nesnos-sa fantasia, furos que atestam que o Outro possui algum grau de inconsistência. Assim, dando-se conta da inconsistência simbólica do Outro, que ele vê devido absurdo próprio do assujeita-mento, ele não suporta o resto não simbolizável do real, ele se protege com um des-mentido, que pode se constituir numa crítica às narrativas mestras da cultura. Parado-xalmente é esse próprio absurdo que faz tudo funcionar, numa formação de compro-misso ou no desmentido fetichista.

A fórmula do desmentido seria: “sei que isto não é o real, mas, ainda assim, acredito que seja”. Se quisermos enfatizar o caráter cínico desse sujeito que critica o que vê, mas que, mesmo assim, aceita e goza nesse lugar, poderíamos dizer que a fór-mula seria: “sei que isso não é o real, mas, finjo que é” ou “ajo como se fosse”.

Assim a fórmula fetichista que critica as narrativas mestras é: “sei que há furo do real (ou furo na Matrix), mas, mesmo assim, finjo que não há”.

À luz de Lacan (1985), afirmamos que o reconhecimento do furo do real talvez seja traumático para o sujeito, pois o furo do real consiste justamente no

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reconhecimen-to de que falta uma peça no Outro, de que a seqüência lógica do simbólico é pura in-consistência. Esse trauma do furo, absurdo que se coloca, paradoxalmente, como a condição da submissão à ordem simbólica.

Algo do real resiste em ser simbolizado, o que faz com que, não aparecendo no simbólico, esse algo apareça como espírito, como puro espectro: esse algo aparece no imaginário como alucinação. Num certo sentido somos todos espectros, porque nós, o eu real (“o pequeno a” ou le petit autre) não é simbolizável por completo, o que faz com que não haja relação sexual real pois, fazemos sexos com espectro. Assim, todo se-xo é sese-xo virtual. A sexualidade serve aqui como matriz das relações sociais reais, toda relação social é fantasmática, pois as relações sociais têm algo do pequeno a, mesmo que seja o mínimo (Cf. Lacan, 1985).

Se as relações sociais reais são virtuais - não são o real, retornamos à afirma-ção marxista de que a realidade - enquanto realidade ideológica- é uma inversão do re-al, Supostamente a realidade seria feita de “coisas concretas”. A verdadeira inversão não consiste numa deturpação dessas coisas, mas ao contrario, consiste na própria ine-xistência dessas coisas, consiste na eine-xistência do nada. As relações sociais em que vi-vemos são, portanto, algo que já sabíamos por outros textos: são ideológicas. São as fantasias que nos alimentam de gozo-no-sentido e, alimentam o grande Outro com nosso próprio gozo-no-sentido.

O gozo-no-sentido significa que o assujeitamento ideológico consiste em três partes: uma discursiva, (ou seja, uma mensagem cifrada), um componente ideacional, e obviamente, o gozo que acompanha todo assujeitamento. É por isso que a ideologia é um sintoma, ou seja, o sintoma da ideologia consiste no fato de que, mesmo depois de interpretada, a ideologia permanece. Por quê? Por causa do gozo, o gozo implicado no sintoma faz com que o sujeito ame seu sintoma. Assim chegamos a formula de Zizek (1992) que diz que o sujeito ama mais seu sintoma que a si mesmo. Sobre o gozo-no-sentido, Zizek afirma:

Podemos aprender com Pascal que essa ‘internalização’, por uma necessidade es-trutural nunca tem pleno sucesso, que há sempre um resíduo, um resto, uma mancha de irracionalidade e absurdo traumáticos que se agarra a ela, e que esse resto, longe de prejudicar a plena submissão do sujeito à ordem ideológica, é a própria condição dela: é precisamente esse excedente não integrado de trauma sem sentido que confere à Lei sua autoridade incondicional; em outras palavras, é ele que, na medida em que escapa ao sentido ideológico, sustenta o que poderí-amos chamar de jouis-sens ideológico, o gozo-no-sentido (enjoy-meant) que é próprio da ideologia (Zizek, 1999a, p. 321).

Debord (2005), neste sentido, corrobora com o posicionamento de Zizek, já que para esse no mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso. E

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neste sentido, o conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fe-nômenos aparentes. Ou ainda, o espetáculo termina por negar o visível, a vida ao mesmo tempo é que o momento histórico que nos contém.

Nos nossos dias, o espetáculo parece ser grandioso. Sua principal mensagem é parecer bom, por isso, deve ser aceito passivamente. Ele é o monopólio da aparência.

O exemplo dado por Zizek (2003) desta sociedade espetaculista quando co-menta o filme O show de Truman é pertinente neste debate. O personagem principal (Jim Carrey) descobre que é o astro principal de um reality show, e que todos ao seu redor volta estão representando papéis. Em termos psicanalíticos, isso atesta a fórmula lacaniana segundo a qual “não existe relação sexual”, ou seja, não existem, na verdade, relações entre pessoas, pois somos apenas espectros. É bom lembrar que a base das re-lações ideológicas fetichistas depende de uma realidade espectral, ou seja, depende dos espíritos. Sobre a importância de uma doutrina dos espíritos para o conceito de ideolo-gia, diz Zizek: “O cerne pré-ideológico da ideoloideolo-gia, consiste na aparição espectral, que preenche o buraco do real” (1999b, p.26).

Onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; a visão - sentido mais abstrato e o mais mistificável- corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o es-petáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É o con-trário do diálogo. Em toda a parte onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se.

Debord (2005) alerta-nos para o fato de que o espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental baseado em incessante alargamento da racio-nalidade técnica, já que ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. Temos assim que a vida concreta de todos se degradou em universo especulativo. Dito de outro mo-do, o espetáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos num além; a ci-são acabada no interior do homem.

Sendo assim e à medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário, afirmamos de pleno acordo com Debord (2005) que o espe-táculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que ao cabo não exprime

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se-não o seu desejo de dormir. Sono guardado pelo espetáculo. O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o auto-retrato do poder no momento da sua gestão totalitária das condições de existên-cia. A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter de relação entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece do-minar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais. Mas o espetáculo não é necessari-amente um produto do desenvolvimento técnico do ponto de vista do desenvolvimen-to natural. A sociedade do espetáculo é, pelo contrário, uma formulação que escolhe o seu próprio conteúdo técnico. O espetáculo, considerado sob o aspecto restrito dos meios de comunicação de massa - sua manifestação superficial mais esmagadora - que aparentemente invade a sociedade como simples instrumentação, está longe da neutra-lidade, é a instrumentação mais conveniente ao seu auto- movimento total.

O filme Matrix coloca em cena pessoas vivendo na realidade virtual, mas co-loca também que existe uma realidade real. A realidade virtual é vivida na mente, de modo que pode ser comparada, num certo sentido, à ideologia. A ideologia seria uma realidade virtual, no sentido de que, de certo modo, a ideologia está “em nossa cabe-ça”.

Aqui, temos um ponto importante: se o desejo é desejo puro, não é preenchido por nada (nenhuma entidade fenomênica), o preenchimento desse desejo dar-se-ia a cargo do Estado, do Capital, enfim, de algum Outro que assujeite nosso desejo, o que torna nosso desejo o desejo do Outro. O Outro fornece ao sujeito uma fantasia (estrutu-rada como linguagem, isto é, simbolizada, narrativizada), para que o sujeito goze-no-sentido e o Outro goze com o gozo do sujeito. O capitalismo tardio tratou de colonizar as ultimas regiões não colonizadas, como nossas fantasias. Afirma Zizek2:

A tese de Frederic Jameson sobre o pós-modernismo segundo a qual nesta época o capitalismo coloniza os últimos refúgios excluídos do seu circuito é trazida aqui às ultimas conclusões: a fusão entre capital e conhecimento faz surgir um novo tipo de proletário, como se fosse o proletário absoluto desprovido dos seus últi-mos bolsos de resistência privada; tudo inclusive as memórias mais intimas, é plantado, de modo que o que resta é agora literalmente o vazio da pura subjeti-vidade sem substância (subjetisubjeti-vidade sem substância, definição de Marx do pro-letário) (1993a, p. 10).

Ou seja, o espetáculo reúne o proletariado separado, mas reúne-o apenas en-quanto separado. Há a total alienação deste que assiste e contempla o espetáculo. O

2 Tradução nossa do seguinte trecho: It is as Frederic Jameson’s thesis on postmodernism as the epoch in which Capital

colonizes the last resorts hitherto excluded from its circuit is here brought to its hyperbolic conclusion: the fusion of capital and knowledge brings about a new type of proletarian, as it were the absolute proletarian bereft of the last pockets of private resistance; everything, up to the most intimate memories, is planted, so that what remains is now lit-erally the void of pure substanceless subjectivity (substanzlose Subjektivitaet-Marx’s definition of the proletarian) (1993, p. 10).

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proletariado contempla e não vive. Reconhece-se nas imagens dominantes em cena e menos se compreende a si e ao seu desejo. Os gestos são do outro. Deste modo, é pelo princípio do fetichismo da mercadoria que a sociedade atual se vê dominada pelas i-magens do espetáculo que é o ápice da ocupação deste na totalidade da vida, na medi-da em que o bem se confunde com a mercadoria e o ser com o ter. O Homem também é reificado já que reivindica a usa intimidade com a mercadoria. E assim a unidade irreal que o espetáculo proclama é a máscara da divisão de classe sobre a qual repousa a u-nidade real do modo de produção capitalista em que uma burguesia artificial não é ca-paz apenas de acumular, ela dilapida a parte de mais valia do trabalho local e ainda ao acumular o capital ela acumula o proletariado, e cria o seu próprio desmentido, num local em que ele ainda não existia, deixando esta massa de trabalhadores sem perspec-tivas, sem possibilidade de diminuir a miséria em que vivem e no prejuízo absoluto de se encontrar à margem da vida; ornamento dos poucos que possuem a riqueza. E, ain-da, pobres que vivem de acordo com o tempo da mercadoria, acrescido ao fato de que todo o tempo deve ser consumível, deve ser mercadoria, deve ser espetacular. Deste modo, o que foi representado como vida real, revela-se simplesmente como a vida mais realmente espetacular.

3.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme procuramos demonstrar, as produções culturais atuais desvendam o real por meio da fantasia na medida em que o sujeito deseja o real, mas ao mesmo tempo sabe que precisa fugir dele. O sujeito também foge da outra categoria, ou seja, a reali-dade, mas nesse próprio movimento acaba por aceitar a realidade como um anteparo contra a morte do real. Temos um nó, entre real, realidade e fantasia. Talvez possamos dizer que a realidade é o real com toque de fantasia; é o real sem o choque do real. E-xiste, portanto, um paradoxo fundamental na estrutura do desejo, que não pode ser visto por uma visão que simplifica a questão em termos de real/ hiper-real. Não dese-jamos uma fantasia hiper-real em detrimento do real. A realidade é a própria fantasia. Ou seja, há por trás da realidade que vemos um real não simbolizado. E assim, quando a arte tornada independente representa o seu mundo com cores resplandecentes, o momento da vida envelhece e não rejuvenesce com as cores resplandecentes. Ele deixa-se somente evocar na recordação. A grandeza da arte não começa a aparecer deixa-senão no poente da vida.

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Parafraseando Debord (2005), indicamos que a arte enquanto consumo espe-tacular torna a comunicação incomunicável, ou seja, toda a comunicação é alegremente proclamada ausente. Tal destruição está escondida já que o espetáculo tem como fun-ção nos fazer esquecer a história na cultura. Instaura-se, portanto, a falsa novidade da arte por meio de estratégias midiáticas predominantemente a serviço do projeto geral capitalista que recompõe detritos ou híbridos estético-técnicos no urbanismo, recons-truindo a vida em grupo sem comunidade.

A cultura espetacular é, portanto, mercadoria-chefe dos nossos tempos e como tal tem como base a ideologia já que é materialização ideologizada espetacular, ou ain-da, deformações do real produzidas de modo autonomizado da não-história que visa ao empobrecimento, à submissão e a negação da vida real. Deste modo, na pós-modernidade, a sociedade se torna esquizofrênica ou de autismo generalizado porque consegue desinserir da práxis a possibilidade de uma pessoa reconhecer a sua realida-de quando faz da consciência do espectador prisioneira da cena espetacular. Dito realida-de outro modo, ocorre a possibilidade da articulação entre ideologia e a alienação na constituição da nossa visão de mundo. No entanto, o fetichismo pode ser outra manei-ra que o sujeito dispõe pamanei-ra negociar com o desejo, negociação esta que se apresenta como formulada no desmentido fetichista.

Sendo o fetichismo uma das características principais do capitalismo contem-porâneo, como propõem Zizek (1999a) e Luckács (2003), nossa suposição é a de que a sociedade contemporânea pode estar passando por um momento fetichista, ou então, de que o fetichismo, através do desmentido fetichista, explica o momento atual.

O sujeito fetichista teria uma lógica mais cínica em relação ao desejo, ou seja, o fetichista sabe que não é aquele o alvo real do seu desejo, mas, mesmo assim ele o de-seja. Como afirma Zizek (1999a), a máxima do fetichista é “Sei que mamãe não tem o falo, mas ainda assim, acredito que o tenha”. O sujeito pode criticar a realidade, mas acaba concordando cinicamente em viver nela, como se dissesse: “sei que o mundo não é bom, mas, ainda assim, acredito que seja”.

Além disto, questionamos, se desejo cultural seria realmente o de criticar essa nossa visão da realidade, ou se, na verdade, através de um simulacro de desconstru-ção, reafirmamos aquilo que estamos criticando? Ou seja: será que criticamos a reali-dade, mas na verreali-dade, desejamos essa mesma realidade que criticamos.

Portanto, da perspectiva deste artigo, consideramos que o estatuto do real e da realidade não se tornou confuso apenas na literatura, nas artes ou nos reality shows:

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ele atravessa nossa própria constituição subjetiva e nossa visão de mundo. E, podemos dizer que o paradoxo do desejo - que se apresenta na noção freudiana de formação de compromisso em que há uma espécie de acordo entre o desejo inconsciente e a consci-ência - eventualmente aparecem no sujeito, por meio de desejos que não são aceitos pe-la consciência, por serem “inadequados” socialmente e, por isto, movem o sujeito a u-sar a consciência, a fantasia social em que estamos imersos como defesa frente ao dese-jo real traumático. A lógica é a de se o desedese-jo é fonte de prazer em uma parte de nós, é fonte de desprazer em outra, de modo que para o desejo subsistir, ele negocia uma maneira socialmente aceitável para se manifestar.

Portanto, para nós, o estatuto do real e da realidade não se tornou confuso a-penas nas artes ou nos reality shows: ele atravessa nossa própria constituição subjetiva e nossa visão de mundo. O desejo na verdade é desejo de nada: é desejo puro (Safatle, 2003). Aqui encontramos a resposta para “Por que acordamos do nosso sonho?”. A-cordamos porque quando dormimos e sonhamos, chegamos muito perto do desejo pu-ro, que é na verdade desejo de nada.

Em suma, o espetáculo é pseudo-acontecimento, subproduto consumível dos nossos tempos que, como organização social, paralisa a história e a memória. O Ho-mem está separado do seu próprio tempo num espaço que tem a distância suprimida pelo social ao mesmo tempo em que promove as aglomerações urbanas privadas do sentido de coletividade. E, neste cenário a perda da linguagem da comunicação expri-me positivaexpri-mente o moviexpri-mento de decomposição moderna de toda arte, o seu aniqui-lamento formal e a substituição pela sucessão de imagens espetaculares. E ainda, o es-petáculo é a fábrica da alienação; fábrica que é constituída por imagens; que engole o que é atividade humana e vomita na forma coagulada da imagem, agora, também – por meio do processo de reificação-mercadoria.

REFERÊNCIAS

Baudrillard, J. (2004). À sombra das maiorias silenciosas. São Paulo: Editora Brasiliense. Debord, G. (2005). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.

Jameson, F. (2002). Pós-modernismo:Lógica cultural do capitalismo tardio. (2ª ed). São Paulo: Ática.

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 20: Mais ainda (2ª. ed.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Luckács, G. (2003). História e consciência de classe: Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.

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Safatle. V. (2003). O ato para além da lei: Kant com Sade como ponto de viragem do pensamento lacaniano. In V. Safatle (Org.), Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. São Paulo: Unesp.

Santos, J. F. (1994). O que é pós-moderno (2ª ed). São Paulo: Brasiliense.

Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

______. (1993a). Cogito: The void called subject. In Tarrying with the negative: Kant, Hegel and the critique of ideology. Durham: Duke University Press.

______. (1993b). On radical evil and related matters. In Tarrying with the negative: Kant, Hegel and the critique of ideology. Durham: Duke University Press.

______. (1999a). Como Marx inventou o sintoma? In S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.

______. (1999b). Introdução: O espectro da ideologia. In S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.

______. (2003a). Matrix: Ou os dois lados da perversão. In W. Irwin (Org.), Matrix (1ª edição) São Paulo: Madras.

______. (2003b). Bem vindo ao deserto do real: Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo.

Fabio Elias Verdiani Tfouni

Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa pela Unesp – Araraquara.

Nilce da Silva

Profa. Dra. da Faculdade de Educação da Uni-versidade de São Paulo.

Referências

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