• Nenhum resultado encontrado

AFROFUTURISMO: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA A PARTIR DA LITERATURA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "AFROFUTURISMO: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA A PARTIR DA LITERATURA"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 6 | Nº. 1 | Ano 2020

Roberta R. Bahia Tszesnioski Gilson Leandro Queluz

AFROFUTURISMO: A CONSTRUÇÃO DA

IDENTIDADE NEGRA A PARTIR DA

LITERATURA

____________________________________

RESUMO

Este artigo tem como intuito apresentar uma discussão, ainda recente, sobre o movimento afrofuturista presente na literatura brasileira. O afro-futurismo é um movimento artístico, estético, político e cultural que surge do encontro entre tecnologia e ficção científica, que se entrelaçam com as questões da diáspora, da escravidão e racismo vividos pelos ne-gros em meio à modernidade. Esse movimento se manifesta por inter-médio da literatura, cinema, moda, artes, etc. Pode-se afirmar que os artistas afrofuturistas buscam histórias negras que foram apagadas por uma visão eurocêntrica. Entendendo que essas histórias trazem a trajetó-ria de um povo, sua ancestralidade, sua identidade, sua religiosidade etc., o afrofuturismo ao recuperar essa essência, nos leva a dimensão de entendermos e aceitarmos a nossa negritude.

PALAVRAS-CHAVE: Afrofuturismo; Literatura Brasileira; Lu Ain

Zaila

___________________________________

ABSTRACT

This article aims to present a discussion, still recent, about the Afro-Futurist movement present in Brazilian literature. Afrofuturism is an artistic, aesthetic, political and cultural movement that arises from the encounter between technology and science fiction, which are inter-twined with the issues of diaspora, slavery and racism experienced by blacks in the midst of modernity. This movement is manifested through literature, cinema, fashion, arts, etc. It can be said that Afrofuturist art-ists seek black stories that have been erased by a Eurocentric vision. I understand that these stories bring the trajectory of a people, their an-cestry, their identity, their religiosity etc., Afrofuturism when recover-ing this essence, takes us to the dimension of understandrecover-ing and accept-ing our blackness.

KEY-WORDS: Afrofuturism; Brazilian literature; Lu Ain Zaila.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br capoeira.revista@gmail.com

Editores

Fábia Barbosa Ribeiro fabiaribeiro@unilab.edu.br Marcos Carvalho Lopes marcosclopes@unilab.edu.br Pedro Acosta-Leyva leyva@unilab.edu.br

(2)

Afrofuturismo: a construção da identidade negra a partir da literatura

________________________________________________________________________________________________________________________________

AFROFUTURISMO: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

NEGRA A PARTIR DA LITERATURA

Roberta Reis Bahia Tszesnioski1 Gilson Leandro Queluz2

Introdução

Durante um longo tempo, as personagens negras quando retratadas na literatura brasileira foram representadas como desprovidas de linguagem, incapazes de se comunicar, dotadas de es-tereótipos e de forma caricaturada. Assim, o silenciamento desses grupos marginalizados recebeu valorização negativa da cultura dominante, ou seja, não se trata apenas da impossibilidade desse grupo falar, mas também, de não ter seu discurso reconhecido.

Spivak (2010, p. 12) afirma que não pode ocorrer nenhuma atitude de resistência em no-me desse grupo marginalizado, ele próprio precisa se representar, precisa falar, e não ter seu dis-curso terceirizado, ter seu disdis-curso construído por outro. Dessa forma, este artigo tem por objeti-vo apresentar as personagens negras não mais numa posição de subalternidade, mas a partir do olhar do escritor negro, que buscará desconstruir todo um discurso hegemônico, homogêneo e estereotipado dessas personagens.

Para tanto, abordaremos a literatura afrofuturista, pois entendemos que ela é importante no processo de construção identitária dos indivíduos negros ao buscar por referências ancestrais de cultura, religião e sociedade, sendo uma narrativa que não apenas dá voz aos negros, mas que ao fazer isso recupera a História dos povos africanos e suas contribuições para as diversas socie-dades. Para isso, utilizaremos como análise o conto “Era Afrofuturista” do livro Sankofia3: bre-ves histórias sobre afrofuturismo, da autora Luciene Marcelino Ernesto (2018).

1Mestra em Tecnologia e Sociedade. Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

2 Doutor em Comunicação e Semiótica. Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

3Segundo Nascimento (2007, p. 41), “Sankofa, palavra em tuí, língua que pertence ao grupo linguístico dos povos

akan da África Ocidental, significa a sabedoria de conhecer o passado para melhor construir o presente e o futuro. Símbolo ideográfico, o conceito Sankofa passou a representar a busca dos africanos por suas próprias referências históricas e epistemológicas e pela valorização de sua cultura que o processo colonialista tentou desprezar e destruir”.

(3)

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 241 Afrofuturismo e a identidade negra

O afrofuturismo é um movimento estético, político e cultural que surge do encontro entre tecnologia e ficção especulativa, no qual encontramos a ficção científica, que se entrelaçam com a história do povo africano antes e depois da diáspora, com a escravidão e com as diversas for-mas de determinismos raciais vividas pelos sujeitos negros, seja pelos projetos de segregação ou pelo mito da democracia racial. Este movimento se propõe a redirecionar nosso olhar para a his-tória numa perspectiva afrocêntrica, no qual mulheres e homens negros são protagonistas de suas narrativas, expressões, manifestações. Podemos encontrar a estética afrofuturista em diversas manifestações artísticas, como na literatura, moda, fotografia, maquiagem, música, cinema e de-sign. Essa estética é marcada pelo diálogo entre ancestralidade, ficção especulativa, realismo mágico, fantasia, mitologia, sonoridade tribal, entre outros elementos. Desse modo, podemos afirmar que o afrofuturismo procura dar à luz ou desenterrar as histórias e contribuições dos po-vos africanos, antes e pós-diáspora, e sua importância na construção de uma ciência, tecnologia e ficção científica, que foram escondidas por uma visão de mundo eurocêntrica.

Este vocábulo foi criado pelo crítico cultural Mark Dery, em seu ensaio Black to the

futu-re (1994). Apesar de o movimento afrofuturista existir antes mesmo de futu-receber esta

terminolo-gia, o conceito surge a partir de uma entrevista de Dery com escritores negros americanos em que foi lançado o questionamento do por que existiam poucos escritores afro-americanos no campo da ficção científica, tendo em vista que este gênero literário permite o encontro com o outro, (a escravidão fez com que os negros africanos fossem retirados de sua terra e levados a terras estranhas, que até então lhes eram desconhecidas; o alienígena – presente na ficção cientí-fica – representaria esse estranhamento) nesse caso, o estranho numa terra estranha, algo que pa-recia ser interessante para tratar as questões que envolviam as experiências de escritores afro-americanos.

Kodwo Eshun, crítico cultural, explica que:

A ficção científica é importante, nesse contexto, porque como tal, ela é reformulada à luz da história afrodiaspórica. O afrofuturismo, portanto, encena uma série de retornos enigmáticos para a constituição do trauma da escravidão à luz da ficção científica (ESHUN, 2003, p. 299).

Esse movimento pode ser explicado a partir da diáspora4, que impulsionou o deslocamen-to da liberdade para a escravidão, envolveu um processo de destruição do passado africano e

4 A Fundação Cultural Palmares define assim a diáspora africana: “A diáspora africana é o nome dado a um fenômeno caracterizado pela imigração forçada de africanos, durante o tráfico transatlântico de escravizados. Junto com seres humanos, nestes fluxos forçados, embarcavam nos tumbeiros (navios negreiros) modos de vida, culturas, práticas religiosas, línguas e formas de organização política que acabaram por influenciar na construção das sociedades às quais os africanos escravizados tiveram como destino”.

(4)

Afrofuturismo: a construção da identidade negra a partir da literatura

________________________________________________________________________________________________________________________________

das relações materiais e simbólicas que o ligavam a sua condição de origem, o apagamento de sua identidade, a expropriação de seu trabalho, a negação de sua própria história e a marginalização a que fomos submetidos. Por isso, em especial, nas narrativas afrofuturistas há um resgate dos elementos que possam ajudar a reconstruir a identidade do povo negro a partir de um retorno ao passado africano antes da diáspora5. Nisso, passado, presente e futuro se

en-trelaçam e dialogam constantemente; nesse sentido, o retorno ao passado permite que se projete um futuro diferente destacando as potencialidades da população negra, o que está sendo feito constantemente no presente. Outrossim, este movimento se propõe a contar a História africana que não foi contada; segundo o antropólogo Kabengele Munanga:

A história da África e a história da diáspora se encaixam e se complementam dialetica-mente, sendo que a história da África estará incompleta se não incluir a sua continuida-de na diáspora a partir do tráfico negreiro nas Américas, assim como a história da diás-pora será incompleta se a sua elaboração não partir das raízes africanas e dos aconteci-mentos históricos que os provocaram (1988, p. 7).

Sendo assim, podemos afirmar que o afrofuturismo é uma manifestação cultural dentro de uma perspectiva popular e que através de diversas manifestações artísticas traz à tona toda uma história negra que foi apagada e ao mesmo tempo, ao tentar recuperá-la, reconfigura uma nova cultura negra. Entendemos como cultura a definição trazida por Raymond Williams e posterior-mente por Stuart Hall. Williams, no livro Cultura e Sociedade, ao mostrar como a palavra cultu-ra, no decurso histórico, teve seu significado alterado, explica que cultura “significava um estado ou um hábito mental ou, ainda, um corpo de atividades intelectuais e morais; agora, significa também todo um modo de vida” (WILLIAMS, 1969, p. 20). O autor acrescenta que a ideia de cultura está também associada às formas como nossa vida foi sendo transformada, passando por diversas mudanças que dialogam com as modificações de nossa condição humana.

Segundo Williams, “A história dos acontecimentos se faz alhures (em outro lugar), na história geral. Mas as definições e significados que demos a esses acontecimentos, cuja história é a história da ideia de cultura, só podem ser compreendidos no contexto de nossas ações” (WILLIAMS, 1969, p. 305). Portanto, cultura está intrinsicamente relacionada às práticas soci-ais, e como também nos constitui enquanto sujeitos, por meio dela, ao construirmos nossas iden-tidades, construímos novas formas de enxergar os outros e as relações que se fazem no e com os demais sujeitos.

Podemos compreender cultura como sendo um modo de vida baseado nas relações soci-ais, que é transpassada por questões políticas, econômicas, ideológicas, podendo ser apresentada e representada por intermédio das artes plásticas, esculturas, pinturas, filmes, literatura, etc.

(5)

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 243

sa maneira, além de ser produzida pelos indivíduos historicamente situados, ela também pertence a todos, e não a um grupo específico de pessoas que define quem pode ou não ter acesso a ela, ou que define quem é dotado de capacidade para produzi-la. Podemos fazer da cultura um campo de luta e de mudança social e política, a qual estaria pautada em uma sociedade que prime pela igualdade. Segundo Stuart Hall:

A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma “arqueologia”. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identi-dades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma ontologia, de ser, mas de se tornar (2003, p. 44).

Por isso, a cultura é tão importante no processo de construção identitária de um povo, de um grupo, de pessoas. E por isso, costuma ser o foco dos processos de apagamento histórico. Is-so pode ser evidenciado, especificamente, no procesIs-so colonial, no qual os negros foram obriga-dos a esquecer de suas histórias, tradições, língua, religiosidade, tendo que através da memória reorganizar toda sua cultura antes do processo diaspórico para mantê-la viva, dando novas cono-tações, novas significações, o que foi de extrema importância pra manter suas histórias vivas e podendo ser transmitidas a gerações futuras na luta pelo seu processo de empoderamento.

Nisso reside a relevância do movimento afrofuturista, pois evidencia que a cultura e a identidade coletiva e individual são construídas historicamente, estando associadas à ideia de pertencimento e de identificação. Segundo Stuart Hall:

Esse sentimento de pertencimento a uma determinada cultura depende da representação que se tem de um determinado contexto. Tal mecanismo se reflete e refrata da história, mitologia, memória, imagens, e tudo aquilo que faça o sujeito se identificar, com ênfase na continuidade desse processo. A representação é uma forma de reivindicar a diferença e o pertencimento dentro de um universo de identificações” (2006, p.47).

Nesse processo de construção, a identidade negra é permeada e imbricada por outras identidades, sendo um processo de construção histórica, que acontece também no coletivo, e não algo intrínseco ao ser humano. Nisso há, também, a ideia de pertencimento à sociedade em que se está inserido, a nova cultura construída, sem deixar de lado suas raízes históricas e culturais. Desse modo, a tradição é revisitada e ressignificada.

Para o antropólogo Kabengele Munanga (1988, p. 68), a ideia de negritude e/ou identida-de negra não é apenas uma questão que passa pelo viés biológico, mas que atravessa a história dos povos africanos e da diáspora, “os negros africanos foram vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem sido suas culturas não apenas objetos de políticas sistemáticas de

(6)

des-Afrofuturismo: a construção da identidade negra a partir da literatura

________________________________________________________________________________________________________________________________

truição, mas, mais do que isso, de ter negado a existência dessas culturas” (Idem p. 70). Logo, a identidade é uma construção atrelada à ideia de pertencimento social e cultural de um povo.

O pesquisador mostra que existem fatores que são preponderantes na construção da iden-tidade negra, a saber: fator histórico, linguístico e psicológico. Esses fatores ora interagem, ora se distanciam. Dentro da perspectiva afrofuturista, o fator histórico é o predominante, pois “consti-tui-se como base cultural porque une os elementos diversos de um povo através do sentimento de continuidade histórica vivida pelo conjunto de sua coletividade” (MUNANGA, 1988, p. 7). A partir desse retorno ao passado, passa-se a conhecer a sua história e mediante essa redescoberta, a história poderá ser transmitida a gerações futuras por meio de um novo olhar, não mais do co-lonizador, mas pelas vozes dos colonizados.

A literatura afrofuturista: conto “Era Afrofuturista”.

No Brasil, ainda é recente a discussão sobre o afrofuturismo e as pesquisas sobre esse te-ma ainda são poucas, em especial na literatura, destacando-se Kênia Freitas (2015). Contudo, alguns escritores têm aparecido no cenário literário, como Luciene Marcelino Ernesto (conhecida por Lu Ain Zaila), Fábio Kabral e suas obras Ritos de passagem(2014), O Caçador Cibernético

da Rua 13(2017) e A Cientista Guerreira do Facão Furioso(2019) e Julio Pecly, autor de a Ci-dade de Deus Z (2015). A maneira como essas obras são divulgadas merece atenção, pois são

utilizadas como instrumentos de sua propagação as redes sociais, as páginas na internet, os blogs. Na sua maioria, são obras que não são patrocinadas pelas editoras que têm destaque no cenário nacional.

Para elucidar ou buscar compreender como a escrita periférica, marginal e afrofuturista é uma das formas de produção cultural e que é um instrumento de autorrepresentação, analisare-mos o conto intitulado “Era Afrofuturista”, presente no livro Sankofia: breves histórias sobre

afrofuturismo, da autora Luciene Marcelino Ernesto (2018). O conto analisado narra a visita de

um menino com o seu pai (que é pesquisador) ao Centro Cultural do Afrofuturismo onde o ado-lescente vai passar pelo processo de autoconhecimento ao revisitar a história registrada pelos seus ancestrais. Nesse conto, no futuro, as diferenças raciais já teriam sido superadas. Conforme a autora vai construindo sua narrativa, ela vai trazendo as compreensões do movimento afrofutu-rista misturando ficção com conceitos não ficcionais.

A ambientação do espaço no conto remete a cidades futuristas. A personagem relata ter a sensação de estar embarcando numa viagem espacial quando entra no super trem, como naquelas de ficção, onde só via linhas brilhantes. Outro elemento futurista, que marca a arquitetura do prédio do Centro Cultural, também se entrelaça com elementos de arte urbana contemporânea,

(7)

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 245

quando a personagem relata que assim que colocou o pé na área ampla, se viu diante de um pré-dio de quatro andares, espelhado e com a longa fachada do primeiro andar toda grafitada (ERNESTO, 2018).

O primeiro questionamento feito pela criança é sobre como era ser negro na época em que o afrofuturismo havia começado. O pai responde que foi um trabalho árduo de reconheci-mento de si mesmo e de seu lugar no mundo, pois as pessoas insistiam em dizer que os negros não tinham o direito de estar no futuro. Nesse diálogo podemos identificar um dos argumentos do crítico cultural Mark Dery, já citado anteriormente, que questionava como que numa narrativa especulativa, futurista e de ficção científica não havia a representação de personagens negros, como também, poucos escritores negros.

Além disso, percebemos na fala do pai que o conhecimento de si mesmo foi um processo árduo; isso mostra que “o processo de construção da identidade negra se dá a partir da tomada de consciência das diferenças entre o ‘nós’ e os ‘outros’” (MUNANGA, 1988, p.5). Porém, este grau de consciência não é igual para todos, tendo em vista que cada indivíduo vem de contextos diferentes. O afrofuturismo permite recuperar esses valores históricos e ressignificá-los a fim de possibilitar esse novo olhar para si mesmo. Outro ponto a ser destacado é a importância da cons-ciência histórica, que será construída na coletividade e a partir disso, o povo conhece sua verda-deira história para transmiti-la às gerações futuras. No conto, esse processo de autoafirmação se-rá comparado com o poder de um telepata. Assim, a partir de toda a história africana que está sendo materializada naquele centro cultural, o menino poderá construir sua negritude em outras bases:

É como se hoje eu despertasse o telepata que há em mim para guiar você, e aqui diante de nós está seu rito de iniciação, onde... você será imbuído dos mesmos poderes que eu e sua mãe temos, que todos aqui possuem (ERNESTO, 2018, n.p.).

As representações dos grupos sociais, sendo eles minorias ou não, circulam no meio soci-al e produzem sentidos, significados e consequências, que podem ser positivas (se forem os gru-pos que estão dentro de um sugru-posto padrão) ou negativas (se forem os grugru-pos que fazem parte do que se intitulam como a minoria). Entretanto, algumas representações ganham maior destaque, visibilidade e status sendo consideradas como expressão da realidade social. Nesse caso são re-presentações construídas sob o olhar eurocêntrico, civilizado, branco, heteronormativo. Assim, se o indivíduo detém essas características ele será bem aceito nos ambientes em que circula; caso não atenda essas características, será excluído socialmente.

Lia Vainer Schucman (2014) traça um perfil do que a sociedade enxerga como padrão, o que está atrelado a estética, num primeiro momento, e que a partir dessa estética serão fornecidas atribuições no campo moral, ético, intelectual.

(8)

Afrofuturismo: a construção da identidade negra a partir da literatura

________________________________________________________________________________________________________________________________

No Brasil há uma hegemonia da estética branca veiculada pelos meios de comunicação em massa. Isso significa pensar que cabelos lisos, pele clara, olhos claros e traços afina-lados façam parte do modelo vigente de beleza em corpos humanos (2014, p.88).

Dessa forma, o poder que o pai e a mãe do menino têm, bem como dos demais adultos que estão visitando o Centro Cultural, advém da negação desse padrão eurocêntrico, reconhe-cendo sua negritude, ou seja, tornando-se negro. Assim, é importante reconhecer que há uma memória histórica, há uma diversidade das formas como o corpo negro se apresenta e se cons-trói, há um contexto social e cultural. Nessas bases é gerado o poder que o pai menciona.

Destacamos que o pai, por ter tempo livre, é quem leva o filho para conhecer o Centro Cultural Afrofuturista, enquanto a mãe está no trabalho. Percebemos a quebra de paradigmas so-bre o papel social historicamente destinado às mulheres. Nesse conto as personagens negras não são apresentadas de forma subalternizada, mas providas de conhecimento e capacidade discursi-va. Destaca-se a figura da matriarca, que é apresentada como uma professora universitária. Em um momento da narrativa, quando o menino está a passear pelo museu, ele interpela o pai sobre o fato da mãe não estar visitando o centro cultural junto com eles. Na resposta do pai, temos a afirmação:

– Bem, a sua mãe não veio porque ela é um tipo de possibilitadora de afrofuturistas de nível acadêmico e quando surge um problema que não tem como resolver, sem ser pre-sencialmente ela precisa comparecer, uma obrigação que assumiu como reitora de uma universidade federal prestigiada. Em suma, a sua mãe é uma heroína com um superes-cudo feito pelos deuses negros do Panteão das Palavras que a escolheram para... – Pai? A mamãe não é super-heroína e não tem escudo.

–Ah...mas que criança pouco imaginativa. Tenha em mente uma coisa, sua mãe não está com a gente neste exato momento por causa do seu imenso poder de argumentação e se posicionar. E quando ela fala, as pessoas ouvem, respeitam querendo ou não (ERNESTO, 2018, n.p.).

Nessa passagem constatamos que a literatura escrita por mulheres negras rompe com os estereótipos que foram construídos e reafirmados até então na literatura brasileira, reiterando seu valor como mulher que fala e é ouvida, uma vez que suas vozes foram silenciadas e interpeladas; que produz conhecimento, que não é sexualizada, e que é fundamental na construção do país. Nisso podemos afirmar que a literatura feminina afro-brasileira tem um potencial de revisar e questionar toda uma construção caricaturada dessa mulher. Assim, verificamos que o fazer literá-rio de Luciene Marcelino Ernesto busca ressignificar narrativas sexistas, discriminatórias, que há muito têm sido produzidas na cultura brasileira. Dessa forma, temos a personagem negra como um ser que não tem o seu discurso enviesado pelo outros, que tantas vezes elaboram representa-ções equivocadas.

(9)

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 247

A feminista negra, estadunidense, bell hooks 6 (2019) problematizou o lugar da

intelectu-alidade feminina negra, mostrando que seu fazer literário é uma forma de enfrentamento ao ra-cismo, pois questiona o lugar de subserviência destinado às mulheres negras. E esse lugar, que faz parte do imaginário brasileiro, é tido como verdade inquestionável. Conceição Evaristo ao retratar a mulher negra na literatura afirma que as escritoras negras buscam incluir em sua narra-tiva imagens de autorrepresentação, assim:

Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do outro como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. (EVARISTO, 2005, p. 54)

Além disso, a personagem quando “fala, as pessoas ouvem, respeitam querendo ou não”. Percebemos, assim, a importância do discurso como mecanismo de poder e espaço de disputa. Até a forma de constituir-se como sujeitos, por intermédio da linguagem, foi retirada dos negros, em especial da mulher, que era mais subalternizada que o homem negro, o direito de ter sua dig-nidade humana respeitada. Por isso a importância de ter uma personagem que exerce o direito de poder falar, de poder ser ouvida, de produzir conhecimento através de seu discurso.

Ao adentrarem ao museu o menino se depara com a imagem de duas estátuas banhadas em bronze, a de uma mulher e um homem, cada um com um pequeno globo na mão com os dize-res: “as primeiras negras e negros futuristas sem nome desde tempos imemoriais na África e Di-áspora. Nosso reconhecimento aos sacrifícios e agradecimento pelo doar de suas vidas” (ERNESTO, 2018, n.p.).

O passeio começa pelo terceiro andar, descendo até chegar ao primeiro como uma com-paração ao mergulho que será realizado na própria história. Na entrada desse andar havia nas paredes vários símbolos sendo todos sankofa. Logo na entrada desse andar a seguinte frase: “Aqui não há máquinas do tempo” (ERNESTO, 2018, n.p.). E ainda diversas frases escritas nu-ma língua não conhecida pelo adolescente. Nisso se enfatiza a existências de línguas africanas sofisticadas e complexas. Isso é importante na narrativa, pois desconstrói uma equivocada ideia de que não havia uma escrita desenvolvida entre os povos africanos. Assim, a própria definição de escrita precisa ser compreendida.

Seguindo pelo mesmo andar, pai e filho entram na exposição Impérios da África, onde há a narração das várias dinastias ou civilizações africanas, merecendo destaque a egípcia, ressal-tando-se a grandiosidade das pirâmides. Visitam, também, a exposição holográfica Papirus

Áfri-ca, em que são apresentados papiros matemáticos africanos datados antes de Cristo, que

ensina-6 Por opção política, a autora sempre assina suas obras com o seu nome em letra minúscula, pois acredita que assim a ênfase será dada ao conteúdo de seus textos e não a si mesma. Segundo a própria autora: “o mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu”. Disponível em

(10)

Afrofuturismo: a construção da identidade negra a partir da literatura

________________________________________________________________________________________________________________________________

vam a calcular volume, área de triângulo, funções básicas de álgebra, trigonometria, e que tive-rem seus nomes alterados por aqueles que o tomaram de seus países de origem. É sabido que os povos africanos produziram conhecimento, ciência e tecnologia, contudo, esses conhecimentos não eram comumente propagados porque se intencionava reforçar a ideia de inferioridade desses povos e de seus descendentes7. De todas as crueldades advindas da colonização dos povos

afri-canos, uma das mais marcantes foi que a redefinição dos padrões culturais sob a perspectiva eu-rocêntrica dissolveu os conhecimentos produzidos, descontextualizou os saberes populares, hie-rarquizou esses saberes estabelecendo uma relação de dominação e exploração. E este silencia-mento se efetivou em todas as modalidades, seja na literatura, na arquitetura, engenharia, medi-cina etc., ou seja, há uma negação das contribuições histórico-culturais, como tentativa de apa-gamento da existência desse povo. Então, nesse andar do Centro Cultural, há um resgate e rea-firmação dessas contribuições.

Na entrada do segundo andar está escrito, Aliens, vocês deviam ter previsto nossa

resis-tência. Em inglês o termo “alien” é usado tanto para designar: 1. algo ou alguém que vem de

ou-tro país, raça ou grupo, algo que é estranho a você. 2. algo que vem de ouou-tro planeta; extraterres-tre. O tema envolvendo alienígenas é frequente na ficção científica e é utilizado como uma metá-fora, no caso do afrofuturismo, para abordar a escravidão, por exemplo. O alienígena representa o outro, que se encontra em um ambiente estranho, que não o seu de origem. Isso pode ser com-parado com os africanos escravizados que foram retirados de seu mundo e colocados em outro que lhes era desconhecido e hostil, onde foi preciso se adaptar para não morrer. Para Freitas e Messias (2018, p. 410):

As populações negras em diáspora pós-escravidão são as descendentes diretas de alienígenas sequestrados, levados de uma cultura para outra (da África para a Europa e sobretudo para a América pelas rotas do Atlântico Negro). Ao longo dos séculos, nós negros, os descendentes dos aliens, já despossuídos da própria narrativa, fomos incorporados como o órgão estranho de novas sociedades: conti-dos e rechaçaconti-dos pelo corpo social.

Na literatura afrofuturista, os aliens também podem representar a visão eurocêntrica, co-lonialista, que buscou deslegitimar todo o conhecimento e histórias dos povos africanos. A des-crição do segundo andar se volta para a discussão sobre os movimentos de resistências das pes-soas negras, dos séculos XIX e XX, que foram importantes para a construção de um futuro onde

7Segundo Cunha Junior (2013, p. 19) “No pensamento africano sempre existe um conglomerado de fatores para compreensão dos fatos sociais. Nas sociedades africanas a ancestralidade indica sempre a presença do passado, interferindo na construção de novas realidades pela intervenção das gerações de seres humanos. A ancestralidade é territorializada (...) As histórias dos grupos humanos são profundamente dependentes das localidades, das potencialidades dos lugares e da intervenção dos grupos humanos nestes lugares. O conceito de afrodescendências toma em consideração esta necessidade de complexidade e de territorialidade vinda do pensamento africano. No entanto pensa com base na experiência dos descendentes de africanos escravizados na sociedade brasileira. Processa a existência conceitual de um grupo social cujas experiências comuns são as origens africanas e a passagem pelo escravismo criminoso”.

(11)

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 249

as desigualdades raciais sejam superadas. Nas paredes estavam afixadas fotos de cientistas, in-ventores e inventoras negras, idealizadores de coisas simples dos cotidianos e inventos extraor-dinários. São citados Elijah McCoy, que dentre seus diversos inventos, desenvolveu um lubrifi-cador automático que espalhava o óleo uniformemente sobre o motor de um trem enquanto este ainda estava em movimento. A invenção permitiu que os trens circulassem por longos períodos sem parar. Granville T. Woods que inventou mais de uma dúzia de dispositivos para melhorar vagões elétricos e muito mais para controlar o fluxo de eletricidade.

No primeiro andar, intitulado O futuro é o lugar e estamos nele, presente e passado

tam-bém, discorre-se sobre a importância de ressignificar o passado para que no futuro essas histórias

possam ser contadas. Neste futuro, que é o presente vivido pelo adolescente, a ideia de negritude já está enraizada na sua identidade. O afrofuturismo nos leva a questionar como a população ne-gra que teve seu passado apagado e roubado consegue vislumbrar um futuro. Em que bases his-tóricas esse futuro pode ser construído haja vista que a história nos é contada a partir da visão europeia. Por isso, para o movimento afrofuturista é importante olhar para a história não a partir da colonização, mas antes desse processo de rapto de sujeitos negros.

Assim, a intenção não é somente olhar para o passado ruim – que se efetivará a partir da colonização –, mas usar as histórias sobre o passado e o presente para reivindicar a história futu-ra contada agofutu-ra a partir do olhar africano. Pafutu-ra Ytasha Womack (2005, p. 30), o afrofuturismo é “uma reelaboração total do passado e uma especulação do futuro repleta de críticas culturais [...], uma interseção entre a imaginação, a tecnologia, o futuro e a liberação”. No futuro do conto, não se relata mais a subalternização, em diversas áreas e aspectos, da população negra. O passado contado é um passado de resistência.

No final do conto, no capítulo “Afrofuturismo: a soma de todos os passos. Em todos os tempos” há celebrações e projeções do movimento afrofuturista enfatizando que a partir desse movimento podem ocorrer mudanças nas estruturais sociais, haja vista que as pessoas quando de posse do conhecimento podem transformar a realidade a sua volta. Nesse ambiente há cinco en-tradas projetando um labirinto. Como essas enen-tradas não eram fixas, o que fosse visto em um dia, não seria visto no outro. Assim, o percurso se inicia pela segunda entrada onde o personagem é convidado a interagir com as imagens projetadas, como uma metáfora sobre o acesso e conexão com os acontecimentos que nos circundam.

Essas entradas levavam a diversos corredores, num deles estava descrito Segunda fase

afrofuturista (Brasil), aqui há vários dizeres de pessoas negras que através de sua arte e de suas

atitudes estavam mudando a futuro, ao qual pertencia o adolescente protagonista. Encontramos referência ao AfroSoundBeat, composição musical afrofuturista. No corredor seguinte intitulado

(12)

Afrofuturismo: a construção da identidade negra a partir da literatura

________________________________________________________________________________________________________________________________ Terceira fase afrofuturista (Brasil), encontramos referência ao que se denominou Experimentos Afrofuturos totalmente voltada à arte afrofuturista moderna. No próximo corredor Primeira fase afrofuturista (Brasil) nos é apresentada a arte sobre metal, madeira e alguns elementos das

mani-festações afro-brasileiras, aqui se faz referência as primeiras obras lançadas na América Latina pertencentes ao Primeiro Ciclo Afrofuturista, no séc. XXI, que continha escritores, pesquisado-res, cineastas, jornalistas, roteiristas, desenhistas, história em quadrinhos, músicos afrofuturistas.

Além dessas menções, nesse corredor temos a apresentação de filmes e livros que foram recordes de bilheteria no Brasil e blockbuster de status internacional, projetando a ideia de que o afrofuturismo teve um impacto no mundo. Aqui aparecem as produções de Nollywood8.

Tam-bém são expostos os grandes clássicos literários afrofuturistas brasileiro do século XXI, porém para acessá-los deveria se atravessar um corredor que era controlado por assistentes. Esses gran-des clássicos eram Duologia Brasil 2408, da própria autora, Lu Ain-Zaila; O caçador cibernético

da rua 13, de Fábio Kabral e O mensageiro das estrelas, de Anderson Assis, todos expoentes da

literatura brasileira afrofuturista contemporânea. Essas obras são utilizadas como referência de literatura para as próximas gerações de escritores afrofuturistas.

Assim, termina a jornada de autoconhecimento do adolescente, na sala dos clássicos lite-rários, nos mostrando a importância da literatura na elaboração e ressignificação de outros e no-vos olhares para as relações sociais, sem a construção de estereótipos, que por tantas vezes bali-zaram preconceitos e exclusões.

Considerações Finais

A escravidão e o projeto colonial representaram o negro como primitivo, selvagem, acul-turado e que precisava através do progresso ser civilizado pelo homem branco, burguês, europeu, que seria o modelo do desenvolvimento econômico. A história do povo africano sempre foi con-tada a partir da perspectiva do europeu e através desse olhar, que foi reafirmado diversas vezes e de várias formas, nós só conseguimos vislumbrar os negros africanos como alguma coisa que precisava ser salva das agruras que os cercavam, que viviam em um continente tomado pela ex-trema pobreza, pelas doenças. Quando existia um olhar supostamente positivo direcionado a es-ses indivíduos, esse olhar era marcado somente pelos animais selvagens e pelos safáris.

8 Nollywood é o “nome dado à indústria cinematográfica da Nigéria. São filmes produzidos em inglês, em sua maioria, mas que também podem ser falados em yorubá e hausá, alguns dos idiomas locais. É o terceiro país que mais produz filmes no mundo, atrás apenas de Hollywood (EUA) e Bollywood (Índia). Uma das principais características é que o cinema feito lá é um cinema produzido para e pelo povo, não para as elites. É cinema para o grande público. São mais de mil filmes por ano, todos de baixo ou baixíssimo orçamento” (LOPES, 2017).

(13)

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 251

Chimamanda Ngozi Adichie (2019, p. 2) nos chama a atenção para o perigo da história única contada sobre os sujeitos africanos e como a história e, em especial, a literatura legitima-ram essas narrativas. A autora acrescenta que a maneira como as histórias são contadas estão re-lacionadas com as estruturas de poder, sejam econômicas ou políticas. Há alguns princípios que farão com que essas versões da história sejam tidas como mais profícuas que se baseiam em questionar por quem essas histórias são contadas, em que contextos, como e quando elas são contadas.

Chimamanda Adichie citando o poeta palestino Mourid Barghouti diz:

Se você quiser espoliar um povo, a maneira simples é contar a história dele e começar com ‘em segundo lugar’. Comece a história com as flechas dos indígenas americanos, e não com a chegada dos britânicos, e a história será completamente diferente. Comece a história com o fracasso do Estado africano, e não com a criação colonial do Estado afri-cano, e a história será completamente diferente (ADICHIE, 2019, p. 2).

Vislumbramos que o conto analisado “Era Afrofuturista” procura mostrar as resistências e contribuições dos africanos, antes e depois da diáspora, e de seus descendentes na formação de novas possibilidades culturais nas sociedades em que foram submetidos no processo de escravi-dão. Essas resistências vêm em oposição a um projeto institucionalizado de apagamentos históri-cos desses sujeitos, impedindo-os até de se comunicarem em suas línguas. Porém, ainda que de forma clandestina, esses indivíduos mantiveram suas tradições, aquilo que os ligavam a seu país de origem, a sua história, apesar de toda a história oficial buscar constantemente mostrar que es-ses sujeitos não tinham histórias e que nem dotados de subjetividade eram. Compreendemos en-tão que o movimento afrofuturista, para além de ser um movimento estético e cultural, é político, pois recupera a história dos povos africanos olhando para o passado, bem antes da escravização, como forma também de resistência. Mediante isso, há o resgate de uma tradição, uma cultura, uma língua, uma ciência, uma tecnologia, ameaçadas pela brutalidade da colonização.

Dessa forma, o conto procura estabelecer e fortalecer a cultura negra, mostrando as suas influências nas raízes africanas e como o movimento diaspórico elabora uma nova cultura, que tem como contribuição ser uma cultura híbrida; assim, a partir de uma cultura, outras vão sendo criadas em suas diversas manifestações. Desse modo, a literatura afrofuturista é um espaço de contestação de algumas imposições culturais e consequentemente de estratégias de intervenção e modificação nas ideias que se têm de cultura, de povo e de sociedade. Acrescentamos que no conto há o esforço de mostrar que os povos africanos, diaspóricos e afrodescendentes contribuí-ram com a criação e invenção de uma nova cultura, elaborando novas formas de espiritualidade, produção tecnológica, conhecimento, subjetividade, sociabilidade. As novas culturas criadas também são projetos políticos, que trazem em seu bojo não somente a dimensão da resistência,

(14)

Afrofuturismo: a construção da identidade negra a partir da literatura

________________________________________________________________________________________________________________________________

mas também a dimensão da esperança, da presença de negros em todos os espaços sociais e da perspectiva de mudança.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

CABRAL, F. Ritos de passagem. Rio de Janeiro: Giostri, 2014.

CABRAL, F.O Caçador Cibernético da Rua 13. Rio de Janeiro: Malê, 2017. CABRAL, F. A Cientista Guerreira do Facão Furioso. Rio de Janeiro: Malê, 2019.

CUNHA JUNIOR, H. “Afrodescendência e africanidades: um dentre os diversos enfoques possí-veis sobre população negra no Brasil”. In: Interfaces de Saberes (FAFICA. Online), v. 1, p. 14-24, 2013.

DERY, M.. “Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate and Tricia Rose”

In: Flame wars: the discourse of cyberculture. Durham: Duke University Press, 1994.

ERNESTO, L. M. Sankofia: breves histórias sobre afrofuturismo. Rio de Janeiro, 2018. FREITAS, K.(org.). Afrofuturismo: Cinema e Música em uma Diáspora Intergaláctica, São Paulo: Provisório Permanente Produções, 2015. Disponível em

http://www.mostraafrofuturismo.com.br/Afrofuturismo_catalogo.pdf

FREITAS, K.; MESSIAS, J. “O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessi-mismo -as distopias do presente”. In: Imagofagia - Revista de La Asociación Argentina de Estudios de Cine, n. 17, p. 402-424, 2018

ESHUN, K. “Further considerations on afrofuturism”. In:CR: The New Centennial Review, v. 3, n. 2, p. 287-302, 2003.

EVARISTO, C. “Literatura negra: uma poética da nossa brasilidade”. In: SCRIPTA, Belo Hori-zonte, v. 13, n. 25, p. 17-31, 2009.

FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Diáspora Africana, você sabe o que é? Disponível

em http://www.palmares.gov.br/?p=53464. Acesso em 11/08/2020.

HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

HALL, S. A identidade cultural na pós modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HOOKS, B. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

LOPES, C. ‘O que podemos aprender com Nollywood? Um paralelo entre o cinema nigeriano e o cinema brasileiro’. In: Revista Moviement, s.n., 25/03/2017. Disponível em

(15)

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.6 | Nº. 1 | Ano 2020 | p. 253

https://revistamoviement.net/o-que-podemos-aprender-com-nollywood-92d308e26821. Acesso

em 11/08/2020.

MUNANGA, K. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988.

NASCIMENTO, E. L. O tempo dos povos africanos. Ministério da Educação – MEC / Secreta-ria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD, 2007.

PECLY, J. Cidade de Deus Z. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2015.

SCHUCMAN, L.V. “Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana”.

In: Psicologia & Sociedade, v.26, n.1, p. 83-94.

SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010 WILLIAMS, R. Cultura e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1969.

WOMACK, Y. L. Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture. Chicago: Lawrence Hill Books, 2013.

Roberta Reis Bahia Tszesnioski

Mestra em Tecnologia e Sociedade. Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

_____________________________________________ Gilson Leandro Queluz

Doutor em Comunicação e Semiótica.

Universidade Tecnológica Federal do Paraná. _____________________________________________

Referências

Documentos relacionados

b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

A proposta também revela que os docentes do programa são muito ativos em diversas outras atividades, incluindo organização de eventos, atividades na graduação e programas de

Muitos desses fungos podem ser encontrados nos grãos de café durante todo o ciclo produtivo, porém sob algumas condições especificas podem causar perda de

Este estágio de 8 semanas foi dividido numa primeira semana de aulas teóricas e teórico-práticas sobre temas cirúrgicos relevantes, do qual fez parte o curso

patula inibe a multiplicação do DENV-3 nas células, (Figura 4), além disso, nas análises microscópicas não foi observado efeito citotóxico do extrato sobre as

Portanto, mesmo percebendo a presença da música em diferentes situações no ambiente de educação infantil, percebe-se que as atividades relacionadas ao fazer musical ainda são

Por outro lado, quanto mais o ser é sábio e obediente, menores são os seus erros, assim como a reação que eles excitam, de modo que quanto menos o ser precisa ser corrigido, tanto

São eles, Alexandrino Garcia (futuro empreendedor do Grupo Algar – nome dado em sua homenagem) com sete anos, Palmira com cinco anos, Georgina com três e José Maria com três meses.