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Resenha O MESTRE E O APRENDIZ: REFLEXÕES SOBRE O ENSINO JURÍDICO* MACHADO, Antonio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. Franca: Edunesp, 2005.

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O MESTRE E O APRENDIZ: REFLEXÕES SOBRE

O ENSINO JURÍDICO*

e eu não acreditasse que uma transformação social relevante se iniciasse com uma mudança nos sistemas educacionais, decisivamente, o livro

S

Ensino jurídico e mudança social, do autor Antônio Alberto Machado1, não

me flertaria. Mas, ao reconhecer o meu lugar de fala, como professor de História e graduando em Direito, justifico com a minha paixão pela sala de aula e com as minhas expectativas quanto ao curso de Direito, que pretendo percorrer, a vontade em compartilhar com o leitor as reflexões profícuas que esse livro traz sobre a situação do ensino jurídico no Brasil. Portanto, objetivo apresen-tar idéias do autor da referida obra mediante o meu particular ponto de vista, ao falar sobre ensino jurídico na simples condição de aluno/aprendiz do Direito, apesar da minha formação em História. Esclareço que, longe de ocupar o lugar de autoridade do autor referido na questão, pretendo, meramente, divulgar suas idéias a partir da minha leitura e projetar uma expectativa rumo ao tipo de curso jurídico que pretendo fazer.

Não há como negar que a atualidade representa um momento signi-ficativo para que nós escutemos vozes novas sobre o ensino jurídico brasi-leiro, de modo a nos permitir avaliar, de forma crítica, as condições do modelo pedagógico dominante que forma os nossos juristas2: em grande parte no Brasil,

sobretudo na região do Centro-Oeste, ainda impera o modelo dogmático/ positivista do ensino jurídico. Portanto, apresentaremos as idéias desenvol-vidas por Machado na referida obra.

Resenha

MACHADO, Antonio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. Franca: Edunesp, 2005.

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Em meio a uma crise paradigmática3 que abala as ciências humanas,

que desestabiliza as “verdades” e que denuncia as redes de poder escondidas atrás da enunciação de uma verdade, fica sob suspeita pensar que o ensino produtor das “verdades jurídicas”, o Direito, pudesse passar ileso nesta condição de ruptura, ao sustentar um modelo dogmático/positivista em pleno século XXI. Aproximo, então, das palavras de Foucault (2001, p. 14), que diz que: “A “verdade” está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reprodu-zem”. Em que medida, a persistência das “verdades” do modelo dogmático/ positivista no ensino jurídico atual traduz uma situação de “efeito de po-der” e sinaliza uma crise neste ensino?

Sem possibilidades de alcançar a resposta de forma imediata, mas na tentativa de apresentar caminhos para contornar uma crise estrutural vivi-da pelo profissional do Direito – crise de identivivi-dade, crise vivi-da pervivi-da do seu papel político frente à incapacidade de intervenção social, crise de legitimi-dade dos operadores jurídicos, crise advinda da descaracterização dos paradigmas científicos da ciência do Direito –, Machado advoga em defesa de uma investigação crítica e dialética acerca do ensino jurídico. Tal inves-tigação, segundo o mestre, se daria atrelada a um processo de inscrição do sujeito no campo do conhecimento e a uma metodologia interdisciplinar, onde o Direito pudesse dialogar com as outras disciplinas como a Sociolo-gia, a Política, a Economia, a História etc.

No intuito de animar tal perspectiva, Machado divide o seu livro em três partes, sendo a primeira voltada para uma reflexão sobre o fenômeno do Direito enquanto um produto ideológico, situado em uma determinada sociedade no tempo e no espaço; a segunda relacionada à situação do ensino jurídico no Brasil e os desdobramentos da crise que o circunda; por último, sugere rumos para uma transformação do ensino jurídico no Brasil a partir de uma proposta curricular inovadora. Essa repartição é também por mim seguida neste texto.

DUAS SUSPEITAS: UMA IDEOLOGIA E UMA CRISE

Ante a realidade na qual se encontra o ensino jurídico no Brasil, identificada pelo autor, como caracterizado pela mercantilização do ensino superior, pela despolitização do ensino jurídico, pelo seu perfil quase que exclusivamente tecnicista e pela cultura4 jurídica liberal, burguesa,

indivi-dualista, formalista e burocrática, reproduzida na nossa sociedade, cabe-me indagar: até que ponto os meus professores do Direito serão capazes de fazer

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do ensino jurídico um instrumento de mudança social e não apenas de manutenção do status quo e reiteração/reforço desta cultura jurídica? Para refletirmos sobre isso, Antônio Alberto Machado lança seu primeiro argu-mento, de que não podemos deixar de reconhecer o Direito como uma instância ideológica5, ou seja, como dotada de uma dimensão valorativa que

expressa sempre

o desejo, as ambições, os propósitos, as preocupações e , enfim, os interesses de quantos se envolverem com o fenômeno jurídico, quer para instituí-lo, quer para estudá-lo, quer para aplicá-lo, quer ainda para a ele se submeter (MACHADO, 2005, p. 39).

Dessa forma, faço a interpretação de que o Direito manifesta-se como um campo ideológico, pois está atrelado às relações de poder que privilegi-am uma classe hegemônica, cujos interesses, desejos, privilegi-ambições, valores fi-cam ocultos diante da construção de um discurso de neutralidade. Isto é, a defesa de que a nossa ciência jurídica impõe uma forma de conhecimento neutra, objetiva e livre de influências valorativas não visam mais do que garantir e salvaguardar desejos, ambições, propósitos, interesses6.

Seguindo tal argumentação, no primeiro capítulo, o autor constrói uma compreensão do Direito como um dos mecanismos repressivos de dominação na sociedade capitalista cujos elementos essenciais são a normatividade e o poder exercido pelo Estado. E, para obter eficácia no funcionamento de tal discurso ideológico, a engenhosa oração da legalida-de (“a lei acima legalida-de tudo”) constrói a idéia legalida-de um aparente consenso repre-sentante da “vontade geral” do povo.

Posso dizer, portanto, que compreender o Direito como um fenô-meno ideológico é imprescindível para não somente decifrar os seus efeitos na sociedade como a atribuição de um caráter legal, legítimo e universal ao projeto da classe dominante, mas também, fortalecer a construção de um pensamento jurídico crítico capaz de desestabilizar a situação e mudar a maneira como se dá e como se percebe o ensino jurídico pelos professores e pelos(as) estudantes. Digo desestabilizar porque isso implica reconhecer, como o autor, que

todo discurso que se venha a fazer sobre o direito e sobre o seu mé-todo, por mais que se almeje fazê-lo de modo objetivo, com as co-nhecidas pretensões de verdade científica, sempre será um discurso ideológico, ou seja, um discurso que ao mesmo tempo em que visa

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descrever o fenômeno jurídico busca também produzir convencimen-to, ou até mesmo motivar as pessoas num ou noutro sentido em relação a esse fenômeno (MACHADO, 2005, p. 50).

Ao tentar superar tal perspectiva no ensino jurídico, Machado (2005, p. 55) questiona os modelos baseados na teoria de Kelsen, segundo o qual “acabou desprezando, no âmbito da ciência jurídica, qualquer concepção que viesse a encarar o fenômeno jurídico como “realização da justiça”, ou dos ideais do direito natural”. Ao privilegiar um método lógico-formal hipotético, o normativismo de Kelsen, bem como o de outros positivistas inspirados no seu pensamento, “sempre acabaram por negar o valor refle-xivo do discurso jurídico e o seu compromisso com a realização de valores no plano concreto e histórico” (MACHADO, 2005, p. 55).

Portanto, são esses modelos, para mim, que, na pretensão de convencer pela “verdade científica”, ocultam sua dimensão ideológica bem como as rela-ções de poder que atravessam/presidem/informam tais norela-ções e práticas jurídi-cas ao reproduzir os interesses econômicos das elites. Ou seja, apoiando-me na leitura de Machado, o ensino jurídico não é menos que um verdadeiro “apare-lho ideológico”, ao difundir valores, objetivos e aspirações das elites econômi-cas, sociais e políticas7. Assim, segundo o mestre, para recuperar a dimensão

axiológica e social do Direito, cabe-nos fazer uma revisão de seus paradigmas bem como promover uma reforma no ensino jurídico no Brasil8.

Em seguida, Machado faz uma leitura da condição do ensino jurídi-co no Brasil para melhor fundamentar sua hipótese de que este vivencia no momento uma crise. Ao considerar que a proposta contemporânea das universidades no Brasil pauta-se pela realização do tripé ensino-pesquisa-extensão, objetivando fomentar o desenvolvimento e a democracia, tal ins-tituição apresenta-se em crise devido ao descaso das autoridades para com o ensino público e ao privilégio concedido ao ensino privado.

Tal crise, segundo o autor, manifesta-se tanto no plano interno das instituições com a burocratização, o carreirismo, a erudição elitista, o corporativismo, o oportunismo, a mediocridade etc; quanto no âmbito externo com o descompasso entre os objetivos da universidade e os anseios da sociedade, o precário financiamento por parte do Estado, a deficiência na autonomia real, a elaboração de projetos que não atendem as necessida-des primordiais da sociedade, os obstáculos para o acesso da maioria da população etc. (MACHADO, 2005).

Fora isso, o visível enfraquecimento da universidade pública em contra-posição ao crescimento desordenado das universidades privadas acabou por

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efetivar, com respaldo da OMC e do Consenso de Washington, a transfor-mação da educação em uma mercadoria cara e pouco acessível. Tal situação desdobrou-se em um ensino superior de caráter utilitarista, voltado para o aprendizado de um saber técnico/mecânico, para o distanciamento das questões sociais, bem como para a despolitização e alienação da maioria dos estudantes e profissionais.

Doravante, o autor avança no seu argumento ao constatar que esta realidade da educação superior brasileira serve de lugar-comum para pro-dução de um tipo de ensino jurídico que atenda às necessidades do capita-lismo, da ideologia do Estado e das elites políticas e econômicas. Ou seja, mantém o sistema ao cumprir a mesma função quando da formação dos primeiros cursos jurídicos no Brasil do século XIX: formar a elite jurídica e política do Estado.

No entanto, Antônio Alberto Machado esclarece que apesar destas continuidades, houve uma mudança visível na formação do jurista do sécu-lo XIX para o jurista dos sécusécu-los XX e XXI. Enquanto no Brasil Imperial o ensino superior jurídico era pautado pelas diretrizes científica, crítica, humanística e interdisciplinar, uma vez que o currículo destas era apresen-tado com mais disciplinas filosóficas e menos disciplinas dogmáticas, a realidade atual caracteriza-se pela desqualificação acelerada mediante o modelo normativo e tecnicista, ao servir mais para formação de operadores técnicos do Direito do que para formação de pensadores do Direito.

A propósito, reconheço a importância de se formar ‘operadores ju-rídicos’ para aplicação do Direito, pois a natureza dos conflitos jurídicos demanda decisões, vontades e exercício de poder. Do contrário, não pode-ríamos resolver os conflitos jurídicos apenas a partir do exercício do saber, do ilimitado debate de idéias, levando-nos a uma multiplicidade de opini-ões/teses que mais apontariam rumos/questões/problemas do que respos-tas. No entanto, o fato de privilegiar um currículo voltado para a operação técnica em detrimento do exercício do saber, do ilimitado debate de idéias, das reflexões e críticas, produz efeitos à formação dos nossos juristas, o que não posso deixar de partilhar com Machado (2005, p. 112):

Atualmente, é visível que a política de massificação do ensino jurí-dico consumou essa tendência de privilegiar matérias e disciplinas tecnológicas nas grades curriculares das faculdades de direito, em de-trimento daquelas que apresentam um conteúdo mais humanístico e reflexivo. Tais opções curriculares podem ser entendidas até mes-mo comes-mo parte da estratégia de despolitização do jurista e atrofia do

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seu senso crítico, como ingredientes necessários para garantir a inteira subserviência dos profissionais do direito aos reclamos de mercado.

A partir disso, minha percepção, ainda que incipiente, como discen-te no curso de Direito, afogado no modelo apontado por Machado, normativo e tecnicista, confirma a tese do autor ao rever a posição que ocupo de aprendiz: o predomínio das aulas-conferências ou também chamadas aulas expositivas centrada no(a) professor(a) “vaidoso(a)” ocupando o “lugar de fala”, a ausência de problematizações, críticas e reflexões mediante a parti-cipação dos(as) estudantes, adoção de uma literatura jurídica formada por manuais e compêndios reproduzindo um saber massificado e meramente tecnicista e a existência de docentes despreparados, afirmo, sem formação pedagógica e didática. Além de outras práticas predominantes no ensino do Direito, estas acabam, como “efeitos de poder”, de que fala Foucault, por alimentar um autoritarismo didático, um ensino despolitizado e alienado, enfim, legalista, liberal e burguês.

De tal forma, não deixa de ser ideológico o discurso de que vivenciamos uma democratização do ensino superior no Brasil e, principal-mente do ensino do Direito, com a proliferação em massa de cursos jurídi-cos. Tal situação reproduz e esconde, apenas, um modelo em crise. A INDÚSTRIA CULTURAL E A FABRICAÇÃO DO SENSO COMUM JURÍDICO

Por conseguinte, para Antônio Alberto Machado, vivenciamos no campo do ensino jurídico brasileiro, o que Marcuse, Adorno e Horkheimer, pensadores da Escola de Frankfurt, traduziu como “indústria cultural”. Trata-se do processo de reorganização/transformação das produções artística e cultural em mercadorias a serem consumidas no mercado dentro dos qua-dros do sistema capitalista. Ou seja, o acesso a estes bens passa a ser feito pelo capital. Tal processo, segundo o professor, pode ser identificado na prática do ensino jurídico do Brasil como sendo uma “Indústria Cultural do Direito” viabilizada por meio de aspectos como: a privatização do ensi-no jurídico ensi-no Brasil marcada por um alto grau de mercantilização deste, sendo criadas escolas de Direito em qualquer bloco de concreto; a massificação das obras de Direito, tanto impressas quanto veiculadas em CD-ROM, caracterizadas por resumos sobre a dogmática jurídica; os even-tos culturais jurídicos supostamente científicos, mas de cunho empresarial; a proliferação dos ‘cursinhos jurídicos’ que são outro aspecto da

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mercantilização do ensino jurídico, oferecendo desde preparatórios para concursos até cursos de especialização.

Como “autênticos negócios empresariais” (MACHADO, 2005, p. 17), os “cursinhos” (e as próprias faculdades) chegam a utilizar estratégias de marketing próprias do cenário mercadológico empresarial, ao utilizar da velha mensagem do discurso competente, isto é, “o discurso que conduz ao ingresso no mercado de trabalho”. Tudo isso, para o autor, contribui pa-ra reforçar o modelo normativo e a cultupa-ra tecnicista e despolitizada que marca o ensino jurídico no Brasil. Ou seja, percebo isso como a forma despolitizada e tecnicista pela qual o direito é percebido por docentes e discentes. Deparamo-nos, portanto, com a dupla face da Indústria Cul-tural do Direito, assinalada por Machado (2005, p. 19):

Essa indústria cultural do direito, se, por um lado, exibe a impressão de que se verificou um saudável aumento da produção científica na área do conhecimento jurídico, pela oferta de todo tipo de obra e pela suposta democratização da cultura, com o aumento das possibilidades de aces-so a livros, curaces-sos e eventos culturais; por outro, representa também uma espécie de massificação da cultura jurídica, com a conseqüente queda da qualidade da produção científica nessa área e com o impres-sionante aumento dos produtos repetitivos e superficiais, que atendem muito mais às exigências do mercado do que, propriamente, às neces-sidades culturais dos bacharéis e profissionais do direito.

No decorrer do seu trabalho, o autor levanta também outros elemen-tos profundos na crise do ensino jurídico, marcada pelo esgotamento dos próprios paradigmas científicos da ciência do Direito. Dessa forma, por trás da crise do ensino jurídico existe, portanto, uma crise epistemológica da Ciência do Direito no qual o normativismo como objeto, o raciocínio ló-gico-formal como metodologia, o liberalismo como sustentáculo ideológi-co e a mentalidade positivista ideológi-como base do saber jurídiideológi-co não respondem mais satisfatoriamente a realidade atual. Ou seja, segundo o autor, a Ciên-cia do Direito, inscrita atualmente na chamada Crise dos Paradigmas, não consegue mais proporcionar diretrizes e rumos novos para o trabalho cien-tífico, não fornece mais respostas adequadas aos problemas científicos da contemporaneidade, desdobrando-se em um conjunto de equívocos que exigem nada menos que a busca por novos paradigmas (MACHADO, 2005). Isso porque esta crise tem como matriz o esgotamento do ainda pre-sente paradigma normativista kelseniano, sustentado pelo mito da

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neutra-lidade e da pureza científicas. Segundo Machado, ao ter seu mérito em emprestar à Ciência do Direito uma metodologia e uma reflexão filosófica, Hans Kelsen acabou por reduzir o Direito à norma, desdobrando-se em uma situação de positivismo-lógico que se mostra questionável nos dias de hoje. Tais opções, por parte dos “operadores do Direito” atuais e pelo positi-vismo jurídico kelseniano fabricaram, nas palavras do professor, o chamado “senso comum” do jurista que acabou por reforçar a necessidade de uma re-produção mecânica da legalidade em detrimento da reflexão e da crítica (MACHADO, 2005). Este “senso comum jurídico” tem como principal impacto a neutralização do comportamento político do bacharel e do jurista, subserviente a um pensamento a-crítico ante as ideologias que produzem o saber jurídico e também a-histórico ao tomar a norma como algo ideal.

Assim, os reflexos desta crise epistemológica são visíveis na crise do ensino jurídico mediante o predomínio da leitura e ensino a-críticos e irreflexivos dos códigos, desvinculados de suas condições sociais e econô-micas, reproduzindo, no plano jurídico, uma lógica de controle e domina-ção social, mantenedora do status quo atual.

UMA ALTERNATIVA: O ENSINO JURÍDICO VOLTADO PARA MUDANÇA SOCIAL

No entanto, Machado não é um autor que apresenta apenas as falên-cias do sistema, mas se mostra como pesquisador engajado politicamente ao propor rumos para produzir um ensino jurídico comprometido com a mudança social. Tais sinais estão voltados, para ele, na emergência dos chamados “novos direitos”, preocupados sobretudo com as relações interdisciplinares e com as dimensões sociais, políticas, econômicas, enfim, culturais que esse direitos encerram. Daí, não há como deixar de relacionar o Direito com o problema da globalização, da cidadania, dos Direitos Humanos, do acesso à justiça, do Meio Ambiente, da dignidade humana, das relações de trabalho, da bioética, do urbanismo, da questão agrária, da democracia, do papel do Estado etc. São estes rumos que nos permitem tomar o Direito como “instrumento de liberdade contra todas as formas de opres-são” (MACHADO, 2005, p. 195) e não como mantenedor do status quo, pois, sabe-se que os vínculos entre o Direito, a ética e a política são indis-pensáveis para a realização da democracia.

O Direito deve, portanto, servir como ferramenta transformadora das relações sociais incompatíveis com a realidade atual (MACHADO, 2005). E tais mudanças, para Machado, passam pela transformação na

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postura do advogado em profissional atuante em defesa do interesse públi-co, pela mudança da condição do Ministério Público para uma de quarto poder, capaz de atuar na sociedade civil em proveito desta e pela configu-ração da Magistratura como poder independente, apto a rejeitar os interes-ses de poder que muitas vezes perpassa as suas decisões.

Além disso, o autor chama a atenção para a veiculação no campo do Direito dos chamados interesses difusos ou direitos difusos como sendo aqueles cuja titularidade pertence a uma “série indeterminada de sujeitos”, a satisfação destes significa a satisfação de todos e a “lesão que atinge um indivíduo atinge ao mesmo tempo toda a coletividade” (MACHADO, 2005, p. 227). Ou seja, segundo Celso Fiorillo, são interesses e direitos que não pertencem a ninguém, são indivisíveis, ao serem utilizados por todos, e cuja realização serve para a manutenção da qualidade de vida e dignidade de todos9. Tal perspectiva significa também reconhecer a dimensão política de

todas essas áreas que englobam o Direito desde o Direito do Consumidor, Direito da Criança e do Adolescente, Direito Penal, Direito dos Idosos e dos Portadores de Necessidades Especiais.

Enfim, todos esses campos jurídicos são áreas que nos exigem atua-ções politicamente conscientes voltadas para a satisfação dos interesses da sociedade civil e para a desestabilização das relações de poder. Essas possi-bilidades ampliam-se, sobretudo. a partir da Constituição de 1988, que

confere aos aplicadores do direito meios e legitimidade para zelar pelo efetivo respeito aos Poderes Públicos, aos serviços de relevância pú-blica e aos direitos assegurados na Constituição Federal, promoven-do as medidas necessárias à sua garantia; ao mesmo tempo, assegura, como função institucional, a promoção da ação popular e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (MACHADO,

2005, p. 241).

Tais inovações no campo do Direito não podem desassociar-se das mudanças correspondentes no campo do ensino jurídico. Isto implica, para o mestre, mudanças nessas “empresas” de produção/fabricação de advoga-dos e advogadas como romper com a formação tecnicista e despolitizada, fruto do predomínio da dogmática que nos torna frágeis diante das hegemonias. Implica, também, alimentar nossa função social na defesa da justiça social com a adoção de tarefas imprescindíveis para os juristas como: criticar permanentemente os valores predominantes no contexto social em

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que atua, realizar uma contínua adaptação da técnica aos valores da socie-dade e assumir compromissos com o meio social em que atua.

Trata-se da adoção de um novo paradigma no ensino jurídico brasi-leiro voltado para a proposta que Lyra Filho (apud MACHADO, 2005, p. 271) chamou de “ramo centrífugo” como sendo o alargamento do foco jurídico, ao reconhecer na pluralidade jurídica um campo vantajoso de atuação onde não só o Estado seja a exclusiva fonte de direito formalmente válida e nem o formalismo positivista o único modelo de ensino jurídico. Assim, Machado descreve o que seriam pontos de uma nova proposta pedagógica para um curso de Direito, seguindo as diretrizes do art. 2º, § 1º, e Art. 4º da Resolução n. 9/2004 do CNE/MEC: formação humanística e enciclopédica, formação interdisciplinar, capacidade de compreensão e ope-ração criativa do direito, formação axiológica voltada para o desenvolvimen-to do senso ético profissional, aptidão para equacionar problemas e conflidesenvolvimen-tos, capacidade para situar-se no mundo globalizado, capacidade para conciliar o exercício da vida profissional com o exercício da cidadania (MACHADO, 2005). Tais indicações procuram realizar a inserção de disciplinas novas que normalmente se encontravam fora da grade tradicional, diminuir a carga horária de disciplinas correspondentes ao grupo do direito privado e aumen-tar a das disciplinas de eixo fundamental bem como a das disciplinas dos “novos direitos” (difusos, coletivos, sociais, individuais indisponíveis etc) (MACHA-DO, 2005).

Com certeza, Machado reconhece que tais propostas de mudanças não são fáceis de serem implementadas, pois dependem de mudanças no con-teúdo programático das disciplinas e no perfil do corpo docente, no envolvi-mento dos alunos e alunas e de um acompanhaenvolvi-mento pedagógico voltado para a implementação dos objetivos. Ele ainda reconhece que o modelo atual voltado para o privilégio das universidades particulares em detrimento das públicas é um grande obstáculo à mudança porque tais propostas são mais difíceis de serem efetivadas no âmbito das primeiras (MACHADO, 2005). E o resultado desse modelo pedagógico acaba por alimentar a construção de uma cultura jurídica formalista, centrada no estudo das normas, descritiva, despolitizada e reforçadora das relações de poder predominantes.

Dessa forma, a mudança na prática jurídica vigente no Brasil impli-ca uma mudança na mentalidade jurídiimpli-ca que se inicia no processo eduimpli-ca- educa-cional, com a substituição do paradigma de ensino jurídico tradicional para um novo paradigma voltado para a justiça, para a democracia e para o com-prometimento com a sociedade civil. Só assim seria possível construir um modelo de ensino jurídico voltado para a libertação/emancipação dos

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su-jeitos. E tudo isso não se viabiliza sem que possamos escutar vozes novas sobre a educação jurídica no Brasil. Tais vozes passam por aquelas que anun-ciam novas perspectivas no Direito, por aquelas vindas de outras áreas do conhecimento, bem como por aquelas para as quais o ensino jurídico é destinado. Enfim, espero que minha voz, como aprendiz, como aquele que aprende um ofício ou uma arte, segundo o Dicionário Aurélio, bem como vozes de pessoas como Antônio Alberto Machado, cuja leitura é imprescin-dível para alunos(as), contemplem não somente as minhas expectativas, mas me direcionem nos rumos pelos quais pretendo seguir...

Notas

* Meu primeiro interesse com este texto era a produção de um artigo a partir da leitura do livro des-tacado. No entanto, acabou por aproximá-lo de uma resenha. Optei por manter um título para a resenha com intuito de não descrever a obra objetivamente, mas reforçar a minha inserção subjetiva na escrita. Trata-se, portanto, de um texto sobre idéias do autor do livro, Antônio Alberto Machado, em relação à minha experiência como aluno. Reforço que mediante a necessidade de enxugar o texto, muitas idéias deste autor foram removidas de forma a evitar uma escrita prolixa, tornando impres-cindível a leitura do livro por aqueles(as) que se interessarem pelo assunto. As idéias aqui selecionadas encontram-se, portanto, filtradas no texto a partir da minha leitura/interpretação amalgamadas com a minha experiência como discente no curso de Direito. Portanto, buscarei diferenciar a posição do autor, referindo-me a ele como mestre, professor ou simplesmente autor, da minha posição, de aprendiz, destacando-me na primeira pessoa. Fá-lo-ei de forma conjunta no texto, assumindo na posição de leitor/intérprete da obra uma defesa: a de que tanto a minha posição de aprendiz quanto a leitura que faço da posição do autor são interpretações minhas, às vezes separadas, às vezes muito próximas.

1 Antônio Alberto Machado é promotor de justiça e professor de graduação e pós-graduação na

Uni-versidade Estadual Paulista.

2 Da mesma forma que o autor, utilizamos o termo “jurista” na acepção que identifica “todo aquele que

trabalha com as questões jurídicas, quer profissional, quer como cientista ou estudioso” (MACHA-DO, 2005, p. 15).

3 Sobre a “Crise dos Paradígmas”, ver Freitas (1995).

4 Entendemos cultura como uma rede de significações, ou seja, como um conjunto de formas de

com-preensão de um objeto, no caso o Direito. Trata-se, portanto, do conhecimento e dos significados do Direito na nossa sociedade em determinado contexto. Neste caso, o Direito é percebido como efeito do modelo liberal, burguês e individualista de organização da nossa sociedade.

5 Gostaria de esclarecer que, apesar dos questionamentos levantados ao conceito de Ideologia na

atu-alidade apresentados por intelectuais vinculados às correntes pós-modernas mediante o avanço da noção de Representação social, optei por manter o conceito da maneira utilizada por Antônio Alberto Machado. Sobre o conceito de representação social, ver Jodelet (2001).

6 Esta concepção de que as ciências constroem o discurso da neutralidade como forma de mascarar as

relações de poder que a subsidiam, vai ao encontro das reflexões do filósofo Michel Foucault. Sobre o assunto, ver Foucault (2003, 2001).

7 Para o conceito de aparelho ideológico, Antônio Machado sugere a leitura de Althusser (1985). 8 O autor, felizmente, não deixa de indicar grupos e linhas de pesquisa que têm dedicado mais atenção

a elaboração de uma nova forma de ensino e prática jurídica como as correntes críticas do Direito Achado na Rua (UnB), coordenado pelo professor José Geraldo de Souza Júnior; a Nova Escola Jurídica Brasileira, de Roberto Lyra Filho; o Direito Insurgente (Rio de Janeiro), o Uso Alternativo do Direito

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(Rio Grande do Sul) e o Núcleo de Estudos de Direito Alternativo (Neda) da Unesp (Franca).

9 Exemplo de Direito Difuso ocorre com o Direito Ambiental como sendo de titularidade

indeterminada, de uso comum de todos e sadio à qualidade de vida. Para mais informações, ver Fiorillo (2005).

Referências

ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 16. ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

FREITAS, J. V. de. Algumas considerações sobre a crise paradigmática nos quadros da sociedade contemporânea. In: SILVA, Z. L. de. (Org.). Cultura histórica em debate. São Paulo: Edunesp, 1995.

THIAGO SANT’ANNA Mestre em História pela Universidade de Brasília. Graduando em Direito na Universidade Católica de Goiás.

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