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Maioridade da Menina Judia: O Retorno de Lilith (1)

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Academic year: 2021

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Gênero e Religião. ST 24 Ana Lúcia Galinkin Universidade de Brasília

Palavras-chave: rito de passagem, maioridade feminina, Bar Mitzvá

Maioridade da Menina Judia: O Retorno de Lilith (1)

A maioridade feminina, segundo as leis talmúdicas (2), ocorre aos doze anos e seis meses e, da mesma forma que a maioridade masculina, está associada aos sinais secundários da puberdade. A menina judia é, então, considerada uma na’arah, que se traduz por jovem adulta, por um período de seis meses para, em seguida, tornar-se uma bogeret, isto é, uma mulher adulta. Só então atinge a maioridade legal e religiosa podendo, por exemplo, aceitar ou rejeitar um casamento escolhido por seu pai, receber pelo produto de seu trabalho ou ser proprietária de objetos e bens.

Se na interpretação talmúdica os sinais externos de maturidade fisiológica são critérios usados para definir a idade adulta, tanto masculina quanto feminina, na prática das comunidades judaicas brasileiras é a idade cronológica que determina a maioridade para a vida religiosa e para certas obrigações congregacionais e rituais. Quanto aos direitos e deveres legais, estes são determinados pela legislação brasileira vigente.

Há diferenças significativas na tradição talmúdica entre o que é considerado maioridade para os meninos e maioridade para as meninas. Steinsaltz (1976, p. 137) comenta que a

Lei Talmúdica exclui as mulheres, de várias formas, de muitas importantes esferas da vida. Ela as isenta, por exemplo, daqueles preceitos positivos que dependem de horas e ocasiões determinadas do dia ou do ano para serem realizados. Isto inclui muitos rituais familiares da vida judaica: uso dos tzitizit (franjas do manto talit ), uso dos tefelin (filatérios), recitação da prece Shema Israel, toque do shofar, construção da sucá e peregrinação. As mulheres não têm permissão para compor um minian (quorum de dez homens) para a reza, nem são designadas para funções ativas dentro da comunidade. Não são elegíveis para posições administrativas e judiciais. E, mais significativo que tudo, são excluídas da importante mitzvah de estudar a Torah, um fato que, inevitavelmente as impede de participar da vida cultural e espiritual judaicas.

Há uma clara separação entre as atividades rituais femininas e as masculinas, tanto no âmbito religioso quanto social, das comunidades “religiosas” ou ortodoxas que seguem de forma estrita a lei talmúdica. À mulher cabem as obrigações rituais realizadas no espaço doméstico como o acendimento das velas no início do shabat, o período ritual que se estende do final da tarde de sexta feira até o final da tarde do sábado; a preparação dos alimentos segundo prescrições rituais; a observância da pureza ritual, que determina a separação dos casais no período menstrual e pós-parto da mulher, o que inscreve o espaço feminino nos limites da esfera privada. Não participam das atividades religiosas sinagogais e, quando vão à sinagoga, se acomodam a um lugar separado

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dos homens para não lhes tirar a concentração neste importante momento de contato com o sagrado. Não participam, também, da Brit Milá, o rito de circuncisão dos meninos aos sete dias de nascidos, mesmo que sejam seus filhos.

Essas determinações são observadas por congregações judaicas que se autodenominam religiosas, mas são chamadas pelas outras congregações menos conservadoras de ortodoxas. Devido à inexistência de uma instância centralizadora e normativa na religião judaica, as comunidades podem criar suas sinagogas, realizar seus rituais e contratar seus rabinos para dirigir as atividades religiosas e administrativas das sinagogas. Esta descentralização facilita a criação de inúmeras sinagogas, assim como variadas re-interpretações das leis talmúdicas. Dessa forma, os direitos e deveres masculinos e femininos, e a maior ou menor participação das mulheres nas atividades religiosas da sinagoga, estão sujeitos à maneira como as diferentes comunidades interpretam sua religião e, também, representam o gênero e os papéis sociais masculinos e femininos tanto na vida religiosa quanto secular.

As comunidades judaicas liberais criaram um ritual de passagem para a maioridade das meninas, realizado na sinagoga da comunidade, que não transgride as orientações mais ortodoxas uma vez que as meninas não lêem a Tora, o Pentateuco, lido semanalmente pelos homens. Este rito não é realizado durante o shabat, dia sagrado para todos os judeus que observam as tradições e a religião. Mostram dessa forma que, na esfera religiosa as mulheres são tratadas segundo a tradição religiosa, mesmo que na vida secular possam usufruir de direitos iguais aos dos homens. Já as comunidades reformistas judaicas, primeiras a realizarem o ritual de maioridade para meninas, exatamente igual à masculina, elevam as meninas à maioridade com os mesmos direitos religiosos dados aos meninos promovendo, assim, a igualdade entre os sexos no âmbito religioso.

As origens do rito feminino – o Bat Mitzvá

As congregações ortodoxas, que se autodenominam “religiosas”, seguem as determinações talmúdicas e as tradições judaicas realizando um rito de passagem para os meninos, na sinagoga, quando estes completam 13 anos de idade. O mesmo não ocorre para as meninas uma vez que as mulheres são consideradas testemunhas da Aliança Sagrada entre a divindade e a comunidade de Israel, mas não fazem parte do Pacto Sagrado. O pacto foi selado entre os homens da comunidade e a divindade ficando as mulheres excluídas deste contrato. As congregações reformistas, entretanto, introduziram um ritual de passagem para celebrar a maioridade feminina que recebe o nome de Bat Mitzvá que se traduz por Filha do Mandamento. A introdução deste ritual para mulheres ocorreu na Alemanha no século XIX, durante a Reforma Judaica. Os reformistas propunham a modernização das comunidades judaicas e de seus rituais, tomando como modelo a liturgia protestante. Foi, assim, criado um ritual de passagem de maioridade para meninas e, tanto

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o rito masculino existente desde o século XII, quanto o recém criado rito feminino, foram considerados pelos reformistas judaicos como um ritual de confirmação, sendo ambos coletivos e a partir dos 16 anos, à maneira protestante. O primeiro rito de confirmação masculino, segundo as inovações propostas pela Reforma, realizou-se em 1810 na cidade de Kassel, na Alemanha, e o feminino mais no final do século (Ausubel, 1964). O contexto em que o rito feminino Bat Mitzvá foi criado era de profundas mudanças nos países ocidentais, das quais participavam segmentos judaicos que propunham alterações em seus costumes e rituais.

A elite intelectualizada de judeus europeus, particularmente alemães, que desejava modernizar as comunidades judaicas, adotou como emblema dessas mudanças alterações na liturgia das sinagogas por acreditarem que a forma tradicional impressionava mal a sociedade cristã européia. A simplificação dos rituais, que passaram a ter acompanhamento musical com órgãos e corais, a introdução de prédicas ao estilo protestante, o uso do vernáculo local nas cerimônias, o abandono das proibições durante o Shabat, a rejeição das leis dietéticas, eram algumas das mudanças que davam visibilidade à intenção de se tornarem europeus iguais aos demais. Mas, entre todas as mudanças implantadas pelos reformistas, a participação das mulheres nos rituais sinagogais, até então exclusivamente masculinos, estava entre as mais polêmicas. Alguns ortodoxos “modernos” chegaram, também, a adotar este rito realizando-o no domingo para grupos de meninas mostrando, ainda, uma certa discriminação das mulheres uma vez que o sábado é o dia sagrado, quando os homens da comunidade se reúnem na sinagoga para rezar. A prática de elevar as mulheres à maioridade, entretanto, foi considerada por segmentos mais conservadores como imprópria para ser realizada em uma sinagoga (Unterman, 1992).

Goldin (1995) relata que a primeira cerimônia de Bat Mitzvá realizada nos Estados Unidos ocorreu em 1922, quando a filha do rabino Mordecai Kaplan, fundador do Movimento Reconstrucionista americano, derivado da Reforma Judaica, completou doze anos. Embora o rito tenha sido realizado na sinagoga, a Bat Mitzvá não leu o trecho que lhe cabia no pergaminho sagrado da Tora, mas em sua Bíblia, impressa em papel. Sua participação só ocorreu quando o rolo da Torá foi fechado, ou seja, após a realização da parte mais sagrada do ritual, e a menina não subiu até a bimá, plataforma onde se lê a Torá, para recitar a passagem que lhe cabia na ocasião. Sua participação, portanto, foi marginal, não contando como um dos leitores do Livro Sagrado daquele dia. Apenas em 1949 a primeira mulher americana teve acesso à leitura do Pergaminho Sagrado e fez parte de um minian, o quorum de 10 homens adultos necessário para a realização de algumas cerimônias religiosas. Este fato ocorreu em uma congregação reconstrucionista nos Estados Unidos. Goldin (1995) informa, também, que a primeira rabina do movimento reformista se ordenou pelo Hebrew Union College do Jewish Institute of Religion, em 1972, embora desde 1956 o Movimento da Reforma Judaica já admitisse a ordenação de mulheres. A primeira rabina

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do Movimento Reconstrucionista foi ordenada em 1973 e o Movimento Conservador só começou a admitir a ordenação de rabinas em 1983.

Goldin analisa que a história do Bat Mitzvá é o resultado de mudanças na história das mulheres judias. A autora comenta:

Assim que as mulheres saíram de casa, assim que as mulheres começaram a ter mais voz na sociedade em geral e no judaismo, a possibilidade da cerimônia bat mitzvá aumentou [e completa] A primeira bat mitzvá foi em 1922, logo após as mulheres conseguirem o voto, mas 50 anos antes de haver qualquer mulher rabina (1995, p. 47).

Diferentemente do ritual masculino, que se originou em uma comunidade medieval relativamente estável e segregada e foi se transformando e se consolidando lentamente no decorrer dos anos, o Bat Mitzvá foi criado numa sociedade em transformação onde várias alternativas ideológicas e religiosas eram oferecidas, e as possibilidades de elaboração de cerimônias religiosas ou seculares que refletissem a escolha por uma ou outra forma de pensamento eram grandes. O resultado foi que diferentes congregações deram sua interpretação particular à maioridade feminina e criaram suas cerimônias para a celebração da passagem do estado infantil para o estado adulto segundo essa interpretação, adaptando-a, mais ou menos, aos preceitos judaicos. Os ortodoxos e os mais conservadores mantiveram as determinações talmúdicas para a maioridade feminina, não introduzindo um rito especial para a ocasião.

A maioridade feminina

Como dito antes, a menina se torna maior, uma Bat Mitzvá, ao completar doze anos e seis meses, idade em que transformações fisiológicas ligadas ao amadurecimento sexual começam a aparecer. A maneira como as congregações e comunidade judaicas interpretam a maioridade e conferem papéis e responsabilidades à menina que se torna maior, encerra-se nesta determinação, sendo as diferenças entre comunidades o que há de mais marcante em relação à representação do feminino e da maioridade da mulher, tanto no que se refere aos assuntos seculares quanto religiosos.

A menina “religiosa” ou ortodoxa é preparada de forma gradual e contínua para desempenhar seus papéis familiares, comunitários e rituais, sendo que sua participação religiosa está circunscrita aos espaços domésticos, aos ritos em seu lar. Se comparado ao rito masculino, quando o menino se torna responsável por suas ações e o pai se libera de suas responsabilidade para com o filho, a ausência de um rito de passagem feminino pode ser interpretado como a permanência da mulher em um estado infantil e dependente. É principalmente no lar que aprende seus papéis rituais e só terá seu próprio espaço doméstico definido, assim como suas obrigações,

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quando se casar e se tornar esposa. Solteira, permanece como coadjuvante das atribuições conferidas à sua mãe.

As meninas liberais e reformistas, por sua vez, são preparadas por professores, especialistas que as iniciam no conhecimento das práticas rituais e da história de seu grupo, aproximadamente um ano antes de seus doze anos. A preparação da menina liberal, por exemplo, inclui a aprendizagem de orações, preces, bênçãos e, também, canções e poemas específicos para o dia da celebração de sua maioridade. Este rito é especialmente construído para a passagem, e mais se parece a uma festa de debutantes, quando várias meninas, vestidas de branco, realizam uma performance com recitação de poemas com temas religiosos, cantos e discursos. O rito liberal não ocorre durante o Shabat, mas após o seu término. Mas, assim como as ortodoxas, elas não são autorizadas a participar dos ritos sinagogais.

Já a menina reformista é preparada para participar de um rito igual ao da passagem para a maioridade do menino, na liturgia do Shabat e de outros dias festivos. Não há um rito feminino entre os reformistas, mas a participação da menina em um rito que, nas outras congregação é exclusivamente masculino. Ela poderá usar o talit (manto de orações) e os tefelin (filatérios), recitar a prece Shema Israel, tocar o shofar (instrumento de sopro usado em certos rituais), compor um minian (quorum de dez homens adultos necessários para a realização de alguns ritos) e se ordenarem rabinas, o que não é permitido nas outras congregações. Os direitos religiosos e a participação feminina nos rituais sagrados são os mesmo que os masculinos.

Rito feminino: transgredindo a tradição

Pode-se dizer que o rito Bat Mitzvá, iniciado pelos reformistas nas comunidades européias, representa uma transgressão da ordem religiosa. Ao ritualizarem a maioridade feminina de maneira igual à masculina, os reformistas fizeram mais que modernizar e “ocidentalizar” seus ritos e costumes com esta e outras proposta inovadoras. Trouxeram para o plano religioso os direitos civis de igualdade entre os sexos. Focalizando as representações do gênero no contexto ritual, visível no papel que homens e mulheres desempenham nos ritos judaicos de maioridade, chama a atenção a participação, ou não, das mulheres nos ritos religiosos e a separação ritual entre os sexos praticada por congregações mais conservadoras. Essas diferenças se mostram como sinais diacríticos que afirmam a distinção entre os grupos e, neste caso, o gênero pode ser entendido como linguagem e, através dela, as representações do feminino aparecem como um dos elementos de ruptura das tradições.

Nesse momento se justifica abrir parênteses para trazer a representação do gênero na mitologia judaica, em particular do feminino. No mito de origem, Eva rompeu o relacionamento

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paradisíaco entre Adão e a divindade ao transgredir uma norma imposta pelo Senhor e comer do fruto proibido, o fruto do conhecimento. Sua desobediência provocou a queda do casal primevo e a primeira ruptura entre o homem e Deus, fazendo surgir uma nova forma de ser e de se relacionar. A transgressão de Eva deu origem à Humanidade.

Um outro mito, que não consta das Escrituras, mas dos Apócrifos, relata que antes de Eva Deus criou o homem e a mulher do mesmo barro, seres originalmente iguais mas com direitos diferenciados numa hierarquia em que apenas o homem tinha contato com o divino. Essa primeira mulher, Lilith, revoltou-se com a diferença, mas não foi atendida em sua demanda por igualdade. Por esta razão, pronunciou o nome Deus, que era proibido, rompeu com Adão e se mudou para o deserto onde passou a viver com demônios, transformando-se, ela própria, em um demônio. A representação do feminino nesses dois mitos relaciona a mulher à transgressão e à ruptura com o sagrado e o tradicional, mas é através desse rompimento que novas situações são criadas, que ocorrem transformações e inovações são introduzidas.

Não é, portanto, um acaso que as propostas de modernização e mudanças no seio das comunidades judaicas sejam expressas, principalmente, através de um rito feminino. E não é também por acaso que o rito masculino expressa as tradições e, através dele, a unidade e continuidade do grupo étnico se revelam. Tradição e mudança se revelam, assim, nas representações do gênero nos rituais de maioridade.

Referências

AUSUBEL, N. The book of jewish knowledge. New York: Brown Publisher, 1964. GOLDIN, B. D. Bat Mitzvah: a jewish girl comingo of age. USA: Viking, 1995. STEINSALTZ, A. The essential Talmud. USA:Basic Books, 1976.

UNTERMAN, A. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro: Zahar ed., 1992.

Notas

1) Os ritos aqui descritos foram observados em congregações judaicas na cidade de São Paulo

2) Talmúdico deriva de Talmud, que em hebraico significa estudo. É a denominação de um compêndio de comentários sobre a legislação, conhecimentos e tradição judaica.

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