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O concerto didático coral como prática social: um despertar para a escuta ativa musical

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Academic year: 2021

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O concerto didático coral como prática social:

um despertar para a escuta ativa musical

Lilian Aparecida Sampaio dos SANTOS1

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre o concerto didático coral,

apresentando-o como uma prática social e analisando suas influências como um instrumento motivador e transformador, que abre possibilidades de escutas para a plateia, sugerindo ao indivíduo um despertar dessa escuta através da participação ativa no ato da apreciação. Observa-se que o concerto didático coral estabelece processos educativos diante da relação entre músicos e plateia, contribuindo efetivamente para a construção das identidades dos indivíduos que se encantam por estar diante de um “fazer” humanamente coletivo, que é a música. O artigo está dividido em três tópicos. Inicialmente apresenta um relato de memória da autora, enquanto plateia durante um concerto didático coral do Grupo Vocal Coro e Osso; em seguida comenta o concerto didático coral como uma prática social que contém, em sua essência, valores que vão além da música; e finaliza-se enfatizando a importância da apreciação como um dos principais aspectos para uma boa educação musical e um despertar da escuta musical.

Palavras-chave: Concerto Didático. Prática Social. Escuta Musical.

1 Lilian Aparecida Sampaio dos Santos. Especialista em Educação Musical Escolar pela Universidade

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The choral didactic concert as a social

practice: an awakening for active musical

listening

Lilian Aparecida Sampaio dos SANTOS Abstract: This article proposes a reflection on the choral didactic concert

presenting it as a social practice and analyzes its influences as a motivating and transforming instrument, which opens listening possibilities for the audience, suggesting to the individual an awakening of this listening through participation active in the act of appraisal. It is observed that the choral didactic concert establishes educational processes in relation to the relationship between musicians and the audience, effectively contributing to the construction of the identities of individuals who are enchanted to be faced with a humanly collective “doing”, which is music. The article is divided into three topics. Initially she presents an account of the author’s memory as an audience during a choral didactic concert by the Coro e Osso Vocal Group, and then comments on the choral didactic concert as a social practice that contains, in its essence, values that go beyond music and finally, emphasizing the importance of appreciation as one of the main aspects for a good musical education and an awakening of musical listening.

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1. INTRODUÇÃO

O presente artigo traz uma reflexão sobre o concerto didático coral como uma prática social que exerce influências motivadoras e transformadoras para a plateia. Essa reflexão será feita a partir de minha experiência em um concerto didático coral. Esse tipo de concerto tem como objetivo transmitir conhecimentos musicais de forma acessível. O concerto didático propõe possibilidades de escutas, sugerindo ao indivíduo que, pela apreciação, participe ativamente do processo de desenvolvimento dessas escutas.

O concerto didático me propiciou como aprendizagem um ouvir consciente, e essa prática me trouxe mudanças para a vida. O interesse pela música como linguagem e a dedicação aos estudos musicais implicaram mudanças comportamentais que envolveram disciplina e autoconhecimento. Essas mudanças aconteceram a partir do momento que me pus a participar ativamente do concerto didático realizado na escola municipal Adelino Bordignon, em Matão/SP, na qual cursei o ensino médio juntamente com o curso técnico em Processamento de Dados, durante minha adolescência.

Maturana e Varela (2004) afirmam que, se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva, e sim pela interação, então podemos considerar que o concerto didático estabelece relações, entre músicos e plateia, que são construídas a partir da música e de sua apreciação.

Logo no início deste artigo, apresento o relato dessa experiência, no qual exponho meu primeiro contato com o Grupo Vocal Coro e Osso e coloco as principais influências que esse encontro me rendeu, através de conhecimentos e valores essenciais para minha musicalização. Segundo Penna (2008), musicalização é o ato de desenvolver instrumentos de percepção necessários para que o indivíduo possa ser sensível à música, apreendê-la, recebendo o material sonoro/musical como significativo.

Esse relato expõe a importância dessa vivência como plateia e os reflexos desse momento de apreciação como um divisor de

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águas dentro de uma perspectiva social transformadora que me conduziu do papel de espectadora ao de musicista.

Defendo, portanto, o concerto didático como uma prática social, geradora de processos educativos como um maior contato com a música, a compreensão da música como uma linguagem e um real interesse pela linguagem musical. Nele encontramos características inerentes às práticas sociais, já que elas são frutos de relações ativas estabelecidas entre indivíduos.

2. METODOLOGIA

A análise sobre o concerto didático como sendo uma prática social que desperta o ouvinte para uma escuta ativa musical será feita

a partir da experiência vivida por mim na plateia de um concerto didático coral, dareflexão sobre os processos educativos gerados por essa vivência, visto que práticas sociais promovem formação por meio de processos educativos (OLIVEIRA et al., 2009), e do diálogo com o referencial teórico aqui presente.

3. RESULTADOS E DESENVOLVIMENTO

Relato de experiência – um novo olhar pela música e para música

Era 1995. Eu tinha 15 anos e frequentava o 1º ano do ensino médio, na escola municipal Adelino Bordignon, na cidade de Matão/SP. Eu era parte integrante de uma plateia escolar, diante de um concerto didático. Tenho em minha memória a nitidez daquele momento.

Lembro-me quando foi anunciada uma apresentação musical, que aconteceu no pátio da escola, perto do horário do intervalo para o lanche. Um coral! Foi o que nos disseram. Éramos adolescentes, e vários alunos, inclusive eu, partindo de uma atitude questionadora, porém, sem base, associamos a palavra coral a algo ultrapassado, distante e estático. Segundo Becker (1989), a adolescência deve

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ser observada como a passagem de uma atitude de simples espectador para uma outra ativa, questionadora, que gera inclusive revisão, autocrítica e transformação. Naquele momento, eu era uma adolescente com pouca vivência musical considerável e, possivelmente por isso, tinha um pensamento limitado sobre coral.

Porém, o que vi naquele concerto foram jovens adultos cantando, tocando e vivendo cada música. E, ainda, entre as músicas intercalavam-se informações sobre compositores, estilos musicais, países de origens das músicas, seus períodos históricos, e conteúdos técnicos (forma musical, apresentação dos naipes e nomes de instrumentos) que nos instruíam, como em uma aula muito dinâmica. Uma apresentação na qual o público pôde apreciar, aprender e sanar dúvidas e curiosidades através de perguntas que eram respondidas não só pelo regente, mas também por outros membros do grupo. Sem dúvida, um momento de aprendizagem.

Foi a primeira vez que eu vi a música acontecendo tão de perto. Uma arte que se iniciava e se concretizava ali, no pátio da escola. A plateia era formada por alunos, professores, funcionários e gestores. Estávamos diante de um encontro cheio de vida, e a musicalidade compartilhada por aquele grupo nos encheu os ouvidos e os olhos com música. Eu podia ver os corpos dos cantores pulsando música.

No repertório do concerto, músicas que expressavam festividade e movimento, como “La fiesta de San Benito”, de Horacio Salinas, e outras dotadas de sensibilidade e introspecção, como “Canções e momentos”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Havia alegria, força e leveza naquele concerto.

Entendi a mensagem musical daquele concerto. Eu nunca mais ouviria uma música sequer da mesma maneira que eu ouvia antes. Minha visão equivocada sobre coral, canto coral, coro e música vocal mudou, se desfez, se transformou e, a partir dali, instaurou-se meu novo olhar sobre o conceito de música.

Assim, o estímulo para o início dos meus estudos musicais veio por essa minha participação nesse concerto didático, e acredito que o que aconteceu comigo aconteça com outras inúmeras pessoas.

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Finalizado o meu memorial sobre o primeiro concerto didático a que assisti e anunciando o entusiasmo que ele me causou, antes de iniciar a análise sobre o concerto didático como uma prática social que transformou minha percepção musical, trago para este artigo, dentro de uma ordem cronológica de fatos referentes aos meus estudos musicais, um breve histórico sobre figuras essenciais para meu desenvolvimento musical e humano, pós-concerto didático.

Figuras essenciais para meu desenvolvimento musical: Coro e Osso, Projeto Canto Coral e Luiz Piquera

O estímulo para o início de meus estudos musicais veio pela participação no concerto didático coral relatado anteriormente. O Grupo Vocal Coro e Osso foi que me proporcionou uma primeira experiência de apreciação.

Durante a apresentação dos naipes do Grupo Vocal Coro e Osso, as palavras do maestro me soaram como um grande incentivo. Ele disse que cada um ali, presente na plateia, tinha uma voz que, respeitada sua extensão vocal, se encaixaria perfeitamente em um daqueles subgrupos, chamados naipes. Através dessa fala, o maestro explicitou uma situação extremamente democrática e inclusiva, já que ser cantor, para muitos, parece ser algo tão distante. Para mim, soou como um convite, e eu o aceitei. Senti-me tão instigada que tempos depois dessa vivência me aproximei efetivamente daquele fazer musical.

Após ter passado o concerto didático, uma amiga da escola e eu elaboramos a ideia de uma banda. Porém, nos faltava conhecimentos musicais para que nosso projeto se concretizasse. Foi então que tomamos a decisão de conversar com uma de nossas professoras, que era e continua sendo cantora do Grupo Vocal Coro e Osso – o coral que havia se apresentado em nossa escola no ano anterior. Pedimos que ela nos indicasse um professor de música. Então, vieram as minhas experiências como coralista: tornei-me cantora do Projeto Canto Coral, em 1996.

Com a falta de recursos financeiros para investir em aulas particulares de música, foi no Projeto Canto Coral que encontrei a

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possibilidade de iniciar meus estudos musicais gratuitamente. Aos 16 anos, comecei a participar do Projeto Canto Coral, cantando músicas dos compositores Johann Sebastian Bach e Tom Jobim, em um espetáculo chamado “BachTom”. Nessa minha primeira experiência artística, aprendi a respeitar a vez de cantar do outro, tive minha iniciação à leitura musical, cantei músicas em alemão, e ainda senti o acolhimento e a valorização como ser humano e artista em construção.

Em 1999, passei a atuar como soprano do Grupo Vocal Coro e Osso, a convite de maestro Luiz Piquera, e a partir daí participei de todas as suas atividades, incluindo espetáculos, gravações de CDs, oficinas de canto coral, recitais e muitos concertos didáticos, um dos trabalhos de maior significado para o grupo. Além de cantar músicas coral de diferentes épocas e estilos, o Coro e Osso sempre trouxe ao público a ideia do canto coletivo, que, segundo Fonterrada (2008, p. 200), “tem estado presente nas manifestações musicais das mais diversas culturas, desde tempos imemoriais até os dias de hoje”; assim, o grupo apresenta também em seu repertório músicas de povos indígenas como forma de valorização e difusão de suas culturas.

Estando inserida no processo de aprendizagem musical pós-concerto didático como coralista e aluna de Luiz Piquera, reconheço Luiz como meu mestre e ponte de conexão entre aquele concerto na escola, durante minha adolescência, e os grupos Projeto Canto Coral e Coro e Osso. Com seu discurso didático provocador, Luiz tornou-se minha principal fonte de conhecimento musical. Segundo Herr (1998), o regente de coro é, principalmente, um educador musical e serve de exemplo para seus coralistas que o percebem nesse papel.

Concerto didático como prática social

Diante da minha experiência na participação no concerto didático, exponho esse evento como uma prática social geradora de processos educativos que me proporcionou um maior contato com a música vocal, me trouxe uma compreensão da música como

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uma linguagem acessível e me despertou um interesse verdadeiro na busca do conhecimento da linguagem musical.

Para tanto, sobre as práticas sociais, Oliveira et al. (2009, p. 4) apontam que:

Práticas sociais decorrem e geram interações entre indivíduos e entre eles e os ambientes, natural, social, cultural em que vivem. Desenvolvem-se no interior de grupos, de instituições, com o propósito de produzir bens, transmitir valores, significados, ensinar a viver e a controlar o viver, enfim, manter a sobrevivência material e simbólica das sociedades humanas.

No concerto didático, a coletividade estabelecida pela relação entre músicos e plateia, delineada pela música e sua apreciação, educa e impulsiona a construção da identidade dos indivíduos que constituem essa plateia em formação, através do desenvolvimento de sua musicalidade. Segundo Colle (2004, p. 31):

A identidade é uma construção que se faz com atributos culturais, isto é, ela se caracteriza pelo conjunto de elementos culturais adquiridos pelo indivíduo através da herança cultural. A identidade confere diferenças aos grupos humanos. Ela se evidencia em termos da consciência da diferença e do contraste do outro.

O concerto didático visto como prática social, existindo pela interatividade humana que acontece em todas as fases da vida e em todos os ambientes em que essas vidas se encontram e se processam, me pôs em contato com pessoas que me transmitiram valores que vão além da música.

A experiência no concerto didático me concebeu meios para que eu me visse integrada a outros setores da sociedade, e junto a isso ocorressem mudanças na autovalorização como ser humano, diminuição da timidez e aumento da autoestima. Tais transformações favoreceram a tomada de consciência em relação à minha própria identidade.

Sobre práticas sociais e criação de identidades dentro da sociedade, Oliveira et al. (2009, p. 6) nos fala que:

As práticas sociais nos encaminham para a criação de nossas identidades. Estão presentes em toda história da

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humanidade, inseridas em culturas e se concretizam em relações que estruturam as organizações das sociedades. Permitem, elas, que os indivíduos, a coletividade se construam. Delas, participam, por escolha ou não, pessoas de diferentes gêneros, crenças, culturas, etnias, necessidades especiais, escolaridades, classes sociais, faixas etárias e orientações sexuais. Participam pessoas com diferentes percepções e conhecimentos, em diferentes processos de trabalho e lazer, em diferentes espaços, escolares e não escolares. Nelas, as pessoas expõem, com espontaneidade ou restrições, modos de ser, pensar, agir, perceber experiências produzidas na vida […].

Assim, sendo uma prática social, o concerto didático é um evento artístico e cultural que, além de entreter, apresenta o intuito de transmitir conhecimentos musicais. Para Soares (2012, p. 406):

[...] concertos com finalidade didática são relevantes socialmente se configuram como meios recorrentes em diversos espaços: teatros, salas de concertos, igrejas, escolas entre outros. São concertos em que uma tradição, originária de outro tempo e lugar, é apresentada de maneira simples e direta para que ‘rituais’, desenvolvidos em função de necessidades específicas, sejam compreendidos e desmistificados.

A origem da palavra didático vem do grego didaktikós e é relativa a didática, que significa ensino ou arte de ensinar (DICIO, [s.d.]). Portanto, um concerto didático, constitui-se em prática social, pois dela brotam processos educativos que se estabelecem na relação entre músicos e plateia. E, dessa forma, segundo Soares (2012), o acesso a uma expressão cultural não cotidiana pode fazer com que esta seja compreendida e apreendida como algo que também possa vir a fazer parte das opções musicais do público atendido.

Fonterrada (2008) apresenta a afirmação de Dalcroze, quando nos diz que toda ação artística é também um ato educativo e arte não se restringe à música. Então, podemos considerar o concerto didático como sendo um ato educativo, que se realiza em escolas e outros espaços (teatro, igreja, praça), não perdendo, porém, sua característica didática, por conter interatividade, transmissão

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de conhecimento de forma estruturada e obediência a padrões metodológicos que orientam a plateia.

Visto que o concerto didático apresenta um caráter pedagógico, torna-se necessária a utilização de alguma metodologia. Metodologias utilizadas em concertos didáticos devem estimular os indivíduos da plateia a se colocarem como sujeitos ativos do processo educativo presente no evento, no que diz respeito à apreciação.

Relacionamos então o concerto didático às palavras de Koellreutter, que, segundo Brito (2001), se opunha a métodos fechados de educação musical e pensava o ser humano como objetivo da educação musical. Desse modo, o compartilhar conhecimentos musicais, sejam eles técnicos, históricos ou o próprio contato apreciativo com a música em si, coloca a plateia como motivo central do concerto didático. O ouvir, segundo Palheiros e Wuytack (1995), é a própria razão de existência da música e é também um componente essencial da educação musical.

Estar na plateia de um concerto didático aos 15 anos de idade me proporcionou um despertar musical que foi essencial para minha formação. Entendi, a partir daí, que o concerto didático é um evento extremamente importante para formação de plateia. E, através da boa condução daquele concerto, meus ouvidos se abriram à arte coral e minha sensibilidade foi ampliada para a recepção e percepção geral da música. Para França e Swanwick (2002), a audição é uma atividade que verdadeiramente contribui para o nosso desenvolvimento musical, aumentando nossa experiência a cada novo estímulo a que somos submetidos.

Reflito sobre as palavras de Bondía (2002), que propõe pensarmos a educação a partir da relação experiência/sentido e coloca a capacidade de formação ou de transformação como um componente fundamental da experiência. Na plateia do concerto didático, pus-me aberta e passível ao momento musical vivido, tornei-me sujeito daquela experiência de apreciação e da aprendizagem vinda através da música vocal. Segundo Bondía (2002), experiência é aquilo que “nos passa”, que nos toca ou que nos acontece, e, ao nos passar, nos forma e nos transforma.

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Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação.

Para Fonterrada (2008), a experiência musical de qualidade atinge profundamente o ser humano e amplia suas experiências de vida. Portanto, o constituir de minha identidade, a ideia de pertencer a uma sociedade que ultrapassava os muros de casa, da igreja e da escola e o estímulo para romper barreiras sociais da menina negra de periferia, que nunca anteriormente teve a oportunidade de apreciar aquele fazer musical, vêm pela conscientização após o arrebatamento que o concerto didático me causou.

Sobre processos de conscientização relacionados às vivências musicais, Brito (2001, p. 49) cita novamente Koellreutter, quando ele diz que “[...] a conscientização implica desenvolver simultaneamente a vivência e o processo intelectual, e a comparação é o melhor meio para promover o processo de conscientização”. Pensando pontualmente sobre o concerto didático coral, que se estrutura inicialmente pelo tipo de música que lhe é inerente, a música vocal, faço um paralelo com a citação de Brito sobre o pensamento de Koellreutter, verificando que, a partir daquele concerto didático, passei a fazer comparativos entre o que eu conhecia de música e o que me estava sendo apresentado de novo, sentindo a necessidade de buscar novos conhecimentos musicais.

Consideremos também a estruturação do repertório do concerto didático. Pensar um repertório atrativo, delineado por um roteiro que cria conexões entre as músicas (estilo, conteúdo, compositores, fatos históricos, cronologia), estimula a plateia a construir uma lógica auditiva. Sendo assim, a plateia é conduzida e transportada por momentos musicais diversos, diante de uma narrativa musical.

Músicas dos povos indígenas, das matrizes africanas, canções populares brasileiras e de outros povos do mundo, de diversas épocas, em um mesmo repertório, deixam evidente o objetivo de descentralização da cultura colonizadora através de uma proposta da ampliação do foco na diversidade cultural, artística e social do país.

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À medida que os diferentes “sotaques” musicais do Brasil sejam acoplados a processos de descobertas, de experiências significativas de audição musical, de diálogos e ampliação estética, e de respeito aos diferentes discursos e expressões da música nesse país, nós poderemos ter uma educação musical que transite entre a formalidade e a informalidade, entre a norma e a prática, entre o dito e o feito, entre o texto e o contexto. Assim, pensamos em uma educação verdadeiramente musical, contextualizada com a vivência singular, mas integrada à descoberta da pluralidade (QUEIROZ, 2004, p. 107).

Com base nesse trecho de Queiroz, podemos refletir sobre a importância da diversidade musical dentro do repertório do concerto didático coral, pois, com esse formato, o concerto toma a forma de uma prática social consistente de aproximação com a plateia.

Ainda refletindo sobre o repertório do concerto didático coral, Penna (2008, p. 86) nos diz que:

[...] as diferentes poéticas musicais são social e culturalmente contextualizadas, articulando-se a diversas práticas sociais: distintas poéticas implicam modos diversos de usufruir/consumir determinadas manifestações musicais, de construir significações, de socializar e aprender a dominar os princípios de construção sonora daquela poética.

Partindo desse pressuposto, relações entre a música e o ouvinte, músicos e público, arte musical e formação de plateia, nas quais a educação musical, a sociabilização e a diversidade cultural se fazem presentes, se tornam objetos na vivência do concerto didático e apontam construções de identidades. Essas relações são construídas diante do fator social estabelecido nas diferentes poéticas musicais, contextualizadas nas articulações com outras práticas sociais, como escolas e comunidades, tendo o objetivo de atingir diversos públicos e agir na derrubada de preconceitos vindos pela falta de vivência com essa arte.

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A importância da apreciação para o despertar de uma escuta ativa musical

A oportunidade de estar presente na plateia de um concerto didático me colocou, como indivíduo, diante de uma atividade denominada apreciação.

Segundo França e Swanwick (2002), a apreciação é uma forma legítima e imprescindível de engajamento com a música. Concertos didáticos oferecem a prática da apreciação, porém a participação ativa nesse processo acontece pela interação do grupo musical – canalizada, na maioria das vezes, na mediação do maestro – com a plateia durante os entre músicas, carregando a ação de sentido.

Palheiros (2006 apud MADALOZZO, 2014, p. 15) afirma que:

[...] de forma geral, a audição musical ativa é o tipo de audição em que o ouvinte se envolve de maneira a ouvir e interpretar música utilizando não só o ouvido, mas todo o seu corpo, além de recursos externos. […]. Dessa forma, não só ouvimos, mas vivemos a música, e temos mais possibilidades de aprender com ela.

Segundo Palheiros e Wuytack (1995 apud MADALOZZO, 2014), considerar fatores musicais e extramusicais, como a contextualização da obra, são aspectos significativos de condução da escuta no ato da apreciação. Durante a apreciação do concerto didático, recursos externos à música estimulam o envolvimento do indivíduo com as músicas, oferecendo sentido para audição musical da plateia.

Para Palheiros e Wuytack (1995 apud MADALOZZO, 2014), dentro do ambiente escolar, existem aspectos pedagógicos da audição musical relevantes, que podem ser utilizados como recursos que auxiliam a escuta ativa. Relacionando esses aspectos à prática do concerto didático, observo que eles também apoiam a escuta da plateia, tornando-a atenta e ativa durante a apreciação.

Sobre os aspectos pedagógicos da audição musical, Palheiros e Wuytack (1995 apud MADALOZZO, 2014, p. 39-40) afirmam o seguinte:

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• O primeiro é o aspecto biográfico […] é importante que o professor pesquise e recolha as informações mais importantes e relevantes para a audição […] é importante situar a obra, na vida do compositor, sem perder tempo com a memorização de datas, locais e nomes que não tenham ligação com ela. […]

• O segundo aspecto é o histórico-cultural, e consiste em situar a obra musical no contexto em que foi escrita, a partir de dados históricos, culturais e filosóficos, pois é a partir desse conhecimento, que a obra ganha pelo sentido […].

• Em seguida [...] mencionam o aspecto descritivo […] consideram que toda obra musical que tem algum tipo de subdivisão esquemática também é programática. […] Ainda segundo eles, o programa pode limitar a compreensão da obra, enquanto que, com a audição, o que devemos buscar é o contrário: o crescimento do valor musical deve ultrapassar o conteúdo do programa. […]

• O quarto aspecto é técnico […] para a percepção e a memória – condições primordiais para a música – é necessário conhecimento técnico básico: a compreensão de uma obra musical passa pelo conhecimento dos componentes que a constituem. […] • Por fim, o aspecto interpessoal diz respeito a questões relacionadas às preferências musicais, e como elas interferem no envolvimento dos alunos em uma atividade de audição proposta em sala de aula. […].

Pensando a música como linguagem, o concerto didático propõe diálogos entre músicos e plateia, e, observando esses diálogos, sabemos que sua vivência e apropriação se iniciam através do contato com as músicas apresentadas. Segundo Penna (2008, p. 90):

[...] sendo a música uma linguagem cultural, um tipo de música se torna significativo para nós na medida em que, pela vivência cotidiana, nos familiarizamos com seus princípios de organização sonora, com a sua poética. Em contrapartida, a música que não faz parte de nossa experiência é vista com “estranhamento”.

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Para Willems (1985 apud FONTERRADA, 2008), a afetividade é elemento central da escuta. Então, quando ouvimos algo, reagimos com acolhimento ou estranhamento e essas reações são repostas afetivas em relação ao que ouvimos. Portanto, a escuta sensível é quando ouvimos com interesse e atenção, despertando consciência sonora e ocorrendo a intenção de escutar. Fonterrada (2008) diz que:

O terceiro modo de escuta mostrado por Willems é a inteligência auditiva, que nos permite tomar consciência do universo sonoro, o qual pode ser empregado como elemento artístico, seja como interpretação, seja como criação. A inteligência auditiva constitui-se, também, em uma síntese abstrata das experiências auditivas sensoriais e afetivas, pois se constrói sobre esses dados. Os fenômenos que a inteligência auditiva comporta são a comparação, o julgamento, a associação, a análise, a síntese, a memorização e a imaginação criativa, além da escuta interior (WILLEMS, 1985, p. 41-3, apud FONTERRADA, 2008, p. 148).

Fonterrada (2008) afirma que nenhuma ação pode ser dissociada de sentimento, e é por isso que a música é particularmente importante para o ser humano, pois sua similaridade com o sentimento torna a experiência imediata e profunda. Voltando à minha experiência vivida no concerto didático do Grupo Vocal Coro e Osso, todas as transformações advindas do ato de apreciação foram carregadas de sentimento, já que aquele momento se tornou uma das mais significativas experiências em minha vida.

E sobre carregar de sentimento e significar minha experiência vivida na apreciação do concerto didático, proponho a reflexão de Bondía (2002) ao se referir ao saber da experiência como o que expressa sentido ao que nos acontece.

Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular. […] Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal (BONDÍA, 2002, p. 27).

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A experiência no concerto didático me aconteceu na adolescência, fase da vida que, para Bock (2007), é concebida como transformação, tomando da sociedade e da cultura, as formas para se expressar. Somando-se a isso o fato de que, segundo Blacking (1995), a música em comunidade implica uma participação social, sendo a prática social em grupo um meio privilegiado para o desenvolvimento de competências sociais, me apropriei desse jeito de viver coletivamente, diante do fazer musical coral e fiz dele minha principal forma de expressão.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse artigo trouxe a reflexão do concerto didático como prática social, uma vez que práticas sociais geram processos educativos que formam as pessoas em todas as experiências de que participam em diferentes contextos e nos encaminham para a criação de nossas identidades (OLIVEIRA et al., 2009).

Expondo os processos educativos advindos do concerto didático coral como sendo importantes motivadores para o início dos meus estudos musicais, a reflexão trazida neste artigo mostrou que tais processos educativos podem ser considerados agentes transformadores, que me auxiliaram na tomada de consciência sobre minha identidade, impulsionando-me na busca por uma escuta musical cada vez mais ativa.

Para Koellreutter (1997, p. 135 apud BRITO, 2001, p. 53):

O mundo intelectual, cultural é um grande lago, onde todos nós jogamos pedras. Umas um pouco maiores, outras menores, mas nós movimentamos esse lago. Isto é o que me parece essencial: o movimento.

Fazendo uma analogia entre o movimento proposto por Koellreutter e o concerto didático coral, este último constitui-se em um movimento de encontros e trocas. O concerto didático propõe vivências que podem tornar-se experiências significativas na formação musical da plateia, ao receber e responder a estímulos musicais, numa criação de atmosfera repleta de percepções, juntamente com os músicos, desmistificando a frequente expressão

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“não ter ouvido”, que, segundo Palheiros e Wuytack (1995), existe pela falta de treinamento ou falta de educação do ouvir.

A experiência vivida por mim na plateia no concerto didático do Grupo Vocal Coro e Osso foi apresentada neste artigo como um fator imprescindível para minha transformação de espectadora a musicista, já que a capacidade de formação ou de transformação vem através da experiência (BONDÍA, 2002).

Uma plateia aberta a experiências, composta por indivíduos dispostos a exercer sua função de ouvintes atentos, ao ser provocada, pode ser estimulada a buscar entendimentos para a aprendizagem da interpretação, da execução ou da criação da arte musical, podendo antes disso tomar como caminho a busca pelo entendimento do valor humano presente na audição consciente da música e da vida.

REFERÊNCIAS

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Referências

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