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Da dualidade corpo/mente à unidade matéria-psique

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Academic year: 2021

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Da dualidade corpo/mente à unidade matéria-psique

Uma jornada transdisciplinar entre filosofia, medicina,

física e psicologia

MARCELO BICHARA

1*

Introdução

Este artigo foi organizado em quatro partes, seguindo o raciocínio dialéti-co típidialéti-co dos antigos tratados de alquimia. Na primeira parte descreveremos o nascimento transdisciplinar da psicologia complexa (como uma dissidência da psicanálise), começando pela polêmica do mesmerismo na medicina europeia ilu-minista, para então introduzir o debate central entre Carl Gustav Jung e Sigmund Freud a respeito da aplicação do conceito de energia nos estudos da mente. Na segunda parte focaremos no nascimento simultâneo ou sincrônico (início do sé-culo XX) da moderna física atômica, narrando os dilemas epistemológicos com que se confrontavam os físicos, sob a perspectiva de Wolfgang Pauli (1900-1958), um de seus principais fundadores.

No terceiro momento descreveremos então como as questões filosóficas mais profundas, levantadas pela investigação paralela dessas duas disciplinas, mais distantes quanto possível uma da outra, acabaram por se encontrar no con-sultório de Jung em 1932. Desta colisão de extremos opostos emerge um terceiro elemento, uma síntese dialética que expressa algo novo, mais complexo do que apenas o somatório de suas partes.

De posse dessa nova Weltanschauung (cosmovisão), batizada posteriormente de “Conjectura Pauli-Jung” ou monismo de duplo aspecto (Atmanspacher, 2012), na quarta parte encerraremos este trabalho mostrando como as ideias desen-volvidas neste encontro histórico de dois pensadores – um físico e um psiquiatra – podem lançar nova luz sobre a ciência contemporânea, relacionando pesquisas recentes que dialogam e/ou vão na mesma direção.

1 * HCTE (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Mestre em Psicologia (UFRRJ), doutorando

em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia. O presente trabalho foi realizado com

apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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1. Mente e energia

Para sermos fiéis à História da Ciência é preciso admitir que, um século antes de Sigmund Freud, foi seu conterrâneo vienense Franz Anton Mesmer (1734-1815) o primeiro médico a tentar relacionar os fenômenos do espírito (geist) com os da energia (ELLENBERGER, 1994). Convencido de que o exorcismo cristão pra-ticado na Europa moderna, assim como os rituais de possessão do paganismo não-europeu, eram ambos na realidade procedimentos terapêuticos, utilizados há milênios para reequilibrar a distribuição e a circulação do princípio vital nos corpos; em 1774 o doutor Mesmer começou a adaptar esta prática antiga para a sua utilização no consultório médico, substituindo a explicação mito-teológica por uma teoria científica sobre o que ele chamou de magnetismo animal.

O caso de Mesmer é um exemplo emblemático daquilo que Bruno Latour (1994) chamaria de híbrido, uma configuração transdisciplinar nascida no seio da modernidade, mas que desafia seu esquema explicativo oficial. Purificado de seus elementos culturais de pele escura, o magnetismo animal realizou com relativo sucesso em sua época a tradução de uma categoria não-moderna como

mana--prana-axé (JUNG, 2012a;) nos termos de uma hipótese científica que dialogava

com a vanguarda da ciência de sua época.2

Incapaz de demonstrar a existência física desta forma particular de energia, Mesmer perde seus poderes, entra em depressão e cai no esquecimento. Suas es-colas aristocráticas que faziam enorme sucesso na França absolutista, não sobre-vivem à revolução francesa. Mas seu principal discípulo, o médico francês Amand Marie Jacques de Chastenet, o Marques de Puységur (1751-1825), sob a tutela da Maçonaria de Estrasburgo, conseguiu garantir a sobrevivência do mesmerismo e a sua devida adaptação para a ciência do século XIX. Se o magnetismo animal não podia ser demonstrado de forma objetiva por um experimento físico capaz de medi-lo diretamente, a mente então devia ser a responsável por todos aqueles fenômenos “anômalos”, rebatizados agora por ele de sono magnético. Foi so-mente em 1841 na Inglaterra, quando o médico James Braid propôs que deveria haver alguma explicação neurológica, e não energética, para o sonambulismo

magnético, que este foi rebatizado e purificado ainda mais, transformando-se

naquilo que, ao final do século XIX, ainda desafiando a medicina europeia, ficou conhecido como hipnose (ELENBERGER, 1994: 74).

Mas se a mente era a responsável por fenômenos de natureza objetiva e fi-siológica, como tremores e paralisia involuntários, então isto implicava em duas consequências fundamentais: primeiro que deveria haver mente ali onde já não há mais consciência. O coração não bate como um relógio mecânico regular, mas é coordenado por uma mente involuntária que oscila a todo instante, influenciada internamente por pensamentos e sentimentos e externamente pelos estímulos do

2 Para maiores detalhes dessa relação de mútua afetação (umbandização ou sincretismo

má-gico, via colonialismo) entre o mesmerismo moderno europeu purificado e as antigas práticas de

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ambiente. Segundo: esta mente inconsciente não habita um plano transcendente à la Descartes, de onde envia comandos racionais e planejados, mas expressa-se naturalmente pelo corpo na forma de sintomas, comportamentos autônomos e instintivos, além de um longo leque de patologias somáticas. Estava assim pre-parado o terreno para o nascimento da psicanálise. Todo este cenário fascinou o jovem estudante de medicina Sigmund Freud (1856-1939), que fez sua especializa-ção em neurologia num respeitado laboratório de fisiologia, onde estudava a ter-modinâmica dos nervos dissecando o sistema nervoso de peixes e enguias (NAGY, 2003:130), indo posteriormente até a França para estudar a famosa hipnose com o então célebre Jean-Martin Charcot – o Mesmer purificado da França pós-revolução:

Charcot tinha demonstrado que sintomas histéricos podem ser reproduzidos artifi-cialmente pela hipnose; representam, pois, algo de “real”, que poderia estar localiza-do em alguma região localiza-do cérebro. Caso isto se verificasse, esses sintomas seriam re-sultantes de processos fisiológicos legítimos e não poderiam ser classificados como simples simulações. Teorias anteriores e ainda prevalecentes referiam a histeria a um distúrbio feminino do aparelho sexual. Clitorectomias ainda eram rotineiramente prescritas para mulheres histéricas por médicos respeitáveis. A “cura pela fala” ca-racterística de Breuer era, na verdade, algo de novo. Breuer e Freud tinham tentado explicar os fenômenos da repressão e da conversão. Propuseram para tanto, um

modelo de energia psíquica auto-reguladora, que funciona segundo as leis da termo-dinâmica, formuladas meio século antes, por Helmholtz.

[...] Na histeria, a energia em sua forma de afeto é reprimida e aparecem sintomas, frequentemente de forma somática. Quando o afeto é liberado pela catarse da cura pela fala, a energia interna represada pode ser descarregada de maneira normal e uma relação equilibrada otimizada entre potencial interno e descarga externa – um estado de constância – é restabelecida. Para Breuer e Freud, a atividade psíquica do organismo em estado de vigília tinha a função de consumir o excesso de energia com a finalidade de equalizar os potenciais. Segunda esta teoria, a mente se

asseme-lha a uma máquina elétrica. (NAGY, 2003:132-133 [itálico nosso])

Quando esta primeira versão fisicalista da psicanálise chegou até Carl Gustav Jung (1875-1961) em meados dos anos 1900, este estava empenhado a fazer medições de psicogalvania no hospital psiquiátrico suíço onde trabalhava (Jung, 2012b). Jung adaptou o método de associação de palavras que o seu orientador, o também psiquiatra Eugen Bleuler usava para estudar os “distúrbios dissociati-vos” que o próprio Bleuler batizou mais tarde de esquizofrenia; e inspirando-se também nos trabalhos de psicofísica de Fechner e da psicologia experimental de Wundt, Jung desenvolveu um sistema semelhante àquele usado mais tarde por agências policiais como “detector de mentira”. Consistia em conectar galvanôme-tros na palma da mão de seus interlocutores, medindo a variação do potencial elétrico na superfície da pele das pessoas à medida em que elas iam relacionando uma série de palavras (selecionadas minuciosamente por ele) a diferentes conte-údos afetivos, carregados de diferentes intensidades, já chamados aqui então de

complexos. A intensidade da experiência subjetiva podia assim ser correlacionada

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uma diferença real e objetiva. Não se tratava portanto de uma simples analogia entre o físico e o mental, mas sim de uma correspondência direta de natureza mais profunda. Toda experiência afetiva é também um fenômeno elétrico, não do cérebro tomado em separado, mas do corpo como um todo.

O método de Freud (terapia da fala de Breuer aliado à interpretação dos so-nhos para elucidar o conteúdo dos complexos) oferecia a Jung uma terapêutica nova e promissora, mas a hipótese fisicalista do inconsciente de Freud apresen-tava problemas que contradiziam suas próprias observações. Quando conteúdos carregados de energia psíquica (complexos) afetavam o galvanômetro com mais intensidade, as respostas eram mais longas e apresentavam intervenções cria-tivas, espontâneas e inteligentes que emergiam do inconsciente, muitas vezes chegando a surpreender o próprio sujeito da experimentação.

Influenciado pelo trabalho de outro psiquiatra contemporâneo Theodore Flournoy (1854-1920), que estudou as manifestações criativas do inconsciente durante os fenômenos religiosos e de transe, e tendo feito sua própria tese de doutorado em psiquiatria estudando in loco o fenômeno de psicografia (“escrita automática”) em sessões mediúnicas organizadas pelas mulheres de sua própria família (JUNG, 2012d), Jung argumentou desde o princípio com Freud de que uma explicação puramente pulsional, libidinal, sexual e fisicalista não eram capa-zes de explicar o potencial criativo, imagético e mitológico do inconsciente. Este não seria um simples porão energético da consciência, nem os sonhos apenas si-mulações de desejos reprimidos, mas sim uma máquina de natureza espontânea, criativa e criadora de novidade, sendo a consciência pessoal um complexo entre outros, não uma entidade separada ou contrária a o inconsciente, compartilhan-do as mesmas propriedades vivas e autônomas.

A psicanálise oferecia a Jung, portanto, uma ótima descrição da neurose mo-derna judaico-cristã (complexo do Eu), mas não uma teoria geral da mente (capaz de oferecer uma “ecologia dos complexos”). Mas para entender melhor nosso ponto de vista, é preciso primeiro entender o que aconteceu depois. Pois apenas três anos após a publicação de “A Energia Psíquica” (JUNG, 2012b [1928]), o livro que melhor diferencia a psicologia complexa da psicanálise, o físico atômico Wol-fgang Pauli entra de súbito nessa história.

2. O colapso de onda e a microfísica atômica

Na mesma Viena onde começou nossa história com Mesmer no século XVIII e depois Freud no XIX, Pauli forma-se como físico no mesmo ano em que termina a Primeira Guerra Mundial (1918). Revolução e radicalismo eram as palavras de ordem no zeitgeist dos anos 1920. Como relata Lee Smolin (1997), Niels Bohr era um dos poucos da geração anterior que sobrevivera ao conflito armado e ainda mantinha um centro de pesquisa vivo e funcionando, na neutra e agora próspera Dinamarca do pós-guerra. O que Bohr apontasse como legítimo na física atômica daquela época ganhava espaço e legitimidade, ainda que nomes importantes

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como Albert Einstein discordassem, as visões defendidas pelo Instituto de Bohr em Copenhagen ganhavam vida longa, ao passo que as que entravam em desa-cordo com ele tiveram muito menos espaço para florescer. Um fato emblemático sobre este ponto, Heisenberg (2016: 93) comenta com certo senso de humor como Bohr conduziu o famoso Congresso de Solvay em 1927,3 levando Erwin

Schrödinger a cair de cama doente e febril, ao que Bohr continuou o debate ao lado da cama do enfermo até que o colega aceitasse a contragosto a interpreta-ção de Bohr para a sua famosa equainterpreta-ção.

Toda a querela girava em torno justamente da poderosa equação de

Schrö-dinger, que descreve a evolução de uma partícula quântica, ou um sistema de

partículas em interação, como uma onda virtual num espaço matemático, re-presentada por um número complexo, composto por uma parte real e outra dita imaginária (i = √-1). Esta onda virtual descreve todas as interações como for-mando um sistema único entrelaçado (entangled), e não propriamente partículas individuais ricocheteando no vazio (como os atomistas esperavam), mas sim uma totalidade integrada onde cada elemento de um sistema está correlacionado um com o outro a partir do somatório de todos os estados possíveis superpostos. Quimera matemática batizada pelo seu inventor como função de onda, represen-tada não por acaso pela letra grega Ψ.

Schrödinger, ao contrário de Bohr, estava convencido de que, da mesma forma que Einstein havia demonstrado que a luz também se comporta como par-tícula, sua equação descrevia as propriedades ondulatórias e vibracionais da ma-téria (HEINSEBERG, 2016: 88). Mas havia um problema: para medir isso tudo era preciso perturbar esse sistema, interagir com ele a partir de algo fora dele, e por algum motivo ainda desconhecido, qualquer interação de fora do sistema com essa energia difusa e virtual a nível quântico a faz colapsar numa forma “pontual”, atual, local e precisa, alterando radicalmente o sistema de uma forma irreversível e incontrolável – fazendo aparecer a famosa “partícula”. Estamos diante da enig-mática dualidade onda-partícula. Toda mecânica quântica que se desenvolveu a partir dos anos 1920 é uma tentativa de realizar essa síntese dialética entre o atomismo de Demócrito-Boltzman e a visão mais holística dos campos de Fara-day-Maxwell e do energetismo de Ostwald (BACHELARD, 2010).

Toda a querela das múltiplas interpretações da mecânica quântica gira em torno de saber quais são as implicações filosóficas deste problema. É impossível prever onde a partícula será encontrada, mas a função de onda (Ψ²) descreve com precisão a distribuição estatística sobre onde ela pode e não pode aparecer. Não é possível afirmar que a partícula estava lá, em algum lugar, antes de ser medida, porque quando não a medimos, quando não há interação que a perturbe, esta se propaga como onda virtual, sendo capaz de interferir consigo mesma e inclusive atravessar barreiras físicas que em sua forma de partícula seria impossível

reali-3 5º Congresso Internacional de Física realizado periodicamente em Bruxelas desde 1911. Este em particular tornou-se célebre por ter declarado a chamada Interpretação de Copenhagen como a versão oficial e cientificamente mais correta da mecânica quântica.

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zar (tunelamento quântico). Existe o mundo descrito pela função de onda Ψ, uma totalidade inter-relacionada (realidade ontológico-matemática virtual não-local de tempo reversível, real e imaginária) e outro mundo muito diferente alcançado pelo processo cognitivo, pela via dos sentidos, dos aparelhos de medida ou pela consciência, um mundo de objetos separados ou separáveis no espaço (realidade epistêmica atual e consciente). (ATMANSPACHER, 2018).

Toda experiência subjetiva está confinada a apenas uma porção ínfima da realidade, tornada imagem (objeto consciente) pelo processo cognitivo. A experi-ência subjetiva (dualidade eu-mundo, sujeito-objeto, instrumento de medida-na-tureza) é exatamente aquilo que racha a totalidade do real e nos separa do infinito

(colapso de onda). Bohr tinha a vantagem de tentar manter uma atitude cética

frente a isso tudo, simplesmente tirando da ciência a questão de saber sobre o “real” supostamente “objetivo” que existiria “antes da observação”. A ciência só pode falar daquilo que observa, portanto interrogar sobre a realidade dos estados superpostos descritos na função de onda, por definição não-observável, é assun-to metafísico, deve ser abandonado da investigação, pois não cabe na ciência positiva. Assim a mecânica quântica progrediu maravilhosamente bem, fazendo medições e previsões estatísticas de precisão e aplicabilidade admirável. Mas a questão filosófica por trás do seu nascimento permanece em aberto. Que nível de realidade virtual é esse que existe do ponto de vista da energia, onde o tempo linear e o princípio de localidade não desempenham o mesmo papel que na física clássica, aquela que descreve o mundo macroscópico capturado pelos sentidos? Frustrado com a solução pragmática de Bohr, o jovem Wolfgang Pauli comenta:

Os positivistas depreenderam que a mecânica quântica descreve os fenômenos atô-micos corretamente e, sendo assim, não tem motivos para reclamar. Tudo o mais que tivemos de acrescentar – a complementaridade, a interferência das probabilidades, as relações de incerteza, as questões referentes à separação entre sujeito e objeto etc – lhes parece um punhado de lirismos, meras recaídas no pensamento pré-cien-tífico, fragmentos de conversa fiada que não têm que ser levados a sério. Talvez essa atitude seja logicamente defensável, mas, se for, eu já não sei dizer o que significa afirmar que compreendemos a natureza. (PAULI, apud EISENBERG, 1996: 240)

Para sermos justos com o seu principal fundador, a física quântica só pôde progredir porque Bohr convenceu a todos de que o princípio de

complementari-dade é uma lei epistêmica fundamental, o que somos obrigados a concordar. É

preciso olhar a natureza através de dois aspectos distintos, contraditórios entre si, mas igualmente verdadeiros. A solução de Bohr para o problema da dualidade onda-partícula na física é a mesma que Jung e Pauli vão formular mais tarde para a dualidade ocidental, cristã e moderna: corpo-mente ou matéria-psique. Dois modos de expressão distintos e contraditórios entre si da mesma substância, como o “Deus ou seja Natureza” de Spinoza, onde não há paralelismo psicofísico, mas sim uma unidade mais profunda que, no entanto, só pode ser expressa e compreendida a partir da contradição, das dualidades e dos paradoxos que ex-pressam o absoluto e a totalidade:

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O desenvolvimento da ciência nos últimos dois séculos modificou totalmente o pen-samento do homem, mesmo fora do Ocidente cristão. Logo, importa um bocado o que pensam os físicos. E foi precisamente a ideia de um mundo objetivo, seguindo seu rumo no tempo e no espaço de acordo com as leis causais estritas, que produziu um choque entre a ciência e as formulações espirituais das diversas religiões. Se a ciência ultrapassar essa visão restrita, como fez, justamente, com a teoria da relativi-dade, e como é provável que faça ainda mais com a teoria quântica, a relação entre a ciência e os conteúdos que as religiões expressam terá que mudar novamente. Ao revelar nos últimos trinta anos [1900-1930] a existência de novas relações, talvez a ciência tenha conferido uma profundidade muito maior a nosso pensamento. O conceito de complementaridade, por exemplo, que Niels Bohr considera tão crucial na interpretação da teoria quântica, não era desconhecido no âmbito das ciências do espírito, mesmo que os filósofos não o tenham expressado dessa maneira tão explícita. No entanto, seu aparecimento nas ciências exatas constituiu uma mudança decisiva: a ideia de objetos materiais completamente independentes do modo como os observamos mostrou não ser mais do que uma extrapolação abstrata, que não corresponde a algo real. Na filosofia asiática e nas religiões orientais, encontramos uma ideia complementar, a de um puro sujeito do saber, um sujeito que não cor-responde a nenhum objeto. Também essa ideia se revela uma extrapolação abstrata, que não corresponde a nenhuma realidade espiritual ou mental. Se pensarmos no contexto mais amplo, é possível que sejamos forçados, no futuro, a adotar um cur-so intermediário entre esses extremos, talvez no rumo mapeado pelo conceito de complementaridade de Bohr. Qualquer ciência que se adapte a essa forma de pen-samento será não apenas mais tolerante para com as diferentes formas de religião, como também, tendo uma visão global mais ampla, poderá contribuir para o mundo dos valores. (PAULI apud HEINSENBERG, 2016:103-104).

Aqui não é o caso para entrarmos mais a fundo na querela das múltiplas terpretações da mecânica quântica, mas apenas mostrar qual era o ambiente in-telectual em que este jovem físico entrava. Bohr, o líder da empreitada, defendia que era preciso criar uma mecânica inteiramente nova para o nível quântico, pois este certamente funcionava de modo muito distinto da física clássica. Se o átomo fosse regido pelas mesmas leis que explicam as órbitas de um sistema planetário, toda a estrutura da matéria rapidamente entraria em colapso, os elétrons cairiam em direção ao núcleo atômico como meteoros em chamas e o mundo inteiro se desintegraria ou tenderia a desaparecer. (PINGUELLI, 2006).

Nas palavras de Bohr, para explicar a milagrosa estabilidade do átomo era preciso admitir que a matéria a nível microscópico: “tende a produzir certas for-mas (uso a palavra “forfor-mas” no sentido mais geral) e a recriar essas forfor-mas, mes-mo quando elas são perturbadas ou destruídas.”(BOHR apud HEISENBERG, 1996: 52). Apenas certos arranjos muito particulares de energia são capazes de produzir a estrutura altamente estável de um átomo ou uma molécula. Os químicos eram capazes de medir quais estados são esses (tabela periódica), mas ninguém sabia explicar porque a matéria escolhia repetidamente sempre estes e nunca outros.

Foi quando Pauli, aos 25 anos, teve a ideia que lhe renderia anos mais tarde o prêmio Nobel de física. De modo simplificado, podemos dizer que ele

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demons-trou que a matéria obedece a um princípio de exclusão que a diferencia de outras formas de energia (como a luz, por exemplo), pois suas partículas não podem ocupar o mesmo estado energético que outra, e é por isso que os elétrons vão se organizando nos diferentes orbitais ao redor do núcleo, formando a complexa estrutura eletrônica que determina as propriedades químicas dos elementos. O que diferencia o carvão do ouro e ambos do oxigênio, é justamente essa estrutura eletrônica que os diferentes núcleos conseguem suportar, devido aos diferentes arranjos de simetria atômica que garantem estados de equilíbrio e estabilidade.

Para explicar seu princípio de exclusão, Pauli propôs que além das três gran-dezas descritas pela função de onda, deveria haver uma quarta propriedade ain-da desconheciain-da, responsável por realizar essa quebra de simetria ain-da matéria. Podemos dizer que a luz é como um fantasma, duas partículas de luz atravessam uma a outra, interagindo localmente e seguindo adiante sem guardar memória da interação, ao passo que duas partículas de matéria, pelo princípio de exclusão, mudam de estado durante a interação, ganhando uma memória do aconteci-mento. A luz é ótima para transmitir uma mensagem sem perda de significado (pense na luz das galáxias a bilhões de anos viajando até chegar na Terra, ou no sinal do Wi-Fi em sua casa), ao passo que a matéria aprende a cada encontro, se modifica no tempo e evolui. 4

3. O Efeito Pauli: simetria e sincronicidade

Este não é o lugar para contar a história de Wolfgang Pauli, nem mesmo de seu encontro com Jung, episódio já muito bem documentado na historiografia da ciência (BLACK, 2002; MEIER, 2001; MILLER, 2009). Faremos aqui apenas um breve resumo sobre o que é preciso saber para continuar acompanhando esta comple-xa e polêmica história da relação entre mente e energia e os rumos insólitos que ela tomou.

Apesar de sua carreira promissora como físico ter neste momento tudo para deslanchar, a vida pessoal de Pauli mergulhava numa espiral decadente. Após o término do casamento de seus pais, sua mãe comete suicídio em 1928. Na época, ele já levava uma vida dupla de cientista renomado de dia e beberrão mulhe-rengo à noite, acumulando histórias de excesso e brigas de bar. Tentando inge-nuamente lidar com o luto da pior forma possível, casou-se com uma dançarina

4 De modo mais rigoroso teríamos de dizer que a física quântica atualmente divide suas par-tículas em dois grandes grupos: aquelas que obedecem ao princípio de Pauli (férmions, como as que compõe o átomo) e aquelas que não obedecem ao seu princípio (bósons, como a luz). O quarto número quântico proposto por Pauli foi mais tarde batizado de spin: bósons são definidos por possuírem spin inteiro (interação simétrica), enquanto os férmions possuem spin

semi-intei-ro (quebra de simetria). As simetrias estabelecidas pelos spins num átomo psemi-intei-roduzem o famoso

efeito à distância do entrelaçamento quântico. E em casos especiais, como no Hélio4 (2 prótons, 2 nêutrons, 2 elétrons), dão à matéria propriedades especiais, pois o somatório dos spins se cance-la, fazendo deste átomo um bóson, de modo que a baixa temperatura ele se comporta como um

superflúido e um supercondutor (como a luz), perdendo a habilidade natural da matéria de “roçar”

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de cabaré num arroubo de paixão, relacionamento fulminante que terminou um ano depois num divórcio devastador. Quanto pior ele se sentia, menos sorte ele parecia ter. Sua presença ou simples proximidade dos laboratórios de pesquisa rapidamente ganharam a fama de ter o poder de estragar os experimentos, au-mentando a chance de um acidente ou de qualquer outra coisa dar errado perto dele. O mau agouro era amplamente reconhecido pelos próprios colegas físicos atômicos, de quem deveríamos esperar que não acreditassem nessas supostas “crendices”, e foi até popularmente batizado: “O Efeito Pauli”. Nascia aqui mais um híbrido no seio da modernidade.

O problema se estendeu rapidamente a todos os aspectos da sua vida, até que depois de rolar uma escada abaixo, e ver o seu próprio carro pegando fogo sozinho, ele aceitou ceder à insistência de seu pai para recorrer a um psiquia-tra. Antes de consultar Jung no entanto, ele comprou e estudou seu livro recém publicado “Tipos Psicológicos” (JUNG 2009 [1921]), encontrando ali uma descri-ção precisa de si mesmo: o tipo intelectual que havia perdido completamente sua conexão com a função sentimento, o corpo e o feminino. Não apenas isto, como Miller (2009) deixa bem claro em sua análise, a descrição de Jung sobre o resgate alquímico da quarta função psíquica reprimida, escondida nas sombras do inconsciente (geralmente representada pelo sentimento, o corpo, a matéria e a mulher), para compor junto com as outras três funções a totalidade psíquica (quaternidade dialética da alquimia), saudável e em desenvolvimento equilibrado, aquilo tudo lembrou Pauli justamente sobre a sua descoberta do quarto número quântico, necessário para diferenciar a matéria das outras formas de energia e descrever a totalidade de sua estrutura atômica, isto é, explicar a tendência que a

matéria exibe de organizar sua energia em padrões universais que representam estados de equilíbrio e simetria. Mente e matéria estavam finalmente prontos

para se reencontrarem. Impactados por esta “coincidência significativa”

(meanin-gful coincidence) entre as propriedades da matéria na microfísica e a psicologia

do inconsciente, o físico e o médico desenvolveram juntos um extenso diálogo filosófico-científico ao longo de cartas trocadas (MEIER, 2001) nas três décadas de amizade que se seguiram ao encontro. Jung se interessou tanto em colaborar com Pauli que rapidamente o transferiu para uma analista sob sua supervisão, preferindo ser seu amigo e colaborador, evitando assim problemas de transfe-rência e indução.

Jung havia passado anos trabalhando em seu Liber Novus5, desde o

rompi-mento com Freud em 1913, e só se deu por satisfeito com o experirompi-mento pessoal quando recebeu de seu amigo sinólogo Richard Wilhelm (o tradutor do I-ching), um manuscrito de alquimia chinesa que apresentava muitas semelhanças com o seu próprio material arquetípico. E agora nos sonhos de Pauli que Jung analisava na terapia, ele via de novo o mesmo padrão, as mesmas imagens pululando na

5 Conhecido como “O Livro Vermelho de Jung”, trata-se da elaboração artística de sua ex-perimentação filosófico-científica sobre a natureza criativa, autônoma, coletiva e inteligente do inconsciente.

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escuridão do inconsciente, como formas arquetípicas e universais cheias de vida e significado. (JUNG, 2012c)

Com Jung, Pauli aprendeu que a mente recorre sempre aos mesmos padrões arquetípicos de simetria e centramento, organizando seu conteúdo de forma au-tônoma e instintiva. A noção de simetria, muito cara à estética e às produções artísticas (bem como também à biologia), desempenhava naquele momento um papel crescente na descrição física. Há casos em que há uma perfeita simetria nas leis físicas e há casos em que justamente a quebra dessa simetria nos aponta algo novo, de modo que é um erro supor que tudo na natureza seja simétrico, mas a falta de simetria também nos diz algo sobre o funcionamento e a história da coi-sa, de modo que o conceito está embutido de modo implícito no nosso próprio processo de conhecimento. Por um lado, projetamos nossa psique no mundo ao tentar compreendê-lo, antropomorfizando o cosmos; por outro lado, se a estru-tura capaz de suportar uma psique é, ela própria, cosmos

(matéria-energia-infor-mação), não é absurdo supor que o seu funcionamento obedeça às mesmas leis e que ali os mesmos princípios sejam válidos.

Em “A influência das ideias arquetípicas no pensamento científico de Kepler” (1955), Pauli expõe quase como uma autoconfissão, como a noção arquetípica de círculo (mandala) como símbolo da perfeição e da eternidade, enganou os astrô-nomos durante milhares de anos, que por este motivo julgavam os objetos do céu como eternos e imutáveis, supondo poder descrever os movimentos celestes com um arranjo complexo de círculos perfeitos. O coração cristão de Kepler so-freu ao ter que aceitar (como um bom cientista que era) a evidência empírica de que, pelo menos para as órbitas planetárias, a natureza prefere se contentar com a elipse, que nada mais é do que um círculo com quebra de simetria em uma das dimensões, possuindo por isso dois centros (uma blasfêmia para a ciência mono-teísta da época). Simetria, centramento, conservação, organização e estrutura

são conceitos correlatos.

Jung aprendeu com Pauli que era possível falar de correlações significativas na ciência, sem precisar recorrer à hipótese causal – núcleo filosófico da ciência clássica. Na física macroscópica tudo se passava como um encadeamento causal e linear no tempo, onde um acontecimento causa outro numa sucessão de even-tos cuja diferença só pode se propagar no espaço como alteração na energia do sistema, submetida ao limite c para a velocidade da onda eletromagnética no vá-cuo. Mas na microfísica quântica múltiplas partículas coexistem simultaneamente em diferentes pontos correlacionados entre si, de modo que os movimentos são coordenados por uma totalidade (função de onda) que estabelece relações de simetria entre as partículas cuja correlação não se propaga por um encadeamen-to causal no espaço, mas produzem efeiencadeamen-tos não-locais de modo aparentemente instantâneo (entanglement).

Neste ponto é importante a ressalva de Cambray (2009) a respeito do “back-ground” filosófico de Jung e Pauli diante deste problema: ambos os pensadores são produtos da cultura germânica do início do século XX, muito marcados pelo

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pensamento oriental e também o de Spinoza, herdado diretamente pela Natur-philosophie e pelo romantismo alemão do século anterior, em especial nos fa-mosos trabalhos de Goethe, Humbolt, Maxwell e Willian James, além de Einstein é claro, professore colega de Jung na Universidade de Zurique.

Einstein em particular havia acabado de demonstrar que o tempo é relativo à posição e ao movimento e, portanto, do ponto de vista da velocidade da luz seu movimento é instantâneo (t = 0). É somente do ponto de vista dos corpos materiais, com massa abaixo da velocidade da luz, que o tempo assume valores reais. Para Jung isto significava que, do ponto de vista da energia e, portanto, da mente inconsciente, não existe a experiência da duração, este tempo linear que é a base da nossa experiência consciente. Assim como também neste nível de realidade (chamado por Jung de inconsciente coletivo), os corpos não possuem forma ou posição definidas. Tudo é instantâneo, simultâneo e interconectado. A experiência consciente do tempo como duração num espaço tridimensional po-voado de objetos só existe do ponto de vista desta consciência que se recorta do mundo que a compõe. De tudo isso que foi expresso até aqui, os dois cientistas concluíram ainda que:

1) Fenômenos “anômalos” expulsos da ciência para o campo híbrido da “pa-rapsicologia” (como telepatia, pré-cognição e mediunidade), podiam agora ser investigados cientificamente sem violar o paradigma vigente, desde é claro que submetidos ao rigor metodológico. O próprio efeito pauli podia agora também ser levado à sério, se pensarmos que a mente funciona como um campo ou uma função de onda: aquela parte do corpo que está enraizada no infinito, que ex-pressa a totalidade dos possíveis no aqui e agora.

2) A sincronicidade (JUNG, 2016) podia agora ser pensada não apenas como uma “coincidência significativa”, uma correspondência de sentido entre um fa-tor externo e uma expectativa interna, mas sim como uma convergência natural, criativa e espontânea, de fatores externos e internos, desconectados entre si de modo causal, mas coordenados por uma totalidade coerente capaz de produzir sentido e significado. A natureza da matéria como algo capaz de computar, pen-sar, sonhar, produzir ideias por si mesma, testar essas ideias entre si e as trans-mitir adiante.

4. Desdobramentos Contemporâneos:

Seria impossível neste breve artigo expressar a totalidade das ideias e im-plicações dessa versão ontológica, chamada pelo físico Atmanspacher (2018) de “Conjectura Pauli-Jung” ou monismo de duplo aspecto. O melhor que podemos fazer no curto espaço que nos resta aqui é mostrar como essa perspectiva filo-sófica se desenvolveu depois deles, adaptando, sobrevivendo e evoluindo até os dias de hoje.

O próprio Schrodinger (1977 [1944, 1958]) tentou ele próprio pensar as rela-ções entre vida, energia, mente e consciência. E de modo semelhante, Ilya

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Prigo-gine e Isabelle Stengers (1984) argumentaram que os desenvolvimentos posterio-res da termodinâmica na segunda metade do século XX, a dos sistemas caóticos longe do equilíbrio, ofereceram um novo paradigma para pensar a ciência, a vida, a mente e a relação natureza-cultura.

Roger Penrose (1998) é um físico contemporâneo que também propôs que a consciência humana não pode ser explicada pelo funcionamento da física clás-sica. Para se compreender os mistérios da mente humana seria preciso investigar o que acontece dentro de cada neurônio, no interior de sua estrutura, a nível microfísico. Mais uma vez, outro físico argumentando que é impossível explicar a consciência sem relacioná-la diretamente com a física quântica e seus fenômenos estranhos e correlatos.

A neurociência evoluiu muito nas últimas décadas e encontrou importantes correlatos neurais para a mente individual, inclusive os da consciência. Mas o chamado hard problem persiste, pois ninguém sabe explicar como as oscilações elétricas da atividade cerebral podem ser experimentadas por um corpo como um estado de autoconsciência. É curioso observar no entanto, como a neurociên-cia “purificada” dos misticismos quânticos junguianos, para medir e representar a atividade consciente, teve que deixar de lado os neurônios em si e ampliar sua visão para as oscilações sincrônicas e coerentes da energia do cérebro como um todo: as chamadas ondas cerebrais (MANDELLI, 2018). Nossa consciência parece ser o resultado de uma sincronização altamente coerente dos fluxos de energia num sistema vivo.

O psicólogo e filósofo da ciência brasileiro Nelson Job, fazendo uma crítica deleuzeana à epistemologia de Jung, propõe os conceitos de ontologia onírica (2012) e unidade dinâmica (2020) para descrever sua cosmovisão monista. Ele propõe também o conceito de Vortex (2012; 2020) para descrever essa conver-gência espontânea e fractal de múltiplos fatores, característica da sincronicidade e dos sistemas complexos, argumentando que a natureza tende sempre a uma vortexalização, isto é, à autorganização e à vida. Deus, mente, energia, consciên-cia, vida e natureza seriam todos vortex compondo vortex em devir.

Gregory Bateson (1986 [1979]) é um biólogo que leva Jung a sério, rela-cionando sua concepção de inconsciente coletivo com o conceito de mente da

cibernética. Sua teoria, ainda que assistemática, adianta em muitos pontos o já

famoso trabalho de James Lovelock e a hipótese Gaia, onda a vida na Terra é descrita como o resultado do funcionamento orgânico de um ecossistema di-nâmico que inclui todos os seres vivos, o Sol, o núcleo líquido da terra e muitos outros fatores interconectados por mecanismos de autorregulação sistêmicos. Com Bateson aprendemos a pensar a enegia psíquica de Jung como o fluxo de informação que as transformações de energia transportam consigo. A dualidade epistêmica sujeito-objeto atualiza-se primeiro na ciência como a dualidade cor-po-mente (mecanicismo), depois atualiza-se como onda-partícula (quântica) e energia-informação (cibernética e ecologia).

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Nesse mesmo sentido, Emanuele Coccia (2013) é um filósofo contemporâ-neo que procura desconstruir a imagem que o ocidente tem das plantas, dos animais e os demais seres ditos “inferiores”, desde que os gregos antigos inven-taram o Homem, dotado de razão e cultura “transcendente”. Segundo o cientista, toda forma de vida modifica o ambiente em que vive e transmite este ambiente artificial para seus descendentes (cultura).

“Toda a forma, também nos viventes mais elementares e desorganizados, não é somente fato estético ou estrutural, mas o testemunho de uma psicologia inconsciente e da matéria, ou seja, a matéria existe e vive como um cérebro.” (COCCIA, 2013: 214). Segundo o autor, a própria potência plástica que modela o corpo dos viventes é testemunha de uma “imaginação transcendental da maté-ria” (COCCIA, 2013: 212):

a matéria do mundo em todo o ser vivente é um cérebro ou opera como um cérebro (ou, para dizê-lo de outra forma, existe um cérebro de matéria, uma mente imanente à matéria em cada vivente. A vida não é nada mais que o fato da matéria em si poder tornar-se cérebro, mente. A semente (ou um ovo) não é nada mais que a representação mais banal desta cerebralidade elementar, matérica. As operações das quais é capaz uma semente são explicáveis somente pressupondo-a dotada de alguma forma de saber, um programa de ação, um pattern que não existe certa-mente à maneira de uma consciência, mas que lhe permite cumprir sem erros tudo o que faz. Se no homem ou no animal o conhecimento é acontecimento acidental e efêmero, na semente (ou no ovo) o saber coincide com a essência, a vida, a potência e a sua própria ação. A semente, o ovo, o gene são cérebros da matéria, a mente na matéria. Se a semente é uma espécie de cérebro, é somente porque o cérebro é um ovo, uma semente. O interesse destas especulações analógicas está mesmo na pos-sibilidade de chegar a uma definição não anatômica do cérebro: o cérebro não é um órgão humano e não é um órgão tout court, mas todo traço de matéria que detém saber e conhecimento. Trata-se, de fato, de ampliar também o sentido do saber e do pensamento, no sentido contrário ao aristotelismo: não fazer mais do intelecto um órgão separado, mas fazê-lo corresponder com a matéria tout court. (COCCIA, 2013: 213 [itálicos do autor])

Nosso argumento principal é que o átomo é também um cérebro, no sentido já aplicado atualmente na tecnologia da computação quântica, onde a super-posição dos estados na função de onda é uma computação (pensamento-pro-cessamento) realizada pelas partículas num espaço virtual (representado como composto por um plano real e outro imaginário).

O cérebro é uma semente e o ovo é um cérebro somente porque os átomos de todos eles são também neurônios, isto é, se-mente. Longe de serem extremos opostos, matéria e espírito podem agora finalmente ser reintegrados numa

to-talidade imanente. Não mais um mundo dialético dividido em pares de opostos,

mas um cosmos em devir que é ao mesmo tempo uno e múltiplo. Se pudésse-mos resumir em uma única frase tudo o que foi dito até aqui, seria esta: matéria é energia que pensa.

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Referências:

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Referências

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