• Nenhum resultado encontrado

História e etnografia a partir de uma peça cerimonial Mawé: a tábua de paricá

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "História e etnografia a partir de uma peça cerimonial Mawé: a tábua de paricá"

Copied!
22
0
0

Texto

(1)

A rt ig o s

História e etnografia

a partir de uma peça

cerimonial Mawé:

a tábua de paricá

Marcel Mano

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Instituto de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais e em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Coorganizador, entre outros livros, de A formação do professor de Ciências Sociais: desafios e possibilidades. Uberlândia: Edufu, 2018. marcelmano@ufu.br

Índio Mura inalando paricá.

In: FERREIRA, Alexandre

Rodrigues. Viagem Filosófica

pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. 1971.

(2)

A

rt

ig

o

s

História e etnografia a partir de uma peça cerimonial Mawé: a tábua de paricá1

History and ethnography from the Mawé’s ceremonial piece: the tray of paricá

Marcel Mano

RESUMO

O artigo busca situar histórica e etno-graficamente uma peça coletada no segundo quarto do século XVIII pela expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira. Trata-se da bandeja zoomorfa para a aspiração do pó narcótico pari-cá colhida entre os Mawé por volta de 1786 e mencionada por Ferreira tam-bém entre os Mura, ambos os grupos da área Madeira-Tapajós. Ao remeter tal peça para Lisboa o naturalista pro-cedeu a uma ilustração com uma breve descrição do ritual e uma prancha re-presentativa de seu uso. Embora co-nhecidos, tanto a bandeja como o ritu-al, hoje extintos, não foram ainda colo-cados em relação à história e etnologia dessa área. Assim, a partir de um diá-logo entre Antropologia e História este texto apresenta a peça, sua ornamen-tação e aspectos que envolviam o ritu-al descritos por Ferreira, relacionando-os a alguns temas da mitologia, da et-nografia e da etnohistória do grupo e da área que ocupam.

PALAVRAS-CHAVE: viagem filosófica; história indígena; mitologia e ritual.

ABSTRACT

The papper seeks to situate historically and ethnographically a piece collected in the last quarter of the18th century by the ex-pedition of Alexandre Rodrigues Ferreira. It is the Zoomorphic tray for the aspiration of the paricá narcotic poder collected be-tween the Mawé around 1786, and men-tioned by Ferreira also among the Mura, both groups of the Madeira-Tapajós area. When sending the piece to Lisbon the nat-uralista illustrated it with a brief descrip-tion of the ritual and a plank representa-tive of its use. Although known, the tray and the ritual, now extinct, have not yet been placed in relation to the history and ethnology of this area.Thus, from a dia-logue between Anthropology and History this article presents the piece, its ornamen-tation and aspects that involved the ritual described by Ferreira in relation to some themes of mythology, ethnography and ethnohistory of the group and the área they occupy.

KEYWORDS: philosophical trip; indigenous history; mythology and ritual.

Somente no final do século XX, após mais de duzentos anos, o Brasil recebeu para exposição parte do acervo etnográfico coletado por Alexandre Rodrigues Ferreira. Naturalista e funcionário da corte portuguesa, ele iniciou em 1783 uma viagem na Ilha de Marajó que percorreu em nove anos quase

1 Este texto deve ser lido como um ensaio, pois sua pretensão é a de colocar em exercício possibilidades de

(3)

A

rt

ig

o

s

40.000 quilômetros2 desde a foz do Rio Amazonas até as nascentes do Rio

Ne-gro. Considerada a mais importante expedição portuguesa na Amazônia no século XVIII, nesse percurso ele coletou, além de amostras botânicas e zooló-gicas, um inestimável acervo de peças etnográficas do qual parte ficou exposto

no Palácio Rio Negro em Manaus.3 A coleção de duzentos e cinquenta peças

era composta por máscaras rituais, cerâmicas, utensílios domésticos e arte plumária colhidos entre os grupos indígenas com os quais a expedição entrou em contato.

Dentre os artefatos expostos, a bandeja para aspiração do pó narcótico paricá (figura 1) era uma das peças mais belas e intrigantes. Coletada entre os

Mawé4 por volta de 1786, mas também mencionada por Ferreira entre os Mura

(figura 2), ambos grupos da área Madeira–Tapajós, a bandeja e o ritual a ela associado ainda são pouco conhecidos do ponto de vista da história e da etno-logia dessa área. Ao contrário do noroeste amazônico, região na qual a difusão do paricá é famosa entre as populações Aruak, Tukano e Yanomami; e mesmo

entre grupos Karib, como os Kaxuyana do Rio Trombetas;5 na região central

da Amazônia, entre os rios Madeira e Tapajós, ela não foi ainda devidamente explorada. Isso porque apesar das menções históricas consistentes para crer que, no passado, eram muitos comuns os rituais de paricá, em contraste, devi-do à sua extinção entre os povos indígenas remanescentes, como os próprios Mawé e Mura, não há descrições detalhadas da cerimônia que acompanhava o uso da bandeja e a aspiração do pó narcótico. A única descrição conhecida para os “Magués” é ainda a do próprio Alexandre Rodrigues Ferreira. A 13/02/1786, quando remeteu de Barcelos a Lisboa a mencionada bandeja, ele a ilustrou com a “Memória sobre os instrumentos de que usa o gentio para

to-mar o tabaco ― Paricá”.6 Essa descrição e a peça, embora bastante conhecidas,

precisam ainda ser colocadas em relação à sócio-cosmologia Mawée a um quadro comparativo e histórico da área. É isso que se pretende.

O estudo do legado da Viagem filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio

Negro, Mato Grosso e Cuiabá,7 constituído não só das peças etnográficas, mas

dos diários, memórias, mapas, censos e cerca de novecentas pranchas, já per-mitiu entender como o naturalista setecentista via o mundo amazônico. No

2 Ver CARVALHO, José Candido de Melo. Viagem filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato

Grosso e Cuiabá (1783-1793): uma síntese em seu bicentenário. Belém: Conselho Nacional de

Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico e Museu Paraense Emilio Goeldi, 1983, p. 76.

3 Ver PIMENTA, Angela. Raízes antigas ― em Manaus exposição traz acervo indígena do século XVIII. Veja,

v. 30, n. 13, São Paulo, abr. 1997, p. 132 e 133.

4 De acordo com Tekla Hartmann há bandejas congêneres em diversos museus europeus (Oslo, Munique,

Roma, Viena, Estocolmo, Coimbra e Lisboa) que foram por ela, e por Otto Zerries, também atribuídas aos Mawé, às quais, porém, não tivemos acesso. Ver HARTMANN, Teckla. Artefactos indígenas brasileiros em Portugal. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, série 100 (1-2), 1982, p. 180.

5 Ver FRIKEL, Protásio. Mori ― a festa do paricá ― índios Kachuyana; Rio Trombetas. Boletim do Museu

Paraense Emilio Goeldi: nova série Antropologia, n. 12, jul. 1961 e, do mesma autor, Mori ―a festa do paricá. In: COELHO, Vera P. (org). Os alucinógenos e o mundo simbólico. São Paulo: EPU/Edusp, 1976.

6 Ver FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memória sobre os instrumentos de que usa o gentio para tomar o

tabaco – Paricá. In: Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1974, p. 97 e 98.

7 Ver FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e

Cuiabá: iconografia, v. I. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1971 e, do mesmo autor, Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá: memórias – zoologia/botânica. Rio de

(4)

A

rt

ig

o

s

estudo de suas imagens antropológicas8 por exemplo, corpos, deformidades

físicas e elementos materiais foram os marcadores encontrados para identifi-car um modo de pensamento em Ferreira no qual “os povos indígenas ama-zônicos do século XVIII constituíam uma única raça, mas estavam em

diferen-tes estágios da evolução humana”.9 A pergunta agora é se parte desse material

permite também identificar como os povos indígenas viam o seu próprio mundo. Neste caso, quais marcadores podemos encontrar na peça e na rápida memória do ritual que possam permitir a identificação de aspectos da cultura, da etnologia e da história dos Mawé?

Para isso, a peça, sua ornamentação e aspectos que envolviam o ritual descritos por Ferreira serão colocados em relação a alguns temas da mitologia, da etnografia e da história do grupo e da área que ocupam; tal como já pedia Tekla Hartmann em relação a “análise conjunta de temas das mitologias e

ex-pressões iconográficas em artefatos de uso cerimonial”.10 No caso aqui

toma-do, a peça, coletada no contexto setecentista, deve ser colocada em relação comparativa com outros povos e com a etnohistória do grupo e da área, bem como de dados de sua etnografia.

Considerada desde sempre como eminentemente Tupi,11 há indícios

suficientes para pensar que a área Madeira-Tapajós e os Mawé foram constitu-ídos por diferentes povos indígenas em intensos contatos intertribais que aca-baram por gerar grupos étnicos mistos ou “tupinizados”. Vizinhos de grupos genuinamente Tupi, como os atuais Kawahiwa do Rio Madeira e os Apiaká e Kayabi do alto Tapajós, os Mawé, contudo, repartem com outro de seus

vizi-nhos ― os Munduruku ― o título de grupos étnicos mistos;12 fato que se

refle-te em dois campos. Primeiro, nas relações históricas com grupos descritos nas

fontes coloniais como “Tupinambaranas” ― “falsos Tupinambás”;13 e,

segun-do, na presença entre eles de elementos culturais diferentes do padrão

Tupi-Guarani,14 entre os quais, no caso Mawé, as tábuas e o ritual de paricá que

parecem os aproximar, assim como outros aspectos de sua história e etnogra-fia, de grupos Aruake Karib localizados a oeste.

8 Ver RAMINELLI, Ronald. Do conhecimento físico e moral dos povos. Mare Liberum, v. 22, n. 32, 2001,

RAMINELLI, Ronald e SILVA, Bruno da. Teorias e imagens antropológicas na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas, v. 9, n. 2, Belém, maio-ago. 2014, e DOMINGUES, Ângela Maria Vieira. Os índios da Amazónia para um Naturalista do séc. XVIII. Ler História, n. 23, Lisboa, 1992.

9 RAMINELLI, Ronald e SILVA, Bruno da, op. cit., p. 323. 10 HARTMANN, Tekla, op. cit., p. 182.

11 Ver LOUKOTKA, Cestmír. Classification of south american indian languages. Los Angeles: University of

California, 1968, p. 111, e GALVÃO, Eduardo. Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 206.

12 Ver SUSNIK, Branislava. Dispersión Tupi-Guarani pré-histórica: ensayo analítico. Assunción: Museu

Etnográfico Andres Barbero, 1975, p. 62.

13 MENÉNDEZ, Miguel A. Uma contribuição para a etno-história da área Madeira-Tapajós. Revista do Museu

Paulista, n. 28, 1981/1982, p. 315, e MANO, Marcel. As crônicas jesuíticas e a história indígena no médio

Amazonas – séculos XVII e XVIII: os Tupinambaranas. Crítica e Sociedade: Revista de Cultura Política, v. 7, n. 1, Uberlândia, 2017, p. 114.

14 Ver SUNSNIK, Branislava, op. cit., p. 87, MÉTRAUX, Alfred. La civilization materialle dês tribus

Tupi-Guarani. Paris: Librerie Orientaliste Paul Geuthner, 1928, p. 308, e ZERRIES, Otto. Atributos e instrumentos

rituais do xamã na América do sul não andina e o seu significado. In: HARTMANN, Tekla e COELHO, Vera P. (orgs.). Contribuição à Antropologia em homenagem ao Prof. Egon Schaden. São Paulo: Edusp, 1981, p. 341.

(5)

A

rt

ig

o

s

É sobre este cenário que se propõe pensar a bandeja que ficou exposta em Manaus. Enquanto tábua de ornamentação zoomorfa e ritual de aspectos próprios, a descrição de Ferreira pode ganhar inteligibilidade em uma relação comparativa com aspectos da história e da etnologia dos Mawé.

O paricá Mawé

O paricá, tabaco ou rapé, conhecido por diferentes nomes entre os po-vos indígenas amazônicos, é uma substância obtida das cascas e/ou sementes de diferentes árvores da floresta tropical. Alguns autores relataram o uso das sementes da piptadenia e anandenanthera peregrina, popularmente conhecida

como angico-vermelho.15 Outros identificaram o paricá como árvore da

espé-cie schyzolobiumamazonicum, popularmente conhecida como bandara e

gua-puruvu.16 Outros, ainda, mencionaram a extração do pó a partir das cascas da

virola colophilla, conhecida como epená.17 Outros, enfim, embora tenham

as-sistido ao ritual de aspiração do pó, não tiveram oportunidade de identificar a

casca e/ou sementes usadas no seu preparo.18

Entre os Mawé, soma-se a essa variedade de matérias primas algumas outras dificuldades para a identificação da planta por eles usada, em parte pela ausência de descrições etnográficas, e em parte pelo curto relato deixado por Alexandre Rodrigues Ferreira. Mas a julgar pelas suas descrições, é pro-vável que se tratava de uma árvore leguminosa, pois eles obtiveram “o pó dos

frutos da árvore paricá depois de torrados”.19 Dentre as prováveis espécies

estão a anandenanthera peregrina e o schyzolobiumamazonicum, ambas le-guminosas arbóreas da família das Fabaceae. Suas favas contém as sementes ― frutos ― que após torrefação branda são maceradas para obtenção do pó. O schyzolobiumamazonicum, identificado pela botânica como árvore do paricá,

possui vasta distribuição geográfica, com ocorrência na Amazônia brasileira, venezue-lana, colombiana, peruana e boliviana, em altitudes de até 800 m. No Brasil, é encon-trado nos estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso e Rondônia, em solos argilosos de florestas primárias e secundárias, tanto em várzea alta quanto em terra firme (Sousa et al. 2005). Em geral, variam de 15 a 40 m de altura e 50 a 100 cm de diâmetro à 1,3

m de altura (dap).20

Este seria, pois, um provável candidato para o fornecimento da maté-ria prima do paricá dos Mawé. De acordo com a descrição de Ferreira, as se-mentes, depois de retiradas de suas favas, eram torradas e maceradas pelas

15 Ver WÁSSEN, S. Henry. Considerações sobre algumas drogas indígenas, em especial o rapé, e a

parafernália pertinente. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, v. 3, São Paulo, 1993, p. 149, e LABATE, Beatriz. Entrevista: uma antropologia que floresce fora da academia: Anthony Henman e el cactos San Pedrito. Revista de Estudos da Religião, ano 4, n. 1, São Paulo, 2004, p. 66.

16 Ver SILVA, Arystides Resende e SALES, Agust. Crescimento e produção de paricá em diferentes idades e

sistemas de cultivo. Advances in Forestry Science, v. 5, n. 1, Cuiabá, 2018, p. 231-235.

17 Ver MAIA, J. G Soares e RODRIGUES, Willian A. Virola theiodora como alucinógena e toxica. Acta

Amazônica, v. 4, n. 1, abr. 1974, p. 21 e 22.

18 Ver FRIKEL, Protásio, op. cit., p. 10.

19 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e

Cuiabá, op. cit., p. 97.

(6)

A

rt

ig

o

s

mulheres: “e as velhas na preparação do paricá e dos vinhos de fructas, e do beijú”.21

Para a maceração das sementes era usado um almofariz feito do ouriço das castanhas. Cortado ao meio, cada uma de suas metades oferecia uma cuia resistente chamada de induá, na qual, com a mão de pilão ― induámena ―, os índios socavam as sementes até obterem o pó. Para juntá-lo, usavam uma escovinha feita de pelo de tamanduá ― tapixana ― e depois guardavam-no em um caracol (Helix Terrestris) ― Parica-rerú (caixa do Paricá). Para o uso, e novamente com o auxílio da tapixana, estendiam o pó na cavidade da tábua ricamente entalhada com motivos zoomorfos (figura 1). Ferreira não nos ofe-rece o nome mawé dessa “prancheta”, mas descreve o modo de uso. Depois de estender a porção na cavidade da tábua, o usuário a segurava pelo cabo com a mão esquerda e com a mão direita empunhava o inalador feito de ossos de asas de aves confeccionado na fora de “Y”. Com as extremidades superio-res duplas encaixadas nas narinas e a parte inferior única voltada para a cavi-dade da tábua, o usuário então aspirava o paricá (figura 2).

Figura 1. A tábua de paricá Mawé. Veja, n. 30, 13 abr. 1997.

21 FERREIRA, Alexandre Rodrigues, op. cit., p. 98.

(7)

A

rt

ig

o

s

Figura 2. Índio Mura inalando paricá. In: FERREIRA, Alexandre Ro-drigues. Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato

Grosso e Cuiabá. 1971.

De acordo com estudos toxicológicos, as sementes do paricá contém dimetiltriptamina, o mesmo princípio ativo da ayahuasca (Banisteriopsiscaapi

+ Psychotriaviridis) e seu uso provoca uma alteração pronunciada no campo

visual cujo efeito dura de meia a uma hora no máximo.22 A sensação de leveza

e de visão alterada provocada pelo uso do paricá de certo podem ter relações com os voos descritos em situações de transe. Wássen já levantou essa hipóte-se, associando-a, inclusive, aos motivos zoomorfos de uma bandeja encontra-da em escavação arqueológica de sepultamento no norte do Chile, na qual “a bandeja, em sua parte superior, estava envolvida por uma camada de couro que cobria uma figura de condor elegantemente esculpida e que servia de

ca-bo”.23A mesma correlação aparece no ritual Kaxuyana descrito por Frikel.24

Neste, durante o ritual de aspiração do pó ― mori ― o xamã usava um ins-trumento para invocação e encantamento dos espíritos: uma peça de cabo liso

22 Ver LABATE, Beatriz, op. cit., p. 66. 23 WÁSSEN, S. Henry, op. cit., p. 152. 24 Ver FRIKEL, Protásio, op. cit., p. 9.

(8)

A

rt

ig

o

s

no qual incrustava-se no meio um osso de onça ou veado ou porco, à qual se seguia a imagem esculpida da cobra mitológica (tchkárki), e sentada acima dela o urubu-rei. À essa peça os Kaxuyana davam o nome de

“Kurúm-Kukúru”, cuja tradução é “imagem do urubu-rei”.25

Num caso o condor, noutro o urubu, o que chama atenção não é

pu-ramente a qualidade de ambas as aves serem necrófagos,26 mas de serem

ca-pazes de plainar em altas altitudes por longos períodos de tempo. Associadas à visão aguçada e à capacidade de voarem alto acima dos homens e se ergue-rem próximos aos espíritos do céu, essas aves podiam representar simbolica-mente uma mediação entre o mundo terreno e o mundo celeste e, empirica-mente, representar o voo alto, a leveza e a visão aguçada pelos efeitos do con-sumo do paricá.

Embora haja nisso certas relações lógicas, temos de considerar que nem sempre estão esculpidas imagens de aves nos motivos zoomorfos das bandejas ou na parafernália do ritual. Na verdade, a variabilidade de motivos é imensa. Sobre uma peça de origem desconhecida depositada na Sociedade de Geografia de Lisboa e descrita por Hartmann, a imagem é de uma

serpen-te.27 Entre os Kaxuyana ― a tábua para aspiração propriamente dita possuía

esculturas de um casal de onças mitológicas uma de frente à outra e com as

bocas amarradas.28 Outras apresentavam ainda somente figuras geométricas e

abstratas que, em cada caso particular, podiam representar figuras mitológi-cas. Entre os Mawé, o cabo da bandeja descrito por Alexandre Rodrigues Fer-reira tinha o formato de jacaré. “A prancheta costuma ter a figura de algum animal: a que tem a da amostra, dizia o índio seu dono, que era a de um jacaré [...]. Da madre-perola da concha ― Itaã ― fingem os olhos embutidos na

ca-vidade que o devem representar”.29

Em vista disso, e embora obviamente possa existir um pano de fundo comum e geral associado ao voo das aves no universo da espiritualidade, a bandeja e seus motivos devem primeiro ser colocadas em relação ao contexto etnográfico e mitológico de cada uma dessas sociedades. Só assim poderemos, em cada caso, colocar a peça e o ritual em relação a um quadro comparativo mais abrangente.

O jacaré representado na peça etnográfica Mawé, como veremos adian-te, de fato ocupa uma posição central na mitologia dessa população indígena, associada à transformação, morte e ressureição. Porém, antes de passar a essas questões, outras se fazem necessárias. E elas nos levam de volta à descrição que Ferreira fez do ritual.

Na breve “Memória sobre os instrumentos de que usa o gentio para tomar o tabaco ― Paricá”, após descrever o complexo do Paricá, composto do almofariz, da mão de pilão, da escovinha, do aspirador e da tábua, o naturalis-ta naturalis-também descreveu o ritual.

25 Idem, ibidem, p. 8 e 9.

26 Algumas relações lógicas podem levar à “Ayahuasca” que em quéchua significa, de acordo com Wassén,

S. Henry, op. cit., p. 149, “cipó dos mortos”.

27 Ver HARTMANN, Tekla, op. cit., p. 176. 28 Ver FRIKEL, Protásio, op. cit., p. 8.

(9)

A

rt

ig

o

s

Dele usa o Gentio nas grandes bacchanaes, chamados de Paricá, e para elas tem uma casa grande feita de propósito sem repartição alguma, e por isso denominada casa do Paricá.

Principia a cerimonia dos bacchanaes por uma cruelíssima flagelação: açoitam-se reci-procamente uns aos outros com um chicote de couro de peixe-boi, anta ou veado: na falta disto supre uma corda de fita bem torcida e de comprimento de uma braça; tem na extremidade uma pedra ou qualquer apenso que seja sólido, e que fira. Acoitam-se de dois a dois, o paciente recebe os açoites de pé, e com os braços abertos, enquanto o fla-gelante o fustiga à sua vontade; pouco depois passa o flafla-gelante a flagelado, e assim cada parelha segue o seu turno; e nisto consomem oito dias, eles na cerimônia da flage-lação, e as velhas na preparação do paricá e dos vinhos de frutas, e do beiju. Seguem-se a função de participarem dele os que participaram dos açoites. A virtude narcótica do paricá, o modo de o sorver, e a demasia dos vinhos, obram com tanta violência, que os que não morrem algumas vezes sufocados de tabaco, caem semi-mortos, e caídos ficam até lhes passar a bebedeira. Passada a primeira, principia a segunda: é de estatuto da

festa durar a borracheira tanto quanto duraram os açoites.30

Dois aspectos chamam a atenção nessa descrição. O primeiro é a exis-tência de uma casa própria para a realização do ritual ― a “casa do paricá”. O segundo é a menção a um aspecto inusitado: a flagelação.

O primeiro desses aspectos nos leva a supor que o ritual devia ocupar posição central na cosmologia mawé. Não só porque a existência de uma casa do paricá implicava em dispêndio de forças físicas para sua construção e ma-nutenção; como pelo fato dela ocupar um espaço geográfico e social dentro da aldeia. Embora a descrição de Ferreira não indique a posição precisa na qual se encontrava, no plano da aldeia, a casa do paricá; descrições feitas no mesmo período entre outros grupos da área Madeira-Tapajós nos indicam essa posi-ção. No final do século XVII, o padre João Felipe de Betendorf descreve a

che-gada de um Principal indígena e seus guerreiros na aldeia Iruriz,31 situada na

entrada do Rio Madeira. Após descer de suas canoas e se encaminharem para a aldeia, o principal dos “irurizes” veio ao encontro do grupo, e após os cum-primentos, o visitante foi levado para a “casa do paricá” erguida no meio do terreiro, onde, tomando o “paricá”, fizeram suas “danças e bebedices” que

duraram vários dias.32

Erguida no meio do terreiro, a casa do paricá se assemelha a diferentes complexos etnográficos das terras baixas sul-americanas, como representados

pelo sistema Jê-Bororo33 do Brasil central e pelo sistema Aruak e Tukano34 da

região do Rio Uaupés ― noroeste da Amazônia ―, nos quais existem casas cerimoniais exclusivas para rituais masculinos vedados à participação de mu-lheres. As informações etnográficas conhecidas do ritual de paricá, como o

30 Idem, ibidem, p. 97 e 98.

31 Grupo indígena extinto, foram descritos no terceiro quarto do século XVII por BETENDORF, João Felipe

de. Chronica da missão dos padres da Companhia de Jesus [1669]. Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, 72, 1910, p. 351, como tendo “cinco aldeias, cada um com seu principal”. Apesar de permanecer

como um grupo de família linguística desconhecida, pode-se afirmar com certo grau de certeza de que não era Tupi; pois de acordo com fontes oculares, em 1669 o padre Jócodo Peres levou o filho de um Principal Iruri ao Colégio do Pará, onde aprendeu português e Tupi. Cf. BETENDORF, João Felipe de., op. cit., p. 354.

32 BETENDORF, João Felipe de., op. cit., p. 356.

33 Ver LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 205. 34 Ver CARVALHO, Silvia Maria S. Jurupari estudos de mitologia brasileira. São Paulo: Ática, 1979, p. 21.

(10)

A

rt

ig

o

s

mori dos Kaxuyana, também o apontaram como culto secreto dos homens.35

Portanto, é provável que o ritual do paricá dos Mawé, realizado numa casa cerimonial central, fosse também um ritual masculino, e a descrição de Ale-xandre Rodrigues Ferreira nos aponta para isso, já que apenas os que eram açoitados podiam inalar o pó narcótico, e apenas “eles na cerimônia da flage-lação”, enquanto as mulheres “velhas na preparação do paricá e dos vinhos de

fructas, e do beijú”.36

Após a descrição de Ferreira na segunda metade do XVIII, o paricá volta a ser mencionado indiretamente entre os Mawé quase um século depois. Em 1858, Wilkens de Mattos fez referência à existência de uma "casa do pari-cá" na aldeia de Guaranatuba, e informou que para esse local se dirigiam,

anualmente, todos os Mawé.37 Isso sugere uma periodicidade anual do ritual

que devia coincidir com amadurecimento de algumas frutas das quais as mu-lheres faziam os vinhos; e a importância vital do mesmo pode ser confirmada pela migração anual e por três outros indícios: o de ser nome de uma

locali-dade Mawé descrita no XIX: Paricatuba ― onde há muito paricá;38 pelo fato

das informações de Ferreira e de Betendorf indicarem um longo período de realização do ritual; e por Ferreira mencionar que o paricá “usa o Gentio nos grandes Bacchanaes”. Por tudo isso, parece claro que o complexo do paricá envolvia grandes e periódicas festas coletivas que deviam ocupar posição cen-tral na organização ritual e na sócio- cosmologia desse povo indígena.

O segundo aspecto da descrição dada por Alexandre Rodrigues Ferrei-ra quando remeteu de Barcelos a Lisboa a tábua paFerrei-ra a aspiFerrei-ração do paricá dos índios Mawé é o caráter inusitado da flagelação. De acordo com a descri-ção, em duplas os homens açoitam-se mutuamente, e ora flagelante ora flage-lado, cada um recebia várias chibatadas com um açoite feito de couro com uma pedra na ponta. Diz o documento de Ferreira que principiavam os “Bac-chanaes” com essas cruelíssimas sessões de flagelação que chegavam a durar oito dias.

Mais uma vez parece claro que se tratava, então, de um ritual impor-tante e central na cosmologia desse povo indígena. Ele era longo, dividido em etapas sucessivas, às quais deviam se somar sessões de danças e cantos tal

como Betendorf descreveu entre os Iruri do Rio Madeira;39 implicar em

res-guardo e dietas aos homens participantes como apontou Frikel entre os

Kaxuyana;40 além, é claro, de muito elaborado do ponto de vista estético de

sua parafernália.

Mas certamente o caráter inusitado da flagelação e sua relação com a estrutura do ritual é o que chama a atenção. As sessões de açoite marcavam não apenas o início do ritual, mas os homens que poderiam consumir o pó e o

35 Ver FRIKEL, Protásio, op. cit., p. 5.

36 FERREIRA, Alexandre Rodrigues, op. cit., p. 98.

37 Ver MATTOS, João Wilkens de. Relatório da Diretoria Geral dos Indios, pelo seu Director Geral em 25 de agosto

de 1858: anexo ao relatório que o Presidente de Província Francisco José Furtado apresentou à Assembleia

Legislativa do Amazonas em 07 de setembro de 1858. Manaus: Typographia de José da Silva Ramos, 1858, p. 138.

38 Ver BARBOSA RODRIGUES, João. Exploração e estudo do valle do Amazonas: Rio Tapajós. Rio de Janeiro:

Typografia Nacional, 1875, p. 134.

39 Ver BETENDORF, João Felipe de, op. cit., p. 356. 40 Ver FRIKEL, Protasio, op. cit., p. 5.

(11)

A

rt

ig

o

s

número de dias no consumo, pois afirmou Ferreira que “é do estatuto da festa

durar a borracheira tanto quanto duraram os açoites”.41 É importante notar

que esses açoites não se caracterizavam como auto-flagelações, mas imolações recíprocas entre duplas. Mais curioso ainda é perceber que o jacaré, imagem

esculpida na tábua, é, na mitologia mawé,42 uma transformação da onça

medi-ada pelo açoite que a inflige o sapo com um galho de taperebá.

Se o encadeamento dos fatos estiver correto, ele nos indica um cami-nho de relações que levam do paricá à flagelação, da flagelação à transforma-ção, e da onça ao jacaré. Seguir esse caminho implica estender o diálogo para etnografias de rituais de flagelação e para a mitologia dos índios Mawé. O paricá entre a mitologia e a transformação

O costume de utilizar drogas narcóticas e alucinógenas, tomado por

Lathrap43 como característico dos povos da Cultura de Floresta Tropical,

pa-rece de fato ser muito difundido entre as populações amazônicas do

presen-te e do passado, mesmo culturalmenpresen-te diferenpresen-tes. Bapresen-tes44 o mencionou entre

os Omagua e Mura; Betendorf45 entre os Iruri; Frikel46 entre os Kaxuyana;

Seitz47entre os Waiká; Chagnon48 entre os Yanomami; Ferreira49 entre os

Mawé etc.

Na verdade, o uso de narcóticos extrapola a bacia amazônica, e o pa-ricá em particular pode ser encontrado amplamente não apenas no noroeste amazônico, mas também em regiões caribenhas, andinas, chaquenhas e gui-anesas. Na época das primeiras explorações espanholas, frutos de árvores eram usados pelos índios de Trinidad e da planície de Orinoco para fazer o rapé alucinógeno chamado cohoba ou yopo. Há “evidências arqueológicas de narcóticos serem usados ritualmente no Horizonte de Chavín, uma das primeiras civilizações peruanas, por volta dos 800 a.C., especialmente no

centro cerimonial de Chavín de Huántar”.50 Do mesmo modo, as tábuas de

paricá também foram amplamente distribuídas em épocas pré-hispânicas no

sul andino, até o norte do Chile e o norte da Argentina;51 e entre populações

41 FERREIRA, Alexandre Rodrigues, op. cit., p. 98.

42 Serão aqui e doravante utilizadas as versões dos mitos mawé publicadas por NUNES PEREIRA, Manuel.

Os índios Maués. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954, NUNES PEREIRA, Manuel. Moronguetá: um

decamerón indígena. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, UGGÉ, Enrique. Mitologías ateré-maué. Quito-Roma: Abya-Yala/MLAL, 1991, e UGGÉ, Enrique. As bonitas histórias Sateré-Mawé. Manaus: Imprensa Oficial/Secretaria de Educação do Estado do Amazonas, 1997.

43 Ver LATHRAP, Donald. O alto Amazonas. Lisboa: Verbo, 1975, p. 52.

44 Ver BATES, Henry W. Um naturalista no Rio Amazonas. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia/Edusp 1979, p.

131.

45 Ver BETENDORF, João Felipe de, op. cit., p. 465. 46 Ver FRIKEL, Protásio, op.cit., p. 1.

47 Ver SEITZ, Georg J. Os Waiká e suas drogas. In: COELHO, Vera P. (org.) Os alucinógenos e o mundo

simbólico: o uso de alucinógenos entre os índios da América do Sul. São Paulo: Editora Pedagógica e

Universitária/Edusp, 1976, p.105.

48 Ver CHAGNON, Napoleon. Yanomamo: the fierce people. 2. ed. New York: Holt, Rinehartand and

Win-ston, 1974.

49 Ver FERREIRA, Alexandre Rodrigues, op. cit., p. 97 e 98. 50 LABATE, Beatriz, op. cit., p. 65.

(12)

A

rt

ig

o

s

do Haiti e do noroeste amazônico, como os Tupari, foram mencionadas

me-sas de aspirar paricá.52

Não obstante a distribuição do complexo do paricá ser espacialmente amplo e temporalmente profundo, a flagelação descrita entre os Mawé conti-nua a ser inusitada porque pouca mencionada. Ela é comparável apenas às descrições das cerimonias de Jurupari entre grupos Aruak (entre os quais Ba-niwáe Kaxinawá―Huni-Kuin) e Tukano da região do Rio Negro, Içana e Uaupés. Ao definir essa região como área cultural, Eduardo Galvão a associ-ou, entre outros aspectos, a “um complexo mágico-religioso cujo fulcro é cons-tituído por crenças em um herói cultural Kowai (Jurupari) e em que o ritual revolve em torno de danças de máscaras e uso de flautas, assistidas exclusi-vamente pelos homens; flagelações com o adabi, açoite de cipó; festas para

ofertas de frutos, de caça ou peixe, os chamados da bucuris; xamanismo”.53

Essa mesma descrição aparece em outros autores que, além de associa-rem os rituais de Jurupari à flagelação, o relacionaram também ao uso de nar-cóticos, entre os quais o próprio paricá. “A religião de Jurupari compreende um culto secreto (associações secretas masculinas), revelado aos iniciados principalmente durante a segunda iniciação. Os ritos incluem flagelações, o uso do tabaco e coca, ilusógenos como o yagé (caapi) e (mais no extremo

su-doeste da região) também o paricá”.54

No noroeste amazônico, o complexo de mitos e ritos associados aos cultos de Jurupari são bem conhecidos e estudados por diferentes autores e

interpretações,55 mas entre os Mawé e os povos da área Madeira-Tapajós não

existem descrições etnográficas ou relatos orais associados e, mesmo na do-cumentação, as menções são circunstanciais e duvidosas. Dentre elas, em 1763 o frei beneditino João de São José, ao mencionar o contato que teve com índios “Magué” da vila de Pinhel, escreveu: “costumam esses índios nas suas

soleni-dades sair com flautas de canelas dos brancos”,56 e mais à frente do relato

completou que temiam os gritos e sons noturnos “atribuindo aquilo ao Juru-pari”.57

Em face desses dados parece certo pensar na existência de algumas semelhanças gerais entre o ritual de Jurupari e a descrição de Ferreira sobre o ritual dos Mawé. Dentre elas estão certamente o fato de ambos serem cultos masculinos durante os quais ocorriam flagelaçõese aspiração de paricá e de, possivelmente, ambos incluírem o uso de flautas sagradas ― que, no entanto, não foram mencionadas por Ferreira. Para os povos do Rio Negro, Uaupés e Içana, Jurupari é um herói cultural e um legislador que veio para regular as relações entre os sexos, o que talvez explique a exclusão das mulheres e o

52 Ver WÁSSEN, S. Henry, op. cit., p. 149. 53 GALVÃO, Eduardo, op. cit., p. 153.

54 CARVALHO, Silvia Maria S. de, op. cit., p. 21.

55 Ver GOLDMAN, Irving. The Cubeo. Chicago: Universityof Illinois Press, 1979, HUGH-JONES, Stephen.

The palmand the Pleiades: initiation and cosmology in Northwest Amazonia. Cambridge: Cambridge

Univer-sity Press, 1979, REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. Amazonian cosmos: the sexual and religious symbolism of theTukano indians. Chicago: Universityof Chicago Press, 1971, SCHADEN, Egon. A mitologia heróica de

tribos indígenas do Brasil. São Paulo: Edusp, 1989, e STRADELLI, E. “La Leggenda del Jurupary” e outras

lendas amazônicas. Caderno n. 4: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, São Paulo, 1964.

56 SÃO JOSÉ, João de. Viagem e visita ao sertão em o bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763. Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 9, n. 1, 2, 3 e 4, 1847, p. 188.

(13)

A

rt

ig

o

s

crifício de flagelação dos homens. Mais do que isso, nas versões aruak do mito Jurupari é chamado de ‘o filho do fruto’, pois foi concebido durante o encon-tro amoroso entre uma virgem (Seucy) e um vegetal. Ela, dona da pupunheira, foi fecundada pelo sumo de um fruto da árvore de pihycan (possivelmente o piquiá), ou de uacu, ou de cucura a depender da versão. E ele, ‘filho do fruto’,

passou sua infância junto (ou dentro) da árvore de sua mãe ― a pupunheira.58

Embora entre os Mawé escape a certeza da existência de rituais de Ju-rupari; as relações com as frutas e a arboricultura também são constantes em sua mitologia. Uma de suas mais importantes personagens míticas, tal como Seucy, é uma jovem mulher (Onhiamuaçabe), irmã de dois caçadores (Icuamã

e Ocumaató), que guardava o sítio encantado (Noçoquem59) onde havia

plan-tado a castanheira. No mito do guaraná ela é o símbolo da mulher ― coletora, pois além da guarda da castanheira ela conhecia as plantas com as quais pre-parava os remédios. Em virtude desses conhecimentos botânicos, seus irmãos a proibiram de se casar e de ter filhos. Porém, muito cobiçada, Onhiamuaçabe foi tocada propositalmente numa das pernas por uma “cobrinha” e ficou grá-vida. Os irmãos então a expulsaram do Noçoquem e passaram a guarda do mesmo a alguns animais frutívoros e dispersores de sementes, como a cutia, a arara e o periquito. Expulsa do sítio, ela teve o filho sozinha. Quando o meni-no começou a falar, seu primeiro desejo foi o de comer as frutas da castanhei-ra; e a mãe o levou para o sítio encantado onde assou castanhas numa foguei-ra. Vendo os indícios da fogueira e os restos das castanhas assadas, os guardas do sítio ficaram de prontidão, e quando no dia seguinte o menino descia da castanheira após ter colhido seus frutos, os guardas o decapitaram com uma “cordinha”. A mãe jurou tornar o menino forte e arrancou e plantou seus olhos. Do esquerdo nasceu o falso guaraná e do direito o verdadeiro

guara-ná.60 Depois juntou os outros pedaços do cadáver do filho e os lavou com

sali-va e o sumo de plantas mágicas, e os enterrou. De sua sepultura saíram vários animais, um de cada vez, e à medida em que nasciam mais animais, mais cres-cia a planta do guaraná. No final, quando a árvore do guaraná já estava gran-de e forte e o mundo habitado por vários animais, saiu da sepultura uma cri-ança que foi o primeiro Mawé, origem desse povo.

Embora obviamente não se trate, como no mito do Jurupari, do “filho da fruta”, há muitas evidências na narrativa acima da relação do primeiro mawée de sua mãe com o mundo da coleta e da arboricultura. A jovem mãe, Onhiamuaçabe, claramente representava o mundo da coleta, tanto pela guar-da e plantio guar-da castanheira e pelos seus conhecimentos medicinais e mágicos das plantas; quanto por ter iniciado, com o plantio dos olhos de seu filho, o cultivo do guaraná. O surgimento e crescimento dessa planta, concomitante ao nascimento do primeiro mawé, é resultado de processos de morte, transfor-mação e ressureição com correlatos claros com o universo da coleta. Não ape-nas a morte do menino teve como motivo o desejo dele de comer os frutos da

58 CARVALHO, Silvia Maria S. de, op. cit., p. 152 e 300.

59 Recentemente, organizados no Consórcio de Produtores Sateré-Mawé, esses índios batizaram de

“Nusoken” a marca criada para comercializar seus produtos. Ver <http://www.nusoken.com/>.

60 O fruto do guaraná é vermelho e, quando maduro, abre-se e fica parecido com um olho humano, com sua

esclera branca e uma íris preta dentro de uma cavidade ocular. A realidade física do fruto parece, assim, se associar à sua metáfora mítica: o olho fechado na morte se abre na ressureição.

(14)

A

rt

ig

o

s

castanheira agora proibidos pelos seus tios maternos, mas também a sua transformação foi mediada pelo plantio de seus olhos e corpo, tal como brotos e sementes das árvores e plantas que a mãe cultivava no Noçoquem. Final-mente, embora a jovem mãe do mito Mawé não tenha sido fecundada pelo fruto como a mãe de Jurupari, ela o foi por uma “cobrinha”. É fácil admitir que pelo menos desde os tempos bíblicos a cobra preferiu espreitar suas pre-sas nas árvores frutíferas, cujos frutos atraem aves, pequenos mamíferos e mulheres coletoras. Se neste caso não temos o fruto como pai, a cobra, além da relação com as árvores, parece ainda possuir relações metafóricas com a arma do crime ― uma “cordinha” ― e com o instrumento da flagelação.

Ao considerar que o açoite primordial possa ter sido um galho fino de árvore ou uma corda de fibras vegetais, ou mesmo, como no caso Mawé, “um chicote de couro de peixe-boi, anta ou veado [e] na falta disso [...] uma corda

de fita bem torcida”,61 o movimento mecânico do açoite no ato da flagelação

também pode ter associações lógicas com a cobra dando o bote. Assim, a co-bra, pai do primeiro mawé, é tanto a imagem representativa do açoite como a do animal que investe contra as suas presas nas árvores frutíferas. Se pensar-mos ainda que muitas árvores são sacudidas para se derrubarem os frutos, parece claro supor a relação da flagelação com a arboricultura e a coleta. Co-mo ritual de fertilidade, a flagelação, no caso dos cultivadores de cereais (trigo e arroz), talvez estivesse associada à técnica de bater o grão; mas foi Carvalho que chamou a atenção para o fato de que “na América [onde] a agricultura é à base de mandioca e milho (que é debulhado e não batido)”, a flagelação não poderia estar em relação à agricultura, mas ao mundo da coleta. “[...]. Parece,

pois, muito mais lógico associar a flagelação na América à arboricultura”.62 E

os exemplos aqui tomados de contextos etnográficos diferentes apontam tam-bém para a presença constante de frutas, coleta e arboricultura nos rituais de paricá e/ou flagelação. No Jurupari os da bucuri de frutos; no ritual de paricá Mawé os vinhos de frutas; e no ritual do paricá Kaxuyana o banho de frutas.

Por isso, é provável que a flagelação devesse implicar em certo estado ritual de identificação do homem com o sacrifício da fogueira por onde pas-sam as castanhas e as pupunhas. Mediadas por esse sacrifício elas se

trans-formam em alimento. Foi Lévi-Strauss63 o primeiro a chamar a atenção para o

fato das oposições entre alimento cru e cozido, como as encontradas na Mela-nésia e na América do Sul, implicarem numa assimetria entre estado e proces-so, estabilidade e mudança, identidade e transformação. Da mesma forma, a morte de Jurupari, que tem seu corpo jogado numa fogueira e fornece por este meio a matéria prima para a confecção das flautas que seriam daí em diante usada pelos homens no ritual; no caso Mawé a morte do filho da “senhora da castanheira” dá lugar ao guaraná e ao primeiro Mawé. Em todos os casos a morte não é um fim, mas um processo de transformação. Se o caminho estiver correto, o sacrifício da flagelação pode estar, portanto, em relação com a trans-formação.

61 FERREIRA, Alexandre Rodrigues, op. cit., p. 98. 62 CARVALHO, Silvia Maria S. de, op. cit., p. 311.

63 Ver LÉVI-STRAUSS, Claude. Locrudo y lococido. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1996 (Série

(15)

A

rt

ig

o

s

Nesse caso, novamente a mitologia mawé nos fornece alguns elemen-tos. No mito sobre a origem da mandioca, a onça, espancada pelo sapo com um açoite feito de galho de taperebá, se transforma em jacaré, a imagem míti-ca representada na tábua de paricá colhida por Ferreira em 1786. Nesse mito, o grande tuxaua das onças (Awiató-pót) tinha uma linda filha (Iverói) que o sapo (Ó-óc) queria por esposa. No entanto, o pai da moça devorava todos os pre-tendentes. Mas Ó-óc sabia artes mágicas e conseguiu ludibriar o tuxaua das onças e dormiu com Iveroi. De várias formas a onça tenta liquidar com o sapo, sem êxito. Ao invés disso, o mito provoca uma inversão entre matador e víti-ma, pois é o sapo que com a ajuda de algumas mulheres mata a onça jogando em sua goela uma pedra aquecida na fogueira. Enquanto Awiató-pót pulava de um lado a outro após ter engolido a pedra, o sapo Ò-óc quebrou um galho de taperebá para acabar de matar. Ele arrastou o cadáver da onça até o rio, o transformou em jacaré e foi dormir com Iveroi. Quando os outros animais viram o jacaré e não o reconheceram, o irmão do sapo explicou: “Então vocês não estão vendo? Esse bicho é o grande tuxaua das onças que Ò-óc, compa-nheiro de Iveroi, virou, por artes mágicas em jacaré, dando no cadáver dele com um pedaço de taperebá. A costa dele, vocês não estão vendo? É como a

casca do taperebá. E ele come gente como Awiató-pót. Esse bicho é o jacaré”.64

Como se observa no mito, não se tratava de uma onça qualquer, mas do “grande tuxaua das onças”, cuja representação, na América, está associada à imagem do senhor da caça. Potência caçadora, em muitos casos associadas aos inimigos e aos espíritos dos mortos (também ameaçadores), no relato mawé a potência do senhor da caça se transforma, pela flagelação, em potên-cia do senhor dos rios, onde o jacaré domina como um “jaguar aquático” ― devorador de gentes e bichos.

Semelhante analogia, mas em sentido inverso, nos aponta o complexo do ritual de paricá ―mori ― dos Kaxuyana, descrito por Frikel. Entre esse povo indígena a bandeja usada para aspiração do pó tem dois nomes: Yará-Kururu e Kaikustc-Yará-Kururu. O primeiro significa imagem ou figura de yara ―

bichos do fundo da água ―, e o segundo, imagem de onça.65 Com base nisso,

Wássen66 propôs que a iconografia dos felinos na tabua Kaxuyana, como

aci-ma descrita, representava a figura mitológica de um jaguar aquático, cujo mito mawé transformou em jacaré. Esse estado de identificação e transformação entre onça e jacaré talvez se explique como resultado não apenas de um pen-samento classificatório, mas também por práticas venatórias, como as de caça e pesca. Afinal, caçadores/pescadores são competidores de onças/jacarés ― matam e comem os mesmos animais ―, e a caça e pesca são práticas durante as quais pode ocorrer a transformação de predadores em presas já que, como afirmou o irmão do sapo aos outros animais que não conheciam o jacaré: “ele come gente como Awiató-pot [a onça]”.

A tese da associação do ritual de paricá com os processos de transfor-mação se apoia ainda em algumas evidencias arqueológicas do uso de narcóti-cos em centros cerimoniais, como em Chavín no atual Peru, no qual existe incrustada nas paredes da pirâmide uma série de cabeças em vários estágios

64 Trecho do relato mítico sobre a origem da mandioca. In: NUNES PEREIRA, Manuel, op. cit., p. 722. 65 Ver FRIKEL, Protásio, op. cit., p. 7 e 8.

(16)

A

rt

ig

o

s

de transformação: desde um humano totalmente humano até um felino

total-mente dragão.67 Assim, é possível que a flagelação, associada às sensações e

mudanças perceptivas provocadas pelo uso do paricá, tais como inchaço do nariz, visão alterada, a sensação de leveza e miragens, devesse representar uma série de transformações alimentadas pela cosmologia, pelas imagens mi-tológicas e pelas práticas venatórias. Isso implica pensar que as metamorfoses fornecidas nos mitos, as transformações dos frutos em bebidas e comidas, as alterações provocadas pelo uso do paricá, as homologias entre onças e jacarés, deviam, muito provavelmente, representar passagens e traduções de um có-digo a outros, entendidos logicamente como processos contínuos de morte, transformação e ressureição.

Se esse raciocínio for minimamente aceitável, explica-se o fato do uso do rapé e do paricá terem sido associados em alguns casos aos costumes de guerra. De acordo com Frikel o uso do rapé como parte dos preparativos para a guerra foi assinalado entre os OtomacKarib, e ele mesmo constatou entre os Kaxuyana que: ”De certas tradições e mitos consta que o mori e seus objetos principais eram também usados para fins de guerra [...] quebrar a força e

resis-tência do inimigo [...] e para aumentar a força própria”.68 Neste caso, a

inser-ção do inimigo está para a mesma lógica de um grupo de transformações que leva da onça ao jacaré e vice-versa. Tal como esses dois animais carnívoros, o inimigo é devorador de homens nas guerras e de animais na caça e na pesca,

como já apontou Fausto69 para as relações entre inimigo e fera no caso de

gru-pos Parakanã dos interflúvios Tocantins-Xingu. Entre os Mawé, o curto relato de Ferreira, a extinção do costume e a consequente ausência de descrições et-nográficas não indicam pistas que permitam associar diretamente o ritual com a guerra e com a coragem, embora obviamente ela não possa ser descartada, dado que a flagelação devia de fato representar prova de resistência física e

mental em suportar dor.70

Essa série de fatos que levam da flagelação às transformações de uma realidade em outras, como temos insistido, não pode ser apenas produto de um pensamento classificatório que se limita a opor, comparar e associar, mas

também de uma práxis venatória. Foi o próprio Lévi-Strauss71 quem advertiu

que os sistemas simbólicos visam exprimir tanto as relações entre domínios diferentes da realidade e entre os sistemas simbólicos entre si, como também certos aspectos da realidade física e social. Por isso, e até onde é possível reco-nhecer, a tábua de aspiração de paricá, sua ornamentação e aspectos que en-volviam o ritual descritos por Ferreira, quando postos em relação a alguns temas da mitologia e da etnografia, permitem não apenas inseri-los nesse complexo de transformações mediadas pela morte e ressureição, mas também identificá-los com os processos da coleta e da arboricultura.

67 Ver LABATE, Beatriz, op. cit., p. 66. 68 FRIKEL, Protásio, op. cit., p. 4.

69 Ver FAUSTO, Carlos. Inimigos fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp, 2001, p.

537-541.

70 Para este fim e com a mesma eficácia, o ritual de iniciação masculino dos Mawé, baseado nas ferroadas da

formiga tocandira, é descrito desde o século XVII até dos dias atuais como ritual de exortação para a guerra, para o trabalho e para o amor.

71 Ver LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e

(17)

A

rt

ig

o

s

O Noçoquem ― sítio encantado onde foi plantada a castanheira, o guaraná e o primeiro mawé ― deve representar não um local específico, mas uma prática bastante difundida entre os povos indígenas amazônicos de plan-tio e manejo de árvores frutíferas. Por meio de técnicas de “transplante” de mudas e brotos de espécies úteis da floresta para áreas de fácil acesso, os gru-pos humanos criaram conscientemente nichos ou sítios com dupla finalidade econômica: a coleta de frutos e a caça, já que algumas espécies plantadas ser-vem de atrativo para animais terrestres e aves. A prática da arboricultura pa-rece ter sido bastante desenvolvida desde tempos imemoriais, dado que estu-dos ecológicos estimaram que mais de 10% da floresta tropical amazônica de

terra firme é de origem humana.72 Em alguns casos estimou-se, inclusive, que

a arboricultura precedeu a horticultura, pois foram os processos e técnicas de domesticação, experimentação e aperfeiçoamento das espécies transplantadas que criaram possibilidades de desenvolvimento de outras formas de cultivo, como as roças, nas quais o plantio é mais importante que o transplante de

mudas e brotos.73 Senão em termos históricos, em termos lógicos as plantas

transplantadas da floresta para locais próximos às residências ou aos cami-nhos percorridos formaram verdadeiros quintais (home gardens), sítios encan-tados e “noçoquens”.

Desde os primeiros registros históricos os Mawé apareceram na docu-mentação como criadores de quintais e plantadores do guaraná. Em 1669

Be-tendorf ao se referir a um grupo identificado posteriormente como Mawé74

os Andirazes ―, escreveu : “Têm os Andirazes em seus mattos uma fructinha que chamam guaraná, à qual secam e depois pisam, fazendo delas umas bolas, que estimam como o branco o seu ouro, e desfeitas com uma pedrinha, com que as vão roçando numa cuia bebida, dão grandes forças, que indo os índios

a caça, um dia até outro não têm fome”.75

O guaraná é uma trepadeira silvestre e já foi considerada nativa das

terras altas da bacia do Rio Maué-Assú.76 Como vimos acima, o guaraná foi

transformado no tempo mítico mawé em arbusto cultivado. E o seu manejo consciente e sistemático ao longo do tempo facilitou a sua dispersão por dife-rentes áreas dos rios Maué-Assú, Andirá e afluentes ocupadas historicamente por esse grupo. Segundo alguns de seus etnógrafos o plantio do guaraná obe-dece às mesmas exigências do cultivo de outras espécies, e em plantio de

no-vas áreas exige-se também as atividades xamânicas.77 A bebida feita do

guara-ná ralado na água ― çapó ― é muito apreciada, a ponto dos Mawé informa-rem que “o guaraná serve pra tudo”: “guaraná ralado é bom para fazer

72 Ver BALÉE, William and GELY, Anne. Maneged forest sucesson in Amazônia: the Ka’apor case. Advances

in Economic Botany, 7, 1989, p. 156, e MORÁN, Emilio F. A ecologia humana das populações da Amazônia.

Petrópolis: Vozes, 1990, p. 198.

73 Ver POSEY, Darrell A. Manejos de floresta secundária, capoeiras, campos e cerrados (Kayapó). In:

RIBEIRO, Berta (org.). Suma etnológica brasileira: etnobiologia. Petrópolis: Vozes, 1986, v. 1, p. 184, e FRIKEL, Protásio. Áreas de arboricultura pré-agrícola na Amazônia. Revista de Antropologia, v. 21, n. 1, São Paulo, 1978, p. 45.

74 Ver NIMUENAJU, Curt. The Maué and Arapiun. In: Handbook of south americanindians. Washington:

Bu-reau of south american ethnology, bulletin 143, v. III, 1948, p. 235.

75 BETENDORF, João Felipe de, op. cit., p. 36.

76 Ver LORENZ, Sonia. Relatório sobre a situação Satere-Mawé. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista,

1984, p. 123.

77 Ver NUNES PEREIRA, Manuel, op. cit., p. 16, LORENZ, Sonia, op. cit., p. 123 e 124, e LEACOCK, Seth.

(18)

A

rt

ig

o

s

ver, para proteger a roça, para curar certas moléstias, para vencer na guerra,

nos amores [...]”.78 Desde o período colonial os cronistas o mencionaram como

o “mantimento mais precioso dos índios da nação Magues”, e o seu consumo

como “cerimonia indispensável nas juntas de guerra e de matérias graves”.79

Como prometeu Onhiamuaçabe diante do cadáver do filho, ela o fez forte transformando-o em árvore e fruto do guaraná.

Assim, ao considerar o fato descrito por Ferreira de que nos rituais de paricá as velhas preparavam os vinhos de frutas, é bem provável tratar-se do guaraná, cujas propriedades simbólicas se misturariam, aqui, às suas proprie-dades físicas. Suas qualiproprie-dades curativas foram descritas pela primeira vez em

176380 e suas propriedades estimulantes, estudadas desde o século XIX, são

conhecidas mundialmente. Entre elas, reconhecem-se o uso do guaraná como estimulante do sistema nervoso central e da produção e liberação de adrenali-na, e como manipulador da produção do neurotransmissor Dopamina (ligado a sen-sação de prazer). Sua ingestão em grandes quantidades faz acelerar o metabolis-mo, reduzir o esgotamento físico, aumentar o rendimento em exercícios exaus-tivos e prolongados, e a força em atividades de resistência. Seus efeitos físicos são a suspensão do sono, a inibição da fome, a sensação de prazer, euforia, força e coragem, atributos sem dúvidas bastante úteis para estimular e auxiliar os participantes a suportarem as contínuas sessões de flagelação. Por tudo isso parece claro supor que o çapo mawé estivesse presente nos rituais de paricá e de flagelação; e se isso for aceito a festa devia coincidir com o amadurecimen-to e colheita de seus fruamadurecimen-tos, tradicionalmente realizada entre outubro e janeiro. Como no mito, o rito também parece estar associado ao guaraná e ao seu cultivo, o que reforça a hipótese de a flagelação estar em relação à arbori-cultura e aos processos de transformação. São de sementes transformadas que se produz o pó do paricá. São de frutas ― guaraná ― transformadas que se servem os vinhos e bebidas do ritual. É do filho da “dona da coleta” transfor-mado que se produz o guaraná e o primeiro mawé. É da onça transformada por flagelação que se produz o jacaré, imagem esculpida na tábua de paricá. Portanto, é plausível a hipótese do paricá e da flagelação provocarem uma transformação ritual do homem e a identificação com o sacrifício daquele que morre para depois renascer. Esse certo estado de identificação se expande dos Mawé e da área Madeira-Tapajós para o noroeste amazônico, não só porque lá como aqui o paricá aparece associado à flagelação, como porque também pa-rece que o mito de Jurupari ― herói cultural nascido da relação da mãe com o fruto e seu sacrifício na fogueira ―, se reveste no mito do guaraná e do pri-meiro mawé como o sacrifício do filho nascido da relação da mãe com a cobra que espreita nas árvores frutíferas.

O paricá e os Mawé: entre a história e a etnografia

O exercício aqui realizado de colocar a peça cerimonial Mawé coletada por Alexandre Rodrigues Ferreira no século XVIII em relação à mitologia e etnografia desse grupo indígena nos levou a duas questões. A primeira foi

78 NUNES PEREIRA, Manuel, op. cit., p. 67. 79 SÃO JOSÉ, João de, op. cit., p. 187. 80 Idem, ibidem, p. 88 e 89.

(19)

A

rt

ig

o

s

pensar a peça e o ritual a ela associado em relação tanto a um conjunto de transformações como a um conjunto de práticas de exploração e manejo do ambiente. A segunda, derivada da inusitada flagelação, nos levou além da área por eles ocupada.

Nesta última questão, apenas se considerada como resultado do pro-cesso colonial e/ou de uma visão de área cultural como fechada em si mesma é

que a região Madeira-Tapajós e os Mawé podem ser considerados Tupis.81 Os

dados referentes ao paricá e à flagelação levam a supor, ao invés disso, a exis-tência de redes de contatos e trocas que ligavam a Amazônia central, em espe-cial a área Madeira-Tapajós, ao noroeste amazônico. Há, para isso, evidências históricas e etnográficas. Documentos referentes ao século XVII apontaram que grupos do Rio Madeira, dentre os quais os Iruri, mantinham relações de

aliança e comércio com grupos do Rio Negro.82 O cronista que primeiro os

descreveu mencionou: “Os Irurizes [...] não fazem grande caso das ferramen-tas dos portugueses, porque vem do Rio Negro outras muito melhores que

lhes trazem os índios daquelas bandas, que contratam com os estrangeiros”.83

Dessa forma, uma via de comércio ligava a área Madeira-Tapajós aos povos que se encontravam na região do Rio Negro, área tradicionalmente habitada por populações Aruak que, no início do século XVII, pareciam avançar desde esse último rio até a parte setentrional do Amazonas. De acordo com Acunã, que em 1639 desceu o Rio Amazonas e registrou os primeiros termos para designar povos indígenas do seu médio curso, do Rio Negro em direção ao

Madeira estavam pela margem esquerda do Rio Amazonas, os “Aruaque”.84

Essa via de contatos intertribais desde o Rio Negro até o Madeira pelas mãos dos Iruri pode ter de fato facilitado a entrada de elementos culturais de ori-gem Aruak na área Madeira-Tapajós, presentes em aspectos da cultura dos

Mawé modernos. Entre elas a presença da zarabatana que Spix e Martius85

acreditavam ter chegado aos Mawé via comércio com os grupos do oeste; o

mito de origem e outra peça etnográfica Mawé ― o Porantim86 ― que Susnik87

considerou ser indicador de uma influência Karib relativamente antiga.

Zerri-es88 assinalou também prováveis contatos Mawé com grupos Karib da foz do

Trombetas, entre os quais os Kaxuyana, cujo ritual de paricá foi descrito por

Frikel.89 De acordo com Nimuendaju,90 Koch-Grunberg91 e Mense92 o

vocabulá-rio Mawé apresenta elementos de origem Karib e Aruak, o que levou

81 Ver LOUKOTKA, Cestmír, op. cit., p. 111, e GALVÃO, Eduardo, op. cit., p. 206.

82 Ver LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro-Lisboa: Imprensa Nacional,

1943, p. 377.

83 BETENDORF, João Felipe de, op., cit., p. 356.

84 ACUÑA, Cristobal de. Descobrimento do rio das Amazonas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941,

p. 259.

85 Ver SPIX, Johann Baptiste von e MARTIUS, Carl Friedrich P. von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). 28. ed.

São Paulo: Melhoramentos, 1981, p. 280.

86 Ver NUNES PEREIRA, Manuel. Ensaio de etnologia amazônica. Sobre uma peça etnográfica Maué.

Cadernos Terra Imatura, n. 1, Manaus, Imprensa Pública, 1942.

87 Ver SUSNIK, Branislava, op. cit., p. 87. 88 Ver ZERRIES, Otto, op. cit., p. 341. 89 Ver FRIKEL, Protásio, op. cit., p. 13.

90 Ver NIMUENDAJU, Curt. Textos indígenas. São Paulo: Loyola, 1982, p. 246.

91 Ver KOCK-GRUNBERG, Theodor. Wörterlisten Tupy, Maué und Purubora. Jornal de la Société des

Amedicanistes, 24 (1), 1932, p. 31.

92 Ver MENSE, Hugo. Língua Mundurucu – vocabulários especiais – vocabulários Apalaí, Viaboi e Maué.

(20)

A

rt

ig

o

s

gues93 a afirmar que os Mawé foram tupinizados em período relativamente

antigo. A esse conjunto de elementos não Tupi, soma-se, finalmente, a flagela-ção durante os rituais de paricá que, como vimos, aproxima o ritual Mawé dos cultos de Jurupari realizados por grupos Aruak e Karib das regiões do Rio Negro, Uaupés e Içana no noroeste amazônico.

Neste caso parece mais lógico pensar os Mawé, como já foi proposto94,

em relação a grupos descritos nas fontes coloniais como “Tupinambaranas” ― “falsos Tupinambás”, possivelmente constituídos como grupo étnico básico Tupi que incorporou historicamente grupos étnicos diferentes. E há bases

his-tóricas para isso. Quando no século XVII Maurice de Heriarte95 descreveu a

“Província dos Tupinambaranas”, ilha homônima no médio Amazonas, entre os rios Madeira e Tapajós, ele claramente apontou para um cenário multiétni-co ao escrever que “estes índios [tupinambás] falam lingoa geral; que os mais do rio falam diferentes lingoas”, e completou que esses grupos Tupi eram “traidores, carniceiros, e era a gente que mais carne humana comia nesse rio

[...] temidos de muitas naçoens por serem muito vingativos”.96 Pouco depois o

Pe. João Felipe de Betendorf escreveu sobre esses mesmos grupos da ilha de Tupinambaranas: “São os tupinambás gente briosa na guerra, que bem mos-traram os daquela ilha, que sendo menos que as outras nações do rio, contudo tiveram guerras sujeitando e consumindo nações inteiras e obrigando outras a

buscar terras estranhas”.97 Essas diferentes fontes indicam então um franco

processo de conquista e de tupinização da área, não só pela imposição do do-mínio militar, mas por alianças e estratégias políticas decorrentes que geraram relações de afinidade e consanguinidade entre esses grupos tupinambás e os outros que, nas descrições, falavam línguas diferentes: “conquistarão os seus naturaes, avassalando-os, e com o tempo se casarão uns com os outros, e se aparentarão. [...]. Aos que estam debaixo de seu domínio, lhes dam as filhas

por mulheres”.98 Situação similar encontra-se também na mitologia Mawé. Em

“Estória da Pedra de Aiaiaê ou da aliança entre os Mawé”, esses indígenas narraram que antes de haver armas os homens se matavam com uma pedra, e que depois de uma vingança de sangue “perdoando-se entre si, os Maué re-solveram jogar fora a pedra, para que nunca mais nenhum deles brigasse [...].

Desde então foram os Maué casando-se dentro da própria tribo”.99

Há ainda outro fato histórico que colabora com essa versão. Os Mawé, quando mencionados na documentação ou na cartografia dos séculos XVII e XVIII, sempre estiveram em território contíguo a grupos que a moderna etno-grafia identificou como subgrupos ou unidades locais. É o caso do mapa de

93 Ver RODRIGUES, Ayron. Relações internas na família linguística Tupi-Guarani. Revista de Antropologia, v.

27/28, 1984/1985, p. 35.

94 Ver MENÉNDEZ, Miguel A, op. cit., p. 315, e MANO, Marcel, op. cit., p. 114.

95 Ver HERIARTE, Maurício de. Descrição do estado do Maranhão, Pará, Corupá e Rio Amazonas. In:

VARNHAGEN, Francisco A de. (ed.) História Geral do Brasil. São Paulo-Brasília: Melhoramentos/Instituto Nacional do Livro, 1975, v. 3, p. 181.

96 Idem, ibidem, p. 181 e 182.

97 BETENDORF, João Felipe de, op. cit., p. 57. 98 HERIARTE, Mauricio de, op. cit., p. 181. 99 NUNES PEREIRA, Manuel, op. cit., p. 713.

Referências

Documentos relacionados

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

Por lo tanto, la superación de la laguna normativa existente en relación a los migrantes climático consiste en una exigencia para complementación del sistema internacional

Ficou com a impressão de estar na presença de um compositor ( Clique aqui para introduzir texto. ), de um guitarrista ( Clique aqui para introduzir texto. ), de um director

Os resultados são apresentados de acordo com as categorias que compõem cada um dos questionários utilizados para o estudo. Constatou-se que dos oito estudantes, seis

Quando contratados, conforme valores dispostos no Anexo I, converter dados para uso pelos aplicativos, instalar os aplicativos objeto deste contrato, treinar os servidores

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

Foi membro da Comissão Instaladora do Instituto Universitário de Évora e viria a exercer muitos outros cargos de relevo na Universidade de Évora, nomeadamente, o de Pró-reitor (1976-

São considerados custos e despesas ambientais, o valor dos insumos, mão- de-obra, amortização de equipamentos e instalações necessários ao processo de preservação, proteção