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Paris: sempre um mito ou talvez...

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Academic year: 2022

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Dafne Di Sevo Rosa

Paris: sempre um mito ou talvez...

São Paulo 2019

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2 DAFNE DI SEVO ROSA

Paris: sempre um mito ou talvez...

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Letras.

Orientação: Profª. Drª. Maria Luiza Guarnieri Atik

São Paulo 2019

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R788p Rosa, Dafne Di Sevo.

Paris : sempre um mito ou talvez-- / Dafne Di Sevo Rosa.

211 f. : il. ; 30 cm

Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019.

Orientadora: Maria Luiza Guarnieri Atik.

Referências bibliográficas: f. 204-211.

1. Paris. 2. Mito. 3. Imaginário coletivo. 4. Vênus. I. Atik, Maria Luiza Guarnieri, orientadora. II. Título.

CDD 808.8015

Bibliotecária Responsável: Eliana Barboza de Oliveira Silva - CRB 8/8925

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5 A meus pais, por me ensinarem a sonhar.

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AGRADECIMENTOS

A Deus por todos os privilégios a mim concedidos, por sempre me dar a sua mão e dar indícios de sua presença em minha vida.

À Maria do Carmo Di Sevo, minha mãe, por dividir comigo o amor por Paris e a admiração pelas obras de Woody Allen. Mãe, uma vez me disseram que meu pior defeito era querer ser como você, porém se eu não tivesse você como minha inspiração e modelo, certamente, eu não teria chegado até aqui.

A meu pai, José Joaquim Rosa, por me formar como leitora e por sua erudição tão impulsionadora e estimulante. Pai, sua sabedoria e avidez cultural me influenciaram a vida toda e me fazem ser uma professora melhor, todos os dias.

À Profª Drª Maria Luiza Guarnieri Atik, pela confiança depositada em mim desde a época do Mestrado. Professora, tive o privilégio de concluir um ciclo importantíssimo em minha vida ao lado da senhora. Seu apoio e seus muitos conselhos foram fundamentais para minha formação acadêmica e profissional.

Agradeço pelo carinho, pelas risadas e pela cumplicidade sempre presentes nas minhas orientações.

À Profª Drª Elaine Cristina Prado dos Santos, minha eterna Magistra, por me apresentar à Antiguidade Clássica de uma maneira tão contagiante.

Aos demais membros da Banca Examinadora: Profª Drª Aurora Gedra Ruiz Alvarez, Profª Drª Renata Philippov e Profª Drª Sandra Margarida Nitrini.

Agradeço a leitura atenta das minhas análises e as valiosas sugestões para desenvolvimento da minha pesquisa.

A meu irmão, Guilherme Di Sevo Rosa, por ser testemunha de cada um dos meus passos e das minhas conquistas. Por dividir comigo tantas lembranças e memórias da infância e adolescência e por estar sempre ao meu lado.

A meu namorado, Rafael Alexandre Chirstino Cabral, pela admiração e pelo incentivo incondicionais. Rafael, obrigada por todo amor e companheirismo dedicados a mim diariamente.

À Universidade Presbiteriana Mackenzie e ao Mackpesquisa por todo incentivo dado a mim ao longo da minha formação acadêmica e a bolsa de estudos que me permitiu concluir meu Doutorado.

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7 Nunca vemos Paris pela primeira vez;

sempre a vemos novamente.

Edmondo de Amicis

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RESUMO

Sinônimo de Cidade-Luz, Paris é uma das capitais mais conhecidas pela humanidade. Muito antes da globalização, que eliminou fronteiras, a cidade já era considerada um paradigma social, econômico, cultural, político e da moda por diversas civilizações. Entretanto, no século XIX, Balzac, em a Comédia Humana, apresenta ao leitor sua visão realista e sarcástica da cidade, contrariando a concepção idealizada do público. No enredo de uma das suas novelas, A menina dos olhos de ouro, o romancista caracteriza a cidade não só apontando sua corrupção de valores morais e éticos, mas também salientando as inúmeras possibilidades oferecidas por ela a seus habitantes. Vivenciando a duplicidade de Paris exposta por Balzac, aproximadamente um século depois, Ernest Hemingway transformou suas experiências na cidade no romance autobiográfico Paris é uma festa, no qual apresenta de maneira enaltecida e glorificada a cidade, a partir de suas memórias de quando era jovem. Paris é, aos olhos do romancista, a capital que reconstrói a confiança de inúmeros artistas americanos impactados de variadas formas pelas consequências ocasionadas pela Primeira Guerra Mundial. Mais recentemente (em 2011), o público pode ficar extasiado com os anos 1920 de Hemingway e toda a Geração Perdida, ao contemplar o longa-metragem de Woody Allen Meia-noite em Paris.

Apesar de sua estética aparentemente realista, o protagonista do filme, Gil, é surpreendido com o privilégio de poder voltar no tempo e compartilhar alguns momentos junto com personalidades como Gertrude Stein, Scott Fitzgerald e o próprio Hemingway em uma Paris tanto insólita quanto real, na mesma proporção fruto de um devaneio e concretizada por suas ruas e avenidas movimentadas e iluminadas. É por meio de obras com perspectivas dispares sobre a cidade, como as três analisadas nesta tese, que Paris habita o inconsciente coletivo se tornando mais do que uma capital europeia. Pretende- se no decorrer das análises apresentar a transfiguração de Paris em um mito moderno. Para isso, as teorias desenvolvidas por Carl Jung, Roland Barthes, Joseph Campbell sobre mito e aquelas referentes ao cinema elaboradas por Edgar Morin e André Bazin, assim como as contribuições de Sartre, David Roas, Walter Benjamin, entre tantos outros estudiosos da literatura e outras áreas do conhecimento serão fundamentais para o aprofundamento das análises, para a comparação entre os textos e, consequentemente, para a interpretação de cada um deles.

Palavras-chave: Paris. Mito. Imaginário coletivo. Vênus.

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RÉSUMÉ

Synonyme de Ville-Lumière, Paris est une des capitales les plus connues de l´humanité. Bien avant la mondialisation qui élimina les frontières, la ville était déjà considérée comme un paradigme social, économique, culturel, poilitique et de la mode par plusieurs civilisations. Cependant, au XIXème siècle, Balzac, dans la Comédie humaine, présente au lecteur sa vision réaliste et sarcastique de la ville, contredisant la conception idéalisée du public. Dans l´intrigue d´un de ses romans, La fille aux yeux d´or, le romancier caractérise la ville non seulement en pointant du doigt la corruption des valeurs morales et éthiques mais aussi en nous faisant remarquer les innombrables opportunités qu´offre la ville à ses habitants. En vivant la duplicité de Paris exposée par Balzac, approximativement un siècle plus tard, Ernest Hemingway transforma ses expériences de la ville dans le roman autobiographique Paris est une fête dans lequel il la présente de manière exaltée et glorifiée à partir de ses souvenirs de jeunesse. Paris est aux yeux du romancier la capitale qui reconstruit la confiance d´innombrables artistes américains impactés sous diverses formes par les conséquences de la Première Guerre Mondiale. Plus récemment (en 2011) le public peut être extasié par les années 20 d´Hemingway et toute la Génération Perdue, en contemplant le long métrage de Woody Allen, Minuit à Paris. Malgré son esthétique apparemment réaliste, le protagoniste du film, Gil, est surpis par le privilège de pouvoir retourner dans le temps et partager quelques moments avec des personnalités comme Gertrude Stein, Scott Fitzgerald et le propre Hemingway dans un Paris tout autant insolite que réel, dans la même proportion résultante d´une rêverie et concrétisée par ses rues et avenues mouvementées et illuminées. C´est par le biais d´oeuvres aux perspectives focalisées sur la ville comme les trois analysées dans cette thèse que Paris habite l´inconscient collectif en devenant plus qu´une capitale européenne. Au long de ces analyses, nous présenterons la transfiguration de Paris en un mythe moderne. Pour cela, les théories développées par Carl Jung, Roland Barthes et Joseph Campbell sur le mythe, les références au cinema élaborées par Edgar Morin et André Bazin, ainsi que les contributions de Sartre, David Roas et Walter Benjamin, entre autres études de littérature et autres champs de connaissances seront fondamentaux pour l´approfondissement des analyses pour la comparaison de textes et, par conséquent, pour l´interprétation de chacun d´entre eux.

Mots Clés: Paris, Mythe, Imaginaire collectif, Vénus.

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Lista de Ilustrações

Figura 1 – Boulevard Sébastopol... 29

Figura 2 – Vênus de Milo………... 40

Figura 3 – Afrodite de Cnido... 41

Figura 4 – Hefesto na Forja... 42

Figura 5 – Rue Montmartre. Saint-Claude………... 47

Figura 6 – Tournelle, Ponte Louis-Philippe………... 52

Figura 7 – Arco do Triunfo ……….. 55

Figura 8 – Palácio do Senado. Jardim de Luxembourg... 62

Figura 9 – La Concorde ………... 63

Figura 10 – Construção da Torre Eiffel……….………...……. 67

Figura 11 – Louvre... 68

Figura 12 – Colonne Vendôme... 73

Figura 13 – Café des Amateurs ... 83

Figura 14 – Le viaduct à L’ Estaque... 85

Figura 15 – Maisons à L’ Estaque... 85

Figura 16 – Closier des Lilas... 86

Figura 17 – Gare du Nord... 88

Figura 18 – Wyndham Lewis... 89

Figura 19 – Ernest Hemingway ………... 99

Figura 20 – Voyer... 102

Figura 21 – Jardin de Luxemburg... 104

Figura 22 – Os jogadores de cartas... 105

Figura 23 – Vélodrome d’Hiver... 106

Figura 24 – Arc du Triomphe... 108

Figura 25 – Neve no Jardim de Luxemburg... 112

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Figura 26 – Hemingway e seu filho Bamby, 1924... 114

Figura 27 – Hemingway e Bamby... 115

Figura 28 – Rio Sena e Ponte Neuf... 118

Figura 29 – Gertrude Stein com Alice em seu estúdio... 120

Figura 30 – Gertrude Stein e Alice... 123

Figura 31 – Hemingway... 134

Figura 32 – Cartaz europeu... 136

Figura 33 – Noite estrelada... 137

Figura 34 – Cartaz brasileiro... 140

Figura 35 – Gil e Allen... 142

Figura 36 – Cole Porter... 144

Figura 37 – Adriana e Gil... 150

Figura 38 – Hemingway de Woody Allen... 153

Figura 39 – Versalhes……….... 174

Figura 40 – O pensador………. 176

Figura 41 – Musée Rodin……….. 177

Figura 42 – Rue Montagne St. Geneviève .………... 177

Figura 43 – Rue Montagne St. Geneviève: início do século XX... 178

Figura 44 – Waltter Lilies... 179

Figura 45 – Obra de Picasso... 181

Figura 46 – Gil... 182

Figura 47 – Gil e Adriana... 185

Figura 48 – Gil em close... 186

Figura 49 – Gil conhece Hemingway... 188

Figura 50 – Exposição Gustav Klimt... 197

Figura 51 – Exposição van Gogh... 198

Figura 52 – Paradoxo temporal... 198

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Figura 53 – Liberdade, Igualdade e Fraternidade I... 199

Figura 54 – Liberdade, Igualdade e Fraternidade II... 199

Figura 55 – Gilets Jaunes... 200

Figura 56 – Inferno parisiense... 200

Figura 57 – Caos parisiense... 201

Figura 58 – Paris of my dreams……… 202

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Sumário

Introdução ... 14

Capítulo 1: A Paris de A menina dos olhos de ouro ... 22

I. A alma da cidade-chama... 28

II. As classes sociais de Paris... 38

III. Paris no imaginário coletivo... 57

IV. Distopia parisiense... 61

V. Arquétipo de metrópole... 63

Capítulo 2: A festa de Hemingway ... 74

I. Autobiografia e memória... 75

II. A visão de Paris e a degradação enaltecida da cidade... 81

III. A pobreza parisiense... 90

IV. A fome parisiense... 95

V. A juventude de Paris... 98

VI. O flâneur e o voyeur ... 100

VII. O clima da cidade... 111

VIII. Homossexualismo... 118

IX. Dialogismo... 124

X. Mito de Paris... 128

XI. Utopia... 131

Capítulo 3: Paris: multitemporalidade... 135

I. Paratextos... 136

II. Os personagens e a trilha sonora... 142

1. Hemingway de Woody Allen... 153

III. O insólito em Meia-noite em Paris e a construção da utopia parisiense.. 158

IV. Paris cidade mítica... 170

V. Dialogismo... 187

Considerações Finais... 193

Referencial Bibliográfico ... 204

Filmografia... 211

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Introdução

Nós sempre teremos Paris.

Casablanca

Nos aclamados clássicos do cinema Casablanca (1942) e Bonequinha de Luxo (1961), os personagens de Humphrey Bogart e Audrey Hepburn exclamam suas paixões por Paris com as emblemáticas frases “Nós sempre teremos Paris”

e “Paris é sempre uma boa ideia”. Em ambos os filmes, a cidade é vista como um espaço de encontros e reencontros, um lugar onde todos os amores e as ambições são realizáveis, um ambiente idealizado, que se perpetua no imaginário coletivo desde muito antes da invenção do cinema.

Paris é referência cultural, artística, política e da moda anteriormente à Revolução Francesa. No século XVII, Luis XIV era conhecido como Rei Sol, forte indício de que aquela sociedade era considerada (principalmente pelo seu monarca) como o centro universal. Entretanto, foi com os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que a França, no século XVIII, se consolidou como parâmetro social. As reivindicações dos revolucionários franceses repercutiam o descontentamento de todo proletariado ocidental, o que contribuiu para que Paris passasse da capital francesa para a capital dos sonhos de todos aqueles que desejavam uma melhor qualidade de vida.

Quando Balzac, já no século XIX, escreveu A comédia humana e caracterizou seus principais protagonistas, Eugène de Rastignac e Lucien de Rubempré, como interioranos que sonham em fazer sucesso em Paris e conquistar o respeito dos parisienses, ele duplicou a cidade. Por um lado, há a Paris real, capital suja, corrompida pelos valores questionáveis de seus habitantes, e por outro lado, há a Paris idealizada, onde a possibilidade de ascensão econômica e social é uma promessa.

Apesar de a dualidade da cidade ser apresentada em vários romances balzaquianos, é no prólogo de A menina dos olhos de ouro, graças ao vocabulário simbólico e mordaz, que se encontra uma das caracterizações mais contundentes da cidade. Na novela, Balzac narra o processo de conquistas que Henri de Marsay elabora para alcançar Paquita Valdez, amante da Marquesa de

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15 San-Réal. Todavia, o triângulo amoroso é tão somente o argumento que comprova a corrupção da cidade e a degradação moral dos seus cidadãos.

Por meio da enunciação, construída ora para se dirigir diretamente ao leitor, ora para apresentar Paris como um espaço longínquo, o narrador balzaquiano - em um constante movimento de aproximação e distanciamento dos fatos - conduz o leitor por todas as camadas sociais parisienses mostrando como cada uma delas busca pelo ouro e pelo prazer, fundamentais para o sucesso econômico e social na capital.

Balzac inaugura com seu realismo sarcástico uma visão contrária ao idealismo construído sobre Paris. Se até o início do século XIX a capital francesa era modelo a ser seguido pelas outras metrópoles ocidentais, o autor opta por caracterizá-la a partir dos adjetivos que a fazem uma cidade infernal e longe daquela imaginada, tanto por seus protagonistas como pelos leitores, com o objetivo claro de fazer um panorama geral da sociedade parisiense sem as ilusões causadas pelo discurso revolucionário.

Enquanto a Revolução discutia o que deveria ser a verdadeira igualdade - “por igualdade deveria entender-se a ausência de privilégios e a extensão da cidadania a todos os membros da República, ou a distribuição equitativa da propriedade e da renda?” (GRESPAN, 2008, p.93) - Balzac denuncia que quase um século depois, em 1835 (ano da publicação da novela), a sociedade ainda não tinha chegado a uma conclusão sobre esse e outros embates.

Para o autor, os ideais de 1789 são inalcançáveis como metas concretas para um modelo social e, por isso, se tornariam uma ilusão inatingível. No processo de caracterização da cidade, Balzac aparenta estar colocando diante dos olhos do leitor os verdadeiros valores ideológicos daquela sociedade.

Entretanto, o autor não afasta a cidade do imaginário coletivo, pois mesmo não sendo o ambiente perfeito, onde hoje os chamados direitos humanos prosperariam, ele apresenta Paris como o lugar das possibilidades, pois apesar de sua degradação moral, ela é a única capital que naquele contexto histórico permitiria tanto a existência de um triângulo amoroso quanto a publicação de um enredo em que duas mulheres se relacionam afetivamente.

Paulo Rónai comenta a influência gerada pelo romancista em seus sucessores, confirmando a singularidade de suas descrições e a importância delas para a consolidação de Paris como paradigma ideológico e social.

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16 Nenhum escritor fez inventário tão completo dos atrativos de Paris como Balzac. Mostra antes de tudo, na atmosfera da cidade, certo mistério que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Evidentemente, havia nisso algum exagero; mas essa visão do romancista influenciou seus leitores e seus sucessores, reforçando a sensação única de vida tumultuosa e intensa, cheia de virtualidade e surpresas, que nos inspira uma permanência em Paris (2012, p. 143).

Essa permanência em Paris está na narrativa de Ernest Hemingway, Paris é uma festa. No romance autobiográfico, o narrador-personagem conta seus anos de vivência na Paris do pós-Primeira Guerra. Vista de maneira enaltecida, – como o próprio título já demonstra – a cidade do romancista do século XX é o espaço de encontro com as esperanças perdidas durante a Guerra.

No decorrer de todo o enredo, o narrador-protagonista, o jovem Hemingway, tem ambições semelhantes àquelas demonstradas pelos personagens arrivistas balzaquianos: ele busca o sucesso artístico e econômico na única capital capaz de concretizar suas aspirações, independentemente dos problemas sociais e políticos do contexto histórico da época. A Paris dos anos 1920, como afirma Luiz Antonio Guiar, na apresentação de Paris é uma festa, era vista pelos intelectuais e artistas que lá viviam como o centro do mundo, a cidade onde eram “estimulados a produzir suas obras” (2013, p. 11).

A atração estimulante exercida por Paris levou Hemingway a descrever a cidade com detalhes precisos sobre os encontros entre os artistas reconhecidos pela crítica da época e a nova geração de escritores da segunda década do século XX, mais conhecida como Geração Perdida.

Para Otto Maria Carpeaux (2011), essa Geração apresenta ironia, cinismo, desilusão, sentimento de perdição universal, o niilismo absoluto, os quais são, aos olhos de Hemingway, renunciados em Paris. Para Carpeaux, Hemingway pretende falar a língua direta, sincera, dos americanos, retratando os acontecimentos mais extraordinários em palavras rápidas e abreviadas, que, no entanto, não deixam de caracterizar a capital francesa, salientando sua importância para o processo criativo dos inúmeros artistas que viveram na cidade durante aquela época.

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17 Se Balzac, por meio de uma linguagem metafórica, apresenta Paris como o lugar que degrada e corrompe os valores morais dos jovens, Hemingway, ao contrário, com uma linguagem clara e objetiva caracteriza a cidade como o ambiente capaz de dissolver as desilusões causadas pela Primeira Guerra e transformá-las em arte. Apesar do pessimismo próprio dos modernistas do começo do século passado, o cenário parisiense do romance autobiográfico de Ernest Hemingway é idílico.

Desse ponto de vista, a cidade anteriormente associada à semântica das possibilidades – por permitir que seus moradores encontrem meios para realizarem seus desejos mais íntimos, mesmo a custo de seus valores morais e éticos –, passa a ser a terra prometida daqueles jovens que buscam as soluções de seus problemas – sociais, pessoais, existenciais, econômicos – e que podem assim encontrar a inspiração artística perdida durante a Guerra.

Tanto A menina dos olhos de ouro quanto Paris é uma festa, apesar das suas diferenças ideológicas importantíssimas e manifestadas discursivamente, enfatizam o aspecto duplo que a capital francesa terá em ambas as obras.

Híbrida de deterioração e plenitude, Paris é como o Centauro ou o Minotauro – criaturas mitológicas metade humanas, metade animais –: os três são impossíveis de serem separados de seus próprios paradoxos.

O maravilhamento criado por Hemingway em torno da vida cultural de Paris, a plenitude e a degradação da cidade são retomados – no ano de 2011 - por Woody Allen em seu roteiro inspirado no romance em Meia-noite em Paris.

Neste filme, o protagonista Gil Pender (interpretado por Owen Wilson) é o alter ego de Allen. Sonhador e saudosista, Gil superestima os anos 1920 vivenciados por Hemingway, um dos inúmeros personagens históricos encontrados por ele durante a fantástica viagem ao passado que ele tem o privilégio de experimentar.

Com a inspiração em Paris é uma festa, o filme materializa a ideia abstrata presente no inconsciente coletivo das inúmeras possibilidades ofertadas somente pela capital francesa. Como afirma Marcos César de Paula Soares no seu artigo A figura do escritor em Meia-noite em Paris de Woody Allen

Persiste no imaginário contemporâneo o mito de uma cultura europeia mais receptiva, mais aberta ao experimentalismo, em contraposição com a vulgaridade da indústria cultural americana, mais francamente comercial,

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18 onde, além disso, reina um espírito declarado de anti- intelectualismo (Revista Itinerários, Araraquara, n. 36, jan./jun. 2013, p.83).

É nesse contraponto entre cultura europeia e cultura norte-americana que o filme não só trabalha com as questões relativas à busca pelo sucesso artístico e não simplesmente pelo êxito comercial, como também é a partir dessa diferença, então, que a narrativa retoma a atmosfera parisiense dos séculos XIX e XX, criando uma nostalgia importante para a interpretação dos elementos sobrenaturais e insólitos metafóricos que contribuem para o tom de comédia e para a verossimilhança do relato do filme.

Exatamente porque a metáfora apresentada nas cenas já habita o subconsciente de quem assiste ao filme que a sobreposição dos tempos (anos 1920 e 2011) da narrativa se torna factível e a surpresa causada no espectador e no personagem é fascinante. Nas palavras de Soares

a surpresa é de Gil, mas também do espectador, que não esperava ver surgir, sem marcas de transição explicitas, esse tipo de fantasia num filme que parecia aderir aos moldes do cinema realista, com suas regras de continuidade e manutenção ilusionista de mise-en-scène fundada na ideia do recorte da realidade (Idem, p. 87).

Os elementos sobrenaturais e insólitos, apresentados por David Roas em Tras los límites de lo real: una definición de lo fantástico (2011), - principalmente, o tema do noturno já expresso no título da obra, a presença do mundo dos mortos e o sentimento de hesitação constante no personagem - empregados no enredo de Meia-noite em Paris, são fundamentais para o desenvolvimento das reflexões propostas pelo diretor do filme ao longo da narrativa. Allen contrapõe os devaneios saudosistas e apaixonados à concretude da vida real com seus benefícios e malefícios, possibilitando que o público se identifique ainda mais com os desejos e momentos vivenciados pelo protagonista Gil.

Mais uma vez, no decorrer do longa-metragem, assim como foi salientado por Balzac e Hemingway, Paris é tanto a cidade das possibilidades – pois é lá que a viagem no tempo ocorre –, como é dupla na sua caracterização: ora moderna, ora antiga; primeiramente materializada no mundo concreto e, em um

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19 segundo momento, idealizada nas fantasias de Gil. Assim, Woody Allen, por meio do discurso fílmico, faz de Paris um arquétipo.

Dessa forma, o que se pretende analisar no decorrer dos três capítulos desta tese, por meio das leituras simbólicas e ideológicas dos discursos apresentados pelos três autores e por meio da comparação entre as obras é a transfiguração de Paris em um mito moderno.

O objetivo principal deste trabalho, portanto, é relacionar as descrições feitas de Paris em cada uma das obras selecionadas como corpus de análise com a construção da imagem da capital francesa no inconsciente coletivo. Ao longo dos capítulos serão apresentados o diálogo entre A menina dos olhos de ouro e Paris é uma festa e o processo de referência midiática do romance de Ernest Hemingway para o filme Meia-noite em Paris, com o propósito de salientar que a glorificação de Paris e a sua perpetuação como cidade dos sonhos de muitos até os dias de hoje só se tornou possível a partir dos relatos dos três autores, pois cada um deles, ao observar a cidade de um modo particular, agrega a ela mais uma característica que contribui para sua mitificação.

Além disso, buscar-se-á analisar ideologicamente os discursos empregados nas obras, aplicando a cada um deles as teorias desenvolvidas por Joseph Campbell (2008 e 2009), Roland Barthes (2009) e Carl Jung (1977 e 2000), responsáveis pelas reflexões sobre mito e inconsciente coletivo, pois ao longo dos capítulos desta tese tem-se a intenção de explicar por qual motivo Paris – mesmo em um mundo globalizado, onde todas as metrópoles tendem a ser semelhantes – se destaca e habita os sonhos dos mais variados tipos humanos, sejam eles reais ou fictícios, estejam eles em quaisquer tempo e espaço.

Dessa forma, o primeiro capítulo apresentará a análise da enunciação e a análise simbólica do prefácio da novela A menina dos olhos de ouro, buscando evidenciar para o leitor que, a partir da visão balzaquiana de Paris, a cidade se transfigurou em mito. Para tanto, serão fundamentais os estudos de Walter Benjamin (Baudelaire e a modernidade e Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo), Paulo Rónai (Balzac e a comédia humana), Carl Jung (O homem e seus símbolos e Os arquétipos e o inconsciente coletivo), Roland Barthes (Mitologias), entre outros teóricos cujas obras versam tanto sobre a importância

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20 de Balzac e seu estilo de época quanto sobre o mito e sua relação com o discurso ideológico de uma determinada época.

No segundo capítulo, analisar-se-ão os aspectos dialógicos entre a novela e o romance Paris é uma festa de Ernest Hemingway, por meio de seus traços ideológicos e por meio do princípio da enunciação. Os estudos desenvolvidos por autores como Antonio Candido (Poesia e ficção na autobiografia e A personagem de ficção), Bakhtin (A autobiografia e a biografia, Marxismo e filosofia da linguagem, Questões de literatura e de estética) e Campbell (Mito e Transformação e O poder do mito) serão indispensáveis, pois, além de refletirem sobre temas significativos para a interpretação do romance – como as particularidades das autobiografias e a relevância dos personagens protagonistas nesses relatos –, também conceituam o mito enfatizando a sua retomada e atualização na sociedade.

Já no terceiro capítulo, dedicado à narrativa fílmica de Wood Allen, buscar-se-á analisar Meia-noite em Paris por meio não só da perspectiva da linguagem cinematográfica embasada por críticos como André Bazin (2017 e 2018), Edgar Morin (2014) e Jean-Claude Carrière (2015), como também das teorias e discussões desenvolvidas por David Roas (2011), Remo Ceserani (2006) e Irène Bessière (2012) sobre a presença do sobrenatural e do insólito em narrativas.

Faz-se mister salientar que além dos teóricos já mencionados, outros serão fundamentais para o desenvolvimento da hipótese aqui apresentada, Paris é um mito moderno, tais como: Sartre (2006), Ítalo Calvino (1990 e 2007), Pamuk (2011), Baudelaire (1996), entre outros que dedicaram seus estudos tanto aos textos literários e cinematográficos como à teoria da cor, à psicologia social, à filosofia, à sociologia, entre outras áreas do conhecimento que contribuem substancialmente para as análises expostas nesta tese.

Não obstante as obras selecionadas como corpus já tenham sido interpretadas e exploradas por outros estudiosos, seus objetivos e sua hipótese divergem daqueles apresentados, por exemplo, por Leyla Perrone-Moisés que em Flores de escrivaninha dedicou um ensaio sobre A menina dos olhos de ouro, Balzac e a figurabilidade: cenas de figuração e desfiguração humana tese de

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21 Paula Caldas Frattini, USP e Imagens de Paris nos trópicos livro de Angela Perricone Pastura1.

Dentre as dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas sobre Paris é uma festa e Meia-noite em Paris se destacam A Revolução Francesa de Ernest Hemingway (de Luís Roberto Souza Júnior, PUC-RS), A Paris de Woody Allen: narrações sobre a cidade e suas apropriações midiáticas pelo turismo, A nostálgica viagem no tempo em Meia-noite em Paris (Woody Allen, 2011) e Woody Allen cineasta-historiador: ironia e identidade judaica em filmes sobre o período entreguerras (de autoria de Lucas Gamonal Barra de Almeida, UFJF, Luciana Angelice Biffi, UFU e Roberta do Carmo Ribeiro, UFG, respectivamente) são aquelas cujos propósitos acadêmicos mais se aproximam daqueles que serão expostos nas próximas páginas.

1Os títulos dos trabalhos acadêmicos aqui mencionados foram pesquisados no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES.

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Capítulo 1: A Paris de A menina dos olhos de ouro

Respirar Paris, isso conserva a alma!

Victor Hugo

Quando escreveu A Menina dos olhos de ouro, em meados dos anos 1830, Balzac inovou ao contar de maneira surpreendente o romance entre Paquita Valdez e a marquesa de San-Réal. Entretanto, apesar de o tema do lesbianismo ser o ponto principal de discussão na obra, Balzac aborda outros aspectos da sociedade francesa importantes para a constituição das Cenas da vida parisiense, série à qual pertence a novela.

Logo no início do relato, o leitor é apresentado a Henri de Marsay, um dos protagonistas de A Comédia Humana, que, como todo dândi, tem comportamento questionável e métodos de conquista controversos, os quais serão, ao longo da narrativa, usados para atrair Paquita. Tal comportamento será apresentado como definidor do caráter do jovem apaixonado, rico e pedante que habita Paris. Acostumado a ter tudo que deseja sem grande esforço, Henri de Marsay é a personificação da soberba e da arrogância que se contrapõe à ingenuidade e inocência de Paquita.

Enquanto ele, depois de todas as investidas e artimanhas usadas para conquistar Paquita, se mostra frio e indiferente ao destino trágico da moça, ela é vítima do ciúme da marquesa de San-Réal, sua amante, opressora e assassina.

Se por um lado de Marsay é livre para arquitetar todos os seus planos e circular pela cidade, Paquita é vigiada de perto pelos criados da marquesa e não pode sair de casa sem autorização e companhia adequada. Ou seja, na mesma proporção em que Henri tem os privilégios garantidos aos homens ricos de Paris, Paquita sofre por viver em uma prisão.

Entretanto, todos esses elementos, como salienta Leyla Perrone-Moisés (1990), são antecipados ao leitor atento na descrição de Paris feita na introdução da novela. Nas primeiras páginas do relato, Balzac se dedica a fazer um percurso por Paris do século XIX apontando, em um movimento de cima para baixo, os parisienses e seus diferentes níveis sociais.

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23 Nas palavras de Leyla Perrone-Moisés:

O que ele (Balzac) pretendia dizer está claramente exposto no Prólogo. A nouvelle tem uma composição hierárquica e autoritária: ela se compõe de uma exposição professoral, contendo uma tese sócio-econômica (o Prólogo), seguida de um exemplo ilustrativo (a narrativa). A enunciação do Prólogo é persuasiva e não admite réplica.

[...]

[...] Ora, a narrativa que se segue escapa, de modo surpreendente, ao papel passivo de ilustração das “verdades” do Prólogo.

No Prólogo, o que é proposto como remédio para os males sociais é uma distribuição mais razoável do ouro (metaforizado como o sangue do corpo social), uma busca menos desenfreada do prazer pelas elites (que devem assumir seu papel de cabeça desse corpo). Ora, o que a história nos mostra é que esse corpo social está mortalmente doente, que o “ouro” o corrompeu de alto a baixo. As “fantasias” dos aristocratas aí aparecem inteiramente submissas aos proletários e aos colonizados, de quem eles precisam comprar o corpo e o silêncio, e que se vendem a quem der mais (1990, p. 40, 41).

Dada a importância do prólogo de A menina dos olhos de ouro, objetiva- se neste capítulo analisar as características da cidade e em que medida a descrição de Paris feita por Balzac permitiu que a capital francesa se consolidasse no imaginário coletivo como a cidade das possibilidades e das degradações humanas. Por meio não só da análise simbólica, mas também da análise dos elementos da enunciação, pretende-se verificar em que medida Paris se tornou um mito moderno, a partir da visão balzaquiana. Para tanto, usar- se-á a tradução de Ernesto Pelanda2 como orientação para a análise do texto em francês.

A seguinte descrição abre a novela:

Un des spectacles où se rencontre le plus d’épouvantement est certes l’aspect général de la population parisienne, peuple horrible à voir, hâve, jaune, tanné. Paris n’est-il pas un vaste champ incessamment remué par une tempête d’intérêts sous laquelle tourbillonne une moisson d’hommes que la mort fauche plus souvent qu’ailleurs et qui renaissent toujours aussi serrés, dont les visages contournés, tordus, rendent par tous les pores

2 Optou-se pela tradução de A menina dos olhos de ouro elaborada por Ernesto Pelanda, pois

ela faz parte das oitenta e oito obras da Comédia Humana contempladas pela edição da Globo, selo Biblioteca Azul, para a qual a professora doutora Glória Carneiro do Amaral contribuiu como revisora técnica.

(24)

24 l’esprit, les désirs, les poisons dont sont engrossés leurs cerveaux; non pas des visages, mais bien des masques:

masques de faiblesse, masques de force, masques de misère, masques de joie, masques d’hypocrisie; tous exténués, tous empreints des signes ineffaçables d’une haletante avidité ? Que veulent-ils? De l’or, ou du plaisir? (BALZAC, 1968, p.6).3

O enredo inicia com a voz, aparentemente onisciente, do narrador que apresenta Paris por meio das “fisionomias parisienses”, relacionando os aspectos da cidade com o comportamento social dos seus habitantes. Durante o processo de comparação, a carga semântica dos vocábulos utilizados é muito contundente, principalmente ao caracterizar os rostos dos cidadãos como amarelados e mascarados

O amarelo é, segundo René-Lucien Rousseau: “Cor do movimento, ele une o pensamento ao movimento. É ainda a Ação, mas uma Ação que se torna conceito. É o verbo.” (1993, p. 99). Sendo a cor do verbo, o amarelo acarreta na obra um valor imperativo, pois ao longo de todo o enredo – como será possível observar mais adiante na análise – o narrador afirma, categoricamente, que o ouro e o prazer, incessantemente buscados pelos parisienses, são a fonte dos males da cidade.

A constante retomada da imagem do ouro, inclusive no principal traço característico de Paquita, a menina dos olhos do ouro, torna o metal e a cor amarela “símbolos do orgulho, da separação do Homem com Deus”

(ROUSSEAU, 1993, p. 104). O distanciamento do humano com o divino antecipa o desfecho da novela, pois “do mesmo modo, o ouro que simboliza a riqueza espiritual pode se desgastar e tomar um sentido diabólico se não exprimir nada além da riqueza material” (Idem, p.105). Outro aspecto do amarelo que antecipa o fim trágico de Paquita é o fato de a cor se relacionar com a “nossa pele que

3 Espetáculos que reúne todos os assombros é, sem dúvida, o aspecto geral da população parisiense, gente horrível de ver-se, lívida, amarelada, tanada. Pois não é Paris um vasto campo incessantemente revolvido pela tempestade dos interesses sob a qual turbilhona uma seara de homens que a morte ceifa mais frequentemente que alhures, e que renascem sempre do mesmo modo comprimidos, de rostos conturbados, fisionomias retorcidas, a extravasarem por todos os poros o espírito, os desejos, os venenos que lhe enchem os cérebros? Mas, não; não são rostos;

são antes máscaras – máscaras de fraqueza, máscara de força, máscara de miséria, máscara de alegria, máscara de hipocrisia; todas extenuadas, marcadas todas pelos sinais indeléveis de uma ofegante avidez. Que quer essa gente? Dinheiro ou prazer? (Tradução Ernesto Pelanda, 2013, p. 335).

(25)

25 fica amarelada com a aproximação da morte” e “ao fim, se tornar um substituto do negro” (CHEVALIER, 2009, p. 40), simbolizando o luto.

Não é sem propósito, assim, que a protagonista da história tenha os olhos dourados. Se por um lado, Paquita é o alvo de conquista de Henri de Marsay e, por isso, será o prêmio alcançado por ele ao final de suas investidas, por outro lado, a própria coloração dos seus olhos já anuncia a morte que a encontrará brutalmente no desfecho da narrativa.

O amarelo ainda é a “cor da inveja, da inconsciência, do adultério e da traição [...]” (ROUSSEAU, 1993, p. 105), podendo ser “símbolo do desespero, por ser intenso, violento e agudo até a estridência” (PEDROSA, 2010, p. 123).

Entretanto, a cor também é, dentre todas, a mais quente e se relaciona com a eternidade, da mesma forma que o ouro é o metal da eternidade. (CHEVALIER, 2009, p. 41).

Essa amplitude dos significados do amarelo é extremamente coerente com todos os acontecimentos vividos pelos personagens da obra, pois, enquanto é relativo à ideia de energia e calor, o amarelo se torna o espetáculo parisiense (termo que inicia a novela). Quando passa a ser o tom da pele dos cidadãos é a monotonia e o tédio, ao ser a cor da infidelidade; transforma-se no triângulo amoroso formado pelos protagonistas. Já quando se funde ao ouro converte-se no poder e na riqueza tão almejados por aqueles que habitam Paris.

As máscaras apresentadas pelo narrador indicam, por sua vez, a tentativa de disfarce dos cidadãos. O narrador salienta a necessidade social de esconder a verdadeira identidade para conseguir conviver e sobreviver às relações por interesse, que norteiam todo o corpo social parisiense. Para Park, sociólogo da Escola de Chicago

Não é provavelmente um mero acidente histórico que a palavra

“pessoa”, em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou menos conscientemente, representando um papel... É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmo (apud GOFFMAN, 2003, p. 27).

As relações sociais, dessa perspectiva, são estabelecidas a partir de representações individuais coerentes com cada situação vivenciada pelo sujeito

(26)

26 em seu cotidiano. Goffman comenta que “esperamos que as diferenças de situações sociais entre os participantes sejam expressas de algum modo por diferenças congruentes nas indicações dadas de um papel de interação social”

(2003, p. 31), assim, as máscaras usadas pelos parisienses se adequam aos mais variados convívios sociais.

O psicólogo ainda afirma em seu estudo que esses papéis sociais se estabelecem por meio de uma fachada produzida pelo indivíduo para uma audiência e “isto constitui um dos modos pelos quais uma representação é

‘socializada’, moldada e modificada para se ajustar à compreensão e às expectativas da sociedade em que é apresentada” (idem, p. 40)

Dessa forma, o disfarce social propiciado pelo uso das máscaras é inerente a qualquer sujeito socialmente constituído. O que Balzac salienta em seu discurso é o caráter inescrupuloso da manipulação envolvendo essas funções exercidas pelos sujeitos, principalmente por aqueles que desejam ascender social e economicamente em Paris, o que para Goffman cria uma idealização das máscaras sociais adequadas para cada uma dessas situações.

Uma das fontes mais ricas de dados sobre a representação de desempenhos idealizados é a literatura sobre mobilidade social.

Na maioria das sociedades parece haver um sistema principal ou geral de estratificação e em muitas sociedades estratificadas existe a idealização dos estratos superiores e uma certa aspiração, por parte dos que ocupam posições inferiores, de ascender às mais elevadas. (Deve-se ter cuidado de compreender que isto implica não apenas no desejo de uma posição de prestígio, mas também no desejo de uma posição junto ao centro sagrado dos valores comuns da sociedade).

Verificamos habitualmente que a mobilidade ascendente implica na representação de desempenhos adequados e que os esforços para subir e para evitar descer exprimem-se em termos dos sacrifícios feitos para a manutenção da fachada. Uma vez obtido o equipamento conveniente de sinais e adquirida a familiaridade na sua manipulação, este equipamento pode ser usado para embelezar e iluminar com estilo social favorável as representações diárias do indivíduo.

Talvez a peça mais importante do equipamento de sinais associados à classe social consista nos símbolos do status, mediante os quais se exprime a riqueza material (GOFFMAN, 2003, p. 41 e 42).

Ao enumerar cinco modelos diferentes de máscaras utilizadas pelos parisienses (a da fraqueza, a da força, a da miséria, a da alegria e da hipocrisia),

(27)

27 o narrador da novela reforça a ideia da imposição que é dentro daquela sociedade a dissimulação, pois é somente por meio do uso da ‘máscara de hipocrisia’ que a ascensão social se torna uma possibilidade e a busca pelo ouro e pelo prazer concretizada.

Walter Benjamin diz que:

Uma das primeiras reações que a formação das multidões nas grandes cidades fez nascer foi a moda do que àquela altura se chamava ‘fisiologias’. Tratava-se de pequenos fascículos de alguns centésimos, em que o autor se divertia em classificar certos tipos sociais segundo sua fisionomia, captando de relance tanto o caráter como as ocupações e o estatuto social de um qualquer transeunte. A obra de Balzac contém milhares de amostras dessa mania. Dirão que se trata de uma perspicácia muito ilusória. De fato, é ilusória. Mas há um pesadelo que lhe corresponde e que, por seu lado, parece ser bem mais substancial. Esse pesadelo seria o de constatar que os traços distintivos captados de relance, que parecem garantir a unicidade, a individualidade estrita de uma personagem, revelam ao mesmo tempo os elementos constitutivos de um tipo novo que iria, por sua vez, estabelecer uma divisão social (2015, p. 200).

É, exatamente, o estabelecimento dessa divisão social que é salientado pelo narrador quando ele afirma que os mascarados parisienses estão extenuados. A fragilidade dos disfarces ressalta o aspecto deformado dos rostos dos cidadãos. É interessante notar a carga semântica das palavras empregadas para qualificar os rostos antes do uso das máscaras. Eles são: comprimidos, conturbados, retorcidos e extravasam por todos os poros o espírito, os desejos e os venenos. Ou seja, são rostos doentes, desfigurados, perturbadores e incomuns.

Diante do que foi afirmado por Benjamin, se a fisionomia demonstra tanto os estatutos sociais, como o caráter dos personagens, tal descrição aponta para a decadência da sociedade parisiense, pois as relações naquele contexto se dão por meio de máscaras para que a degradação social não seja manifestada.

Além dos símbolos mencionados, nesse primeiro fragmento da novela são feitas ao leitor perguntas que marcam o processo de enunciação. Por meio da interlocução entre narrador e narratário fica evidente que não se trata de um relato em terceira pessoa, como aparentava. O relator dos fatos é uma testemunha que, por meio do constante processo de distanciamento e

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28 aproximação do leitor (analisado no decorrer deste capítulo), tenta apagar as marcas de subjetividade da narração, para, assim, conferir maior credibilidade ao discurso.

I. A alma da cidade-chama

As perguntas que se encontram no interior do fragmento são projeções do estranhamento que o discurso do narrador possivelmente causa nos leitores ao descrever Paris de uma maneira oposta à imagem da cidade que habita o imaginário coletivo. Ou seja, o narrador balzaquiano não a caracteriza como Cidade-Luz e sim, como uma Cidade-Chama, como salienta Rónai:

[...] mais que Cidade-Luz, a Paris de Balzac é a Cidade- Chama. Atrai de longe os moços de toda a França, de toda a Europa, do mundo inteiro, ricos e pobres, ávidos de amor, de êxito, de riqueza. Muitos deles ‘diariamente jogam tudo numa cartada, sacrificando ao deus mais cortejado nesta régia cidade, o Acaso’. A maioria consome-se inteiramente no fogo: esgota-se na luta, adoece e morre; cai na miséria e se estiola longamente; ou foge da chama, espavorida, e resigna-se a uma existência mesquinha (2012, p. 142).

O possível estranhamento causado nos leitores pelas descrições e a imagem de cidade-chama são mencionados pelo narrador:

Quelques observations sur l’âme de Paris peuvent expliquer les causes de sa physionomie cadavéreuse qui n’a que deux âges, ou la jeunesse ou la caducité : jeunesse blafarde et sans couleur, caducité fardée qui veut paraître jeune. En voyant ce peuple exhumé, les étrangers qui ne sont pas tenus de réfléchir, éprouvent tout d’abord un mouvement de dégoût pour cette capitale, vaste atelier de jouissances, d’où bientôt eux-mêmes ils ne peuvent sortir, et restent à s’y déformer volontiers. Peu de mots suffiront pour justifier physiologiquement la teinte presque infernale des figures parisiennes, car ce n’est pas seulement par plaisanterie que Paris a été nommé un enfer. Tenez ce mot pour vrai. Là, tout fume, tout brûle, tout brille, tout bouillonne, tout flambe, s’évapore, s’éteint, se rallume, étincelle, pétille et se consume. Jamais vie en aucun pays ne fut plus ardente, ni plus cuisante. Cette nature sociale toujours en fusion semble se dire après chaque oeuvre finie : – À une autre ! comme se le dit la nature elle-même. Comme la nature, cette nature sociale s’occupe d’insectes, de fleurs d’un jour, de bagatelles,

(29)

29 d’éphémères, et jette aussi feu et flamme par son éternel cratère [...] (BALZAC, 1968, p. 6 e 7).4

(Boulevard Sébastopol)5

Figura 1: Léon et Levy, Roger-Viollet. [Sem título]. Fotografia. Disponível em : http://www.parisenimages.fr/en/asset/fullTextSearch/search/Paris%201860/page/1. Acesso em : 6 nov 2017.

A explicação oferecida pelo narrador a respeito do estranhamento causado nos estrangeiros que chegam à cidade (sejam eles leitores ou viajantes) é construída por meio da imagem da alma de Paris. O termo “alma” faz surgir a ideia de princípio vital. Usada como sinônimo de espírito, a alma, segundo Jung, é uma “substância imaterial como a que é portadora do fenômeno psíquico, ou até mesmo da própria vida” (2000, p. 206).

Ao atribuir à cidade essa essência humana, o narrador transforma Paris em um organismo vivo dotado de sentimentos, pois a atividade subjetiva humana

4 Algumas observações sobre a alma de Paris poderão explicar as causas de sua fisionomia

cadavérica, que só tem duas idades: a juventude ou a senilidade; juventude desbotada e sem cor; senilidade dissimulada que quer parecer jovem.

Ao ver esse povo exumado, os estrangeiros, não habituados a refletir, experimentam à primeira vista um movimento de repugnância pela capital, vasto laboratório de gozos, do qual eles próprios não conseguirão em breve sair, nele permanecendo prazenteiramente a se deformar.

Poucas palavras serão suficientes para justificar fisiologicamente a cor de tez quase infernal das criaturas parisienses, pois não seria apenas por brincadeira que Paris foi chamada de um inferno.

Considere-se verdadeira a palavra. Ali tudo queima, tudo é fumaça, tudo brilha, tudo ferve, tudo arde, se evapora, se extingue, se reacende, faísca, cintila e se consome. Jamais a vida em qualquer outro lugar foi mais ardente ou mais abrasadora. Essa natureza social sempre em fusão, parece dizer ao cabo de cada obra: “Vamos a outra!” tal como o faz a própria natureza.

Como a natureza, essa natureza social ocupa-se com insetos, flores de um dia, bagatelas, coisas efêmeras, e lança também fogo e cinza por sua cratera eterna. [...] (Tradução Ernesto Pelanda, 2013, p. 336).

5 As datas de todas as fotografias presentes neste capítulo variam entre 1860 e 1890.

(30)

30 é associada ao espírito-alma (JUNG, 2000, p. 208). No entanto, na visão balzaquiana, a personificação de Paris se dá a partir das características mais funestas de seus habitantes, pois a juventude e a senilidade descritas são como espectros, cadáveres sem cor, que se aproveitam das oportunidades que a capital pode oferecer. Na imagem anterior, é possível observar a alma parisiense por meio da efervescência das ruas da cidade. A movimentação de veículos e pessoas seguindo na mesma direção, ambos com a mesma tonalidade negra, confirma o aspecto infernal descrito no fragmento. Além de o clarão ao fundo, ser assemelhado ao sol e à força de sua luz, que arde e queima, como fogo.

Além disso, as imagens relacionadas ao fogo são incisivas, pois não relacionam a cidade com o símbolo da chama purificadora, mas com a capacidade destrutiva do fogo, sua função diabólica. O inferno, mencionado duas vezes no trecho supracitado, evoca, no imaginário coletivo a ideia anteriormente descrita na literatura por poetas como Vergílio e Dante.

Em Eneida, Enéias deseja, mesmo vivo, descer aos infernos para encontrar seu pai. Antes da descida, a sacerdotisa de Febo o alerta sobre a dificuldade existente não em realizar a sua vontade, mas em deixar o Tártaro:

[...] sate sanguine divum,

Tros Anchisiade, facilis descensos Averno:

noctes atque dies patet atri ianua Ditis,

sed revocare gradum superasque evadere ad auras,

hoc opus, hic labor este. […] (VERGÍLIO, Aeneid, Liber Sextvs.

Disponível em: www.thelatinlibrary.com/verg.html. Acesso em 01 jul 2019).6

As palavras ditas pela personagem fazem o mesmo alerta que o narrador balzaquiano sobre a ingenuidade dos estrangeiros ao chegarem em Paris. Tal qual Sibila, o narrador orienta o caminho percorrido nos infernos e serve como vigilante não só do percurso transposto por quem se submete a adentrar as terras parisienses infernais, como também das futuras consequências dessa passagem, já que anuncia todos os percalços encontrados durante o tempo passado no lugar.

6 Ó troiano, filho de Anquises, gerado do sangue dos deuses, fácil é a descida para o Averno:

noite e dia está aberta a porta do sombrio Dite. Mas retornar sobre seus passos e sair para as brisas do alto, aí está a dificuldade, aí está o trabalho! (VERGÍLIO, 1996, p. 114).

(31)

31 A caracterização do inferno também é semelhante; os dois autores optam por elementos relativos à inquietude do ambiente:

[...] pallentesque habitant Morbi tristisque Senectus, et Metus es malesuada Fame ac turpis Egestas, terribiles visu formae, Letumque Labosque;

tum consanguineus Leti Sopor et mala mentis Gaudia, mortiferumque adverso in limine Bellum, ferreique Eumenidum thalami et Discordia demens

vipereum crinem vittis innexa cruentis. [...] (VERGÍLIO, Aeneid, Liber Sextvs. Disponível em: www.thelatinlibrary.com/verg.html.

Acesso em 01 jul 2019).7

Os vocábulos “queima”, “fumaça”, “brilha”, “ferve”, “arde”, “evapora”,

“extingue”, “reacende” “faísca”, “cintila”, “consome”, “ardente” e “abrasadora”

utilizados por Balzac consolidam a imagem de um inferno habitado e populoso, exatamente da mesma forma que os substantivos aplicados como personificações por Vergílio. É precisamente a ebulição social de Paris que transforma, como afirma Rónai, a cidade de luz em chama, pois ao invés de criar possibilidades de crescimento e de progresso, ela atraia os homens por sua agitação, a devassidão e depravação infernais.

A mesma imagem superpopulosa do inferno é reafirmada por Dante, em vários momentos da primeira parte de A divina comédia, como por exemplo:

[…] Quivi sospiri, pianti e alti guai risonavan per l'aere sanza stelle, per ch'io al cominciar ne lagrimai.

Diverse lingue, orribili favelle, parole di dolore, accenti d'ira,

voci alte e fioche, e suon di man con ele

7 [...] lá habitam as pálidas Doenças, e as triste Velhice, e o Temor, e a Fome, má conselheira, e

a espantosa Pobreza, formas terríveis de se ver, e a Morte, e o Sofrimento; depois, o Sono, irmão da Morte, e as Alegrias perversas do espírito, e, no vestíbulo fronteiro, a Guerra mortífera, e os férreos tálamos das Eumênides, e a Discórdia insensata, com sua cabeleira de víboras atada com fitas sangrentas. [...] (VERGÍLIO, 1996, p. 114).

(32)

32 facevano un tumulto, il qual s'aggira

sempre in quell' aura sanza tempo tinta,

come la rena quando turbo spira. [...] (ALIGHIERI, La divina commedia. Disponível em:

http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/ladivinacommedia.pdf.

Acesso em: 01 jul 2019).8

A constante reincidência do inferno ocupado por almas agitadas aparenta ser uma condição sine qua non do ambiente que, não por acaso, tem as mesmas premissas de uma metrópole como Paris, movimentada, barulhenta e em constante circulação.

Sendo assim, o termo “vasto laboratório de gozos” antecipa a caracterização desordenada de Paris, local onde todos os deleites serão permitidos e incentivados. A personificação da cidade, desse modo, a torna ambiciosa e insatisfeita, pois “parece dizer ao cabo de cada obra: ‘Vamos a outra!’” e maléfica, por aprisionar os estrangeiros que, apesar de repudiarem a cidade em um primeiro momento, logo se rendem e não conseguem mais deixá- la.

A catábase feita por aqueles que buscam por Paris é, portanto, indissociável da descrição da cidade no prólogo da novela. Entendida como o processo de descida ao mundo inferior com o objetivo de adquirir conhecimento, a catábase é dolorosa e árdua, porém, quando concluída leva à autognose por meio do retorno ao mundo dos vivos (anábase). Do caos ao cosmos, a catábase modifica profundamente aqueles que a efetuam, deixando marcas eternas muito presentes nos personagens de Balzac que escolhem viver em Paris. Esse processo de autoconhecimento será melhor demonstrado nos capítulos posteriores por meio das histórias de Ernest Hemingway e Gil Pender, dois artistas intimamente afetados por suas experiências no inferno parisiense.

Rónai afirma que

[...] Paris é a protagonista de toda A comédia humana. A afirmação nada tem de arbitrária para quem, na leitura dessa epopeia em prosa, recolhe algumas das muitas expressões e

8 [...] suspiros, choros, gritos altos e desesperados cruzam aquele espaço escuro. Ouvindo-os,

meu pranto também corria. Diversos idiomas, frases despropositadas, lamentos, vozes roucas, gritos de dor e cólera, rumor de mãos a flagelarem o corpo que as sustinha, tudo isso formava um turbilhão a girar perenemente naqueles ares conturbados, qual areia por tufão levantada. [...]

(ALIGHIERI, 2009, p. 15).

(33)

33 comparações antropomórficas de que o autor se serve para fixar a fisionomia fluida e múltipla da grande aglomeração humana.

“Essa cidade coroada”, afirma num trecho, “é uma rainha que, sempre grávida, tem desejos irresistivelmente furiosos.”.

[...]

Muito provavelmente o nosso romancista foi quem apontou primeiro a existência, naquela metrópole, de uma alma coletiva, da qual cada habitante é tributário, mas que é algo mais do que a soma das almas individuais que encerra. Mais do que em qualquer outro lugar, o elemento humano mistura-se ali numa fusão completa com uma multidão de outros fatores, como sejam a traição, a história, a paisagem natural e artificial (2012, p. 136 e 137).

Na congruência entre cidade e habitante, espaço e personagem, é estabelecido na obra um conceito espacial que foge do simples cenário onde se passa a história. A Paris apresentada por Balzac na novela é um estudo que comprova a influência dos atos humanos sobre a cidade, ou seja, o comportamento social determina a concepção espacial, tornando Paris em um espaço social, que nas palavras de Luis Alberto Brandão é “tomado como sinônimo de conjuntura histórica, econômica, cultural e ideológica, noções compreendidas de acordo com balizas mais ou menos determinadas” (2013, p.

59).

Entretanto, ao ser o palco das aspirações de tantos personagens como Henri de Marsay, Paris se configura também como espaço psicológico, definido por Brandão como aquele que “abarca as ‘atmosferas’, isto é, projeções, sobre o entorno, de sensações, expectativas, vontades, afetos de personagens e narradores, segundo linhagens variadas de abordagens da subjetividade [...]”

(Idem, p. 59).

Pode-se afirmar, desse modo, que Paris é a junção dos acontecimentos histórico-sociais e das projeções idealizadas dos personagens, o que a configura não só como um lugar real, como também um ambiente imaginado pelos personagens e, consequentemente, pelo leitor da obra.

Toda essa concepção subjetiva e ambígua do espaço (ora como realidade, ora como idealização) se instaura no fragmento (e em outros momentos da obra analisados mais adiante) por meio da visão do narrador que conversa com o leitor, apontando as características da cidade com conhecimento de um nativo. Se por um lado, ao se dirigir ao leitor, dizendo

“Tenez ce mot pour vrai”, o narrador apela para a crença de que tudo que está

(34)

34 sendo dito sobre Paris e seus cidadãos é verdadeiro, o uso do advérbio “ali”, por outro lado, refere-se a um espaço enuncivo, aquele que está distante do local da produção da enunciação e, consequentemente, do narrador e do narratário. A escolha por caracterizar Paris como um espaço afastado cria automaticamente a sensação de credibilidade no leitor, pois transfigura a cidade em um território abstrato.

O processo de aproximação entre narrador e narratário e o distanciamento entre eles e a cidade de Paris são retomados, por sua vez, no seguinte fragmento da novela:

À force de s’intéresser à tout, le Parisien finit par ne s’intéresser à rien. Aucun sentiment ne dominant sur sa face usée par le frottement, elle devient grise comme le plâtre des maisons qui a reçu toute espèce de poussière et de fumée. En effet, indifférent la veille à ce dont il s’enivrera le lendemain, le Parisien vit en enfant quel que soit son âge.[…] À Paris, aucun sentiment ne résiste au jet des choses, et leur courant oblige à une lutte qui détend les passions […]. Tout y est toléré, le gouvernement et la guillotine, la religion et le choléra. Vous convenez toujours à ce monde vous n’y manquez jamais. Qui donc domine en ce pays sans moeurs, sans croyance, sans aucun sentiment; mais d’où partent et où aboutissent tous les sentiments, toutes les croyances et toutes les moeurs? L’or et le plaisir. Prenez ces deux mots comme une lumière et parcourez cette grande cage de plâtre, cette ruche à ruisseaux noirs, et suivez-y les serpenteaux de cette pensée qui l’agite, la soulève, la travaille?

Voyez. Examinez d’abord le monde qui n’a rien? (BALZAC, 1968, p. 8 e 9).9

9À força de se interessar por tudo, o parisiense acaba não se interessando por nada. Não dominando sentimento algum em sua face gasta pelo atrito, ela torna-se acinzentada como as fachadas dos prédios que recebem toda espécie de poeiras e fuligens. Com efeito, indiferente, na véspera, àquilo que o vai apaixonar no dia seguinte, o parisiense, seja qual for sua idade, vive como uma criança. [...]

Em Paris, sentimento algum resiste ao fluxo dos acontecimentos, cuja corrente obriga a uma luta que desarma as paixões [...].Tudo ali se tolera: o governo e a guilhotina, a religião e a cólera. Em tal sociedade todos cabem sempre e ninguém jamais faz falta. Quem então domina nessas paragens sem costumes, sem crenças, sem sentimento algum, mas de onde partem e aonde vão ter todos os sentimentos, todas as crenças e todos os costumes? O prazer e o ouro.

Tomem-se estas duas palavras como uma lanterna e percorra-se essa grande jaula de estuque, essa colmeia de valetas negras, e siga-se o serpentear do pensamento que a agita, que a conduz, que a trabalha. Que se vê? Examinemos em primeiro lugar o mundo dos que nada têm (Tradução Ernesto Pelanda, 2013, p. 336 e 337).

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