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DISCIPLINA, O PRINCÍPIO DA EDUCAÇÃO EM KANT Leonardo de Ross Rosa i

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Academic year: 2022

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  DISCIPLINA, O PRINCÍPIO DA EDUCAÇÃO EM KANT 

Leonardo de Ross Rosai   

Resumo 

O  presente  artigo  busca  mostrar  a  disciplina  como  o  primeiro  passo  na  educação kantiana, mas não apenas isso, pretende apresentar a disciplina como, para  o homem, a mais contundente mudança em todo o processo educacional de Immanuel  Kant. É o momento de maior tensão, não somente por se tratar do primeiro avanço,  mas também por apresentar ao homem uma situação absolutamente diversa da vida a  partir  da  natureza  do  ser  na  qual  estava  inserido.  É  relevante  salientar  que  não  se  trata  de  definir  a  disciplina  como  ponto  mais  decisivo  do  processo  educacional  kantiano, mas sim de refletir sobre uma alteração drástica que muda completamente o  caminho do ser em sua forma de vida natural e selvagem para trilhar o caminho do  pensamento autônomo e assim conquistar sua verdadeira liberdade.   

 

Palavras chave: Kant, disciplina, autonomia, educação e natureza   

Abstract 

This paper tries to show discipline as the first step in Kantian education; but  not  only  that.  It  intends  to  present  discipline  as  the  most  incisive  change  in  the  educational process proposed by Immanuel Kant for Man. It is the moment of highest  tension, not only because it is the first advance, but also because it presents Man with  a  situation  that  is  absolutely  different  from  life  from  the  nature  of  human  being  in  which  they  were  inserted.  It  is  relevant  to  point  out  that  it  is  not  about  defining  discipline as the most decisive point in the entire Kantian educational process, but of  reflecting  about  a  drastic  change  that  takes  place  and  changes  the  path  of  human 

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being  completely  from  its  natural  and  wild  life  to  travel  through  the  path  of  autonomous thought and thus conquer its true freedom. 

eywords: Kant, discipline, autonomy, education, and nature. 

K  

Introdução 

Com  base  no  material  das  preleções  de  Kant  na  Universidade  de  Königsberg  dos anos de 1776 a 1787, seu discípulo, Friedrich Theodor Rink, publicou em 1803, o  texto mais específico de Immanuel Kant acerca da educação. Na realidade, não existe a  certeza  sobre  onde  terminam  as  idéias  de  Kant  e  onde  iniciam  os  pensamentos  de  Rink.  No  entanto, Über Pädagogik  (Sobre a Pedagogia)  se  constitui  na  obra  mais  específica do filósofo alemão sobre a educação, apesar de Kant tratar da educação em  muitos de seus textos. Tendo a participação de Rink ou não, são nas páginas de Sobre a  Pedagogia que Kant discorre toda a sua valiosa teoria educacional. 

No texto, Kant aborda de forma precisa o tema Educação dizendo que ela é que  faz do homem um verdadeiro homem. É a Educação que possibilitará ao homem sua  evolução até que possa chegar ao seu fim que é ver‐se enquanto humanidade. Neste  contexto,  o  tema  central  do  presente  trabalho  aborda  a  disciplina  como  sendo  o  primeiro,  mas  mais  do  que  isso,  constituindo‐se  no  mais  impactante  momento  da  teoria  educativa  do  filósofo  por  se  tratar  de  uma  verdadeira  interrupção  no  que  poderíamos  chamar  de  curso  natural  da  vida  do  homem  oriundo  da  natureza,  que  nasce sob a inclinação à uma liberdade sem regras, atenta a caprichos e cômoda no  ponto  em  que  se  satisfaz  tendo  suas  necessidades  básicas  atendidas.  A  partir  da  disciplina, sob forma de coação externa, o homem depara‐se com  a possibilidade de  evolução, condição imposta a ele para que possa chegar ao seu fim enquanto homem,  ou seja, ver‐se enquanto humanidade. 

 

A educação em Kant 

A pedagogia, processo destacado por Kant e conceito que dá nome a seu texto mais específico sobre o tema educação, é a sua verdadeira doutrina da educação e se constitui num desenvolvimento filosófico no sentido de buscar os fundamentos da determinação

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daquilo que seja o homem e sua tarefa no mundo. É uma ciência, diferente da educação. A educação para Kant é uma arte. Entretanto, apesar de fazer parte da pedagogia, toda a educação não pode ser restrita à ela, pois vai além do conceito ao assumir papel preponderante na constituição da sociedade almejada.

Immanuel  Kant  vê  na  educação  uma  tarefa  árdua  para  o  homem,  cuja  dificuldade deixa explícita através da passagem de seu texto Sobre a Pedagogia (2002,  p. 447): “Entre as descobertas humanas há duas dificílimas, e são: a arte de governar  os homens e a arte de educá‐los”. Mais do que isso, Kant identifica a educação como  uma questão sem solução para o homem por ele, enquanto homem, não poder dar um  fim à questão. No pensamento kantiano, o homem não poder dar‐se a educação. Isso  só  seria  possível  se  o  homem  conseguisse  se  ver  enquanto  humanidade,  o  que  na  teoria educacional kantiana, é o fim do processo, o que presume que o caminho para  este  entendimento  é  demasiado  longo  e  impossível  de  se  construir  sem  a  ação  do  outro. Em Kant, o homem nunca viverá o bastante para resolver o problema da educação, que é, como dito, dar-se a educação.

De fato, o filósofo alemão prega uma educação passada de geração em geração, sempre buscando o melhor, um momento realmente superior. Assim, o educador deve preparar a criança sempre com o entendimento de humanidade e de sua inteira destinação, o que se coloca sempre como ponto futuro. Do contrário, Kant aponta para uma realidade em que o homem educa seus filhos com vistas ao presente, a fim de que cumpram um papel condizente no mundo, que sejam bons e tenham sucesso e isso lhe parece satisfatório. No formato exposto não há a busca pelo estado superior.

Mas  é  relevante  apontar  que,  como  em  todo  o  processo,  a  educação  em  Kant  também tem um início, um ponto de partida e este surge a partir do nascimento da  criança. O primeiro momento da Educação é que o filósofo identificou como Educação  Física. Para Kant, a Educação Física tem como primeira tarefa o cuidado com o corpo,  o que, na verdade, é comum aos animais. É o momento onde há a maior proximidade  entre  homem  que  conhecemos  e  o  animal,  pois  ambos  estão  ligados  à  uma  mesma  natureza que não lhes proporciona racionalidade. Obviamente, se não houver a ação  da educação, essa situação irá perdurar e, no entender de Kant, o ser não alcançará a 

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condição de homem. Kant é enfático logo na abertura de Sobre a Pedagogia (2002, p. 

441) com a frase: “O homem é o único ser que precisa ser educado” e segue (2002, p. 

444): “O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação”. Ele  entende a educação como uma arte que possui a tarefa de “desenvolver as disposições  naturais  do  ser  humano”,  arte  que  interroga  a  natureza  e  nunca  chega  a  um  saber  absoluto, condição que para ele é apenas possível a Deus. A educação para Kant não é  uma ciência e sim uma arte e um processo, o processo de transformação do homem  num verdadeiro homem. 

Dentre  as  fases  da  Educação  Física,  o cuidado  é  o  primeiro  estágio  e  faz‐se  necessário  logo,  desde  o  nascimento.  É  o  momento  em  que  a  criança  deve  ter  a  atenção dos pais a fim de que não utilize de forma errada suas forças. Este cuidado dos  pais é um ato de conservação, de trato, que vai proteger o bebê de si mesmo. De outra  forma, no caso dos animais, não existem cuidados, mas somente a nutrição ou ainda o  aquecimento  e  alguma  segurança,  o  que,  para  Kant,  não  se  identifica  como  cuidado. 

Ademais,  os  animais  fazem  uso  de  suas  forças  sem  que  prejudiquem  a  si  mesmos,  lançando mão apenas de seus instintos para a sobrevivência.  

O homem também possui instintos e não se pode afirmar que os mesmos sejam  todos  inúteis  ou  mesmo  nefastos.  O  homem  tem  o  instinto  de  alimentar‐se,  por  exemplo, o que possibilita sua boa nutrição e é condição para a vida. Mas para que os  instintos ruins não determinem sua conduta, faz‐se necessário o que em Kant assumiu  a condição de segundo estágio da Educação Física, a disciplina. A disciplina doma os  instintos  e  é  a  ponte  que  permite  ao  homem  avançar  na  busca  da  instrução  e  do  esclarecimento.  É  onde  ocorre  a  ruptura  com  a  natureza  e  leva  o  homem  da  sua  menoridade  animal  para  a  maioridade,  dando‐lhe  condições  de  deixar  ao  mundo  irracional.  É,  sem  dúvida,  um  processo  ao  qual  Kant  confere  grande  importância,  mesmo que a identifique como a parte negativa da Educação Física pelo fato de retirar  o homem de sua natureza. A disciplina terá atenção exclusiva posteriormente. 

A  parte  positiva  da  Educação  Física  corresponde  à  cultura  ou  instrução  que,  segundo  Kant  (2002,  p.  466),  “consiste  notadamente  no  exercício  das  forças  da  índole”.  Nesse  período  se  evidencia  a  diferença  entre  homem  e  animal.  É  onde  as 

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habilidades  da  criança  são  trabalhadas.  É  o  momento  em  que  a  imaginação  deve  ganhar espaço para criar e a memória será exercitada. Para Kant, o processo seguinte  é a cultura da alma, que não deixa de ser uma Educação Física pois:  

 

A natureza do corpo e da alma concordam no seguinte: cultivando‐as, deve‐

se  procurar  impedir  que  se  corrompam  mutuamente  e  buscar  que  a  arte  aporte  algo  tanto  àquela  quanto  a  esta.  Pode‐se,  portanto,  em  um  certo  sentido,  qualificar  de  física  tanto  a  formação  da  alma  quanto  a  do  corpo  (2002, p. 470). 

A formação da alma se refere à natureza e por isso não tem similaridade com a  formação moral, que se refere à liberdade. Kant sugere a distinção  da formação física  e  da  formação  prática  ou  moral,  ou  ainda  pragmática.  Ele  indica  que  na  formação  moral  existe  a  moralização  e  não  a  cultura.  Eis  o  segundo  momento  da  educação  kantiana,  a  saber,  a  Educação  Prática.  Ela  é  o  que  Kant  chamou  de método  e  que  se  divide em três partes: educação mecânica‐escolástica, que está vinculada à habilidade,  o que, para Kant, é possuir uma faculdade que seja suficiente para um fim desejado; 

educação pragmática, que engloba a prudência, que é a “arte de aplicar aos homens a  nossa  habilidade”  de  modo  a  alcançar  os  objetivos  propostos;  formação  moral,  que  concerne a ética e diz respeito ao caráter, sendo o último estágio da teoria educacional  de Kant.  

A  moralização  se  estabelece  como  o  verdadeiro  fim  para  o  homem.  Seu  conceito se une ao conceito de educação e nele é possível vislumbrar toda a evolução  do ser, onde ele passa pelos cuidados, pela disciplina, pela instrução ou cultura e pela  civilização.  É  importante  salientar  que,  apesar  da  obra  de  Kant  ter  como  fim  uma  educação moral, a educação kantiana não ensina o agir moral. A explicação para isso é  que  o  agir  moral  é  de  legislação  absolutamente  interna,  ou  seja,  advém  do  próprio  homem  e  assim  não  há  como  depender  de  outro  homem.  Aqui  se  constitui  uma  relativa diferença de origem, digamos, entre o agir moral e a educação. No primeiro, a  origem deve ser o próprio homem, há um processo interno, já no segundo, a origem é  externa, ou seja, alguém deve educar o homem. Não se pode esquecer, no entanto, que  ambos estão ligados pois a ação dentro da moralidade exige a educação. Na verdade, a  educação  em  Kant  tem  o  objetivo  de  preparar  a  criança  para,  enquanto  homem,  buscar seu agir moral através da autonomia de pensamento. O pensar por si e ter sua 

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ação alicerçada na mesma autonomia do pensamento possibilitará ao homem seu agir  dentro da moralidade.  

Todo o processo educacional se encerra com a consolidação de uma educação moral.  Com  ela  o  homem  supera  gradativamente  a  propensão  existente  para  o  mal,  convertendo‐a em impulso para o bem. Deve‐se destacar que em Kant o homem não é  bom nem mau por natureza pois sua natureza não o faz um ser moral. Ele só será bom  ou  mau,  quando  elevar  sua  razão  aos  conceitos  do  dever  e  tornar‐se  um  ser  moral. 

Sendo  um  ser  moral,  poderá  escolher  o  caminho  a  tomar.  Poderá  ser  bom,  mas  também poderá trilhar o caminho do mau. Sendo moral, poderá assumir as máximas  escolhidas  por  ele  mesmo  e  que  determinarão  sua  vontade.  Vale  lembrar  que  Kant  atrela  o  mal  à  natureza  quando  esta  não  for  submetida  a  regras  e  que,  no  homem,  existem  germes  somente  para  o  bem.  De  mesma  forma,  ao  atingir  a  moralidade,  o  homem consolida seu caráter – quer fazer algo e realmente coloca isso em prática ‐ e  está apto a ver‐se como humanidade, grande objetivo de todo o processo. Em Sobre a  Pedagogia (2002, p. 487) Kant exemplifica o caráter: “Se, por exemplo, prometi algo a alguém, devo manter minha promessa, mesmo que isso acarrete algum dano. Porque um homem que toma uma decisão e não a cumpre, não pode ter confiança em si mesmo”.

Como dito anteriormente, o caminho que o conduz à moralidade é embasado  na liberdade e na autonomia, objetivo de todo o homem. Com efeito, Kant busca uma  educação  para a  liberdade,  que  é a  condição de  possibilidade  para  que  esse  homem  torne‐se  esclarecido  e  autônomo,  um  homem  que  procura  seu  próprio  caminho  e  assim  se  realiza  enquanto  homem,  concretizando  seu  plano  que  é  o  de  ver‐se  enquanto humanidade. Uma humanidade que é sempre fim, um objetivo e nunca um  meio do qual o homem possa fazer uso.  

Ainda dentro do princípio da autonomia, Kant alerta para o conceito de dever,  a  atitude  de  agir  por  dever  e  também  conforme  o  dever.  O  dever  carrega  consigo  o  conceito da boa vontade e para que uma vontade seja autônoma, sua força deve ser  originada no próprio ser, em sua própria razão. Ao agir conforme o dever e por dever,  o  homem  está  fazendo  uso  da  autonomia  da  vontade  e  esta  mostra‐se  como  a  capacidade do ser humano de dar‐se a lei moral com valor universal, ou seja, uma lei 

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que parta do homem individual, mas que tenha uma validade para  todos, que possa  ser  utilizada  por  todos.  De  mesma  forma,  a  vontade  deve  ser  determinada  primeiramente pela vontade em si e não pela vontade pelo objeto. Conseqüentemente,  a  vontade  não  deve  ter  sua  origem  em  algo  externo  ao  homem  ou  mesmo  que  seja  motivada por algo externo à ele. Kant assevera ainda que uma “boa vontade” é boa em  si  e  sem  limites  e  não  tem  necessidade  de  outros  objetos  para  determiná‐la.  Ela  é a  única coisa realmente boa e está alicerçada no princípio do querer, segue o dever pelo  dever e seu valor está no princípio da ação, não estando vinculada ao resultado desta  mesma ação. É o respeito à lei que o conduz à ação. 

 

Disciplina, a ruptura com a natureza 

Para  Kant,  apenas  quando  o  homem  faz  com  que  sua  razão  determine  a  liberdade é que se encontra a liberdade moral, finalidade de todo o ser racional. Em  Kant vemos uma educação libertadora, que eleva o homem em sua condição e, para  tal, necessita de um processo que mude drasticamente a condição primeira da vida do  mesmo homem. Esse estado onde se encontra o ser e que tem na natureza sua fonte,  deve  ser  colocado  à  distância  pela  disciplina  a  fim  de  que  o  homem  atinja  um  novo  momento.  A  disciplina,  que  não  se  configura  como  adestramento,  garantirá  a  boa  preparação  para  que  a  criança  receba  a  instrução,  mas  não  se  pode  caracterizar  a  disciplina como um estágio com encerramento ou período de atuação determinados. 

Na verdade, a disciplina estará presente durante todo o processo educacional.  

Com  a  indicação  de  que  o  homem  deve  sofrer  a  coação  desde  muito  cedo,  o  sujeito  da  teoria  educacional  de  Kant  é  a  criança.  Não  obstante,  em  Kant,  a  criança  nasce sob o poder de suas inclinações, o que seria um estado selvagem, sem regras, ou  melhor com uma liberdade sem regras. Nesse estado selvagem, comum aos animais, a  criança age conforme seus desejos e caprichos. Urge então a necessidade da imposição  de  uma  ordem,  a  fim  de  que  a  mesma  criança  não  se  desvie  de  seu  caminho  para  a  humanidade.  Como  diz  Kant  em Sobre a Pedagogia  (2002,  p.  442):  “A  disciplina  é  o  que  impede  o  homem  de  desviar‐se  do  seu  destino,  de  desviar‐se  da  humanidade,  através de suas inclinações animais”. Kant assevera que a disciplina deve ser imposta 

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o  quanto  antes,  pois  no  futuro  a  tarefa  se  tornará  impossível.  Kant  afirma  que  “O  homem  é  tão  naturalmente  inclinado  à  liberdade  que,  depois  que  se  acostuma  a  ela  por  longo  tempo,  a  ela  tudo  sacrifica”  (2002,  p.  442).  Na  verdade,  Kant  fala  sobre  a  possibilidade  de  a  cultura  ser  instituída  posteriormente  e  mesmo  corrigida,  diferentemente  da  disciplina,  que  só  encontra  lugar  na  “mais  tenra  infância”  e  que  após a  fin ância será inútil a tentativa de impô‐la.   

É  importante  estar  atento  para  a  condição  primeira  do  homem  e  que  se  assemelha a dos animais, que já nascem sendo tudo o que podem ser. O que regula os  animais é o instinto. Diferente, o homem não tem esse limite que confere ao animal  um  estado  acabado.  O  homem  é  inacabado  e  essa  condição  traz  a  necessidade  de  desenvolvimento.  A  natureza  que  deu  aos  animais  os  instintos  também  oferece  ao  homem a possibilidade do uso da razão. 

A  disciplina  retira  o  homem  de  sua  natureza  selvagem  mas  isso  não  se  consolida  como  um  processo  de  separação  e  abandono  absoluto.    Kant  fala  de  uma  retirada  do  ser  de  sua  natureza  sim,  mas  mais  do  que  isso,  seu  intento  é  um  regramento, uma normatização desta natureza. Ela não é substituída simplesmente. A  natureza  deverá  ser  normatizada,  regrada.  De  qualquer  forma,  para  o  homem  esse  momento de mudan a é um avanço absolutamente relevan e.  ç t

A  disciplina  carrega  toda  a  responsabilidade  de  dar  o  primeiro  passo  em  direção ao objetivo final do homem. Seu papel, como visto, é afastar o homem de sua  menoridade ‐ situação onde sua condição natural de animal o conduz à ação segundo  seus  estímulos  e  sentimentos  ‐  através  da  coação.  A  disciplina  vem  para  retirar  a  criança  do  estado  selvagem  onde  ela  se  encontra  ao  nascer  e  assim  diferenciar  o  homem do animal bruto que age instintivamente. O homem requer polimento devido  à  sua  inclinação  à  liberdade.  Com  efeito,  cabe  aos  pais,  o  primeiro  contato  do  ser,  passar  a  seus  filhos  a  disciplina  ‐  para  que  sejam  obedientes  ‐  e  a  instrução.  Kant  enfatiza  a  importância  do  cuidado  dos  pais  para  com  os  bebês,  pois  sem  estes  cuidados  os  mesmos  morreriam  por  não  ter  nenhuma  condição  de  sobrevivência  sozinhos. Assim as crianças não farão uso nocivo das forças e inclinações animais e,  portanto, não cairão na selvageria independente de quaisquer regras, possibilitando 

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cresçam  rumo  ao  esclarecimento.  Vale  lembrar  que  em  Kant,  não  há  uma  força  superior que vá guiar o homem. Se fosse desta forma tudo já estaria determinado, não  necessitando de qualquer movimento dele. É o homem que constrói seu caminho de  busca para que, enfim, encontre a humanidade. 

A  ruptura  com  um  estado  de  comodidade  no  qual  o  ser  já  está  inserido  é  colocado  neste  trabalho  como  o  mais  tenso  momento  da  educação  de  Kant.  Ao  encontrar‐se em um estado e ter que sair do mesmo, a então criança, sob o cuidado do  educando, passa por sua maior prova na busca que o homem faz de seu objetivo final.

Neste contexto da retirada do homem do estado primitivo, Kant vê a interrupção do caminho que seria comum aos animais. Ao homem seria possível seguir a comodidade em uma vida em que são supridas as suas necessidades básicas. O primitivo lhe é atrativo, mas não permite seu desenvolvimento e acaba por impedir sua evolução para o esclarecimento e também sua constituição no verdadeiro homem. Ainda, não sendo disciplinado, Kant entende ser absolutamente complexa a obediência a leis. Se for pensado o homem já distante da selvageria, disciplinado por assim dizer, parecem um tanto mais suaves os degraus ou estágios a serem guindados rumo ao objetivo final. Obviamente, não haveria forma de evolução para o homem com a ausência da disciplina no entendimento de Kant, mas o salto do estado natural sem regras para um momento de coação e imposição de ordens é de forte impacto.

Convém lembrar que Kant afirma que cultura e moralidade, momentos de mesma forma imprescindíveis no processo educativo kantiano, colocam-se como conseqüentes, ou melhor, ocupam uma posição de evolução quase natural do ser após o impacto da disciplina. O homem já está, de certa forma, nos trilhos do esclarecimento e pode seguir de maneira mais branda seu caminho, mesmo que isso represente um considerável esforço, o que lhe é exigido por todo o processo.

 

Considerações finais 

O processo educativo kantiano tem como primeiro passo formar o homem para viver em sociedade, transformando a coação externa em liberdade e autonomia e isso  se  traduz  por  fazer  com  que  a  disciplina  imposta  pelo  educando  passe  a  ser 

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gradativamente uma coação interna do ser humano, quando ele terá condições de dar‐

se leis e viver sob as mesmas. São leis universais que servirão para o próprio homem e  para todos os outros homens, como indica Kant na Fundamentação da Metafísica dos  Costumes  quando  descreve  a  fórmula  do imperativo categórico (1960,  p.  80)  “Age  segundo máximas que possam simultaneamente ter‐se a si mesmas por objeto como  leis universais da n tureza”a . 

Outrossim,  apenas  alguém  esclarecido  poderá  disciplinar,  tornando  o  esclarecimento  o  fundamento  de  possibilidade  da  disciplina,  percurso  inverso  ao  realizado pela própria disciplina que, por sua vez, se estabelece como o fundamento  de  possibilidade  do  esclarecimento.  Em  Kant,  o  ciclo  formado  por  disciplina  e  esclarecimento  caminha  para  a  consolidação  da  moralidade,  e  a  moral  só  encontra  possibilidade  de  formação  através  da  disciplina.  Como  conseqüência,  a  moral  acaba  por forjar o caráter, o que é essencial aos homens a fim de que formem um estado de  paz. 

Nota‐se  que  a  mesma  disciplina,  posta  como  negativa  inicialmente,  adquire  caráter positivo quando eleva o homem à condição de convivência em sociedade na  formação  daquele  estado  de  paz.  Essa  possibilidade  alcança  a  concretude  quando  o  homem passa a se determinar e pode obedecer e respeitar uma regra geral, que sirva  para  todos.  Ao  dar‐se  uma  regra  e  que  esta  máxima  possa  ser  universalizada,  o  homem também será capaz de refletir, o que lhe possibilita ser seu próprio guia. 

Na quinta proposição dos textos Idéia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopolita (2003, p. 11), Kant fala sobre o alcance de uma sociedade civil justa e evoluída. Para que esta aconteça, o homem deve buscar o convívio em sociedade usufruindo de sua liberdade e agindo sob normas. Do contrário, vivendo sem regras e gozando de uma liberdade desenfreada, só poderá ter prejuízos, como exemplifica a metáfora:

Assim como as árvores num bosque, procurando roubar umas às outras o ar e o sol, impelem-se a buscá-los acima de si, e desse modo obtêm um crescimento belo e aprumado, as que, ao contrário, isoladas e em liberdade, lançam seus galhos a seu bel-prazer, crescem mutiladas, sinuosas e encurvadas.

Por fim, o homem necessita da sociedade para cumprir sua destinação, que é, como prega Kant, ver-se enquanto humanidade e não enquanto homem isolado, individual, pois

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apesar de o fim se dar individualmente, é a espécie que poderá gozar de sua inteira destinação. Assim, a sociedade tem no homem agente imprescindível de sua constituição e a base desta formação será, para Kant, o processo educacional - responsável por conduzir o homem ao esclarecimento e à condição de formar uma sociedade justa composta por homens morais.

 

Referências  

KANT,  Immanuel.  Grundlegung  zur  Metaphysik  der  Sitten  [Fundamentação  da  Metafísica dos Costumes (trad. alemão: Paulo Quintela). Coimbra: Atlântida, 1960]. 

 

KANT,  Immanuel. Über Pädagogik  [Sobre a Pedagogia  (trad.  alemão:  Francisco  Cock  Fontanella). 2a ed., Piracicaba: Unimep, 2002] 

 

KANT,  Immanuel. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita  (trad.  do  alemão:  Rodrigo  Naves  e  Ricardo  Terra).  2a  ed.,  São  Paulo:  Martins  Fontes, 2004 

   

      

i Leonardo  De  Ross  Rosa  é  graduado  em  Educação  Física  pela  Universidade  de  Caxias  do  Sul  e  mestrando  em  educação  pelo  PPGEdu  (Programa  de  Pós‐Graduação  em  Educação)  da  UCS  (Universidade  de  Caxias  do  Sul).  Atua  profissionalmente  na  área  esportiva  da  instituição  (Programa 

“UCS – Olimpíadas”) desde 1997. Desenvolve a linha de pesquisa em Filosofia da Educação e tem como  temas pesquisados: Filosofia da educação, o conceito de disciplina em Kant, filosofia da educação física  e o cuidado com o corpo. Endereço eletrônico: leorosa11@hotmail.com  

 

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