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Jean-Jacques Rousseau e a felicidade possível

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Academic year: 2021

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Jean-Jacques Rousseau e a felicidade possível

Luciana Coletti*

Resumo: O artigo tem como propósito abordar o tema da felicidade no contexto da filosofia rousseauniana, com ênfase particular, na obra Emí- lio, demonstrando que sua possibilidade está atrelada à concepção de natureza humana apresentada pelo filósofo genebrino. Apesar do pessi- mismo da crítica de Rousseau em relação às sociedades constituídas e à condição de miséria e infelicidade que ele atribui aos homens civilizados é possível extrair de sua obra lições que indicam um caminho para a felicidade. Rousseau distingue, neste caminho, a verdadeira felicidade da realidade de aparências e dependência vivenciada pelos homens civiliza- dos nas sociedades reais e desordenadas. No interior de uma sociedade bem ordenada Rousseau recoloca a possibilidade da fruição da felicidade para os indivíduos capazes de restabelecer, na interioridade, o equilíbrio entre forças e desejos. O conhecimento da natureza humana, o bom uso da liberdade e a prática da virtude, são algumas das condições colocadas por Rousseau para uma vida feliz.

Palavras-chave: Rousseau. Felicidade. Natureza humana. Virtude.

* Doutora em Filosofia pela Unisinos. Professora na Universidade Feevale. Ex-aluna

do IFIBE. E mail: luhcoletti@gmail.com.

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1. Introdução

A leitura da obra de Rousseau permite constatar que ele começa demonstrando que a tendência à felicidade é natural aos seres humanos.

No Emílio, por exemplo, ele afirma de modo enfático: “Todo homem quer ser feliz” (1995, p. 221). Mas, na sequência de sua obra, ele também se ocupa em demonstrar que a vida no interior das sociedades reais se dá sob a experiência da infelicidade. Distinguindo a vida do homem natural, simples e independente, por que é orientada pelo amor de si, que visa somente a satisfação das necessidades básicas, daquela do homem civil, orientado pelo amor-próprio, que cumulando os homens de necessidades artificiais, rompe o equilíbrio originário entre forças e desejos, Rousseau chega à existência dos cidadãos reais, dependentes e infelizes.

A análise rousseuaniana do tema da felicidade nos remete a um pro- blema concreto e determinante, o do desconhecimento dos homens em re- lação à natureza humana. É por viverem desprovidos deste conhecimento, informa Rousseau, que os homens têm dificuldade de determinar “o que é a felicidade” e, por decorrência, ignoram os meios para chegar até ela.

Imersos na “loucura e contradição” das instituições humanas, a existência dos homens civilizados se caracteriza, sobretudo, pela dependência. A liberdade, limitada pelas “forças naturais”, está irremediavelmente per- dida por que os desejos desmedidos tornam os homens dependentes das coisas. Ainda pior, na análise de Rousseau, é a dependência da opinião que leva a “enxergar pelos olhos dos outros” e a “querer por suas vontades”

(ROUSSEAU, 1995, p. 75).

Partindo da reflexão deste quadro da existência miserável e depen- dente dos homens civis reais, Rousseau se propõe a indicar um “caminho”

para a vida no interior da ordem civil, espaço no qual ele situa a felicidade possível. Pode-se afirmar que seu “método” se baseia no conhecimento de quem somos nós, pois “O essencial é sermos o que a natureza nos fez”.

O problema, prossegue Rousseau, é que nesta busca “somos sempre até demais o que os homens querem que sejamos” (1995, p. 539).

Há de ficar claro que os rumos propostos por Rousseau para a

fruição da felicidade se fazem no interior da vida civil e dependem da

capacidade dos homens de retomar o equilíbrio entre forças e desejos,

condição de manutenção da liberdade, cujo exercício se faz orientado pela

moderação – a “liberdade bem regrada” –, sem a qual a felicidade não é

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possível. Este conjunto de condições irão evidenciar o nexo que Rousseau estabelece entre a concepção de natureza humana com a experiência da felicidade, atrelada à prática da virtude, expressões de uma existência autêntica daqueles homens que, a exemplo de Emílio, são formados para viver “sábios e felizes” no interior de uma sociedade bem ordenada.

2. “É preciso ser feliz”

Para dar início a esta reflexão e evidenciar que o tema da felicidade é frequente na obra de Rousseau opta-se por destacar a seguinte afirma- ção: “É preciso ser feliz, caro Emílio, tal é o fim de todo ser sensível; é o primeiro desejo que a natureza imprimiu em nós, e o único que nunca nos abandona”. A constatação, contudo, é seguida de alguns questio- namentos que, de certo modo, podem gerar inquietação no leitor mais atento: “Mas, onde está a felicidade? Quem o sabe? Cada qual a procura e ninguém a encontra. Gastamos a vida perseguindo-a e morremos sem a ter alcançado” (ROUSSEAU, 1995, p. 623).

O que chama a atenção, neste trecho, é que a tendência à felicidade, inerente aos seres sensíveis e, portanto, também aos humanos, é imedia- tamente contraposta com uma dificuldade, isto é, a dúvida sobre onde ela realmente está, sobre o que ela é. São questões que, ao final das contas, remetem ao tema da própria natureza humana, cujo conhecimento passa a ser condição para o alcance e fruição deste sentimento, uma vez que o desconhecimento de quem somos afeta diretamente a possibilidade de determinar o que poderia nos fazer felizes.

A ideia central, portanto, está no limite das faculdades humanas, ressalta Gatti (2012). Quando Rousseau questiona em que consiste a sabe- doria ou o caminho para a verdadeira felicidade a resposta indica um só caminho: “[...] diminuir o excesso de desejos relativamente às faculdades, e de igualar perfeitamente a potência e a vontade” (ROUSSEAU, 1995, p.

70). É esta a condição para que a “alma” esteja tranquila e os homens “bem ordenados”. A natureza institui nos seres humanos “desejos necessários”

à sua conservação e concede “faculdades suficientes para satisfazê-los”.

Tudo estaria bem e em ordem se o relato de sua obra estivesse concluído

nesta etapa. Mas, enfatiza Rousseau, a “imaginação”, a mais “ativa de

todas as faculdades”, assim que desperta, amplia nossos desejos para

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além dos limites das faculdades. “O mundo real tem seus limites, o mun- do imaginário é infinito” (ROUSSEAU, 1995, p. 71). Na sequência desta passagem Rousseau mostra que, se não podemos estender os limites do primeiro, a chave para alcançar a felicidade está em restringir o segundo, uma vez que “é da diferença entre eles que nascem todos os sofrimentos que nos tornam realmente infelizes”.

A “sabedoria humana” ou, o que em síntese é o mesmo, o “cami- nho da verdadeira felicidade”, se efetiva quando os humanos se tornam capazes de encontrar o equilíbrio entre “desejos” e “faculdades”, igua- lando “potência” e “vontade”. Não por acaso Rousseau utiliza a expressão

“condição negativa” para explicitar o que seria a felicidade aqui na terra, uma vez que é do “excesso de desejos que nascem todos os sofrimentos que nos tornam realmente infelizes”. Os seres humanos se tornam mi- seráveis quando parecem carentes de tudo, prossegue Rousseau, “pois a miséria não consiste na privação das coisas, mas na necessidade que sentimos delas” (1995, p. 71). Para Rousseau, analisa Viroli (1988, p. 154), a felicidade se encontra “na estabilidade e no equilíbrio interior entre desejos e faculdades”. Não é na procura dentro da “aparência”, mas no

“sentimento interior”, complementa Groethuysen (1983, p. 53), que se constitui a felicidade.

O próprio Rousseau chama a atenção para estas questões ao indicar que é a imaginação que amplia a “medida dos possíveis, tanto para o bem quanto para o mal”, nutrindo desejos e a esperança de satisfazê-los (1995, p. 70). Nesta passagem emerge, para utilizar a expressão adotada por Gatti (2012, p. 85), a figura do “indivíduo aquisitivo”, visto que a miséria e a infelicidade aparecem atreladas à carência, à necessidade que sentimos das coisas que desejamos e não temos. Esse “conflito da aparência” expõe outro importante elemento, o da fraqueza, uma vez que, no contexto da filosofia rousseauniana, forte é aquele que se contenta em ser o que é, ao passo que o fraco, orientado pelo orgulho, “deseja erguer-se acima da humanidade” (ROUSSEAU, 1995, p. 71). O tema da fraqueza expõe uma fundamental “relação

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”, a que se dá entre “forças” e “necessidades” e que

1 “A palavra fraqueza indica uma relação [...]. Aquele cuja força excede as necessidades,

ainda que seja um inseto ou um verme, é um ser forte; aqueles cujas necessidades

excedem a força, ainda que seja um elefante ou um leão [...], é um ser fraco” (ROUS-

SEAU, 1995, p. 71).

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está diretamente relacionada à sabedoria, atitude que nos remete a outra importante questão, a da finitude.

A sabedoria, que nasce da consciência da finitude e nos remete à necessidade da “medida”, permite compreender nosso lugar na Natureza.

“Só o homem tem faculdades supérfluas” e, são elas, o instrumento de sua miséria. O homem “suficientemente sábio” tem consciência que o supérfluo é nada, destaca Rousseau (1995, p. 72). Ao tratar do jogo que se estabelece entre desejos, necessidades, miséria e felicidade, Rousseau nos conduz à análise da liberdade, que se liga indissoluvelmente à ideia dos limites. “Antes que os preconceitos e as instituições humanas tenham alterado nossas inclinações naturais, a felicidade das crianças e dos ho- mens consiste no uso de sua liberdade” (ROUSSEAU, 1995, p. 77). O equilíbrio interior, enfatiza Maruyama (2001, p. 68), envolve a “maîtrise de soi”, o controle de cada um sobre suas potencialidades, sobre suas forças. O homem livre de fato é aquele que “só quer o que pode e faz o que lhe apraz”, enquanto que a infelicidade, nesta perspectiva, aparece como a “perda da liberdade”, quando o homem enfraquece por tornar suas “forças naturais insuficientes para a realização de suas necessidades e desejos”. Nos termos de Derathé (2009), perder a liberdade corresponde à degradar o próprio ser, o que, no interior da filosofia rousseauniana, é ideia inadmissível.

Há, então, um nexo necessário entre a concepção de liberdade e a de ordem uma vez que esta é resultante do “bom uso da liberdade”, tanto no que se refere à condução da vida interior quanto no que diz respeito às relações estabelecidas com os outros. Aqui é preciso recordar e distin- guir os dois tipos de dependência mencionados no Emílio: a das coisas, própria da natureza, que “não prejudica a liberdade e não gera vícios”

e a dependência dos homens que, por ser “desordenada”, gera todos os

“vícios” (ROUSSEAU, 1995, p. 77-78). Derathé (1952) destaca que a “lição moral” que decorre daqui é que, para ser feliz, não se pode depender das necessidades, nem da opinião. Não é por acaso que Rousseau (1995, p. 75) escreve: “Tua liberdade, teu poder só vão até onde vão tuas forças naturais, não além; todo o resto não passa de escravidão, de ilusão e de prestígio”.

Toda a vez que não se respeitar os limites inerentes à condição humana,

ampliando a ação da imaginação, que “amplia a medida dos possíveis”,

a consequência a que se chega é que sempre “mais a felicidade se afasta

de nós”, conclui Rousseau (1995, p. 70-71).

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É, assim, justamente o “supérfluo” que se constitui como causa de toda a miséria humana. Vivendo fora de si, rompendo o equilíbrio entre desejos e poder, esforçando-nos para “aumentar nossa felicidade”, conse- guimos transformá-la em “miséria”, em infelicidade. Se o homem “apenas quisesse viver viveria feliz” e, por decorrência, “seria bom” (ROUSSEAU, 1995, p. 72). Mas, como temos agido? Por que vias temos buscado a feli- cidade? O que Rousseau (1995, p. 299) enfatiza é que “Julgamos demais a felicidade pelas aparências; supomo-la onde menos ela está; procuramo-la onde não poderia estar”. Ressurge o nexo necessário entre a liberdade, sempre finita, por que limitada pelas possibilidades e forças inerentes à natureza humana, com a felicidade e a ordem.

A liberdade, inscrita e atrelada à finitude humana, relaciona-se com a ordem, como se percebe nesta passagem do Emílio: “[...] qual felicida- de é mais doce do que se sentir em ordem num sistema onde tudo está bem?” (1995, p. 395). Há uma espécie de reflexão moral que nos conduz a distinguir o bem e o mal, o bom do mau. A diferença, prossegue Rous- seau, “é que o bom se ordena relativamente ao todo e o mau ordena o todo relativamente a ele”. Quem deseja o bem o fará pelo “bom uso da liberdade” (ROUSSEAU, 1995, p. 395). A felicidade, que se relaciona com a autossuficiência, porque está intimamente relacionada com o equilíbrio entre forças e desejos, é sempre frágil uma vez que se efetiva no campo da finitude humana, atrelada à fraqueza humana, ao bom uso da liber- dade, decorrente do processo de socialização. Ignorar estas condições ou características inerentes aos humanos significa condená-los à desordem e à infelicidade.

É preciso analisar, ainda, outra distinção que Rousseau faz, de modo

particular, no Segundo Discurso (DSD), quando contrapõe a felicidade

do homem natural com os “tormentos” do homem civil e questiona: “qual

das duas – a vida civil ou a natural – é mais suscetível de tornar-se insu-

portável”? Não sejamos precipitados, alerta Rousseau, ao indicar “de que

lado está a verdadeira miséria” (1991, p. 251). Para ele, é no desenvolvi-

mento das “luzes” e das “paixões”, no “abuso das faculdades” que reside

o principal obstáculo à felicidade. O homem civil e o homem natural

diferem entre si de tal modo, “tanto no fundo do coração quanto nas

inclinações, que aquilo que determinaria a felicidade de um reduziria o

outro ao desespero” (ROUSSEAU, 1991, p. 281). Evidentemente, não se

pode analisar estas passagens do DSD de modo fragmentado, isoladas

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do contexto de sua obra uma vez que, procedendo assim, chegaríamos a concluir que a vida em sociedade é contrária à felicidade humana e seria necessário romper com ela em definitivo. Em nota no DSD Rousseau já se antecipa e nos previne em relação a esta possibilidade, por ele classificada como “vergonhosa”, ao questionar: “será preciso destruir as sociedades [...] e voltar a viver nas florestas com os ursos?” (1991, p. 295). Não é opção aceitável, conclui ele, renunciar às luzes e à própria vida em sociedade.

Se, por um lado, Rousseau analisa que os males são oriundos das

“luzes” e “paixões”, por outro, é possível perceber que ele visa conciliar a vida natural com a vida na sociedade uma vez que a passagem da vida no estado de natureza para a do estado civil “determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela jus- tiça e dando às ações a moralidade que antes lhes faltava” (1991, p. 36).

A diferença entre ambos é que “O homem natural é tudo para si mesmo;

[...] só se relaciona consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil é apenas uma unidade fracionária que se liga ao denominador, e cujo valor está em sua relação com o todo, que é o corpo social” (1995, p. 11). A “mudança notável” que Rousseau indica prevê a capacidade de subtrair-se da dependência dos homens, da opinião, dos excessos, do mau uso da liberdade...

Que caminho indica, então, Rousseau, para os homens civilizados chegarem à conquista da felicidade? Se o retorno para as florestas não é a solução, o que fazer? Para começar, é fundamental ter consciência de que “Nossas tristezas, nossas preocupações, nossos sofrimentos vêm- -nos de nós mesmos. O mal moral é incontestavelmente obra nossa [...]”

(ROUSSEAU, 1995, p. 379). O que nos torna infelizes e maus é, em sín- tese, “o abuso de nossas faculdades”. Não se pode procurar, para além da interioridade dos humanos, inerente à natureza humana, a causa, as razões para os males e a infelicidade. Da mesma forma, é preciso aceitar outra dura constatação, a de que a felicidade absoluta não se encontra no horizonte do possível, uma vez que ela não está reservada a seres im- perfeitos, como é o caso dos humanos. Aceitar “ser o que somos”, evitar

“deplorar nossa sorte”, causando-nos “mil males reais”, pode ser o ponto

de partida para viver na ordem. Mesmo que o quadro das sociedades

atuais demonstre que “o mau prospera e o justo permanece oprimido”, a

introspecção, o olhar voltado para a interioridade permite ler o que está

inscrito na alma: “Sê justo e serás feliz”. Logo na sequência desta passagem

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Rousseau acrescenta: “Sejamos bons primeiro e depois seremos felizes”

(1995, p. 380-381).

Não é por acaso que Rousseau salienta: “Nascido no fundo de um bosque ele teria vivido mais feliz e livre, mas, contra nada tendo que lutar para seguir suas inclinações, teria sido bom sem mérito, não teria sido virtuoso [...]” (ROUSSEAU, 1995, p. 670). A virtude, que exige “força”, a capacidade de restabelecer o equilíbrio entre faculdades e desejos, é conquista da vida em sociedade. É no interior de uma sociedade bem or- denada, fundada a partir dos “princípios do direito político”, estabelecidos no Contrato Social, que os homens aprendem a “lutar consigo mesmo, a vencer-se, a sacrificar seu interesse pelo interesse comum” (ROUSSEAU, 1995, p. 670). Somente, assim, enfatiza Rousseau, o cidadão virtuoso, ca- paz de superar as contradições internas e os conflitos sociais, decorrentes do antagonismo entre os interesses particulares, pode sentir a “ordem”

no sistema político e encontrar a felicidade.

A educação para a boa socialização almejada por Rousseau passa, portanto, como salienta Gatti (2012, p. 89), pela compreensão e os efeitos ligados à “finitude do ser humano, finitude que, ao mesmo tempo, define a miséria e dignidade”. A base da educação de Emílio, de alguma forma o retrato do homem natural desnaturado para a vida em sociedade, se dá evidenciando a “provisoriedade”, a “transitoriedade” e a “instabilidade”, e consiste essencialmente em ensinar a conquistar a felicidade apesar desta inevitável “fluidez” que caracteriza a natureza humana (GATTI, 2012).

A “sabedoria”, portanto, neste contexto, é a arte de realizar nossa “frágil felicidade” (ROUSSEAU, 1995, p. 286); e está, como já observado, na ca- pacidade de realizar o “equilíbrio entre o poder e o desejo” (ROUSSEAU, 1995, p. 70). Esta condição de estabilidade, que se dá na interioridade, quando os homens são capazes de reencontrar a si mesmos, restabelecen- do a unidade, é o que nos tira da miséria que “não consiste na privação das coisas, mas na necessidade que sentimos delas” (ROUSSEAU, 1995, p. 71).

“Queres viver feliz e sábio?”, questiona Rousseau a Emílio. Para

conquistar esta condição é fundamental dar-se conta que a “fonte de

nossos males” está nas “ilusões do orgulho”, e que a “contemplação da

miséria humana torna o sábio moderado”. Moderação! Eis um conceito

basilar para Rousseau! Cabe a ela limitar “os desejos” e vencer as “incli-

nações”. “Então, serás feliz apesar da fortuna e prudente apesar das pai-

xões” (ROUSSEAU, 1995, p. 629). Gatti (2012), ao analisar esta passagem,

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ressalta que a base da ideia de sabedoria que Rousseau exige de Emílio consiste na capacidade de cultivar e desfrutar da “felicidade interior”.

De algum modo, prossegue Gatti (2012), Rousseau nos desafia a administrar o tempo de vida com sabedoria, uma vez que o sábio, capaz de trilhar o caminho da felicidade, não se perde no “tempo vazio” que é constituído por espaços que se efetivam pela busca exaustiva das coisas, pela louca corrida da acumulação, pela vida na aparência. Ao invés disso, o indivíduo sábio é capaz de saborear o “tempo presente”, um “tempo quieto”, que decorre da consciência da finitude, da provisoriedade e da transitoriedade. “Os homens dizem que a vida é curta, mas vejo que eles se esforçam para torná-la tal. [...] Sempre unicamente ocupados com o objetivo a que visam, veem com pesar o intervalo que os separa dele: um gostaria de estar no dia seguinte, outro no próximo mês, outros dez anos mais a frente; ninguém quer viver hoje, ninguém está contente com a hora presente [...]”, constata Rousseau (1995, p. 575).

O tempo escorre e se perde para os que efetivam o eu mediante a objetivação das coisas possuídas. A sabedoria sugere evitar a dependên- cia das coisas e da opinião, causa dos males, da miséria e infelicidade, retomando o equilíbrio entre forças e desejos. O homem bom, que vive ordenado, justo e feliz, é, por assim dizer, “autorreferencial”, diz Gatti (2012), centrado em si mesmo, sofre o mínimo os efeitos da dependência e, por esta razão, é capaz de estabelecer relações não conflituais com o próximo, superando o antagonismo entre interesses. A “consciência de si”, comenta Bazcko (1974, p. 226), “deve permitir ao indivíduo distinguir a verdadeira felicidade da felicidade aparente”. Dito de outra forma, o homem não pode desfrutar da felicidade vivendo dependente, imerso na desordem uma vez que viver na desordem significa “viver numa condição miserável” (VIROLI, 1988, p. 31). Se, por um lado, a felicidade na solidão não se coloca no horizonte possível é preciso, por outro lado, atentar que a conquista da felicidade, dadas as condições já mencionadas, se faz na inter-relação com os demais cidadãos.

Sobressai, de forma bastante peculiar, que Rousseau associa a vida feliz com a ética. Bazcko (1974) comenta que a “vida social” coloca o indivíduo face ao imperativo da “virtude” que demanda, sobretudo, o controle das paixões. A virtude assegura o “sentimento de felicidade” e o homem virtuoso desfruta plenamente de sua “existência”, afirmando sua

“autonomia e independência”. É o que se pode observar nesta passagem

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do Emílio: “O supremo gozo está no contentamento consigo mesmo; é para merecer este contentamento que fomos colocados na terra e dotados de liberdade, que somos tentados pelas paixões e contidos pela consciên- cia” (ROUSSEAU, 1995, p. 378). Assim, a autêntica sabedoria requer a mediação reflexiva, a da filosofia, explica Gatti (2012), visto que é preciso dar resposta aos problemas existenciais do homem no mundo (no meio social). Não é por acaso que no Livro V, do Emílio, Rousseau diz:

Não esperes de mim longas aulas de moral; só tenho uma para te dar, e ela compreende todas as outras. Sê homem; mantém teu coração dentro dos limites da tua condição. Estuda e conhece estes limites; por mais estreitos que sejam, não somos infelizes enquanto nos mantemos neles; só o somos quando, em nossos loucos desejos, consideramos como possível o que não o é; somos infelizes quando nos esquecemos de nossa condição de homens para forjar outras imaginárias [...] (ROUSSEAU, 1995, p. 628 ).

Na continuidade deste texto Rousseau ainda salienta: “[...] a con- templação da miséria humana torna o sábio sempre moderado. Ele se mantém no seu lugar [...]” (ROUSSEAU, 1995, p.628). Ao finalizar este argumento Rousseau indica, aos que querem viver “feliz e sabiamente”, limitar os desejos e vencer as inclinações. Superar a fraqueza inerente à natureza dos homens, decorrente dos vícios e inclinações, é, em síntese, praticar a virtude. “Meu filho, não existe felicidade sem coragem, nem virtude sem luta. A palavra virtude vem de força; a força é a base de toda virtude. A virtude só pertence a um ser fraco por natureza e forte pela vontade [...]” (ROUSSEAU, 1995, p. 626, grifo do autor). É a virtude a condição da ordem, da liberdade e, por decorrência, da felicidade. É o que se pode extrair do texto de Rousseau quando ele especifica o que seria um homem virtuoso e indica o seguinte:

É aquele que é capaz de vencer suas afeições, pois então ele segue a razão, a consciência; faz seu dever, mantem-se na ordem e nada o pode afastar dela. Até agora só eras livre em aparência [...]. Sê, ago- ra, livre de fato; aprende a te tornares teu próprio senhor; governa teu coração, Emílio, e serás virtuoso (1995, p. 627, grifo nosso).

O caminho proposto por Rousseau, então, para a conquista do ideal

da felicidade é, de certo modo, permeado por uma considerável dose

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de pessimismo, uma vez que a bondade é “frágil” e a “virtude” é quase inatingível para os humanos “tais como eles são”. Talvez por esta razão Derathé tenha enfatizado que o método proposto por Rousseau se tra- duz como “uma filosofia do instante”. “A verdadeira felicidade é, pois, para Rousseau, a felicidade de existir” (DERATHÉ, 1952, p. 96). Uma existência, evidentemente, baseada no autoconhecimento dos próprios atributos e limites decorrentes da natureza humana, pautada pela reflexão que promove a autonomia, a consciência da finitude, da ação e reação das paixões, o bom uso da liberdade – “liberdade bem regrada” –, a prática da virtude, cuja base é a força (“fortes pela vontade”), que nos recoloca na ordem. Rousseau está consciente de que o caminho que propõe aos humanos para chegar à felicidade não é fácil e nem simples, de tal modo que ele mesmo ressaltou que o homem virtuoso está acima dos anjos, pois somente a ele cabe o “grau mais sublime, a glória da virtude e o bom testemunho de si mesmo” (ROUSSEAU, 1995, p. 396). A fruição possível da felicidade se dá no momento presente e é “encontrada dentro de si”.

Rousseau pensa, como analisa Radica (2008, p. 246), a “singulari- dade do indivíduo”. Tanto no DSD quanto no Emílio ele nos apresenta a

“individualização como um processo e ele articula esta singularidade ao campo de uma subjetividade consciente de sua singularidade”. A “filosofia da felicidade” proposta por Rousseau está profundamente radicada no seu conhecimento dos “homens como eles são”, expressão que ele utiliza na abertura do Contrato Social e que nos alerta para os limites do possível.

Certamente há, como vimos, uma tendência natural à felicidade – “todo homem quer ser feliz” –, mas esta constatação se faz acompanhada da ig- norância em relação ao que é a felicidade – “Mas, onde está a felicidade?”.

Esta incerteza sobre o que é a felicidade, ao que nos faz realmente felizes,

profundamente imbricada no desconhecimento da própria natureza hu-

mana, culmina numa espécie de ressalva, quando Rousseau fala a Emílio e

lhe diz que conhecer os limites de nossa natureza é determinar a felicidade

possível: “[...] somos infelizes quando nos esquecemos de nossa condição

de homens para forjar outras imaginárias [...]” (1995, p. 628). Não será

demasiado finalizar estas breves reflexões com mais uma passagem da

obra de Rousseau uma vez que, ao alertar Emílio, informando-o que ele

seria “[...] tão feliz quanto um homem pode sê-lo”, ele nos recoloca no ho-

rizonte da finitude e da provisoriedade, no interior das sociedades reais,

único espaço para a felicidade possível, conquista reservada aos “homens

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como eles poderiam ser”. “Viver”, afinal, foi o “ofício” que Rousseau se propôs a nos ensinar.

3. Considerações finais

A verdadeira felicidade, pois, para Rousseau, é a felicidade de exis- tir, no interior de uma sociedade bem ordenada, de modo autêntico, em conformidade com os propósitos originais da natureza humana, que nos conduzem a renunciar à uma vida de aparências, à dependência, tanto das coisas, quanto da vontade e da opinião alheia, uma vez que “Só o homem tem faculdades supérfluas” e, como bem demonstra o autor do Emílio, cabe ao “supérfluo” ser o “instrumento de nossa miséria” (ROUS- SEAU, 1995, p. 72). O quadro das sociedades reais traçado por Rousseau demonstra que os homens vivem infelizes porque suas “próprias forças”

tornaram-se “insuficientes”, ou seja, os desejos se multiplicaram junto com a fraqueza. O “homem sábio” deveria permanecer em “seu lugar, mas, as “instituições humanas” alteraram suas “inclinações naturais” de tal modo que se perdeu a “felicidade” que consistia “no uso da liberdade”.

Não podendo dispensar os outros, uma vez que o equilíbrio entre faculda- des e desejos foi drasticamente rompido, os seres humanos encontram-se

“fracos e miseráveis” (ROUSSEAU, 1995, p. 77).

Rousseau demonstra que o caminho para “viver feliz e sábio” remete à uma dinâmica da interioridade na qual reside a capacidade de cada um restabelecer a unidade entre desejos e forças. Por esta razão, Maruyama (2001, p. 67-68) escreve que a primeira e mais importante condição da felicidade reside na “unidade do homem”. O homem fraco, por perder o direito sobre suas próprias forças, se torna dependente de outros homens, de suas vontades e opiniões, ou seja, perdeu “a posse de si mesmo”. A felicidade, portanto, exige a possibilidade de restabelecer o “controle de si”, a “autossuficiência”.

Não há, no interior da filosofia rousseauniana, um caminho fácil de

ser trilhado. Pelo contrário, emerge do interior de sua teoria uma men-

sagem que mescla realismo com uma certa dose de pessimismo quando

ele nos permite vislumbrar uma “felicidade possível”, bem distante de

uma ilusória promessa de felicidade absoluta. Seres sensíveis e imperfei-

tos, em constante formação – devido à perfectibilidade - de sua própria

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humanidade, eternos “aprendizes de homens”, só podem experienciar a felicidade possível, esta mesma que evidencia a conexão entre a finitude e a fragilidade da liberdade, e que lhes permite superar as misérias de- correntes da vida no interior das sociedades desordenadas. É, portanto, no interior de uma sociedade bem ordenada, em conformidade com os princípios propostos no Contrato Social, que se pode construir as condi- ções efetivas para a fruição de uma felicidade possível.

Se queremos assumir com seriedade este desejo reconhecido por Rousseau como inerente à natureza humana e traduzido na sua afirmação

“todo homem quer ser feliz”, não podemos prescindir do conhecimento da natureza humana e da consequente consciência do nexo entre fraque- za e finitude, da possibilidade da autonomia, do bom uso da liberdade e da prática da virtude uma vez que, em síntese, cabe a ela assegurar o sentimento da felicidade possível. Rousseau nos desafia a articular as imperfeições dos “homens tais como eles são” com a radicalidade dos

“princípios do direito político”. Não será demasiado enfatizar, então, como consequência do realismo político e da concepção antropológica de Rousseau que, para seres imperfeitos, uma felicidade absoluta jamais será possível.

Referências bibliográficas

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Referências

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