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Desconstruindo o conceito de função paterna*: um paradigma interpelado

Leticia Glocer Fiorini**, Buenos Aires

A autora desenvolve um trabalho de desconstrução da noção de função paterna enquanto proposta como um elemento essencial para separar o filho de sua mãe e assegurar sua inserção em um universo simbólico.

Percorrem-se algum marcos que derivam da noção de patriarcado e as suas ligações com a conceituação de função paterna. Isso tem forte influência em algumas postulações da psicanálise. A necessidade de uma análise genealógica e de historizar esta função é reforçada. Enfatiza-se que há na mãe suficientes reservas simbólicas para exercer essa função, sem recorrer à explicação – de caráter tautológico – de que o Pai dita a Lei e introduz essa função na mãe, para que esta possa exercê-la. Pelo contrário, é uma legalidade que está além de uma figura, mesmo no seu aspecto metafórico, proposta por uma determinada organização sociocultural e discursiva. Esta proposta permite desarticular a frequente validação mãe/natureza versus pai/cultura/logos separador e descentralizar essa dicotomia. Defende-se que o papel do pai é uma operação simbólica que deveria denominar-se, com propriedade, função terceira, independentemente de quem a exerça e além de dicotomias empobrecedoras. Geralmente é exercida pelo pai, mas pode ser exercida pela mãe ou outros, através de suas próprias reservas simbólicas e desejos. Torna-se, portanto, mais complexa a rede que permite o exercício de terceiridade nos processos de subjetivação. Considerar que essa função terceira, simbólica, também pode ser exercida pela mãe enriquece a compreensão da constituição do sujeito em uma trama de laços sociais.

Palavras-chave: função paterna, função terceira, filho-falo, filho-outro, maternidade simbólica-plural, desejo de filho, natureza/cultura.

* Publicado na Revista de Psicoanálisis (2013), vol.70, 4: 671-681. Buenos Aires, Asociación Psicoanalítica Argentina.

** Presidente e psicanalista didata da Associação Psicanalítica Argentina (APA).

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Introdução

Neste trabalho abordaremos o conceito de função paterna através de uma análise genealógica que permita a sua desconstrução e nos possibilite indagar as suas origens, significações e transformações na trama sociocultural da qual cada sujeito emerge. Isto implica em trabalhar sobre as propostas psicanalíticas, freudianas e pós-freudianas, envolvidas nesta questão, assim como com as complexas relações de cada sujeito com as culturas e subculturas de que faz parte.

Este estudo também implica em que nos interroguemos sobre o paradigma no qual se apoia o conceito de função paterna. Neste contexto, nossa hipótese é a de que nos encontramos diante de uma mudança de paradigma e de que enfrentamos um momento de transição em direção a outras formas de exercício da função simbólica. Portanto, não caberia desestimar as problemáticas que estão em jogo, nem tampouco analisá-las somente com as categorias classicamente assentadas, sem abordar um necessário processo de revisão das mesmas.

O paradigma do patriarcado subtende as produções, experiências – eróticas e tanáticas – e relações entre sujeitos da maioria das sociedades conhecidas. Desde suas origens, fortemente autoritários, até a atualidade, foram modificadas em aspectos importantes as posições de mulheres e de crianças que sempre formaram uma parte essencial das sociedades patriarcais. Tratava-se de seres a cargo desse Pai Todo-Poderoso, que deviam ser custodiados, ensinados e, eventualmente, punidos. O declínio do Pai é acompanhado pela emancipação da mulher e o reconhecimento dos direitos das crianças; junto à mudança dessas figuras, aparecem questões de peso que devem ser analisadas.

Este modelo está fortemente questionado nos dia de hoje e isto nos conduz a analisar, também, do que trata a função paterna desde um ponto de vista psicanalítico e se essa denominação é a mais adequada para referir-se aos conceitos que estão em jogo nesta questão. Sem dúvida nos encontramos na presença de uma série de amarrações, que aparecem como indissociáveis e que não poderiam ser questionadas nem desarticuladas, entre a função paterna e a ordem simbólica.

Se isto fosse assim, o declínio do pai, tal como é conhecido hoje em dia, conduziria inevitavelmente, para alguns autores, à queda de uma organização sociocultural na sua totalidade.

Neste marco, vamos sustentar que convém perguntar-se se é lícito falar em

uma ordem simbólica ou bem referir-se a diferentes ordens simbólicas cuja

construção pode variar. Certamente está implícita a problemática da produção da

subjetividade em diferentes tramas discursivas e socioculturais. Consideramos

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que isto implica incluir uma abertura a novos paradigmas e um forte compromisso com os pontos de debate que se apresentam na psicanálise contemporânea.

O declínio da função paterna. A função terceira

Na atualidade é comum ouvir falar da queda ou declínio da função paterna:

os discursos sobre o pai carente e sua decadência estão em voga. A ela se atribuem guerras, violências de todo tipo, abusos, a presença cada vez mais visível de diversidades sexuais e de gênero que atentariam contra o conceito de diferença sexual, diferentes tipos de apresentações clínicas (não neuróticas), a ameaça de perversões generalizadas e o império de um gozo sem limites, entre outras consequências. Poderia se dizer que há uma nostalgia de uma função paterna de caráter estrutural, que teria sido exercida simbolicamente em tempos passados com marcada efetividade e que atualmente se perdeu.

Trata-se de uma figura em crise desde o começo da modernidade, que está abrindo caminhos a outras organizações de exercício da parentalidade. Neste campo estão incluídas apresentações cada vez mais frequentes de famílias reconstituídas, monoparentais, homossexuais, entre outras. Isto se produz no marco de importantes mudanças nas relações de parentesco, regras de filiação e normas sexuais nas culturas atuais.

Encontramo-nos, pois, diante de uma primeira pregunta: perdeu-se ou talvez nunca tenha existido com a efetividade com que é levantada e tal como é imaginada? E, se existiu, como podemos constatá-la com certeza na história da humanidade desde a antiguidade até os dias de hoje, poderíamos afirmar que essa pregnância do pai não conseguiu evitar as crises sociopolíticas, os fatos de violência extrema, incestos, abusos de poder de todo tipo e os desafios às normas que as sociedades ditam sobre a diferença sexual. É neste sentido que podemos falar de uma nostalgia na qual está presente algo que nunca se teve.

Se nos resguardarmos de trabalhar desde a psicanálise com analogias sócio- históricas, assim como de tentar explicar grandes movimentos sociais com argumentos psicanalíticos (a psicanálise não é uma Weltanschaung), poderemos então pensar por que certas vertentes do campo psicanalítico sustentam tão fortemente, quase como uma explicação final e finalista, a explicação última de fenômenos sociais e individuais através da queda da função paterna.

Isto implica, como apontamos, abordar uma análise genealógica das origens

e fontes da noção de função paterna. Tentaremos fazê-lo a partir de duas portas de

entrada: desde o ponto de vista dos discursos e sistemas de significantes que a

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história da cultura nos oferece e desde o ponto de vista psicanalítico. A proposta é trabalhar com as possíveis oposições e relações entre ambos.

Sem dúvida, surge a questão de que, ainda pensada em um registro eminentemente simbólico, pode a função paterna desprender-se das conotações derivadas de uma sociedade patriarcal e androcêntrica, cujas características e origens têm sido suficientemente estudadas desde distintas disciplinas? Pode também desprender-se das conotações religiosas vinculadas ao Deus Pai?

Sem ir mais longe, recordemos que a Bíblia nos ensina que Eva surgiu de uma costela de Adão, na versão oficial e mais conhecida. Recordemos também que Aristóteles sustentava que o homem era a forma e a mulher o informe, que só no Concílio de Trento a Igreja reconheceu que a mulher tinha alma. Ou que Spinoza se perguntava se podia atribuir-se uma ética à mulher. Há inúmeros exemplos na história da cultura sobre a divisão dicotômica, hierárquica, dos sexos, exemplos que conduzem a pensar em como se construiu a figura do Pai com maiúscula, diferente dos pais das experiências cotidianas em suas diferentes vertentes e funções. Faz-se necessário distinguir entre o pai real, as funções simbólicas que eventualmente um pai pode cumprir e as múltiplas facetas do exercício da paternidade no amplo campo da parentalidade.

Se enfocarmos agora o ponto de vista psicanalítico, faz-se necessário analisar em quais elementos se baseia a proposta da necessidade de uma função paterna simbólica, na clínica e na teoria psicanalítica, para explicar o acesso de um sujeito a um universo simbólico. Isto pressupõe determinar quais são suas premissas e quais seus pontos cegos.

Freud dedica vários trabalhos ao tema do pai, entre eles O futuro de uma ilusão (Freud, 1927) e Moisés e o monoteísmo (Freud, 1939). Aponta claramente sua vinculação com os sentimentos religiosos e a necessidade da maioria dos homens e mulheres de sustentar-se nessas crenças frente ao desamparo e à indefensabilidade originários. O deus protetor, que, às vezes, pode ser vingativo e autoritário, é o Deus Pai. Apontamos que, para alguns autores, Freud é um ateu que analisa a necessidade neurótica das religiões assim como suas origens; para outros, entretanto, seus trabalhos mostram uma vertente religiosa no próprio Freud.

De qualquer maneira, o deslocamento do Deus Pai ao Pai com maiúscula é claro.

Ambos convergem e se sobrepõem e a maneira como é entendido tem consequências na clínica. Neste marco, surge a questão de se esta nostalgia do pai que aparece no campo psicanalítico é a nostalgia do Deus Pai.

Totem e tabu (Freud, 1913) entra na lista de artigos freudianos que propõem uma explicação mítica sobre a pregnância do pai nas sociedades androcêntricas.

Portanto, se o pensarmos como uma metáfora deste tipo de sociedade, podemos

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independizar essa necessidade de um mito fundacional dos desenvolvimentos culturais e normativos que regem a vida em comum? E nisto se inclui a psicanálise.

Em outras palavras, se faz necessário fazer uma releitura à luz das mudanças culturais, sociopolíticas, econômicas, éticas, que cada sociedade e seus discursos evidenciam.

O psiquismo não pode desligar-se das normas que ditam os discursos vigentes. Neste sentido, a função paterna constitui-se como tal, solidariamente com as sociedades patriarcais. E, neste sentido também, é uma construção historizável.

Levemos em conta que Freud nunca falou de função paterna (é um termo de tradição lacaniana), mas investigou a genealogia individual, cultural e coletiva da busca de um pai a partir dos sentimentos religiosos e dos mitos referidos aos pais fundadores, assim como falou dos efeitos da falta de pai, categoria distinta à de Pai com maiúscula. Para Mitchel & Rose (1982), Freud descreveu com precisão e justeza o sistema do patriarcado.

Da mesma forma, devemos perguntar-nos se há também a necessidade de sustentar um poder que estaria se perdendo. É necessário recordar que a função paterna é herdada do pater familiae e do Direito Romano. Isto foi sustentado durante séculos, apoiado em uma divisão hierárquica dos sexos na qual estavam implicadas relações de poder-domínio.

Há pautas discursivas e culturais em jogo que respondem a um determinado tipo de sociedade e que se sustentam em uma trama implícita de poderes, na qual tem papel importante a divisão público-privado. O espaço público, próprio dos homens, e o espaço privado, próprio das mulheres e dedicado fundamentalmente à reprodução: um modelo que entrou em crise. Bourdieu (1998) enfatiza que isto responde a relações de dominação entre os sexos. Aponta que a divisão do trabalho entre os sexos, que estudou nas sociedades de Cabilia, orienta toda a percepção do mundo, as crenças e as práticas, já que se inscrevem tanto nos corpos como nas mentes. Agrega que estas estruturas mentais estão presentes, de forma mais velada, nas sociedades ocidentais atuais. Trata-se de relações que se expressam nos discursos sociais e são performativas em alto grau. Neste ponto é necessário esclarecer que a performatividade nunca é absoluta, mas sempre está em relação com outros fatores em jogo.

Sem dúvida, aqui surge outro problema, que é a importância que outorgamos,

no campo psicanalítico, às mudanças que rapidamente estão acontecendo,

principalmente nas sociedades ocidentais, em relação ao lugar das mulheres, a

outros modelos de famílias diferentes do da família nuclear, ao forte crescimento

e difusão das biotecnologias e seu impacto nas maternidades e paternidades atuais,

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assim como às apresentações sexuais e de gênero que desafiam a noção de diferença sexual.

Aqui há duas opções: ou se considera que se trata de modas de uma época, que não mudam o que seria a essência da função paterna na psicanálise, ou também cabe perguntar-se se a psicanálise pode repensar algumas categorias que se encontram interpeladas.

Neste sentido, enfatizamos que a obra freudiana é profundamente interdisciplinar e isto aparece em seus escritos. Certamente se deve definir quais seriam os conceitos eixos que sustentam o campo psicanalítico. Para nós, o inconsciente, a sexualidade infantil, a transferência, são os grandes eixos dos descobrimentos freudianos, ainda quando interpretados em forma diferente pelos distintos marcos teóricos.

Recordemos brevemente que a pregnância ou entronização do pai foi desenvolvida e sustentada principalmente por Lacan (1955/56), com forte influência na França e em alguns países de fala hispânica A chamada escola inglesa não outorgou similar importância à função paterna nos termos descritos e, ao contrário, desenvolveu mais as características do espaço mãe-filho/a: o espaço transicional de Winnicott (1959), a mãe suficientemente boa, entre outros conceitos.

Com certeza estas duas grandes correntes, ainda com suas diferenças internas, respondem a distintas culturas nas quais os lugares do pai e da mãe e do homem e da mulher, diferem. Cada uma destas correntes deu mais preponderância a um eixo em detrimento do outro.

Todos sabem que, em um plano psicanalítico, o pai, pensado enquanto função paterna (porque obviamente pode não cumpri-la), responderia ao objetivo de separar o filho da mãe, de cortar essa relação que, para Lacan (1955/56), se centra em pensar o filho como falo da mãe, relação que somente a metáfora paterna poderia cortar. Dessa maneira, permitiria ao filho sua inserção em um universo simbólico, dando passagem à exogamia. Esta é uma concatenação de noções que aparentemente não se poderiam desarticular.

Sabemos também que, ao ser uma função, pode ser exercida por outros que não o pai, seja por ausência ou por deficiência do mesmo. Então, nestes casos, se trataria da função chamada paterna, mas exercida por outros. Aponta-se que, certamente, também pode exercê-la a mãe. É neste marco que poderemos perguntar-nos por que se denomina paterna se se trata de uma operação simbólica.

Aqui a resposta requer maiores precisões porque se levanta uma

problemática que é necessário abrir. Enfatiza-se que a mãe somente a pode exercer

sempre que o pai dite a lei, introduza a lei na mãe. Sem dúvida, isto coloca a mãe

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no lugar da natureza – uma mãe que retém o filho – e somente a intervenção da cultura, do Pai simbólico e interditor, poderia resgatá-lo de uma espécie de abraço mortífero.

Entretanto, há outra opção que, a nosso ver, também é necessário levantar:

que a mãe possa exercer essa função simbólica per se, que possa promover a separação do filho como um desejo próprio. Em outras palavras, reconhecer na mãe um sujeito com capacidades simbolizantes por si mesmo. Nesta linha, Benjamin (1995) levanta que há na mãe suficientes reservas simbólicas para poder exercer essa função.

Sem dúvida, isto implica muito mais do que o fato de que a mãe tenha internalizada a função paterna interditora. Implica a possibilidade de exercer uma função simbólica materna por direito próprio. Esta é, em nossa opinião, uma diferença substancial que corre no eixo da questão em relação com a bem conhecida dicotomia mãe/natureza por um lado e pai/simbólico/cultural, pelo outro. Supõe incluir os próprios desejos da mãe além do desejo de um filho-falo. Implica que, embora o filho possa ser filho-falo para a mãe em certos momentos, em outros pode ser um filho no sentido de um outro (Glocer Fiorini, 2001a).

Neste sentido, abordamos a subjetividade materna em toda sua complexidade, em forma multicêntrica e plural. Não há um só desejo, embora em certos momentos possa ser predominante. Pensamos que a maternidade implica um sujeito desejoso e simbolizante ao mesmo tempo, com capacidades de exercer operações simbólicas. Diferenciamos isto do conceito de corte que implicaria, como apontamos, sustentar a dicotomia mãe/natureza por um lado e pai/logos separador pelo outro. Em outras palavras, talvez pensar o filho em termos exclusivamente de filho-falo, que somente o corte paterno interditor pode separar da mãe, seja também um desejo normatizante que fixa a mulher/mãe no lugar da natureza nessa oposição natureza/cultura.

Entendemos que o que está em jogo são o campo narcisista e as possibilidades de resolução simbólica exogâmica da mãe. Se o domínio narcisista invade a subjetividade materna, o filho será exclusivamente filho-falo e será necessária uma função outra, chamada paterna em analogia com a estrutura da família nuclear e das figuras patriarcais, para efetuar uma separação necessária.

Opera-se na mãe sua própria resolução simbólica, o filho será mais que um filho- falo, será mais que uma compensação fálica frente à carência. Será um outro a quem ela poderá oferecer a possibilidade de separar-se com suas próprias reservas simbólicas. Neste caso, o dual será terceiro.

Se falharem as funções simbólicas maternas, certamente haverá problemas,

da mesma maneira que haverá problemas se falhar a função simbólica do pai, no

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caso de que o pai ou substituto não reconheça o filho como um outro. Por tudo isto, falar do pai simbólico é também falar da mãe e redefinir suas funções em um plano simbólico.

Isto não elimina a figura de um pai e suas funções simbólicas, mas sim fornece outras fontes para entender o acesso de um sujeito às legalidades da cultura e a diferentes universos de laços sociais. Por outro lado, permite focalizar outros aspectos de grande importância para se entender distintas funções que os pais possam cumprir e colocar em valor.

As divisões dicotômicas, natureza/cultura validadas na mãe/pai, acentuam os estereótipos das sociedades patriarcais: mãe fálica que se aferra ao filho sem soltá-lo e pai simbólico que efetiva um corte. A metáfora do crocodilo, levantada por Lacan, ilustra suficientemente esta posição.

Em outra publicação (Glocer Fiorini, 2001a e b) se havia abordado a necessidade de revisar a noção de desejo de filho na obra freudiana, gerada a partir de uma carência fundamental com a qual se enfrentaria a menina na fase fálica, a inveja do pênis. Se assim fosse, o filho seria sempre, por definição, filho- falo, seria uma compensação fálica, e somente uma operação cirúrgica permitiria o corte necessário mãe/filho. Embora isto possa ocorrer em certas formas de histeria, a feminidade e a sexualidade feminina transcorrem por caminhos muito mais complexos. Para avançar nesta problemática, tomamos o conceito de Deleuze (1977) do desejo como produção, como poiesis, e não originado na carência.

Afirma Deleuze que o desejo não se origina em nenhuma carência fundante, mas que a carência é o resultado do desejo como poiesis. Em nossa perspectiva, poderíamos sustentar que ambas as noções não se excluem e sua preeminência deve ser determinada em cada caso.

Avançando ainda mais, há de se resgatar o filho de um abraço mortífero?

Ou, como aponta Heritier (2007), antropóloga discípula de Levi-Strauss, o que está em jogo é a apropriação patriarcal do filho?

Então, se há suficientes reservas simbólicas, sublimatórias e criativas na mãe, esta pode cumprir essa função simbólica sempre que esteja posicionada além de um campo narcisista exclusivo. Isto é extensamente sabido, mas sempre é referido que o Pai introduz a Lei na mãe. Por isso manter a denominação função paterna é uma forma de universalizar o que é, na realidade, uma modalidade de conjetura simbólica amarrada a um determinado tipo de sociedade e de ideologia.

Se isto é assim, e esta é a minha hipótese, a função paterna deveria

denominar-se, com propriedade, função terceira, independentemente de quem a

exerça e além de dicotomias empobrecedoras. Poderá ser exercida e o é de fato

por pais e/ou mães ou outros substitutos, mas não depende de que um Pai com

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maiúscula introduza a Lei em outros, mas de que cada um possua suas próprias reservas simbólicas para exercer e introduzir uma legalidade que está além de uma figura proposta por uma determinada organização sociocultural e discursiva, ainda na sua vertente metafórica.

Para terminar, consideramos que o conceito de função terceira, simbólica, lhe dá verdadeira categoria de função autônoma de quem a exerça. Como apontamos, nisto estão incluídos não somente os substitutos do pai, que de fato existem, mas a possibilidade de que a mãe, por suas próprias capacidades simbólicas, possa exercer essa função de separação. Assim consideramos que continuar falando de função paterna, mesmo reconhecendo suas transformações nas sociedades atuais, somente desloca o problema.

A questão são as significações e conotações do significante paterno. A função paterna não é uma universal. O risco é essencializar o que é uma construção histórica. Por isso, entendemos que, mais do que falar de novas modalidades ou formas da função paterna, que eterniza algo que é contingente, deveríamos falar de novas modalidades de exercício de uma função simbólica.

Em outras palavras, estão mudando as modalidades de exercício de uma conjetura simbólica que, no curso da história, se identificou com o pai monárquico, feudal, e, logo, simbólico. A denominada função paterna é, então, uma forma de sustentar um poder que se perde ante a incerteza e angústia que estas mudanças possam gerar?

Finalmente, a questão da função paterna remete a outras noções que demandam ser repensadas: o acesso à diferença sexual, a centralidade da função fálica, o binarismo masculino-feminino, a conceitualização do complexo de Édipo, a problemática do poder, entre outras (Glocer Fiorini, 2001b).

Em síntese, estão em jogo:

a) A soldadura no campo psicanalítico da função paterna, pai simbólico ou metáfora paterna, com a estrutura das sociedades androcêntricas, patriarcais, legalizadas no marco do pater familiae do Direito Romano.

b) O debate nunca saldado entre a polaridade mãe/natureza versus pai/

cultura/logos separador. Poder desconstruir estas soldaduras permitiria sair dessas polaridades dicotômicas. Trata-se de uma divisão binária que se distancia das complexidades dos processos de subjetivação e das funções simbólicas como tais.

c) Neste recorrido se põe à prova se existe uma ordem simbólica, estrutural, eterna, e uma lei que marca a inserção de um sujeito na cultura, ou se deveríamos pensar que são esta ordem simbólica e esta lei o que está em questão.

Vivemos momentos de mudança, inclusive de caos eventual, que podem

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abrir a possibilidade de gerar novos ordenamentos simbólicos. A outra opção será nos eternizarmos em explicações reverberantes que eventualmente levariam a impasses.

Tampouco se trata de substituir o denominado poder paterno por um poder materno ou uma suposta feminização da cultura. Pelo contrário, é uma oportunidade para repensar certas respostas, já dadas, com o objetivo de explicar as funções simbólicas em uma trama complexa de categorias historizáveis, sem derivações nostálgicas em um passado perimido.

Com certeza a clínica mostra muitas variantes em relação às funções simbólicas necessárias para que um sujeito se inclua em um contexto de laços sociais. Poderão ser analisados somente no singular de cada caso. Entretanto, em nossa opinião e com estes resguardos, enfatizamos que a forma como se conceitualiza a função paterna tem efeitos no processo analítico. Faz-se necessário um trabalho de desconstrução que permita novas construções para poder redefinir termos e funções que incluam não somente outras formas de parentalidade, mas também diferentes itinerários do desejo e pluralidades identificatórias nos processos de subjetivação de cada sujeito em particular. Isto implica a revisão dos impasses clínicos que se possam produzir tanto nas formas clássicas da família nuclear como em outras modalidades de família, se não se abordar uma necessária revisão de certos conceitos soldados a ideologias que merecem ser superadas.

Estamos na presença de problemáticas que têm a ver com a constituição de outros modelos de família, outras apresentações sexuais e de gênero e, portanto, com a pergunta sobre como se exercem as funções simbólicas em relação aos processos de subjetivação. Certamente, se essas funções podem ser exercidas de acordo com as normas vigentes, é possível que, nesse aspecto, uma criança encontre facilitados seus processos de subjetivação em consonância com essas normas, embora isto nunca esteja assegurado. Toda criança – provenha de uma família heterossexual, homossexual ou de outras formas de organização familiar – pode ver-se enfrentada a estas problemáticas. Sempre há o risco de ficar excluído da trama sociocultural se não se responder às normas vigentes. Por isso se impõe reconsiderar as propostas teóricas que proporcionam explicações que aparecem como universais ou essenciais. As legalidades culturais – que não são uma – podem aportar elementos para exercer essas funções também através de personagens, grupos e ideais simbólicos alternativos.

A questão mais significativa é, em nossa opinião, que o reconhecimento da alteridade e da diferença esteja inscrito nos pais, ainda que sejam do mesmo sexo.

Havíamos levantado em outra publicação que a inscrição da diferença em um

sentido simbólico vai além da diferença anatômica e inclusive dos avatares da

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escolha de objeto (Glocer Fiorini, 2001b). A diferença entra em jogo em distintos níveis e categorias: anatômica, sexual simbólica, linguística, como escoamento significante, como fluxos cambiantes em um marco deleuziano, entre outras.

Afirmava Michel Tort (2005) que há o risco de que a psicanálise encarne a nostalgia do patriarcado. Entendemos que isto tem a ver com as soldaduras e cadeias de conceitos tratados como fundamentos universais, substanciais, que consideramos necessário desconstruir a favor de novas construções. O risco é reificar o simbólico enquanto próprio de um Pai com maiúscula. Neste sentido, as idealizações estão em jogo e tendem a obturar a angústia de castração. Prossegue Tort (2005) apontando que a especificidade da função paterna somente poderá se estabelecer no contexto de relações não hierárquicas entre os sexos.

Consideramos que o devir do sujeito requer outra concepção da construção da subjetividade na qual a lei não se lê como uma abstração estrutural, mas no contexto de uma historização necessária. É neste marco que a mudança de paradigma sobre a função paterna adquire primazia.

Abstract

Deconstructing the concept of paternal function: a questioned paradigm

The author develops a deconstruction work of the paternal function notion when

proposed as an essential element to separate the child from his mother and ensure

his inclusion in a symbolic universe. Some milestones that has a strong influence

on some psychoanalytic postulates, derived from the notion of patriarchy and its

links to the concept of paternal function are covered. It is enhanced the need for a

genealogical and historical analysis of this function. It emphasizes that the mother

has enough symbolic reserves to perform this function, without having to resort

to the explanation – of tautological character – that the Father dictates the Law

and introduces this function in the mother, so that she can exercise it. On the

contrary, it is a legality beyond a figure, even in its metaphorical aspect, proposed

by a socio-cultural and discursive organization. This proposal allows us to disrupt

the frequent homologation mother/nature versus father/culture/logos, which

separates, and to decentralize this dichotomy. It postulates that the father’s role is

a symbolic operation that should be called third function, regardless of who

performs it and beyond impoverishing dichotomies. Usually, the father exercises

it, but also the mother, or others, can do it, through their own symbolic reserves

and desires. The network that allows the exercise of thirdness in subjective

processes becomes, therefore, more complex. The consideration that the mother

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may also exercise this third function, symbolic, enriches the understanding of the constitution of the subject in a web of social ties.

Keywords: paternal function, third function, son-phallus, son-another symbolic- plural motherhood, desire of the son, nature/culture.

Resumen

Deconstruyendo el concepto de funcion paterna: un paradigma interpelado La autora desarrolla un trabajo de deconstrucción de la noción de función paterna en tanto es propuesta como un elemento esencial para separar al hijo de la madre y asegurar su inserción en un universo simbólico. Se recorren algunos hitos que derivan de la noción de patriarcado y sus eslabonamientos con la conceptualización de función paterna. Esto tiene fuerte influencia en algunas postulaciones psicoanalíticas. Se remarca la necesidad de efectuar un análisis genealógico e historizar esta función. Se enfatiza que hay en la madre suficientes reservas simbólicas para ejercer esa función sin recurrir a la explicación – de carácter tautológico – de que el Padre dicta la Ley e introduce esa función en la madre para que así ésta la pueda ejercer. Por el contrario, se trata de una legalidad que está más allá de una figura, aún en su vertiente metafórica, propuesta por una determinada organización socio-cultural y discursiva. Esta propuesta permite desarticular la frecuente homologación madre/naturaleza versus padre/cultura/

logos separador, y descentrar esa dicotomía. Se postula que la función paterna es una operatoria simbólica que debería denominarse con propiedad función tercera, independientemente de quién la ejerza y más allá de dicotomías empobrecedoras.

Habitualmente es ejercida por el padre, pero puede ser ejercida por la madre u otros, a través de sus propias reservas simbólicas y deseos. Se complejiza así la red que permite el ejercicio de la terceridad en los procesos de subjetivación.

Considerar que esa función tercera, simbólica, puede también ser ejercida por la madre enriquece la comprensión sobre la constitución del sujeto en un entramado de lazos sociales.

Palabras clave: función paterna, función tercera, hijo-falo, hijo-otro, maternidad

simbólica-plural, deseo de hijo, naturaleza/cultura.

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Recebido em 29/09/2015 Aceito em 07/01/2015

Tradução de Lucila Escardo

Revisão técnica de Kátia Ramil Magalhães

Leticia Glocer Fiorini Zapiola 1646, Piso 2

CABA 1426 – Buenos Aires – Argentina E-mail: lglocerf@intramed.net

© Revista de Psicoanálisis

Versão em português da Revista de Psicanálise – SPPA

Referências

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