• Nenhum resultado encontrado

A luz do pensamento habermasiano e de outras

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "A luz do pensamento habermasiano e de outras"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

R A C IO N A L lD A D E E E D U C A Ç Ã O '

yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

VERA ISABEL CABERLON··

RESUMO

A

luz do pensamento habermasiano e de outras contribuições teóricas, tenciona-se apresentar reflexões sobre o tema da racionalidade e seus desdobramentos na esfera educacional.

PALAVRAS-CHAVE: Racionalldade, educação.

Tematizar O pensar/agir educacional significa, antes de mais nada, considerar a Educação sob uma dimensão crítica, procurando deslocar o objetivo da formação de profissionais para além das demandas do mercado de trabalho. Tal projeto implica o desenvolvimento de um profissional que busque aliar

à

sua ação as potencialidades do exercício da cidadania, baseando seus pensamentos e suas ações em procedimentos crítico- reflexivos.

O desafio que se apresenta é o de como fazer isso pela via da Educação. Os obstáculos, concentrados na incompreensão de sua complexidade e na hesitação em superar as dificuldades que essa complexidade coloca, podem inviabilizar as iniciativas que buscam transformação.

Além disso, a Educação não pode ser vista como um corpo isolado do contexto social. Urge discuti-Ia em suas relações com o Estado, com as políticas que lhe são atinentes, bem como captá-Ia em sua dimensão institucionalizada, isto é, através das organizações nas quais toma forma.

Em vista disso, é mister entender a urdidura do processo educacional, vale dizer, discutir as racionalidades subjacentes

à

construção humana e social desse processo. Mas o que significa isso no contexto desta

·0 presente artigo configura uma versão condensada e parcialmente modificada de tópicos da 1a parte da dissertação de mestrado intitulada "O processo de produção de racionalidades e suas mediações: o Curso de Biblioteconomia da Universidade do Rio Grande em questão". '

. ··Professora do Curso de Biblioteconomia do Dep. de Biblioteconomia e História -FURG. Mestre em Educação pela UFRGS.

BIBlOS, Rio Grande, 8: 235 - 250, 1996.

(2)

reflexão? Significa, inicialmente, concepção(ões) de racionalidade.

problematizar a(s) própria(s)

A

R A C IO N A L lD A D E

Conforme Bombassaro (1992, p. 14), "". dizer do homem que ele

é

racional, marcado originariamente pela racionalidade, é o mesmo que atribuir-lhe a capacidade de poder dar razões, de poder argumentar . discursivamente". Mas, pergunta-se o autor, será que essa afirmação não

coloca o conceito de racionalidade como equivalente a uma habilidade lingüística ou comporta mental?

As possíveis respostas a essa questão remetem

à

atitude de recuperar o passado a fim de compreender e reelaborar o próprio conceito de racionalidade.

Uma leitura superficial sobre o assunto permite inferir que o debate sobre as qualidades e potencial idades do uso da razão atravessa os tempos da história da humanidade e chega aos dias atuais sob a crítica cerrada de teóricos que a ele se dedicam, tornando-o fonte inesgotável de estudo.

Das inúmeras contribuições possíveis de serem acolhidas, as quais já demonstram a complexidade do tema, optou-se por uma introdução quanto

à

formulação de concepções de racionalidade levantadas por Bombassaro 1 no âmbito da epistemologia contemporânea. Aspectos de seu pensamento são aqui sintetizados, com vistas a explicitar coordenadas que auxiliem a situar as leituras que alguns teóricos da atualidade fazem em relação ao tema da racionalidade.

Assim, numa visão panorâmica, Bombassaro categoriza a racionalidade sob uma concepção "criterial" e sob uma concepção "não-criterial". A primeira, inserida na "tendência analítica", e a segunda, assumida pela "tendência histórica" da epistemologia.

Na concepção "criterial", sob o manto epistemológico de "tendência analítica", a questão da racionalidade é tratada sob o prisma filosófico que se identifica com o racionalismo moderno, cujo representante mais significativo é o Círculo de Viena":

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

D e a c o r d o c o m e s t e p o n t o d e v is t a ,

a

r a c io n a lid a d e c o n s is t ir ia

n u m p r o c e d im e n t o d e ju s t if ic a ç ã o d e n o s s o c o n h e c im e n t o , d e

n o s s a s c r e n ç a s e d e n o s s a s a ç õ e s , p r o c e d im e n t o r e a liz a d o

1 Para embasamento dessas concepções, Bombassaro faz uso da seguinte obra:

PUTMAM, Hilary. R e a s o n , T r u t h a n d H is t o r y . C a m b r id g e : Cambridge University Press, 1981. ,

2 O Círculo de Viena, com teóricos como Carnap e Popper, entre outros, e

considerado por Bombassaro como o representante "mais fiel" da "tendência analítica".

236 BIBlOS. Rio Grande, 8: 235 - 250, 1996.

---,

c o m b a s e e m u m s u p o s t o c o n ju n t o d e c r it é r io s f ix o s e

im u t á v e is , q u e g a r a n t ir ia m

a

v e r d a d e e

a

v a lid a d e u n iv e r s a l d a q u ilo q u e a f ir m a m o s , c r e m o s o u f a z e m o s (Bombassaro,

1992, p. 48).

Esses critérios fixos e imutáveis, universalizados, seriam fornecidos mediante o rigor metodológico defendido pela filosofia empirista e positivista. Porém, essa filosofia, ao deparar-se com seus próprios limites, dados pela inexistência de análise das conseqüências práticas oriundas da aplicação de seus critérios, conseguiu produzir somente uma "concepção parcial da racionalidade" e, portanto, insuficiente.

Na concepção "não-criterial" de racional idade incorporada ao contexto epistemológico de "tendência histórica", o tratamento dado

à

racionalidade considera uma das três vertentes teóricas dessa tendência", surgidas ao final da primeira metade deste século: a "nova filosofia da ciência". Segundo os princípios dessa vertente, vinculados

à

"íncomensurabilidade'", haveria uma racionalidade sem critérios, o que é impossível de ser sustentado, pois o conhecimento do mundo e as interpretações que dele procedem não são alheias ao que cada indivíduo entende ser ou não razoável. Assim, a concepção não-criterial de racionalidade também é refutada.

Para Bombassaro, a refutação das duas principais concepções de racionalidade produzidas pela filosofia da ciência deste século invoca o debate sobre a existência de uma concepção de racionalidade mais ampla. Nesse sentido; informa que pelo menos três teóricos contemporâneos estão empenhados em tratar o tema da racionalidade para além dos limites do objetivismo e da irnponderabilidade do relativismo: Hilary Putnam, Richard Rorty e Jürgen Habermas.

Putnam, ao propor uma concepção de racional idade como "aceitabilidade racional", procura encontrar um "ponto de equilíbrio" entre as duas concepções acima referidas, incorporando elementos éticos por elas desconsiderados. Com isso, sua proposta caracteriza-se

3 Bombassaro enumera as três vertentes teóricas da "tendência histórica" da epistemologia como a da (a) "nova filosofia da ciência" (com representantes como Lakatos, Kuhn e Feyerabend, entre outros), a de (b) "negação da tendência analítica" (com Bachelard, Canguilhem e Foucault) e a da (c) "escola de Frankfurt" (especialmente com Adorno e Habermas).

4 A tese da incomensurabilidade, sustentada pela preeminência dos contextos sócio-históricos sobre seus aspectos lógicos, defende o princípio da inexistência de padrões decisivos/estáticos para comensurar épocas e culturas diferentes. Essa posição tem suscitado Controvérsias na epistemoloqla contemporânea, pois ... criou condições para a introdução das Suspeitas de irracionalismo e relativismo no contexto da 'tendência histórica'" (Bombassaro, 1992, p. 58).

(3)

. . . p e la a f ir m a ç ã o d e q u e

yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

a r a c io n a lid a d e e a v e r d a d e são

p r o d u z id a s p o r s e r e s h u m a n o s c o n c r e t o s , q u e ao in v e s t ig a r

a

r e a lid a d e ,

ao

in t e r p r e t a r

o

m u n d o n o q u a l e s t ã o s it u a d o s , d ã o p o r p r e s s u p o s t a u m a b a s e c o m u n ic a t iv a (Bombassaro, 1992,

p.72).

Rorty, qualificando as concepções de racionalidade instituídas na epistemologia como uma versão parcial e fragmentada da realidade, entende que é necessário transcender a epistemologia, complementando-a pela via da "conversação hermenêutica", isto é, tratar a objetividade do conhecimento na esfera do diálogo compartilhado.

Habermas, ao expor sua "teoria da ação comunicativa", instaura uma concepção "procedural" (processual) de racionalidade. Criticando a estreiteza da dimensão estratégico-instrumental, na qual o uso da razão se dá somente para escolha dos meios visando os fins pretendidos, a racionalidade comunicativa de Habermas contempla aspectos que se inserem nos planos "ético-normativos" (valores/normas) e "estético -expressivos" (estético-subjetivos), valorizando procedimentos argumen-tativos e a cooperação interdisciplinar.

Guardadas as diferenças dessas contribuições teóricas, Bombassaro ressalta que o ponto de convergência que as reúne é a concepção ética de racionalidade, fundada num processo efetivo de comunicação e vinculada a um mundo prático tecido historicamente.

É justamente nesse sentido que Jürgen Habermas tem envidado esforços: elaborar uma teoria da racionalidade baseada na competência comunicativa que se instala no diálogo intersubjetivo da prática social.

Sob essa ótica, a análise das concepções de racionalidade desenvolvidas pela epistemologia contemporânea, evidencia a necessidade de tratar a questão de forma a libertá-Ia das rédeas opressoras e parciais da ciência hipostasiada:

. . . a c e it a r q u e

a

r a c io n a lid a d e s e ja s o m e n t e p o s s í v e l n a m e d id a

em q u e e x is t a a c iê n c ia , q u e se lim it a a s it u a ç õ e s

c ir c u n s t a n c ia is e a d e s c r iç õ e s f r a g m e n t á r ia s d a r e a lid a d e , é

t a m b é m p e r d e r d e v is t a o c a r á t e r u n iv e r s a lí s t ic o d a r a z ã o . Se

p o d e e x is t ir u m a c o n c e p ç ã o m a is a m p la d a r a c io n a lid a d e , e la ,

c e r t a m e n t e , n ã o d e v e r á f ic a r r e s t r it a a o s r e s u lt a d o s d a s

in v e s t ig a ç õ e s r e a liz a d a s p e lo s f iló s o f o s d a c iê n c ia . D e s t e

m o d o ,

a

c ie n t if ic id a d e n ã o d e v e s e r c o n s id e r a d a s in ô n im o d e

r a c io n a lid a d e

e a

c iê n c ia p o d e r á s e r , n o m á x im o , u m a d a s m ú lt ip la s v o z e s d a r a z ã o (Bornbassaro, 1992, p. 67) (grifo VIC).

238 BIBLOS, Rio Grande. 8: 235 - 250, 1996.

Essa concepção, que condiz com o pensamento desta autora, importa em acolher o tema da razão e da racionalidade desde uma perspectiva que, mesmo considerando o peso de seu caráter instrumentalista, não descarta a possibilidade de seu exercício no plural.

Para isso, esta reflexão apóia-se nas idéias de Jürgen Habermas, pensador alemão contemporâneo da Escola de Frankfurt que, na busca da elaboração de uma teoria crítica da sociedade, põe em questão o positivismo científico e filosófico e o objetivismo tecnocrático resultante, introduzindo o paradigma da "razão comunicativa".

A trajetória do pensamento habermasiano, demasiado complexa para ser esgotada em poucas linhas, precisa, porém, ser tratada de forma a possibilitar a compreeensão dos motivos que levaram Habermas a propor a recuperação do uso da razão e da racionalidade em patamares diferenciados de teóricos que se inclinavam a considerá-Ias o epicentro das patologias sociais de forma absolutizada e centrada na razão instrumental.

Habermas procura fundamentar sua posição partindo da refutação às concepções que dão sentido autofágico à razão:

A p r ó p r ia r a z ã o d e s t r ó i

a

h u m a n id a d e q u e e la m e s m a p o s s ib ilit o u - e s t a t e s e , d e v a s t o a lc a n c e ,

é (...)

f u n d a m e n t a d a

( . . .) p e lo f a c t o d e op r o c e s s o d o ilu m in is m o se d e v e r , d e s d e os

s e u s p r im ó r d io s ,

ao

im p u ls o d e a u t o p r e s e r v a ç ã o q u e m u t ila

a

r a z ã o p o r q u e só a r e c la m a em f o r m a s d e d o m in a ç ã o d a

n a t u r e z a

e

d o in s t in t o o r ie n t a d a p a r a f in s , 'ju s t a m e n t e c o m o r a z ã o in s t r u m e n t a l. I s t o n ã o d e ix a a in d a d e m o n s t r a d o q u e

a

r a z ã o - a t é a o s s e u s p r o d u t o s m a is t a r d io s , à c iê n c ia m o d e r n a ,

às r e p r e s e n t a ç õ e s ju r í d ic a s e m o r a is u n iv e r s a lis t a s e à a r t e a u t ó n o m a - p e r m a n e c e s u b m e t id a ao d it a m e d a r a c io n a lid a d e

o r ie n t a d a p a r a f in s (Habermas, 1990a, p. 113).

Assim, ao retomar a racionalidade como conceito-chave para uma teoria social, Habermas pretende cultivar significados que ainda não foram esgotados, como diz Freitag (1989, p. 14) ao entrevistá-Ia para a R e v is t a T e m p o B r a s ile ir o :

(Os) p o t e n c ia is d e r a c io n a lid a d e a in d a n ã o t iv e r a m o p o r t u n id a d e d e r e a liz a r - s e in t e g r a lm e n t e . E m v e z d e c o la b o r a r

c o m a destruição da razão s e r ia m a is c o n s t r u t iv o r e f le t ir as

d im e n s õ e s a in d a n ã o r e a liz a d a s d o id e a l d a r a z ã o , a b a n d o n a r

o

b e c o s e m s a í d a d a f ilo s o f ia d a c o n s c iê n c ia

e

a v a n ç a r p a r a u m a r a z ã o c o m u n ic a t iv a m e d ia n t e

a

q u a l nichos de razão p o d e r ia m s e r m e lh o r e x p lo r a d o s

e

a m p lia d o s

BIBLOS. Rio Grande. 8: 235 - 250. 1996.

(4)

Em termos habermasianos, ocorre a compreensão da necessidade de deslocar a concepção de racionalidade de sua dimensão monológica e cognitivo-instrumental, centrada no indivíduo e no distanciamento deste para com a sociedade, para as esferas do coletivo e da interação cooperativa abrindo perspectivas para a reelaboração das patologias da sociedad~ contemporâneas Nessa perspectiva, Habermas assume o paradigma da filosofia da linguagem, no qual "as relações entre linguag~m e mundo, entre proposição e estado de coisas, substituem as relações sujeito-objeto" (Habermas, 1990b, p. 15).

A passagem da filosofia da consciência para a filosofia da

linguagem, a chamada "guinada lingüística",

é

motivada pela

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

c o n v ic ç ã o d e q u e a lin g u a g e m f o r m a o m e io p a r a as

e n c a r n a ç õ e s c u lt u r a is

e

h is t ó r ic a s d o e s p í r it o h u m a n o

e

q u e u m a a n á lis e m e t o d ic a m e n t e c o n f iá v e l d a a t iv id a d e d o e s p í r it o

n ã o d e v e c o m e ç a r p e lo s f e n ô m e n o s d a c o n s c iê n c ia

e

s im p e la s

suas e x p r e s s õ e s lin g ü í s t ic a s (Habermas, 1990b, p. 170- 171).

A intenção de Habermas

é

a de tornar aceitável um conceito de "razão incorporada à linguagem" mediante a teoria do agir comunicativo:

C o m e f e it o ,

a

t e o r ia d o a g ir c o m u n ic a c io n a l e s t a b e le c e u m a

r e la ç ã o in t e r n a e n t r e p r á x is

e

r a c io n a lid a d e . E la in v e s t ig a

os

p r e s s u p o s t o s d e r a c io n a lid a d e d a p r á x is c o m u n ic a c io n a l

q u o t id ia n a e e le v a o c o n t e ú d o n o r m a t iv o d o a g ir o r ie n t a d o p a r a a

c o m p r e e n s ã o m ú t u a à c o n c e p t u a lid a d e d a r a c io n a lid a d e

c o m u n ic a c io n a l (Habermas, 1990a, p. 81).

Isso significa dizer que sua razão, mais ampla, tem na base a relação entre sujeitos, entre "linguagem e mundo", entre "proposição e estado de coisas" (razão centrada na comunicação/ filosofia da linguagem). Essa "razão comunicativa" se contrapõe e se coloca como alternativa à relação sujeito-objeto (razão centrada no sujeito/filosofia da consciência), recolocando a discussão da "unidade da razão na multiplicidade de suas vozes" (Habermas, 1990a, b).

Entretanto, a racionalidade, em Habermas,

é

emoldurada, também,

por outros horizontes.

Situando suas teses sobre o lastro de um "processo de

5 Habermas (1990a, p. 319) diz que "(os) traços patológicos das sociedades

modernas condensam-se em figuras na medida em que se torna visível uma preponderância

das formas econômicas e burocráticas ou, em geral, cognitivo-instrumentais da racionalidade".

240 BIBLOS, Rio Grande, 8: 235 - 250, 1996.

modernidade", isto é, uma modernidade em andamento, Habermas, em entrevista concedida a Freitag (1989, p. 16), procura responder aos desafios apontados pela crítica da modernidade:

o

f a t o d e q u e e s t e ja m o s c a d a v e z m a is lo n g e d a s o r ig e n s d a m o d e r n id a d e , n o s é c u lo 18, n ã o s ig n if ic a q u e p o s s a m o s

d e s p r e n d e r m o - n o s d o s s e u s c o n t e ú d o s n o r m a t iv o s .

Se o

h o r iz o n t e d a m o d e r n id a d e se d e s lo c a , is s o a in d a n ã o q u e r d iz e r

q u e e s t e ja m o s f o r a d e le . A c r f t ic a d a m o d e r n id a d e v iv e d o s

p a d r õ e s d e s s a mesma m o a e r n k ie d e .

Para Habermas, a partir de Max Weber e sua teoria da racionalização da socíedade", o conceito de racionalidade torna-se fundamental para a construção de uma teoria da sociedade e, por conseguinte, para o desenvolvimento da interpretação da modernidade.

Com esse escopo, Habermas, na esteira de sua "teoria comunicativa", constrói o "discurso filosófico da modernidade". Para tal, busca fundamentação em Hegel como o primeiro filósofo que desenvolve um "conceito preciso de modernidade" e que proporciona a possibilidade de compreensão do significado da relação "interna" entre modernidade e racional idade.

Na leitura efetuada por Habermas, Hegel defronta-se com a problemática da "autocertificação" (autofundamentação) da modernidade, colocando a "subjetividade" como o "princípio dos tempos modernos", em que a "liberdade" e a "reflexão" são suas características fundamentais."

Porém, mesmo que em sua teoria fique visível a "constelação conceptual" entre modernidade, consciência do tempo e racionalidade, Hegel não consegue resolver o problema da autocertificação da modernidade e acaba por destruir essa constelação. Isso porque a racionalidade, " ... dilatada até espírito absoluto, neutraliza as condições sob as quais a modernidade adquiriu uma consciência de si mesma". (Habermas, 1990a, p. 50).

Essa constatação leva Habermas a afirmar que o tratamento do tema "modernidade" nos tempos pós-hegelianos só

é

possível se,

6Weber descreve como racional o processo de "profanização da cultura ocidental", gerado pelo "desencanto" proveniente da desintegração das concepções religiosas e rnetafísicas, e, principalmente, o desenvolvimento das "sociedades modernas", onde as estruturas sociais são marcadas pela cristalização da racionalidade instrumental decorrentes das esferas da economia e do estado (Habermas, 1990a).

7A referência ao pensamento hegeliano é exposta com o intuito de observar o

Percurso empreendido por Habermas para confrontar a recepção absolutizada de

racionalidade, não pretendendo, portanto, esmiuçar a complexidade da filosofia de Hegel.

(5)

observadas as decorrências da recepção da razão como saber absoluto conceber-se o conceito de razão de um modo mais modesto (Habermas'

1990a). '

Habermas entende que a censura feita pelos críticos da modernidade tem sido sempre a mesma "". desde Hegel e Marx até Nietzsche e Heidegger, desde Bataille e Lacan até Foucault e Derrida".

Os

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

f iló s o f o s d a m o d e m id a d e , t a l q u a l d e t e c t iv e s n o e n c a lç o d a r a z ã o n o d o m í n io d a h is t ó r ia , p r o c u r a m op o n t o c e g o em q u e o

in c o n s c ie n t e se in s t a la n a c o n s c iê n c ia , em q u e

o

q u e f o i e s q u e c id o se in t r o d u z f u r t iv a m e n t e

ria

m e m ó r ia , em q u e

o

r e t r o c e s s o se m a s c a r a d e p r o g r e s s o e

a

d e s a p r e n d iz a g e m d e p r o c e s s o d e a p r e n d iz a g e m (Habermas, 1990a, p. 63).

A censura volta-se para uma razão centrada na subjetividade, uma razão que é denunciadora, manipuladora e dissimulada, uma razão "tornada positiva".

Mas, se as várias correntes que se ocupam da crítica

à

modernidade estão de acordo quanto à racionalidade que lhe é peculiar, onde reside o elemento diferenciador que as torna concorrentes?

A diferença, para Habermas, está nas estratégias adotadas para superar o "positivismo da razão", o que o faz, nessa perspectiva, desenvolver uma análise exaustiva da trajetória multifacetada do pensamento voltado para a crítica da modernidade e das recepções de razão/racionalidade, propondo revitalizá-Ias.

Através do paradigma da "razão comunicativa", em que a linguagem detém o papel estratégico de articuladora da diversidade do pensamento humano, Habermas procura privilegiar, segundo Siebeneichler (1989, p. 175), "". não o enfoque objetivizador, através do qual o sujeito procura orientar-se com relação a si mesmo e com relação aos objetos e entidades no mundo, mas o enfoque performativo do entendimento intersubjetivo entre sujeitos capazes de falar e de agir".

Ao resgatar novos horizontes para a racionalidade, Habermas resgata, também, suas vinculações ao mundo da vida (traduzido pela lógica do cotidiano, pelas relações espontâneas, pelas certezas não-problematizadas) e ao mundo sistêmico (traduzido pelos complexos de ação - Estado e Economia - que, autonomizados do processo comunicativo, são regulados pela racionalidade instrumental).

O

mundo da vida estrutura-se através de "tradições culturais" (cultura), de "ordens institucionais" (sociedade) e de "identidades criadas através de processos de socialização" (personalidades) que se entrecruzam:

242 BIBLOS, Rio Grande, B: 235 - 250, 1996

A p r á t ic a c o m u n ic a t iv a c o t id ia n a , n a q u a l

o

m u n d o d a v id a e s t á

c e n t r a d o , a lim e n t a - s e d e u m 'jo g o c o n ju n t o " , r e s u lt a n t e d a

r e p r o d u ç ã o c u lt u r a l, d a in t e g r a ç ã o s o c ia l

e

d a s o c ia liz a ç ã o ,

e

e s s e jo g o e s t á , p o r s u a v e z , e n r a iz a d o n e s s a p r á t ic a

(Habermas, 1990b, p. 100).

Enquanto o mundo da vida, como "esfera das auto-evidências cotidianas", serve de pano de fundo para a ação comunicativa, que é intencional e tem como preocupação a coordenação. de ações voltadas para .0 ent-endimento via linguagem,

o

mundo sistêmico, envolvendo os sistemas

político (via do poder) e econômico (via do dinheiro), caracteriza-se pela ação instrumental que se dirige para a coordenação das "conseqüências das ações, independentemente das intenções dos atores" (Rouanet, 1992, p. 161). Para Habermas, a esfera sistêmica, com sua racionalidade objetificante, "coloniza" o mundo da vida. A inquietação que disso decorre provoca-o no sentido de saber como viver sem se instrumentalizar e leva-o a fazer uma nova leitura de Weber.

Conforme o pensamento weberiano, a prevalência do poder burocrático racional, proveniente da crescente institucionalização do mundo hodierno segundo padrões formais (vale dizer, maior eficiência com menor custo), é decisiva para a sedimentação de percepções e vivências fragmentadas e conformistas de um mundo sob o domínio da "expectativa de resultados".

De acordo com Ramos (1981, p. 125), Weber compreendeu a singularidade da sociedade moderna na medida em que nela "". a organização formal (burocracia) se tornou um modelo social fundamental, e sua racionalidade calculista imanente passou a ser o padrão dominante da racionalidade para a existência humana".

Nesse sentido, o diagnóstico weberiano da modernidade não deixa dúvidas. A erosão da liberdade e do sentido da vida é inevitável e é causada pela racionalização da sociedade e da cultura ocidental:

A s n o v a s e s t r u t u r a s s o c ia is e s t ã o m a r c a d a s p e la d if e r e n c ia ç ã o

d e s s e s d o is s is t e m a s , in t e r lig a d o s d e m o d o f u n c io n a l, q u e se

c r is t a liz a r a m em v o lt a d o c e m e o r g a n iz a t ó r io d a e m p r e s a

c a p it a lis t a

e

d o a p a r e lh o b u r o c r á t ic o d o E s t a d o . E s t e

é

u m p r o c e s s o q u e W e b e r e n c a r a c o m o

a

in s t it u c io n a liz a ç ã o d e u m a g ir e c o n ó m ic o

e

a d m in is t r a t iv o t e le o - r a c io n a l. N a m e s m a m e d id a em q u e o q u o t id ia n o f o i a r r e b a t a d o p o r e s t a

r a c io n a liz a ç ã o c u lt u r a l e s o c ia l d is s o lv e r a m - s e ig u a lm e n t e as

formas

de

vida t r a d ic io n a is , q u e n o p r in c í p io d a m o d e m id a d e

se d if e r e n c ia v a m s o b r e t u d o em f u n ç ã o d o s m is t e r e s e x e r c id o s

BIBLOS. Rio Grande, B: 235 - 250, 1996.

(6)

s e d if e r e n c ia v a m s o b r e t u d o

yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

em f u n ç ã o d o s m is t e r e s e x e r c id o s

(Habermas, 199Ga, p. 14).

Conforme Habermas (1989(b), p.38G), Weber acessa as estruturas de racionalidade em dois níveis: um, representando as "estruturas das imagens de mundo"; outro, representando as "competências de ação". O problema, porém, reside no fato de que Weber " ... no elabora una sistemática de Ias esferas de valor ni de los procesos de racionalización relativos a Ias subsistemas sociales".

É, portanto, a ênfase na concepção de racionalidade basicamente sob o aspecto dos "fins calculados", suspensos de seus valores éticos, com peculiaridades funcionais, que conduz Weber a se descuidar das possibilidades que se desenham quando trata superficialmente da racionalidade substantiva, que reflete sobre fins e valores livres de expectativas de sucesso, estabelecendo uma "falsa alternativa" de oposição entre "racionalidade substancial e formal" (Habermas, 199Ga).

As reflexões encaminhadas com base no pensamento weberiano, bem como no de outros tantos teóricos revisitados por Habermas, levam-no a afirmar que houve uma "despedida precipitada" da modernidade. Afirma, igualmente, que o processo de fragmentação da razão na sociedade moderna deve ser visto como algo positivo, isto é, como uma chance de recepção da razão em forma plural, em que a idéia de emancipação do homem pelo esclarecimento e pela formação racional da identidade dos sujeitos humanos e das coletividades pode ser via de passagem para o esclarecimento da crise da sociedade contemporânea (Siebeneichler, 1989).

Essa concepção de razão/racionalidade permite que Habermas, no processo de construção de sua teoria, enuncie a possibilidade de "descolonização" do mundo vivido, ou seja, de recuperação dos espaços do mundo da vida que foram invadidos pela esfera sistêmica.

Para isso, e observando a associação da racionalidade mais ao emprego do saber do que, propriamente,

à

sua posse, Habermas distingue a "racionalidade orientada para um fim" da "racionalidade orientada para o entendimento", pondo em relevo o conceito de "ação social" ou "interação" que exige relações interpessoais mediadas pela linguagem:

A s r e d e s d e in t e r a ç ã o d e g r u p o s m a is o u m e n o s in t e g r a d o s d o

p o n t o d e v is t a s o c ia l, m a is o u m e n o s c o e s o s s o lid a r ia m e n t e , s 6

s e f o r m a m

a

p a r t ir d a s a ç õ e s d e c o o r d e n a ç ã o d e s u je it o s q u e a g e m c o m u n ic a t iv a m e n t e . N o e n t a n t o , s e d e s c r e v ê s s e m o s a s

p e s s o a s c o m o portadoras d e s s a s r e d e s d e in t e g r a ç ã o ,

a

d e s c r iç ã o s e r ia f a ls a .

O

in d iv í d u o e a s o c ie d a d e c o n s t it u e m - s e

r e c ip r o c a m e n t e . T o d a

a

in t e g r a ç ã o s o c ia l d e c o n ju n t o s d e a ç ã o

244 BIBLOS. Rio Grande. 8: 235 - 250.1996.

é s im u lt a n e a m e n t e u m f e n ô m e n o d e s o c ia liz a ç ã o p a r a s u je it o s

c a p a z e s d e a ç ã o

e

d e f a la , o s q u a is s e f o r m a m n Ó in t e r io r d e s s e p r o c e s s o e, p o r s e u t u r n o , r e n o v a m e e s t a b iliz a m a

s o c ie d a d e c o m o

a

t o t a lid a d e d a s r e la ç õ e s in t e r p e s s o a is le g it im a m e n t e o r d e n a d a s (Habermas, 199Gb, p.1

G1).

Tal conceito apresenta diferenciações conforme a utilização dada para a linguagem. A interação em que

a

linguagem serve de meio para a transmissão de informações define o agir estratégico, enquanto a interação em que a linguagem serve também como fonte de integração social caracteriza o agir comunicativo (Habermas, 199Gb).

A partir dessa posição, é pertinente detalhar as diferenças entre ação instrumental, ação estratégica e ação comunicativa.

As duas primeiras estão situadas como ações orientadas pelo êxito, pelo sucesso. Uma (a instrumental) não é ação social, mas pode a ela estar associada, obedece regras técnicas e tenta intervir no mundo objetivo. Outra (a estratégica) é uma ação social, segue regras de escolha racional e tenta influir sobre as decisões do interlocutor (Habermas, 1.99Gb).

Já a ação comunicativa, como ação social voltada para o entendimento, deve, por essa razão, observar supostos singulares:

I

N u m a a t it u d e o r ie n t a d a p a r a

o

e n t e n d im e n t o m ú t u o ,

o

f a la n t e e r g u e c o m todo p r o f e r im e n t o in t e lig í v e l as s e g u in t e s p r e t e n s õ e s :

- q u e

o

e n u n c ia d o f o r m u la d o

é

v e r d a d e ir o ( o u , c o n f o r m e

o

c a s o , q u e as p r e s s u p o s iç õ e s d e e x is t ê n c ia d e u m c o n t e ú d o

p r o p o s ic io n a l m e n c io n a d o s ã o a c e r t a d a s ) ;

- q u e

o

a t o d e f a la é c o r r e t o r e la t iv a m e n t e

a

u m c o n t e x t o n o r m a t iv o e x is t e n t e ( o u , c o n f o r m e

o

c a s o , q u e

o

c o n t e x t o n o r m a t iv o q u e e le r e a liz a ,

é

e le p r ó p r io le g í t im o ) ;

e

- q u e

a

in t e n ç ã o m a n if e s t a d o f a la n t e

é

v is a d a d o m o d o c o m o

é

p r o f e r id a (Habermas, 1989a, p. 167-168).

Ademais, o processo de entendimento, explicitado nas pretensões de validez (verdade/justiça/veracidade) acima apontadas, requer que estas pretensões sejam criticáveis e dependam, como diz Habermas (199Gb, p. 124), de " ... reconhecimento intersubjetivo através do falante e do ouvinte", devendo ser estas resgatadas através de razões argumentadas. Esse procedimento argumentativo (problematização) significa que houve um movimento de passagem do mundo da vida para o mundo do discurso envolvendo o questionarnento de fatos (mundo objetivo), normas (mundo Social) e vivências (mundo subjetivo).

j-~._----'---~---~'61.JOTECA

91bHO'IIiJoII de

a&~

Hvmllmu • ~.

BIBLOS, Rio Grande, 8: 235 - 250. 1996.

(7)

A racionalidade concebida pela ótica habermasiana acena para modos diferenciados de conceber as interações humanas. Dessa forma favorece, também, diferentes concepções das estruturas sociais onde ocorrem essas interações.

É sob esses horizontes que a educação, como componente dessas estruturas sociais, é contemplada a seguir.

A

R A C IO N A L lD A D E E E D U C A Ç Ã O

No estudo "A teoria da educação no conflito das racional idades" Oliveira (1987, p. 4) aponta o caráter instrumental da ciência modern~ marcando intensamente a atual situação da educação, em que " ... a complexidade do real é submetida a um esquema de simplificação, para tornar sua manipulação possível".

Essa consideração leva a pensar a educação em suas bases teórico-práticas. Para tanto, é necessário tentar esclarecer as próprias relações que se constroem entre teoria e prática, exigindo o discernimento entre uma e outra e entre as várias formas que são utilizadas para concebê-Ias e distingui-Ias.

A visão dessas relações como exercício de conhecimento da realidade que é objeto de transformação pressupõe a necessidade do desvelamento de como se dá essa transformação, levando em conta não só o conhecimento teórico da prática vivenciada na trajetória histórica dessa realidade, mas também um conhecimento antecipativo acerca da mesma (Vazques, 1990).

Essa consideração significa ultrapassar o enfoque positivista de conhecimento, isto é, um conhecimento acumulativo, objetivista e neutro, desligado de ideologias e juízos de valor cuja ação racional estaria vinculada aos pressupostos metodológicos impessoais das ciências naturais, para entendê-Io como produção (enquanto atividade intelectual) e produto (enquanto resultado concreto dessa atividade) social, ou seja, uma ação, tanto individual como coletiva, partilhada objetiva e intersubjetivamente pelo homem/ser histórico em uma realidade social historicamente determinada (Bombassaro, 1992).

Ao mesmo tempo, se, por um lado, a teoria se coloca como correspondência às exigências e necessidades de uma prática já existente, fundamentando e enriquecendo essa prática, por outro, possui um elemento antecipativo diante de uma prática ainda inexistente ou em projeto.

Essa dupla dimensão da relação teoria/prática' não quer dizer que o teórico somente derive da prática ou que ele necessariamente implique ou reflita a prática:

246 BIBLOS, Rio Grande, B: 235 • 250, 1996.

Se

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

t r a t a d e q u e , a i s o m e t e r a u n a r e c o n s id e r a c ió n r a c io n a l I a s c r e e n c ia s

y

ju s t if ic a c io n e s d e I a s t r a d ic io n e s e x is t e n t e s

y

e n

u s o , I a t e o r í a in f o r m e

y

t r a n s f o r m e I a p r á c t ic a , a i in f o r m a r

y

t r a n s f o r m a r I a s m a n e r a s e n q u e I a p r á c t ic a se e x p e r im e n t a y

e n t ie n d e . E s d e c ir q u e n o h a y t r a n s ic ió n d e I a t e o r í a

a

I a p r á c t ic a c o m o t a l, s in o m á s b ie n d e 1 0 ir r a c io n a l

a

1 0 r a c io n a l, d e I a ig n o r a n c ia y e l h á b it o a i c o n o c im ie n t o y a I a r e f le x ió n (Carr;

Kemmis, 1988, p. 128).

A racionalidade que permeia a educação, lida pelos mesmos padrões do processo de racionalização da sociedade, denota um caráter tecnicista-instrumental, preocupando-se essencialmente com os meios em detrimento dos fins estabelecidos sem problematização. Em outras palavras, esse tipo de racionalidade, ao favorecer o distanciamento entre teoria e prática pela sistemática divisão entre concepção e ação, pelo entendimento equivocado de prática (como algo particularizado e imediato) e de teoria (como algo distante e cujo "uso" serve somente para justificar determinadas práticas), favorece, igualmente, a sedimentação de um enfoque funcionalista da educação.

Se a educação, vista sob o ângulo de uma teoria e uma prática que permitem uma intervenção tecnológica em seus fenômenos, é uma possibilidade real, certamente não é a única.

Carr e Kemmis, num esforço para superar as concepções mais tradicionais da educação, traçam linhas para uma teoria e uma prática críticas da educação, através dos pressupostos da teoria crítica da Escola de Frankfurt e, particularmente, da ciência social crítica de Jürgen Habermas, em busca de uma "práxis crítica". Nessa ótica, ocorre a aliança entre " ... el proceso de Ia crítica con Ia voluntad política de .actuar para superar Ias contradicciones de Ia acción social

y

de Ias instituciones sociales en cuanto a su racionalidad y justicia" (Carr; Kemmis, 1988, p. 157).

Para esses autores, o tratamento da educação como campo de estudo envolve, entre outros componentes, o da política curricular como manifestação de diferentes correntes de opinião e de princípios educacionais. Em vista disso, vale aqui fazer um parêntese e discutir um pouco mais este aspecto.

O entendimento da complexidade que envolve projetos e práticas curriculares, apontado por Carr e Kemmis, revela a necessidade de questionar .os interesses, os aspectos ideológicos e sócio-culturais pertinentes, isto é, não só os relativos "ao" currículo, mas também os que ocorrem "no" currlculo.

Voltado, igualmente, para essas questões, Apple (1989) faz uma aplicação das categorias "forma" e "conteúdo", concebendo o currículo como

BIBLOS, Rio Grande, B: 235 - 250, 1996.

(8)

um elemento de "distribuição social" do conhecimento, conferindo-lhe caráter ideológico:

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

A p a r t ir d e u m u n iv e r s o in t e ir o d e c o n h e c im e n t o p o s s í v e l

s o m e n t e u m a p a r t e lim it a d a

é

r e c o n h e c id a c o m o c o n h e c im e n t ~

o f ic ia l, c o m o c o n h e c im e n t o digno d e s e r t r a n s m it id o às f u t u r a s g e r a ç õ e s . E n t r e t a n t o n ã o

é

a p e n a s

o

c o n t e ú d o q u e d e v e n o s p r e o c u p a r . A f o r m a d o c u r r í c u lo ,

o

m o d o p e lo q u a l e le

é

o r g a n iz a d o , t a m b é m m e r e c e u m a a t e n ç ã o c u id a d o s a . T a n t o

o

c o n t e ú d o q u a n t o

a

f o r m a s ã o c o n s t r u ç õ e s id e o ló g ic a s ( . . . )

A

s e le ç ã o d e a m b o s c o n s t it u i- s e f r e q ü e n t e m e n t e n u m a c o r d o

p r o d u z id o

a

p a r t ir d a s t e n t a t iv a s d o s is t e m a e d u c a c io n a l p a r a r e s o lv e r os p r o b le m a s c a u s a d o s p o r s e u s p a p é is c o n t r a d it ó r io s .

O

c u r r í c u lo , p o r t a n t o , n ã o s e r á u s u a lm e n t e u n it á r io , m a s e le p r ó p r io c o r p o r if ic a r á t e n d ê n c ia s c o n t r a d it ó r ia s (Apple, 1989, p. 51).

Moreira (1992), como estudioso de currículos no Brasil, informa sobre a necessidade de se entender o currículo como processo histórico, verificando os diferentes momentos nele presentes. Sua obra explicita três "tendências" curriculares:

- a

A

te n d ê n c ia te c n ic is ta tem embasamento em mecanismos explícitos de controle que visam a formação de indivíduos socializados conforme as normas, valores e padrões culturais dominantes. Nas palavras do autor,

... o

c u r r í c u lo t e c n ic is t a

é

v is t o c o m o f a v o r e c e n d o c o n f o r m id a d e

e

h o m o g e n e id a d e s o c ia l, ao in v é s d e d iv e r s id a d e , e c o n t r ib u in d o

p a r a

a

p r e s e r v a ç ã o d a e s t r u t u r a s o c ia l v ig e n t e ,

ao

in v é s d e p a r a s u a s u p e r a ç ã o . A ê n f a s e

é

n a e s t a b ilid a d e d o s is t e m a s o c ia l

e

n ã o em s u a t r a n s f o r m a ç ã o (Moreira, 1992, p. 18).

a te n d ê n c ia p r o g r e s s iv is ta tem suas bases em mecanismos indiretos e internos de controle explicitando uma preocupação com a formação da personalidade, com consciência social, através da participação em um trabalho coletivo mas que, na verdade, dentro de um caráter conservador, visa formar um determinado tipo de indivíduo:

. . . in t e le c t u a lm e n t e d e s e n v o lv id o , h á b il n a s o lu ç ã o d e p r o b le m a s ,

c a p a z d e c o o p e r a r c o m s e u s p a r e s n o e s f o r ç o c o m u m , c r f t ic o

c o m os r u m o s a s e r e m s e g u id o s n o p r o c e s s o d e

d e s e n v o lv im e n t o d a s o c ie d a d e , m e s c o m p r o m e t id o c o m

a

n o v a o r d e m e d is p o s t o a f a c ilit a r s u a in s t a la ç ã o ( . . . ) Os f in s s o c ia is e

248 BIBlOS, Rio Grande, 8: 235 - 250, 1996.

p o lí t ic o s a la r g a m - s e s ig n if ic a t iv a m e n t e em r e la ç ã o às

c o n c e p ç õ e s a s s o c ia d a s ao t e c n ic is m o , mas s ã o , p o r é m ,

m a n t id o s d e n t r o d a m o ld u r a d o c a p it a lis m o (Moreira, 1992, p. 20).

a te n d ê n c ia crítica, por sua vez, se embasa no princípio. de "crescimento individual e maior justiça social", prevendo condições para uma aprendizagem e prática críticas, em que os mecanismos de controle são comprometidos com liberdade e emancipação, pretendendo formar

... o

c id a d ã o c r í t ic o , a u t ô n o m o , p a r t ic ip a n t e , a t iv o

e

p o s s u id o r d e c o n h e c im e n t o s e h a b ilid a d e s q u e o le v e m a c o n t r ib u ir p a r a a

p r o m o ç ã o d e m e lh o r e s

e

m a is ju s t a s c o n d iç õ e s d e v id a p a r a t o d o s osq u e v ê m t e n d o e s s a s mesmas c o n d iç õ e s n e g a d a s , b e m

c o m o a lu t a r p e lo a c e s s o d e t o d o s

à

c id a d a n ia e a a v a lia r

p e r m a n e n t e m e n t e

e

lu c id a m e n t e os r u m o s d e s u a s o c ie d a d e ( . . . ) N ã o se t r a t a d e s im p le s a p e r f e iç o a m e n t o d a o r d e m e x is t e n t e ,

m a s s im d e s u a m u d a n ç a r a d ic a l, c o n s id e r a d o s os lim it e s , as

p o s s ib ilid a d e s

e

as c a r a c t e r í s t ic a s d a s c o n d iç õ e s h is t ó r ic a s

(Moreira, 1992, p. 23).

As racionalidades veiculadas pelas duas primeiras tendências refletem uma educação sob enfoque mstrumental-estratéqlco" . Por sua vez, a tendência crítica analisada por Moreira está em consonância com a proposta de uma abordagem crítica da educação conforme as idéias de Carr e Kemmis e com a racionalidade comunicativa de Haberrnas."

Assim, retórnando ao objeto central desta reflexão, pensar a educação do ponto de vista da racionalidade comunicativa implica, portanto, ir além de sua dimensão instrumental que, impossível negar, existe e é necessária. No entanto, não pode ser aceita como suficiente, pois todo ato educativo constitui-se em projeto/processo de caráter político e, enquanto político, requer o exercício de "pensar o pensamento" em nível individual e coletivo, de ler e interpretar lucidamente os sentidos que permeiam atos e omissões e, acima de tudo, de dialogar criticamente com o(s) contexto(s) social(is), problematizando-o(s) e, dessa maneira, possibilitando (re )construção( ões).

8 Em outras palavras, são tendências que, ou veiculam uma razão fechada,

unilateral - a do sistema dominante - sem maiores conflitos, ou assentam-se numa razão

reflexiva mas que não possui, ainda, um caráter transformador em face dos contextos

prevalentes.

9 Vale dizer "que ambas as posições levam em conta a preocupação com o

questiúnamento crítico das práticas sociais visando contribuir para transformações na

Consciência e na ação em termos individuais, sob a perspectiva de alteração da ordem social.

(9)

R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S

yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

1. APPLE, Michael W. Currículo e poder.

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

E d u c a ç ã o e R e a lid a d e . Porto Alegre, 14, (2):.46-57,

jul./dez. 1989.

2. BOMBASSARO, Luiz C. As f r o n t e ir a s d a e p is t e m o lo g ia ; como se produz o conhecimento.

Petrópolis: Vozes, 1992.

3. CARR, W.; KEMMIS, S.T e o r í a c r í t ic a d e I a e n s e n a z a . Barcelona: Martínez Roca, 1988. 4. FREITAG, Barbara. Jürgen Habermas fala a Tempo Brasileiro. R e v is t a T e m p o B r a s ile ir o ,

Rio de Janeiro, (98): 5-21, jul.lset., 1989.

5. HABERMAS, Jürqen. C o n s c iê n c ia m o r a l e a g ir c o m u n ic a t iv o . Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1989(a).

6. . OD is c u r s o f ilo s ó f ic o d a m o d e m id a d e . Lisboa: Dom Quixote, 1990(a).

7. . P e n s a m e n t o p ó s - m e t a f í s ic o : estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1990(b).

8 . T e o r í a d e I a a c c ió n c o m u n ic a t iv a : complementos y estudios previos. Madrid:

Catedra, 1989(b).

9. MOREIRA, Antonio F.B. Currículo e controle social. T e o r ia & E d u c a ç ã o , Porto Alegre, (5):

13-27,1992.

10. OLIVEIRA, Manfredo A. de. A teoria da educação no conflito das racionalidades. E d u c a ç ã o

e m D e b a t e , Fortaleza, 14, (2): 1-19, jul.ldez. 1987.

11. RAMOS, Alberto G. An o v a c iê n c ia d a s o r g a n iz a ç õ e s . Rio de Janeiro: FGV, 1981. 12. ROUANET, Sergio P. As r a z õ e s d o lI u m in is m o . São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 13. SIEBENEICHLER, Flávio B. J ü r g e n H a b e r m a s : razão comunicativa e emancipação. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

14. VAZQUES, Adolfo. F ilo s o f ia d a p r á x is . 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

Referências

Documentos relacionados

A ideia da pesquisa, de início, era montar um site para a 54ª região da Raça Rubro Negra (Paraíba), mas em conversa com o professor de Projeto de Pesquisa,

Assim, concordamos com Bianchetti (2008), para quem.. Uma educação que forme para a mudança social não pode ser medida como sendo de ‘boa ou má qualidade’, já que a sua

Nessa medida, procedeu-se inicialmente à revisão da literatura disponível sobre a resiliência, com especial ênfase na sua relação com a prática desportiva e o suporte social,

Estudos sobre privação de sono sugerem que neurônios da área pré-óptica lateral e do núcleo pré-óptico lateral se- jam também responsáveis pelos mecanismos que regulam o

Neste capítulo foram descritas: a composição e a abrangência da Rede Estadual de Ensino do Estado do Rio de Janeiro; o Programa Estadual de Educação e em especial as

Introduzido no cenário acadêmico com maior ênfase por Campos (1990), o termo accountability é de conceituação complexa (AKUTSU e PINHO, 2001; ROCHA, 2009) sendo

the human rights legislated at an international level in the Brazilian national legal system and in others. Furthermore, considering the damaging events already

O setor de energia é muito explorado por Rifkin, que desenvolveu o tema numa obra específica de 2004, denominada The Hydrogen Economy (RIFKIN, 2004). Em nenhuma outra área