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A Paixão de Cristo "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, estréia amanhã no Brasil.

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Academic year: 2021

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A Paixão de Cristo

"A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, estréia amanhã no Brasil.

1) Muitos perguntarão: por que

representar a paixão de Cristo com tamanha violência e tanto sangue? O cristianismo não seria mais bem

apresentado pelo Cristo da ressurreição e pela mensagem generosa dos

Evangelhos?

Ora, em 1521, Lucas Cranach publicou um pequeno livro, "Passional Christi und Antichristi" (Paixão do Cristo e do

Anticristo). A gravura em que o anticristo era coroado com muita pompa, como um papa ou um imperador, era contraposta à que representava o Cristo escarnecido e humilhado, com sua coroa de espinhos. Como milhões de homens e mulheres ocidentais, passei minha infância sob o olhar protetor de dois tipos de imagens: de um lado, os heróis nacionais com

faixas, gala, espada e bandeira; do outro, o crucifixo. Cuidado: não era o Cristo

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conversando amavelmente com os apóstolos ou sarando leprosos e

ressuscitando mortos. Era o Cristo na

cruz. Seu poder era obviamente diferente do poder dos heróis a cavalo: ele parecia se originar no próprio martírio.

Em matéria de religião, prefiro conviver com perguntas que não têm resposta. Mas uma coisa me parece certa: sem o mistério (absurdo, como dizia Tertuliano) de um deus que teria aceitado viver um suplício horrível para redimir os pecados dos homens, o cristianismo não passaria de uma ideologia social-democrata.

Ótimo e simpático, mas não precisa do Cristo para isso.

No filme de Mel Gibson, a paixão acontece na presença constante do

demônio, que é o único derrotado. Se o Cristo desistisse de seu martírio e

recorresse a uma mágica divina para

evitar o sofrimento, o demônio triunfaria. E prevaleceria, em nossa cultura, uma única idéia do poder, a idéia da qual

gosta o maligno e segundo a qual o poder está com o mais forte.

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2) Vários críticos acusam Mel Gibson de ser hollywoodiano. Dizem que, na "Paixão de Cristo", o sangue escorre como num filme de ação de segundo escalão.

É uma inversão. O Cristo crucificado é a imagem que mais foi reproduzida e

divulgada no segundo milênio do Ocidente. Não é estranho, por

conseqüência, que um tema básico de nossas narrativas populares seja o

seguinte: um homem é massacrado,

surrado, deixado numa poça de sangue, mas ele é um justo e voltará um dia para ajustar as contas.

A paixão de Cristo não precisa do sangue falso de Hollywood, mas há muito sangue de Hollywood que seria impensável sem nosso fascínio pela paixão de Cristo. O próprio Mel Gibson, como ator, já foi "crucificado" mais de uma vez.

3) Ao achar que a violência do filme é excessiva, somos fiéis à modernidade. A partir da segunda metade do século 15, somem das praças da Europa as brutais encenações teatrais do suplício de Cristo,

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e as imagens da paixão na arte sagrada se tornam menos cruentas. O historiador suíço Valentin Groebner, num livro

recente e admirável ("Defaced, the Visual Culture of Violence in the Late Middle

Ages"; Desfigurado, a Cultura Visual da Violência na Idade Média Tardia, Zone Books), nota que, a partir de 1525, as representações de Jesus crucificado, em vez de mostrar a agonia de um torturado, começam a apresentar "um redentor

delicadamente suspenso na cruz". Há exceções: o barroco brasileiro

produziu, por exemplo, algumas estátuas do corpo doloroso de Cristo que não

ficam para trás de nenhum Mel Gibson. Mas, no conjunto, o Renascimento do século 16 (e a gente com ele) prefere esquecer pragas e dores para exaltar as potencialidades do homem. O que era o crucifixo para um sujeito medieval? Uma consolação? Um exemplo de resignação? Pode ser. Mas, quando os pestilentos, os supliciados em praça pública, os famintos e os destroçados das mil guerras olhavam para o crucifixo, eles deviam encontrar um curioso espelho. O que havia de mais

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real em seus corpos, o sofrimento e a

fragilidade mortal, fora também o lote de Deus. Talvez, com isso, eles

reconhecessem que sua desgraça não os excluía da humanidade.

A modernidade continua pendurando crucifixos nas paredes, mas prefere esquecer pudicamente a paixão

representada. Se precisássemos da

imagem de um corpo comum, seria mais um ginasta que um crucificado.

Mel Gibson nos lembra de algo incômodo. E também útil: não há como entender o que é um homem moderno sem

considerar que, para muitos, desde a infância, a imagem de um jovem

torturado e agonizante foi o primeiro símbolo (paradoxal) de grandeza e o primeiro ideal de um corpo masculino amável e venerável.

Notas

1) Alguns acham que "A Paixão" é um filme antissemita. A obra confirmaria o antigo argumento segundo o qual "os judeus" quiseram supliciar o Cristo

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(argumento que, de fato, a Igreja Católica usou durante séculos para supliciar judeus). Ora, no conto

evangélico como no filme, Caifás e o "establishment" judaico de Jerusalém

(não "os judeus") pediram a crucifixão de um profeta de sucesso, que minava o

poder religioso instituído. Esse profeta era Cristo, um judeu.

2) De fato, Tertuliano (terceiro século de nossa era), no "De Carne Christi", não disse "credo quia absurdum" (creio porque é absurdo), mas "credibile est, quia ineptum est": é acreditável porque é inepto, ou seja, porque é uma história fraca.

Aliás, a paixão serve para isto: para que acreditemos nos fracos.

Referências

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