• Nenhum resultado encontrado

GT 04: CONFLITOS AMBIENTAIS, PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO E IDENTIDADES SOCIAIS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "GT 04: CONFLITOS AMBIENTAIS, PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO E IDENTIDADES SOCIAIS"

Copied!
29
0
0

Texto

(1)

33º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

GT 04: CONFLITOS AMBIENTAIS, PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO E IDENTIDADES SOCIAIS

Canelatiua, terra dos pobres, terra da pobreza: uma territorialidade

ameaçada, entre a recusa de virar Terra da Base e a titulação como Terra de Quilombo

Patrícia Portela Nunes

(2)

Introdução

Localizadas na área desapropriada pelo governo do Estado do Maranhão em 1980 para implantação do designado Centro de Lançamento de Alcântara (C.L.A.) e dentro da área estipulada pelos militares da Aeronáutica como ―faixa de segurança‖1

, quatro comunidades foram oficialmente reconhecidas como comunidades remanescentes de quilombo em 2004 pela Fundação Cultural Palmares: _ Canelatiua, Bom Viver, Retiro e Vila do Meio. Na ocasião a FCP reconhece por certificação quase duas centenas de comunidades do município de Alcântara, no Estado do Maranhão, que se declaram e auto-reconhecem quilombos2. Dentre estas, as quatro comunidades citadas estão localizadas a nordeste do município de Alcântara e fazem parte de uma localidade designada terra da pobreza.

Tal ato administrativo perpetrado pela FCP é resultado da ação de agentes sociais que, objetivados em movimento social, vêm lutando por seus direitos desde que o governo brasileiro decidiu investir na implantação de uma base de lançamento de foguetes em Alcântara que ficara ao encargo dos militares da Aeronáutica.

Decorridos, no entanto, quase trinta anos, desde o primeiro decreto de desapropriação, o projeto do governo de investimento em tecnologia aeroespacial foi modificado em seus propósitos, diretrizes e estratégias de implementação por inúmeras vezes. Isto traz como conseqüência certa dificuldade para se entender, de modo coeso, o conflito no processo de negociação política ao longo do tempo: apesar de tratar-se de um projeto criado durante o regime militar, tendo sido implantado pelos militares da Aeronáutica, com a criação da Agência Espacial Brasileira em 1994 o passa a ser formulado e implementado por civis. De outra parte, confrontados ao conjunto dos atos de intervenção governamental direcionado à implantação da base de foguetes, os agentes sociais passam a organizar-se de forma coletiva e a reivindicar medidas que assegurem sua reprodução física e social. É neste contexto de confronto com os militares da Aeronáutica

1

O decreto estadual no. 7320 de setembro de 1980 desapropriou 52 000 hectares do município de Alcântara para implantação do dito C.L.A. Ao passar para a instância de decisão federal são acrescidos mais 10 000 hectares: o decreto presidencial datado de 8 de agosto de 1991 em seu Art., 1º declara de utilidade pública, para fins de desapropriação pela União, 62 000 hectares deste município; o que corresponde a mais da metade da área deste e atinge a mais de 2000 famílias de trabalhadores rurais.

2

Conforme dispõe a Portaria n° 35 registrada no Livro de Cadastro-Geral n° 001 da Fundação Cultural Palmares, sob o n°6, em 01 de março de 2004 e publicada no Diário Oficial da União n° 43de 04 de março de 2004, Seção 1, f 07. De acordo com o registro n.96, f.100 desta Portaria cento e sessenta e cinco comunidades deste município são beneficiadas pelo art. 1° da Lei n°7668 de 22 de agosto de 1988, art. 2°, §§ 1° e 2°, art. 3°, § 4° do decreto 4887 de 20 de novembro de 2003.

(3)

que os agentes sociais passam a explicitar as diferentes formas de acesso à terra como estratégia para assegurar os domínios territoriais historicamente estabelecidos. Situações referidas a casos de doação, aquisição, herança, com ou sem formal de partilha, concessão, ocupação ou apossamento são expressos através de diferentes nomenclaturas relativas aos domínios territoriais, sugerindo diferentes formas de classificação dos agentes sobre sua base territorial, tais como: terra da pobreza; terras de herança, terras de preto e terras de caboclo, terras de santo, terras de santa e terras de santíssima (cf. ALMEIDA: 2002).

As ações dos agentes coletivamente organizados convergem para a criação do Movimento dos Atingidos pela Base Aérea (MABE) em 19993. Alguns anos depois da criação do MABE dei início em 2002 minhas pesquisas no município de Alcântara. Na ocasião, lideranças sindicais e ligadas ao MABE estavam mobilizadas com o processo de identificação e reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos. Eles recepcionavam o perito designado pela Procuradoria Geral da República e a equipe de pesquisadores que auxiliava o perito agindo como guias da pesquisa e orientando, com isso, a perícia antropológica _ peça do processo jurídico que assegura às comunidades quilombolas o acesso ao direito à titulação e propriedade definitiva das terras, conforme dispõe o art. 68 do ADCT da Constituição Federal4. Como integrante desta equipe de pesquisadores pude conhecer lideranças e agentes adstritos a causa dos atingidos, bem como diferentes localidades do município _ entre povoados, regiões e territorialidades. Inclinada a desenvolver uma pesquisa etnográfica em comunidades quilombolas decidi, então, concentrar meus estudos na designada terra da pobreza.

Como mencionado, os povoados que integram a terra da pobreza estão situados dentro dos limites fixados pelos militares da Aeronáutica como ―faixa de segurança‖ da área desapropriada e localizados nas proximidades da área de ampliação do CLA5 de modo que o conjunto das famílias, que lá reside, vive desde 1997 a ameaça de a qualquer

3

Reflexões mais detidas a respeito do conflito com a base de lançamento de foguetes através de atos de intervenção perpetrados pelos aparatos de Estado ou das ações dos agentes sociais organizados em movimento social estão explicitadas na introdução da tese.

4

O Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988 institui como direito constitucional a propriedade definitiva das terras das referidas comunidades nos seguintes termos: ―Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.‖

5 O Programa Nacional de Atividades Espaciais prevê a construção de mais 15 bases de lançamento de

(4)

momento ser deslocado das terras que ocupa a cerca de dois séculos. Trata-se, pois, de uma situação de conflito social intenso que ameaça a reprodução física e social desse grupo de famílias.

Nesta situação de conflito, aqueles que são reconhecidos como portadores da história do grupo e capazes de proceder à narrativa da expectativa de direito dessas famílias recorrem ao que consideram o ponto de inflexão da história do grupo: a clivagem referida ao acesso do grupo à terra e a afirmação da condição de ―libertos‖ em um território livre das grandes plantações _ ao que dedico a deslindar no presente artigo.

Conforme fui informada pelos os agentes sociais, que lá residem, a terra da pobreza é constituída por cinco povoados e algumas taperas, como são chamados os antigos lugares de residência: além das quatro comunidades indicadas pela Portaria da FCP, a localidade de Porto de Aru é também percebida como uma unidade social distinta das demais sendo considerado um povoado à parte por aqueles agentes sociais que lá residem e por seus vizinhos mais próximos. Além disso, as designadas taperas não deixam de ser indicadas pelos agentes sociais como localidades referidas à terra da pobreza, porquanto sejam por eles considerados como lugares de referência no domínio de suas relações cotidianas. É o caso de Aru-Grande e Aru-Mirim, Rio de Inácia, Santo Antônio e Janã e Araraí. Mesmo estando esvaziados de moradores, os agentes não deixam de manter vínculos com estes lugares, uma vez que seguem utilizando seus portos como lugar de pesca ou fazendo uso dos recursos naturais disponíveis, seja das áreas de babaçuais, juçarais ou de guarimãs ou das árvores frutíferas aí localizadas.

Esta forma de proceder sugere que critérios de classificação fundamentados em elementos da ordem física não são suficientes para explicar a relação que os agentes mantêm com seu território. Isso é, ao incluírem as taperas no espaço territorial tido como referente à terra da pobreza, os agentes contrariam a idéia, corrente entre os geógrafos, sociólogos, dentre outros cientistas sociais, ou prevalecente no âmbito das decisões burocráticas que associa a existência de um lugar a dados de fisicalidade, como se a existência de uma localidade estivesse atrelada a permanência de dada ―população‖ a dado lugar.

As designadas taperas permitem, assim, colocar em suspenso critérios de análise que orientam aqueles esquemas explicativos que, baseados em dados de fisicalidade, atrelam populações a territórios ao se disporem a discutir e/ou atualizar a noções de terra e de território.

(5)

A idéia de tapera me pareceu, portanto, deslocar o critério físico de definição do conceito de ―território‖ _ território definido como espaço situável e delimitável fisicamente _ em favor de critérios imputáveis ao domínio das relações sociais, fazendo lembrar que para além do espaço físico, a história, a política, o parentesco, os conflitos sociais, dentre outros, podem ser também elementos referentes ao processo de constituição de distintas territorialidades.

Nesse sentido, as noções de tapera, povoado ou ainda de comunidade, indicativas de unidades sociais específicas _ como a designada terra da pobreza _ me forneceram durante minha pesquisa de campo as primeiras indicações sobre a percepção de direito atualizada pelos agentes sociais numa situação de conflito social intenso desde que fora implantada no município de Alcântara uma base espacial de lançamento de foguetes.

Parte integrante do 2° capítulo de minha tese, proponho-me a apresentar no presente artigo minha compreensão do significado da categoria terra da pobreza explicitando como se constituiu na versão dos agentes essa unidade social designada terra da pobreza que tem como referência uma área delimitada por marcos, as designadas pedras de rumo, facilmente localizáveis pelos agentes através de um antigo porto designado Cajueiro, de um igarapé, de uma barreira localizada num dado caminho, o caminho da ponte, ou através de uma cruz.

Ao fazê-lo tenho em mente tomar a noção de terrritorialidade como instrumento de análise que me permite focalizar as interrelações estabelecidas pelos agentes com seus respectivos territórios, considerando os diferentes processos históricos em jogo que autorizam a consolidação dos diferentes domínios em uma base territorial fixa. Nesse sentido, a relação estabelecida por diferentes grupos sociais com uma base territorial fixa poderia ser pensada não como algo dado, fruto de uma relação naturalizada entre grupos distintos e a apropriação dos recursos ecológicos, mas como uma construção social relacionada a contextos históricos e processos sociais distintos. Não se trata, no entanto, de recuperar os diferentes processos históricos que teriam levado à constituição das diferentes territorialidades, mas investigar no presente como o passado é construído, processado e integrado à trajetória do grupo, seja através das narrativas dos agentes a respeito da origem dos grupos, seja através do sentido que conferem no presente à vigência de uma base territorial fixa como elemento essencial para sua reprodução física e social. De outra parte, tomar a noção de territorialidade como instrumento de análise não significa cristalizar os agentes em seus respectivos domínios territoriais, haja vista

(6)

que os distintos planos organizativos autorizam sejam aproximações, sejam afastamentos, sejam interpenetrações entre as diferentes comunidades. Ou seja, o que os agentes designam como ―comunidade‖ é estruturado a partir de distintos planos organizativos, conforme pude observar em minha pesquisa de campo. Assim, por exemplo, Bom Viver em termos do acesso a serviços médicos ambulatoriais ou formação escolar tem como referência Canelatiua. Em termos de recinto cemiterial, também tem como referencia Canelatiua, pois é aí que enterram seus mortos. Em termos religiosos prevalece certa divisão: ou podem servir aos adeptos da chamada cura no terreiro ou barracão lá localizado; ou no caso dos católicos freqüentam a capela de Canelatiua; ou ainda no caso dos evangélicos a referência é imputada a Santa Maria. No tocante à construção dos barcos apontam São João de Cortes como referência. A descrição destes diferentes planos organizativos permitiria colocar em suspenso os limites tradicionais reconhecidos como pertinentes às fronteiras físicas de cada um dos povoados.

Isto posto, meu desafio nesse artigo será o de expor como se constituiu essa unidade social designada terra da pobreza, explicitando por essa via de análise, o que significa em termos identitários dizer-se morador da terra da pobreza. Isso implica em considerar que, para além de instrumento de análise, a noção de territorialidade é também objeto de investigação e de descrição: _ como objeto de investigação irá me importar os elementos de identitários implicados na idéia de terra da pobreza ou em afirmar-se morador das terras da pobreza; e como objeto de descrição meu desafio será o de descrever as vicissitudes do processo de constituição de uma territorialidade específica.

Em desdobramento, busco dialogar com autores referidos a estudos etnológicos clássicos, que estabelecem uma relação parentesco e território. Minha intenção é a de sustentar que a clássica oposição entre ethos e demos não se presta como instrumento que me permita compreender o processo de construção da idéia de terra da pobreza ou da identidade de proprietários acionada pelos agentes sociais em face da situação de conflito enfocada.

Terra da Pobreza: conflitos, relações e territorialidade

O narrador que detém a memória desta coletividade costuma apresentar-se na presença daqueles estranhos que especulam sobre os meios de acesso à terra sempre de posse de um documento cartorial, datado de 1915. O documento em suas mãos, neste

(7)

contexto, simboliza uma forma ritualizada que o Sr. Domingos Ramos Ribeiro encontra para proceder à expectativa de direitos que sua coletividade guarda sobre as terras onde residem e trabalham há tantas gerações. O referido documento faz menção a uma tentativa de usurpação de domínios territoriais referidos à chamada terra da pobreza pelo então proprietário das terras denominadas Mato Grosso que fora contestada por um morador do povoado Retiro em 1915.

Ele parte, assim, de um litígio do passado para dirimir um litígio do presente. Em sua narrativa apresenta, no entanto, amplo domínio sobre pessoas e lugares, relações e acontecimentos. Para além do litígio contido no documento em suas mãos, precisa os lugares de origem de cada morador antigo e/ou família mencionados, seus sucessivos deslocamentos pelas terras do município, seus laços de parentesco _seja através da consangüinidade, da afinidade ou do compadrio _ , assim como apresenta controle sobre a dominialidade dos povoados citados, suas extensões territoriais correspondentes, precisando inclusive os lugares conhecidos como terras de dono, que lhes são limítrofes e das quais se distinguem. De sua fala é possível se depreender a representação dos agentes sobre o processo de constituição desta unidade social ou sobre os critérios de pertencimento das famílias que a integram.

Além deste documento o Sr. Domingos Ribeiro conserva em sua residência o memorial da demarcação solicitada por Virgílio Esterlino de Azevedo, o pretenso proprietário em questão, a um agrimensor da época. O acesso a estes documentos se dera em razão do contato que passara a estabelecer com os dirigentes sindicais a partir de 1972, ano de sua filiação ao STTR de Alcântara. Guarda ainda o mapa feito por oficiais da Aeronáutica no qual a área referente é seccionada em quatro: terras da pobreza 1, 2, 3 e 4. A participação em reuniões seja com dirigentes sindicais, seja com militares da Aeronáutica propiciaram as condições para que este senhor pudesse ir montando seu arquivo; mediadas, ao que me parece, pela autoridade que dispõe no âmbito de sua própria comunidade para reivindicar, das autoridades competentes, a posse destes documentos. Isto é, dentre os moradores desta coletividade ele detém os atributos pertinentes à construção dessa posição de porta-voz do grupo em defesa dos interesses dos moradores destas terras

O documento em suas mãos simboliza uma forma de se relacionar com os ―de fora‖, os forasteiros que lhe procuram em busca de esclarecimentos sobre o acesso destas famílias a este lugar, um meio de comprovar em termos legais a história contada pelos

(8)

velhos antigos. Sua explanação deixa entrever, assim, que dentre os atributos necessários à construção da posição de narrador da história de sua coletividade, saber ouvir os mais velhos é elemento indispensável. Eles constituem o arquivo desta coletividade de parentes, amigos e vizinhos suprimindo as lacunas contidas nos documentos que conserva. A memória sobre estes velhos, sobre o que contavam, evidencia ademais a extensão de tempo da qual decorre a permanência destas famílias neste lugar.

Este documento faz referência explícita a uma situação de doação de terras pelo antigo proprietário das terras, Tieóphilo José de Barros, e, conforme complementa o narrador, dono de um engenho em parceria com Fuao Troça _ em tal empreendimento eram produzidos açúcar, cachaça, rapadura, dentre outros derivados da cana para abastecer o comércio de Bequimão e Guimarães. Consta no referido documento:

―Há tempos immemoriaes que o finado Tieóphilo José de Barros, que em uma das cláusulas de seu testamento, generosamente legou à gente pobre de São João de Cortes uma legua de terra quadrada, que desde então ficou denominada _ "Terra da pobresa" _, para nela se estabelecerem os pobres e suas famílias, cultivarem-na, goza-la e tirarem d‟ella os fructos para seu sustento e manutenção. Este trecho de terra é o que se acham hoje situados os povoados _ Retiro, Canelatiua, Araray, Urú, Urú Mirim, Rio de Ignacia e Santo Antônio, com 65 casas, habitadas por uma população pobre, a qual com suas famílias se occupa no serviço de pequena na lavoura; sendo que alli se acham domiciliados, vindos de seus antepassados, há mais de cem (100) annos. Místicas à terra da "Pobresa" jazem as denominadas de “Matto Grôsso" outrora de um Fuao Troça, já há muito fallecido e hoje divididas em cinco quinhões, dos quaes é Virgílio Esterlino Azevêdo possuidor de um, por compra feita a D. Urraca Prado.‖ (sic).

Ter-se-ia, assim, certa especificidade na designada terra da pobreza, em relação ao conjunto dos povoados circundantes, que me interessou estudar mais detidamente. É a construção desta condição de proprietários em oposição seja às chamadas terras de dono, limítrofe à referida terra da pobreza, seja ao modo como são classificados por diferentes instâncias de poder que me interessou analisar neste trabalho.

Segundo o documento citado, a doação das terras teria ocorrido em ―tempos immemoriais‖. A indicação precisa da data ninguém sabe ao certo, mas na memória do

(9)

narrador as moendas de cana, movidas a tração animal, constituem uma boa indicação apresentada aos forasteiros.

O documento do registro de terras datado de 1856 que localizei no Arquivo Público em São Luís também fornece uma pista: se as terras foram registradas há esse tempo, em cumprimento à Lei de Terras de 1850, então o engenho do qual falavam os velhos é anterior a esta data, ao menos assim poderia ser especulado _ documento este hoje incorporado ao arquivo que o narrador mantém em sua casa. Apesar dos documentos que lhe chegam às mãos fornecerem algumas informações novas, para o narrador o estatuto do documento está subordinado ao saber transmitido pelos mais velhos, à memória da coletividade; sua função é simplesmente a de atestar sua narrativa para aqueles forasteiros que buscam comprovações a respeito de uma história que não lhes pertence, a história de seus ascendentes e dos ascendentes de seus amigos e vizinhos.

Por essa via explicativa, o narrador prossegue seu relato fornecendo laços de parentesco, relações de afinidade ou compadrio entre as famílias beneficiadas com a doação. A referência a cada nome de família é sempre imputada ou imputável a um lugar. Assim, além de correlacionar os nomes das famílias com os povoados que o forasteiro em questão viu pelo caminho, ele ainda faz referência aos designados moradores antigos, os velhos referidos às taperas da terra da pobreza _ aos antigos lugares de residência, como mencionado anteriormente.

O parentesco pareceu-me representar, assim, uma forma de interlocução que o grupo através da figura do narrador encontra para dialogar com aqueles interessados nos meios através dos quais o grupo teve acesso ao seu território. Ou seja, é através das relações de parentesco que o narrador expressa o pertencimento das famílias àquela comunidade. E ao assim proceder revela a expectativa de direito do grupo em relação à terra. Não acredito ter sido outra a razão para a disponibilidade deste senhor dedicar tantas horas do seu dia a me fornecer relações de parentesco que recuperavam, por vezes, sete gerações de uma mesma família.

Os diagramas que estruturei relativos a tais relações eram uma forma de documentar, através da prodigiosa memória deste narrador, os intricados laços de parentesco que unem os moradores da terra da pobreza6. E, através deste trabalho em

6 Não é tão fácil, para mim, precisar os critérios de seleção que utilizei para organização destes diagramas

em razão da quantidade de material e do tempo que levei para organizá-los. Iniciei-os em 2002. Mas somente em função do alargamento de meu tempo de permanência em campo, em 2004, pude realmente

(10)

parceria, o narrador, que não deixa de ser um arquivista, teria mais um documento a acrescentar ao seu arquivo: um documento referido à relação entre um determinado grupo de famílias e uma propriedade, que traduz uma determinada expectativa de direitos.

De minha parte, com meu propósito de organizar em diagramas aquelas relações de parentesco tive a oportunidade de ter acesso a narrativas pertinentes do ponto de vista das histórias locais. Ao largo de qualquer interesse historiográfico, a referência constante a acontecimentos e pessoas me pareceu se constituir em uma instância de afirmação identitária daqueles agentes. Assim é que através da lembrança sobre os conflitos do passado os agentes afirmavam sua condição de ―libertos‖ e a recusa à escravidão manifesta na imagem de comerciantes ativos, marinheiros experientes, carpinteiros navais renomados, pescadores e, notadamente, trabalhadores agrícolas.

Uma primeira aproximação que eu poderia sugerir em relação ao significado atribuído ao parentesco é a de que através dele os agentes sociais articulam dois operadores. Em primeiro lugar, a afirmação dessa identidade de morador da terra da pobreza não implica num problema de direitos originários. Isto é os agentes pontuam que originalmente as terras teriam pertencido aos índios, mas não afirmam se tratar de terra de índio, nem tampouco que sejam descendentes dos índios. Conforme tratarei mais à frente os índios aparecem nas narrativas como tendo se deslocado para outros municípios da baixada maranhense, sempre em direção ao oeste. Este tipo de colocação sugere uma dimensão de construção dos vínculos de parentesco indicados pelo porta-voz do grupo, não se tratando assim da atualização de critérios primordiais relacionados à tribo, religião, casta ou parentesco. Nesse sentido, os agentes apresentam laços de parentesco que são construídos a partir desta identidade de proprietários da designada terra da pobreza conforme se apresentam em face do conflito com a Base e em face da relação

estruturá-los. Para tanto foram necessárias muitas idas e vindas, isto é coletava os dados, levava-os para São Luís, organizava-os, sempre com a ajuda de um profissional de informática (muitos percalços também para encontrá-lo) e retornava a fim de verificá-los. Nisto fui acrescentando outros tipos de dados de forma a estruturar diagramas que transcenderam as relações de parentesco. Acrescentei, sempre que possível, dados referidos a ―lugar de procedência‖ e ―lugar de residência‖ o que autorizava a entrever os deslocamentos sucessivos de um mesmo agente dentro e fora da terra da pobreza e ainda, quando a referência me era feita, dados sobre a ocupação: os marinheiros, os carpinteiros, os músicos e as parteiras foram referências constantes, posto que as ocupações de trabalhador rural ou pescador figuravam como pré-dados. Ao realizar estes diagramas pude perceber o fluxo dos agentes pelos povoados da terra da pobreza e também para fora dela. Passei então a observar e a me interessar sobre os diferentes sentidos que os agentes atribuem à mudança de lugar físico _ que trato no capítulo 3 da tese. No âmbito das relações de parentesco, inclui e distingui as relações entre pais e filhos de criação, discernindo o tipo de vínculo entre estes, se baseados em laços de sangue ou não.

(11)

com o Estado brasileiro; ou dito de outro modo, que está em processo de construção especialmente para aqueles que passam a representar os interesses da comunidade em fóruns e debates fora de seu povoado de origem.

Em segundo lugar, o parentesco traduz a relação que os agentes estabelecem com os dispositivos legais, indicando, com isso, a prevalência de uma relação ―para fora‖ _ a posse e a conservação dos referidos documentos indicam a manutenção desta relação. Poder-se-ia considerar que a relação com os dispositivos legais já está dada desde o registro paroquial de 1856: pelo registro se estabelece a relação entre um determinado grupo de famílias e uma terra registrada. A legislação colonial os definia, no entanto, como ―pobres‖. Hoje, ao acionarem essa identidade de morador da terra da pobreza não se autodefinem através da categoria pobre. Apropriam-se dela para fazer valer a doação que lhes fora concedida no passado, mas se colocam como comunidade remanescente de quilombo.

Em termos teóricos isso implica em desconsiderar o ―isolamento social e geográfico‖ como elemento pertinente para a manutenção das fronteiras do grupo. A noção de ―isolamento‖ atualizada no campo da antropologia para pensar o problema da diversidade cultural é, no entanto, proveniente de outros domínios da produção do conhecimento. Como coloca Tornay, a noção de isolamento é tomada de empréstimo do conceito de isolats consoante a definição da genética humana. O conceito foi também utilizado por geógrafos e demógrafos em referência ou a uma dada situação geográfica (ilha, vale de montanha, dentre outra situações correlatas) ou a uma especificidade técnica e econômica (referida a ausência de ligação com o mundo exterior). Os chamados isolats constituíam uma espécie de laboratório onde poderiam ser realizados experimentos com ―populações humanas‖. A idéia de isolados humanos atraiu ainda o interesse também da etnologia orientando os estudos sobre ―parentesco‖7. Barth indicou ainda seu uso na conceituação tradicional de grupo étnico: o isolamento foi considerado como fator de preservação cultural consoante os esquemas interpretativos que estabeleciam uma relação de equivalência entre ―raça‖, ―cultura‖ e ―língua‖ (BARTH; 2000: 28). Tratar-se, portanto, de uma categoria pré-construída que reproduzida acriticamente por diferentes esquemas interpretativos apresenta-se como autoevidencia.

7 Sobre a noção de isolats e sua apropriação por estas diferentes disciplinas consultar: TORNAY, Serge.

1980. ―O estudo do parentesco‖ IN: COPANS, J. e outros. Antropologia: ciência das sociedades

(12)

Em referência ao campo da produção intelectual regional essa idéia de isolados humanos foi endossada por historiadores, geógrafos, médicos e lingüistas. A esse exemplo poderiam ser citadas as pesquisas realizadas na década de 1980 pelo médico Olavo Correia Lima e o lingüista Ramiro Azevedo em municípios do interior do Estado onde identificaram os chamados ―isolados negros maranhenses‖. Correia Lima empregava a época inclusive técnicas de medições cranianas, mas os resultados obtidos nunca coincidiram com o que esperava para uma ―etnia com uma negritude dérmica praticamente igual à que existia nas senzalas do século XIX‖. (LIMA; 1986: 7). Ele dialoga com Nina Rodrigues ao estabelecer uma distinção entre ―quilombos voluntários‖, em referência ao que este designou metaforicamente como Tróia Negra e ―quilombos involuntários‖, foco de suas pesquisas. Estes últimos corresponderiam a ―aqueles agrupamentos formados espontaneamente por ex-escravos pós-abolição que ficaram isolados por muito tempo, mantendo-se porem pacíficos e ignorados pelo governo.‖ (LIMA; 1986: 3). Correia Lima congrega, no entanto, a antropologia física à antropologia cultural de forma a conceber os grupos que pesquisa como ―isolados negros‖ porquanto ―...tiveram a oportunidade de melhor conservar a cultura‖ (LIMA; 1980 e AZEVEDO: 7). Os critérios de ordem cultural eram somados aos de natureza lingüística, consoante as pesquisas realizadas por Ramiro Correia com o objetivo de avaliar o grau das modificações semântico-fonêmicas das ―populações‖ estudadas. O isolamento é assim concebido como fator de preservação cultural e a cultura como elemento de definição destes ―isolados negros‖, em conformidade com a conceituação tradicional de grupo étnico.

Do que pude observar e reunir de informações em meu trabalho de campo não me pareceu que essa idéia de isolamento seja acolhida pelos agentes sociais. Muito pelo contrário: seja por meio das relações que mantém, ou já mantiveram, com a cidade e a sede, relações de comércio ou de relações de parentesco, seja por meio daquelas mantidas com o código legal os agentes parecem estar sempre sinalizando para as relações estabelecidas com o mundo exterior. E é por meio destas relações que afirmam sua identidade de morador da terra da pobreza e que constroem a idéia de uma territorialidade própria distinta daquelas que lhe são limítrofes: o contexto referido à doação cartorial que facultara o acesso destes agentes a uma base territorial fixa e delimitada; as relações de conflito em diferentes contextos históricos que suscitara ora avanços ora retrocessos com relação a essa base territorial; as relações com os povoados

(13)

vizinhos sejam de parentesco e afinidade, sejam de comércio, sejam com relação ao uso dos recursos ecológicos; tudo isto corroborou para a consolidação e reconhecimento perante os povoados vizinhos de seus domínios territoriais. Não me pareceu, portanto, que o território, que os agentes tomam como referência, seja percebido como resultado de certo grau de isolamento mantido com relação à sociedade envolvente. Mas da narrativa dos agentes sociais depreende-se que ele se afirma através de diferentes domínios de relações sociais que os agentes são levados a estabelecer para ―fora‖.

O documento da doação é um dos elementos tomados para marcar a diferença desta territorialidade, isto é, através dos termos da doação os agentes constroem sua posição de proprietários. Situações similares a esta podem ser observadas no município de Alcântara. Os atuais moradores do povoado de Itapuaua, por exemplo, estão referidos ao avô do Sr. Antônio Tó, o Sr. Antero, que herdou as terras por doação dos proprietários da Fazenda Esperança referidos à família Araújo. Além disto, de acordo com os entrevistados o pai da Sra. Andreza, irmã do Sr. Antônio Tó, comprou uma parcela de terras após a abolição. Trata-se, no entanto, de uma situação em que a doação das terras não fora registrada em cartório levando os agentes ao pagamento de foro a pretensos herdeiros, o que nunca ocorrera com relação aos moradores da chamada terra da pobreza. O trabalho de campo realizado por Cynthia Martins em Itapuaua evidenciou uma situação de disputa entre aqueles que se consideram herdeiros de direito e aqueles que se apresentam como herdeiros legais, isto é que se apresentam como parentes da pessoa que é identificada como herdeira da família Araújo: a Sra. Glades Silveira Sena. Disputa esta que se plasma no problema referido ao pagamento de foro a estes pretensos herdeiros: segundo os agentes, em períodos de grande produção agrícola eles foram obrigados a pagar foros elevados, em períodos de queda da produção este tributo era reduzido e atualmente os agentes recusam-se a pagá-lo, afirmando sua condição de herdeiros legítimos das terras (MARTINS;1998: 18). Em outras situações os agentes aparecem como adquirindo terras por compra a exemplo do Sr. Eloy Antônio Sá cuja aquisição se refere a terras que integram o povoado de Baixa Grande e deixadas como herança aos filhos. Nesse sentido, as situações referidas a casos de doação, casos de herança e casos de aquisição convergem para a construção da posição de proprietários contrastando com situações de usufruto.

Compulsando o livro de registro de terras referentes à freguesia de São João de Cortes o que se observa é que o registro da doação aos ―pobres‖, datado de 1856, não é

(14)

feito em nome de uma única pessoa, mas atrela o nome da pessoa beneficiada à sua família. Um total de 51 famílias é arrolado neste registro como beneficiadas com pelo testamento do antigo proprietário. Isto sugere que a categoria proprietário aparece aqui condicionada pela família: trata-se, no entanto, de uma situação em que um grupo de famílias foi beneficiada com a doação em distinção às situações, mencionadas acima, em que os laços de parentesco são estabelecidos em referência ou a um herdeiro ou àquele que adquiriu terras por compra. Nesse sentido, a propriedade, objeto da doação, registrada em nome dos ―pobres do lugar‖, pertence na visão dos agentes aos descendentes desse grupo de famílias beneficiadas pela doação; pertence pois a comunidade de parentes, amigos e vizinhos referidos à designada terra da pobreza. Acionam, para tanto, os princípios jurídicos referidos à legislação colonial para a construção da idéia de propriedade ou para a afirmação da identidade de proprietários.

O sentido de propriedade aí atualizado é distinto do sentido de propriedade privada que tem lugar com a instituição do mercado de terras no sistema capitalista (BOHANNAN; 1967: 51-60). A propriedade deste grupo de famílias não se constitui num bem passível de ser comercializado ou dividido em parcelas de terras que possam ser distribuídas para cada grupo familiar. A área delimitada por marcos constitui, na visão dos agentes, uma propriedade pertencente ao conjunto das famílias beneficiadas com a doação. A terra é percebida como comum, já a roça e o quintal pertencem a cada unidade de trabalho familiar. Os agentes estabeleceram regras de uso comum dos recursos naturais que autoriza cada unidade de trabalho familiar a fazer uso das designadas capoeiras livremente: a cada ano estas procedem à escolha da área de plantio botando picada nos terrenos usualmente nos meses de setembro e outubro para as designadas roças de inverno e em julho para as designadas roças de verão. Evitam roçar por dois anos consecutivos num mesmo terreno e o roçado novo é plantado usualmente em frente do roçado velho seguindo sempre determinado rumo, em direção noroeste. Os entrevistados afirmam que assim procedem a fim de garantir a preservação do solo. O período de pousio em Canelatiua já chegou a dezesseis anos, hoje no entanto este período já se reduziu para algo em torno de dez anos. A percepção de que os recursos ecológicos estão se contraindo com os anos leva os agentes a recusarem qualquer iniciativa voltada a divisão da área correspondente à terra da pobreza em lotes individuais. Eles consideram que com os recursos que dispõem para o plantio e a quantidade de famílias de cada um dos povoados não seria possível manter o mesmo nível de produção. Assim procedem

(15)

com relação ao uso dos recursos ecológicos, já a construção das moradias é submetida a uma outra lógica: todos aqueles referidos às famílias beneficiadas com a doação tem direito de construir suas casas em qualquer terreno livre dos sítios dos diferentes povoados mesmo que dele se ausente por algum tempo, mas, uma vez construídas, as casas podem ser negociadas, compradas e vendidas, entre aqueles tidos como herdeiros ou que já aderiram ao grupo de alguma forma _ seja por relações de afinidade ou de parentesco, seja obtendo a autorização dos mais velhos para lá viverem. Ou seja, o que é percebido como passível de negociação são as benfeitorias, os investimentos dispensados à construção das edificações demais benfeitorias relativas ao quintal (que fazem parte das moradias) e não a terra propriamente dita. Combinam assim o uso comum dos recursos ecológicos e a apropriação privada de bens.

Além disso, no contexto de oposição com a Base essa identidade de proprietários das terras onde residem e trabalham também está posta ao se dizerem referidos a um mesmo território étnico e se apresentarem como comunidade remanescente de quilombo, haja vista que o art. 68 do A.D.C.T prescreve como direito a ―propriedade definitiva‖ da comunidade para as terras de quilombo. A conversão da identidade de morador da terra da pobreza para a identidade de comunidade remanescente de quilombo que passam a adotar encontra na identidade de proprietário um denominador comum. Isto difere de outras situações em referência ao território étnico de Alcântara caracterizadas pelo usufruto da terra a exemplo do que se observa nopovoado Samucangaua8. O Sr. Gonzaga, liderança do povoado, e tido como um dos mais velhos de sua comunidade,

8 Em 31 maio de 2004 estive em Samucangaua, Iririzal e Ladeira atendendo a um convite do Sr. Servulo

Borges. Este, como liderança do MABE, havia recebido a época um questionário da Fundação Cultural Palmares a ser aplicado nas comunidades que se autodefiniam como "comunidade remanescente de quilombo". A aplicação deste questionário apresentou-se às lideranças como um instrumento de aplicação do conjunto das regras normativas fixadas em cumprimento ao decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003, que regulamentava o ―procedimento para a identificação, reconhecimento, delimitação, de marcação e a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do ato das disposições constitucionais transitórias." Em menos de uma semana, por ocasião da visita da procurada desta Fundação a Alcântara, as lideranças políticas e sindicais se recusam a submeter o questionário às comunidades, entendendo que ele desconsiderava o conjunto das comunidades que já haviam se colocado como remanescentes de quilombo, inclusas no laudo pericial, concluído no ano anterior. Ademais, ao ser aplicado comunidade a comunidade a aplicação do questionário poderia resultar na exclusão das comunidades que não estivessem devidamente enquadradas nos quesitos que o questionário encerrava. De todo modo, pego de surpresa e pela urgência em ter que entregar os formulários para a procuradora que chegaria em 5 de junho para participar da audiência pública com o relator da ONU, o Sr. Borges chegou a aplicar os questionários nestes três povoados. Ao fim do dia percebera a impossibilidade de o fazer para as cento e trinta e três comunidades restantes e já inclusas na perícia.

(16)

com 77 anos a época da entrevista, ressalta a condição de usufruto para as designadas terras do santíssimo:

Entonces, aí esses portugueses quando chegaram, eles tinham condição, eles foram matando várias áreas de terra para eles, porque tinham condição, eram forte, tinham poder de fazer isso. E agora, essas terras que eles não

desmataram, então foi ficando aqui assim como é esta, terra do estado.

Entonces, os caboclos e os índios foram se afastando, mas foi ficando

descendência. E aqui este Samucangaua aqui, justamente é em descendência dos índios. A maior parte quando saíram dos caboclos foram descendo para o

Itauaú, Pacuri, São João de Cortes, tudo mais, aí as famílias negras foram encostando também aqui. Somente com a escravidão em Jerijó, tinha escravatura de Esperança, tinha escravatura de Flórida, tinha escravatura de Santa Rita, tinha escravatura de Mutiti. Entonces, os portugueses foram se acabando, foram

morrendo. Então os negros foram se aproximando. As famílias dos

portugueses acabando tudo, entonces aqueles povos que eram escravos foram ficando, tomando de conta como dono. E sem nunca ninguém ter comprado

essas terras. As terras eles chegaram, marcaram para ali. Agora se tem de

herança, os que vão morrendo na frente, vai deixando para os que ficam. É assim que é a história. E aqui o negro todo o tempo sofrendo. Todo o tempo sofrendo. Entonces, nós era para ter o quê? Por que não é só aqui no Maranhão. E hoje nós estamos todo mundo liberto, entonces diziam: ah! foi a princesa Isabel que liberou os negros, alforriou os negros e tudo isso. Mas não, pelo menos para cá, não é assim como vejo contar. Porque o negro teve de sair de uma fazenda e procurou um mocambo e ali foi chamando os outros. Nas horas mortas ele ia e roubava numa fazenda. Então, ele já tava com uma maioria de negro. Entonces, ele ameaçou guerra. E a princesa, que já estava um tanto comovida, então ela resolveu liberar os negros. E é por isso que os negros se acham hoje cada qual fazendo sua agriculturazinha para si e vivendo da maneira que pode.

(...)

Depois que só de, quando chega lá debaixo do mangueiral, lá fazia um rumo da terra do Samucangaua, chamavam Santíssimo aqui. Terra do santíssimo. Hoje

é terra do estado, declara como terra do estado. Mas, antigamente, eles

vinham com esse negócio de Santíssimo. (...)

Agora pra aí, é terra do Mutiti, é terra do Jarucaia e é terra do Jerijó. Justamente, onde tinha mais fazendas sentadas dos portugueses, quando vieram,

marcando aqueles quarteirões de terra para eles e essas terras nunca ninguém comprou. Entonces, chegaram e cercaram o tanto que entenderam.

Então é assim, esse povo ninguém comprou nada. Agora de lá para cá muitos já vem comprando, né? Comprando deles, da mão deles, muitos já foram comprando. Porque essa terra aqui ninguém comprou de Deus. Deus preparou e deixou para nós. E como ela pode ter dono?

(GONZAGA; Entrevista: 31 maio de 2004) (grifos meus)

(17)

O território referente ao povoado de Samucangaua é considerado, por aqueles que lá residem e trabalham, como relativo a terras que nunca fora passível de compra e venda. Na interpretação destes agentes nem mesmo as terras referidas às fazendas dos chamados portugueses teriam sido por eles compradas. Estes ao chegarem simplesmente puseram cercas delimitando a área de suas fazendas; sendo apenas com saída destes portugueses que as terras de suas fazendas entram para o mercado. As terras de Samucangaua, no entanto, jamais deram lugar a estabelecimentos agrícolas como os engenhos ou as fazendas de algodão, comuns em Alcântara durante algumas décadas dos séculos XVIII e XIX. Segundo nosso informante, antes das famílias negras para lá se dirigirem ela havia sido ocupada por índios e caboclos, os quais as teriam deixado como herança tendo partido em outras direções. A terra fora deixada como descendência, na visão dos agentes, muito embora não se percebam como descendentes destes. Os laços de parentesco são estabelecidos com as famílias de escravos referidas às fazendas daquela região. A entrevista com deste senhor deixa entrever, assim, que em situações de usufruto o conceito de propriedade é posto em cheque, sendo deslegitimado como instrumento que assevere direitos aos agentes.

Em contrapartida, ao localizar o ―registro da declaração de terras pertencentes aos pobres‖ no Arquivo Público, em São Luís, tive a possibilidade não apenas de disponibilizá-lo aos moradores da designada terra da pobreza, como pude contar com a interpretação do Sr. Domingos sobre o teor deste documento. Tão logo retornei a Canelatiua, em uma pequena reunião na sala de sua casa na presença de sua esposa, de seu filho mais velho, o delegado sindical do povoado, e de Neta procedemos à leitura deste documento. Compulsando o documento percebemos que as 51 famílias beneficiadas estão referidas a 24 títulos ou sobrenomes.

Utilizando-se de expressões como gente daqui, famílias daqui ou filho do lugar, o Sr. Domingos procedeu à separação entre os sobrenomes que efetivamente pertencem a esse lugar e os que são por ele identificados como referidos a outras localidades; precisou nome por nome, família por família quem daquela lista que eu lia para ele foi beneficiada pelo testamento do S. Teófilo José de Barros. Para tanto, o critério por ele acionado é remetido aos atuais moradores: são estes que em sua visão autorizam a interpretação adequada daquele documento. Sugere, deste modo, que o parentesco é construído do presente, isto é, são os laços de parentesco que entrelaçam as famílias desta comunidade no tempo presente que informam sobre o pertencimento destas famílias a este lugar ou

(18)

que informam sobre as famílias beneficiadas com a doação. Enquanto eu citava um determinado nome referido a certa família ele procedia às correlações: ―era gente de Romana‖ ou ―era gente do velhão Raimundo Serejo, era dessa família‖ ou, de forma mais pontual ―era gente daqui‖. Para certos títulos sua fala era taxativa: ―não era gente daqui‖; para outras a exemplo da família Araújo que consta referida na relação deste documento sua fala é explicativa, conforme o trecho da entrevista abaixo:

Domingos: antes que teve isso. Porque olha, a senhora me deu ontem aquele papel que fala famílias, que eu me lembrei hoje na roça, essa família era dos pretos de Itapuaua, lá, o pessoal de lá é só desse título.

Patrícia: qual é? Araújo?

Domingos: Araújo! É, é só esse título. Eu acho que nessa mistura, eles vieram, né? Aí quando a pegação terminou, eles ficaram por ali, pelo Aru, pelo mato, porque que aí tudo era mato.

Patrícia: mas a dona Maria dos Remédios, mulher de seu Hilton, tem Araújo. Mário tem Araújo.

Domingos: sim, mas é de lá. Delina; veio de lá

Patrícia: como é que é? É Bento Araújo? Domingos: não, Bento é Diniz.

Patrícia: Bento é Diniz? E de onde vem o Araújo de Mário? Domingos: a Raimunda.

Patrícia: a Raimunda era a avó dele?

Domingos: avó dele, mãe de Helena. E Helena é Araújo e teve Maria, Maria Araújo teve esse Araújo.

Patrícia: e Mário foi criado pela Helena, pela avó. E a mãe dela é que chamava Raimunda?

Domingos: Raimunda Araújo. Patrícia: e essa Raimunda era de lá?

Domingos: era de lá, de lá veio pra Pepitiua, da Pepitiua veio pra cá. Araújo é só de

lá. Para cá não tem Araújo. Agora, a Maria de seu Hilton, ela é Araújo, mas ela foi

dada para uma família que é Sá e Azevedo. Patrícia: mas, a Dionísia, a mãe dela é Araújo?

Domingos: é Araújo. É filha da Raimunda Araújo. Eram três filhas, Dionísia, Maria e Helena, da Raimunda mais Bento. Agora Bento era Diniz, era irmão de Raimundo Camum, pai de Alfredo que chamava Bizagal. O Bento era tio de Alfredo, irmão do pai de Alfredo. Era Bento, era Manuel, que era Manuel Velho, era Camum, João Cação e Francisca.

Patrícia: Diniz. Domingos: Diniz.

Patrícia: mas eles não eram do Cajueiro, não? A família Diniz?

Domingos: não, não, não. Eles eram do Araraí, da família Diniz Azevedo, que lá tinha uma família Diniz e uma Azevedo, lá no Araraí. A família de Antônio Cândido era Diniz e a família de dona Matilde era Azevedo, Azevedo e Correia, ela era Azevedo e casou com um Correia, ficou Matilde Azevedo Correia, tá vendo?

(19)

(ENTREVISTA: 29/01/2004). (grifos meus)

Intrigado com a referência da família Araújo no registro de terras de 1856, o Sr. Domingos é capaz de desenredar a colocação de membros desta família na designada terra da pobreza, seja através dos laços de afinidade ou parentesco, seja através das situações de conflito que constituem uma história particular a exemplo da chamada pegação.

A explicação oferecida à presença da família Araújo nestas terras evidencia o domínio do narrador sobre as interrelações suscetíveis de serem observadas entre famílias e povoados: a despeito dos laços de afinidade autorizarem o estabelecimento de relações de reciprocidade positiva entre agentes referidos a diferentes domínios territoriais, permitindo o trânsito dos agentes entre os diferentes povoados, os nomes de família são imputáveis a determinados lugares e atrelados ao acesso das famílias a determinadas terras.

Nesse sentido, a doação é percebida como limite que torna legítima a propriedade de certo número de famílias sobre a chamada terra da pobreza, mas ela não inibe a presença de membros de famílias referidas a outras unidades de ocupação e residência. As relações de parentesco ou de afinidade, tanto quanto o controle que elas suscitam, podem ser consideradas como instâncias de construção dessa territorialidade específica: a terra da pobreza. Isto é, a construção desta territoridade não inibe os vínculos dados pelo casamento, por exemplo, mas também não dispensa o controle sobre eles de forma a permitir aos agentes proceder à distinção entre as diferentes famílias tidas como ―de dentro‖ ou ―de fora‖, insinuando com isso que a designada terra da pobreza é percebida como uma modalidade específica de territorialidade. Modalidade esta que bem pode ser traduzida através da noção de ―território de parentesco‖ 9

, na medida em que seja no

9 Tomo aqui a expressão utilizada por: COMERFORD, John Cunha . 2001. "Como uma família":

Sociabilidade, reputações e territórios de parentesco na construção do sindicalismo rural na Zona da Mata de Minas Gerais. Tese de doutorado em Antropologia PPGAS – Museu NacionaL– UFRJ. Rio de Janeiro. Ao tratar das formas de sociabilidade dos camponeses referidos à região da Zona da Mata de Minas Gerais, Comerford considera-as como delimitadoras de territórios de parentesco porquanto é nas práticas e nas retóricas de familiarização que esses camponeses se definem e também porque têm o parentesco e a família como referência discursiva básica. Nesse sentido mostra como que o território administrativo é organizado em referência ao território de parentesco.

Na presente pesquisa privilegiaremos um possível enfoque sugerido por essa expressão com referência a um padrão de ocupação observado: residências e locais de trabalho daqueles que se consideram parentes autorizam a associação pelos agentes sociais dos nomes de família a determinados lugares, delimitando um território de parentesco, independentemente da existência de laços de consangüinidade. Estes territórios

(20)

âmbito de suas relações cotidianas, seja no âmbito das relações com o dispositivo legal, os agentes acionam critérios de percepção e discernimento que os permite traduzir as ligações de parentesco em representações espaciais. Em si tratando das relações que mantém com o código legal, este controle sobre a distribuição espacial das diferentes famílias nos diferentes lugares evidencia, ao que me pareceu, a atualização de um discurso de direito que é acionado pelos agentes através das relações eles mantém ―para fora‖.

Este discurso é acionado em face da situação de conflito e sinaliza para o entendimento que dispõem das expectativas de direito do grupo. Neste contexto os agentes são levados a acionarem elementos de discernimento que hierarquiza a comunidade, cindindo-a em dois blocos: aqueles tidos como ―de dentro‖, os designados filhos do lugar e aqueles os tidos como ―de fora‖, que aderiram ao grupo. Trata-se de um discurso acionado no âmbito das relações que os agentes mantêm com o código legal e que traduz uma determinada expectativa de direito. O discurso ―para dentro‖, no entanto, me pareceu ser mais inclusivo porquanto não exclua as famílias provenientes de outros lugares; incorporando todos os que lá residem, seja por laços de parentesco, afinidade ou adesão, assim como aqueles que, a despeito de residirem fora, têm a terra da pobreza como referência. Ou seja, tal discurso soa como inclusivo porquanto não exclua as famílias provenientes de outros lugares, assim como pode incluir não-residentes (os parentes que residem fora).

O papel em punho sempre que instado a dirigir-se a forasteiros indica, ainda, que o narrador ao dirigir-se àqueles que consultam a sua memória não apenas seleciona nos acontecimentos do passado os elementos pertinentes para proceder sua narrativa, mas dentre estes privilegia situações de conflito referidas há tempos pretéritos. A história e o conflito _ou a história dos conflitos _ são elementos tidos como pertinentes para falar sobre si, isto é, sobre o grupo que ele representa. O narrador incorpora, assim, às narrativas a descrição das relações de conflito com aqueles tidos como antagonistas históricos do grupo. Sugere por essa via que a identidade do grupo de parentes é indissociável da situação de conflito face aos dispositivos legais, seja no contexto atual em face da desapropriação das terras onde residem e cultivam, seja no contexto referido

incluiriam além de parentes (consangüíneos e afins), amigos, vizinhos e aqueles que aderiam ao grupo que mantém entre si laços de reciprocidade positiva.

(21)

ao litígio de 1915. O conflito evidencia assim uma relação ―para fora‖ sugerindo que as identidades, seja de morador da terra da pobreza, seja de comunidade remanescente de quilombo são construídas no âmbito de uma relação.

A construção dos laços de parentesco também não dispensa os vínculos (consangüíneos ou de vinzinhança) com aqueles que viveram no tempo da chamada pegação, como nomeiam as formas de recrutamento obrigatório em cumprimento às exigências das legislações coloniais que impunham a prestação de serviços militares. Conforme os relatos os filhos dos moradores eram procurados por soldados para servir à guerra. Para se esquivarem do recrutamento, eles se escondiam no mato ou metiam-se por baixo das saias das mães. O tempo de duração da guerra não se sabe ao certo, mas há uma indicação através destes filhos que ainda jovens eram escondidos nas matas por seus pais e só deixavam seus esconderijos em idade avançada. A despeito de possíveis imprecisões, a expressão ―pegado a cachorro no mato‖ atualizada para descrever o contexto referido a pegação sugere a vigência de atos de imobilização da força de trabalho que bem poderiam estar dispersos no tempo histórico mas referidos a uma mesma posição de subordinação. Expressão esta também atualizada no contexto referido às chamadas ―reduções‖ de forma a denotar os atos de aprisionamento de índios para a constituição dos aldeamentos dos jesuítas na região. O mais significativo nos relatos sobre a pegação pareceu-me ser o seu reverso: a afirmação da liberdade numa sociedade escravocrata. Figuras heróicas não se ausentam destas narrativas, sempre há aquele que como Raimundo Torres escapava a todas as tentativas de aprisionamento. Sob certa perspectiva, essas narrativas podem ser lidas como uma afirmação simbólica da condição de ―libertos‖ em um território autônomo, livre das grandes plantações.

A esse respeito vale observar que as iniciativas da coroa portuguesa e dos governadores provinciais para consolidar as lavouras de algodão e cana de açúcar no município de Alcântara sugerem o estabelecimento de empreendimentos agrícolas que tiveram dificuldade para manter sua produção no mercado externo. O incremento às atividades agrícolas, subvencionado pela mencionada Companhia Geral de Comércio, somado às condições propícias do mercado externo, em razão do curto período em que os Estados Unidos deixa de exportar algodão, durante as lutas pela Independência (1783) corroboram, certamente, para tornar o Maranhão o segundo maior centro exportador deste produto na colônia, em fins do século XVIII. Os proprietários das fazendas de algodão localizadas em Itapecuru e em Alcântara foram os principais beneficiados neste

(22)

processo. Não obstante, o início do declínio destas ocorra tão logo cessem os subsídios desta Companhia, em função de sua falência em 1778, e tão logo retome os Estados Unidos seu lugar no mercado internacional. Ademais os preços do algodão no mercado externo tendem a declinar, atingindo em 1819 a sua mais baixa cotação de mercado. A conjuntura do mercado externo impede os produtores maranhenses de manter a posição de segundo maior exportador de algodão da colônia. A ameaça de falência leva-os, inclusive, a adotar como estratégia a venda de escravos para o sul do país, decretada a extinção do tráfico de escravos em 1846. O mercado do algodão só volta a apresentar condições mais favoráveis com a Guerra de Sessão (1861-1865), pois a ausência da produção norte-americana elevou os preços no mercado externo.

O mesmo poderia ser pensado em relação ao designado ―ciclo do açúcar‖ durante o Império. No caso deste produto, os comentadores regionais são levados a eleger como ―período áureo‖ o fim do século XIX, entre 1873 e 1882, quando a indústria açucareira maranhense teria adotado o modelo da plantation em conformidade à costa nordestina. Tem-se, no entanto, o registro de apenas um único engenho central no Maranhão: o engenho São Pedro localizado nas margens do rio Pindaré; que, segundo Viveiros, só começa realmente a funcionar em 1884 (VIVEIROS; 1954:535). E, no final da década de 1880, segundo o historiador Jerônimo de Viveiros a desvalorização da ―fazenda agrícola maranhense” chega a 90% levando os proprietários a venderem 70% dos engenhos de cana (VIVEIROS; 1954: 557- 558), evidenciando assim que os lavradores não mantiveram por muito tempo esse engenho central. As iniciativas no sentido de retomar a lavoura canavieira na província de Alcântara remetem, no entanto, à administração do governador Joaquim Franco de Sá: filho do sesmeiro Romualdo Franco de Sá, define como política de governo a implantação de engenhos de açúcar. Os incentivos creditícios facultaram à instalação de doze engenhos nas duas décadas seguintes que inclusive substituíram a tração animal pela máquina a vapor como incremento à produção. Para tanto, com o fim da guerra da balaiada (1841), o governo provincial teve como objetivo retomar a disciplina de trabalho nas fazendas. Esta política de governo implicara num conjunto de medidas de repressão aos quilombos cuja implementação ficara a cargo dos Guardas Campestres, Juízes de Paz e Capitães do Mato. A baixa do preço do produto no

(23)

mercado internacional não permitiu aos produtores de açúcar maranhenses sustentarem minimamente a concorrência no mercado externo, dominado pelas Antilhas 10.

As narrativas sobre a pegação e os heróis eleitos pela lembrança de feitos memoráveis constituem, a meu ver, atos de afirmação da percepção que o grupo guarda de si: seja em relação às políticas de governo da sociedade colonial para retomar a disciplina do trabalho, seja em relação às atuais medidas de desapropriação das terras, os agentes afirmam uma situação de construção de um ―campesinato livre‖ (MOURÃO; 1975: 45)11. Por essa razão, é que ter um parente na designada terra da pobreza implica na afirmação da idéia de um território autônomo livre das grandes plantações que na prática sempre eximiu os agentes de pagar foro a pretensos donos.

Ao detalhar a expectativa de direito da coletividade a qual pertence, o Sr. Domingos Ramos Ribeiro explicita, portanto, a correlação entre dois argumentos distintos: o argumento jurídico não dispensa as relações de parentesco que entrelaçam as famílias beneficiadas pela doação. Conforme exposto, o plano jurídico é acionado pelos agentes sociais como dimensão constitutiva dessa unidade social designada terra da pobreza. Ele é percebido como uma forma de legitimar a dominialidade sobre a qual se tem o registro da doação. Sob esta ótica, a doação informa e conforma o território que os agentes têm como referência, tanto quanto delimita o universo daqueles reconhecidos como herdeiros. Se o critério jurídico é acionado para explicar o que constitui essa unidade social, as relações de parentesco ao revelarem o pertencimento das famílias herdeiras àquele lugar informam sobre como se constitui essa unidade social.

10

Segundo Celso Furtado, a lei de 1739 reserva o mercado inglês para o açúcar produzido pelas colônias da coroa britânica. Para este autor, justamente pelo fato desta lei ter garantido o monopólio do mercado inglês aos produtores de açúcar das Antilhas, que foi possível aos produtores brasileiros recuperarem alguns mercados. A retroação do mercado de açúcar no decorrer do século XIX, no entanto, coloca a produção brasileira em desvantagem face à concorrência com as Antilhas.(FURTADO; 1970:89).

11 Não se trata, contudo, simplesmente de considerar a formação do protocampesinato escravo referido à

plantation, conforme as considerações de Sidney Mintz (1992), isto é, a situação social enfocada não remete àqueles núcleos de produção agrícola, observados dentro da plantation, que possibilitavam a produção autônoma dos escravos em parcelas de terras, seja para a própria subsistência, seja para a comercialização. Em referência ao processo de constituição dos povoados de Alcântara, pode-se aventar a ocorrência desta autonomia fora dos limites estritos das fazendas de algodão e cana baseadas na monocultura e no trabalho escravo, uma vez que a capacidade coercitiva dos mecanismos repressores da força de trabalho variando de intensidade na colônia ou no império e o processo, lento e gradual, de desagregação destas unidades de produção econômica facultaram situações de acesso à terra e de autonomia produtiva que se deram em épocas diferentes; há áreas de colonização antiga e áreas de colonização mais recente .

(24)

Considerando tais argumentos como instâncias centrais no discurso do narrador desta coletividade de parentes, amigos e vizinhos, tanto quanto condição sine qua non para a compreensão da construção da identidade de morador da terra da pobreza, me disponho no decorrer do meu trabalho de tese a esmiuçar os pormenores destes argumentos, explicitando e analisando as clivagens temporais percebidas pelo narrador como elementos constitutivos da história de sua coletividade: _ assim é que nos itens intitulados ―De fazenda dos índios a Sesmaria‖, ―De Sesmaria a Terra Doada‖, ―De Terra Doada a Terra Registrada‖, ―Conflito de 1915‖, ―A ameaça de virar terra da Base‖ descrevo o processo de constituição de um território que é bem circunstanciado, definido e determinado e não "distribuído, fragmentado ou partilhado" como quis sugerir o mapa da terra da pobreza produzido pelos militares no qual ela aparece cindida em quadro áreas: terras da pobreza 1, 2, 3 e 4. De outra parte, ainda me detenho nas relações de parentesco que me autorizam a pensar a designada terra da pobreza como um ―território de parentesco‖, intencionando com isso tratar estes dois argumentos como instâncias de análise que me permitam descrever as vicissitudes da terra da pobreza enquanto uma territorialidade específica.

Busco, por ora, me concentrar no significado que me parece estar subjacente na atualização destes argumentos pelo porta-voz dos interesses desse grupo de parentes beneficiados com a doação, significado esse que sustenta e legitima a própria idéia de terra da pobreza: isto é, dizer-se morador da terra da pobreza significa dizer-se proprietário de terras que foram doadas num passado longínquo.

A construção da idéia de propriedade e da identidade de proprietários

Ao organizar em diagramas os laços de parentesco das famílias beneficiadas pela doação registrada em cartório, fornecidos pela memória daquele que detém a competência e a autoridade para exercer a função de narrador da história desta coletividade, era como se estivéssemos, eu e meu informante, organizando os laços de parentesco, e por extensão de afinidade, entre aqueles que têm direito de propriedade assegurado pelo termo da doação. Listávamos os herdeiros, os proprietários destas terras. Um trabalho em parceria, mas com divisões de tarefas estabelecidas.

Referências

Documentos relacionados

Assim, a partir do levantamento de propriedades do solo, classificação taxonômica, levantamento planialtimétrico e geração do mapa de usos do solo da área do Câmpus,

Costa (2001) aduz que o Balanced Scorecard pode ser sumariado como um relatório único, contendo medidas de desempenho financeiro e não- financeiro nas quatro perspectivas de

Principais mudanças na PNAB 2017  Estratégia Saúde da Família/Equipe de Atenção Básica  Agentes Comunitários de Saúde  Integração da AB e Vigilância 

Este trabalho teve por objetivo avaliar a efetividade da prevenção à cárie do cimento Vitremer (3M), do verniz fluoretado Duraphat (Colgate) em superfícies oclusais de

Neste contexto, o estudo foi realizado em quatro fragmentos, remanescentes de mata ciliar, por meio de levantamento florísticofitossociológico, localizados respectivamente em

Outro ponto importante referente à inserção dos jovens no mercado de trabalho é a possibilidade de conciliar estudo e trabalho. Os dados demonstram as

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

O presente trabalho tem como objetivo geral analisar como instrumentos interativos podem contribuir no processo de aprendizado e do desenvolvimento do indivíduo,