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Colégio Coração de Jesus e Ginásio Catarinense: cotejo de culturas escolares generificadas ( ) *

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Academic year: 2021

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Gênero e sexualidade nas práticas escolares. ST 7 Norberto Dallabrida

Letícia Cortellazzi Garcia

Universidade do Estado de Santa Catarina

Palavras-chave: Ensino secundário, relações de gênero, Florianópolis

Colégio Coração de Jesus e Ginásio Catarinense: cotejo de culturas escolares generificadas (1935-1945)*

O presente trabalho procura apresentar uma análise comparativa entre as práticas escolares vigentes no Ginásio Catarinense, exclusivamente masculino, e no Ginásio Feminino do Colégio Coração de Jesus, entre os anos de 1935 e 1945, a partir das desigualdades entre homens e mulheres que se colocavam, nesse momento histórico, no ensino secundário e na sociedade brasileira. O foco é colocado sobre algumas diferenças entre as “disciplinas saber” – matérias escolares que eram definidas em nível nacional pelo Ministério de Educação e Saúde Pública e ressignificadas pelo corpo dirigente e docente das escolas – e as regulações corporais, que eram colocadas em marcha por diversas estratégias escolares como o controle do tempo e do espaço escolar, exercícios físicos, práticas de esportivas e formas de organizar o internato.

O Colégio Coração de Jesus e o Ginásio Catarinense foram instituídos em Florianópolis – capital do Estado de Santa Catarina – entre o final do século XIX e início da centúria seguinte, como parte da reestruturação da Igreja Católica no Brasil e em Santa Catarina, alavancada pela implantação do regime republicano e laico. O Colégio Coração de Jesus foi fundado pela Congregação das Irmãs da Divina Providência em 1898 e, nas primeiras décadas de existência, ofereceu educação infantil e os cursos primário e normal. Em 1935 ele criou o chamado “Ginásio Feminino”, o único curso fundamental do ensino secundário dirigido somente para mulheres em Santa Catarina até meados da década de 1940. O Ginásio Catarinense foi criado pelos padres jesuítas em 1905 e oferecia especialmente ensino secundário aos adolescentes homens. Trata-se de instituições formais das elites catarinenses que se localizavam na capital catarinense e ofereciam regime de internato, sendo dirigidas por congregações católicas de ascendência alemã.

A questão de pesquisa foi construída a partir do conceito de relações de gênero, que é trabalhada na perspectiva de Joan Scott1. Para a autora, a informação sobre o assunto “mulheres” é necessariamente informação sobre os homens, isto é, que um implica o estudo do outro. Assim sendo, este uso rejeita a validade interpretativa da idéia de esferas separadas e sustenta que estudar as mulheres de maneira isolada perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo,

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tenha muito pouco ou nada a ver com o outro sexo. Entende-se que o gênero torna-se uma maneira de indicar “construções sociais” – a criação inteiramente social de idéias sobre os “papéis” adequados aos homens e às mulheres. Além disso, ele pode ser percebido também como forma primeira de significar relações de poder, ou seja, as estruturas hierárquicas repousam sobre percepções generalizadas da relação pretensamente natural entre masculino e feminino.

Anotações manuscritas por Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, sobre as diretrizes de reforma do ensino secundário, na década de 1940, evidenciam que os programas de ensino deveriam ser efetuados considerando a “demanda” de cada clientela:

Os programas devem ser organizados com a convivência educativa de cada sexo. Certos programas não podem deixar de ser idênticos. Em outros, far-se-á a distinção não na matéria, mas nas instruções pedagógicas. Em outros, a distinção será recomendada em tudo, recomendações pedagógicas e matéria a ensinar2.

Os saberes escolares veiculados no curso ginasial do Colégio Coração de Jesus e do Ginásio Catarinense eram recortados e organizados, cada um de sua maneira, para adolescentes das elites. Tratava-se de conhecimentos disciplinares que conferiam distinção social e cultural, uma vez que se pretendia imitar os padrões europeus. Portanto, “o currículo não era constituído de conhecimentos válidos, mas de conhecimentos considerados socialmente válidos3”. Este, então,

pode ser considerado como constituído e também como produtor de diferenças de gênero, pois, como afirma Petitat4, “a seleção dos conteúdos escolares liga-se sempre a uma seleção dos públicos escolares, através de laços mais ou menos fortes (...) A escola é uma articulação seletiva de conjuntos culturais e grupos sociais, e participa de sua produção e reprodução”.

A disciplina Educação Física voltada às alunas do ginásio do Colégio Coração de Jesus não implicava o incentivo à prática de esportes considerados violentos, pois poderiam prejudicar a saúde das futuras reprodutoras. Era preciso evitar jogos que supunham o contato físico ou uma certa dose de agressividade, uma vez que estes vertiam contra o ideal de feminilidade, ligada à fragilidade, à passividade e à graça. Os esportes mais adequados seriam então o pingue-pongue, o tênis, o vôlei, a patinação, entre outros.

Por outro lado, no Ginásio Catarinense a prática de exercícios físicos era bastante incentivada pelo corpo dirigente e docente do colégio, sendo o futebol o jogo mais procurado e praticado pelos alunos6. Assim, é possível identificar, através de uma “partida de futebol”, o intuito da instituição em constituir uma sociedade de homens cada vez mais competitivos, agressivos, de iniciativa, eficientes, vitoriosos e preparados para o trabalho em conjunto. Desta forma,

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ressignifica-se esta prática de divertimento em um jogo de competição, em que a exclusão é a regra principal, porque se pretendia chegar aos vencedores, isto é, aos melhores.

Verificar-se, assim, como certos aspectos esportivos estão relacionados às “qualidades femininas e masculinas”, isto é, às construções de gêneros. Tanto a “barra de equilíbrio”, usada no Colégio Coração de Jesus, quanto o “cavalo” utilizado nas práticas do Ginásio Catarinense, são partes integrantes dos equipamentos utilizados na “Ginástica Olímpica”. No entanto, verifica-se que o primeiro valorizava o equilíbrio, a graça, a postura ereta e os limites do pisar e era de uso exclusivo das mulheres, enquanto o outro desenvolve a força, a velocidade e uma soltura maior do corpos, sendo utilizado pelos adolescentes homens.

A prática de esportes em voga nos colégios para as elites na capital catarinense não apenas preocupava-se com a saúde e o disciplinamento dos(as) alunos(as), mas era também um acréscimo de saber que conferia-lhes distinção social. A prática de tênis, por exemplo, difundida tanto no Colégio Coração de Jesus como no Ginásio Catarinense fazia parte desse projeto de “escolarização elitista”. O tênis é um esporte que não demanda muita força física, mas muito treinamento e equilíbrio, sendo praticado no início do século XX especialmente pelas elites tanto nos países capitalistas do centro como no Brasil. Nas escolas das classes abastadas como o Ginásio Catarinense e o Colégio Coração de Jesus, o tênis era pratica do lado de outro esportes leves.

As aulas de Educação Física nestas instituições de ensino estavam, ainda, visceralmente relacionadas a uma disciplina escolar de corte militar, ou a um “espírito de militarização” e de controle do corpo, que estava afinado com o programa político da “Era Vargas”. Portanto, esses alunos e alunas deveriam, também, participar dos desfiles cívicos, que eram obrigatórios e tinham a finalidade de desenvolver os sentimentos patrióticos, louvar os “grandes feitos” dos “grandes homens”, como lembra uma ex-aluna:

Os desfiles de data cívica era uma competitividade enorme, porque queríamos ser e marchar melhor que o Instituto de Educação, melhor do que o Catarinense. Nós não tínhamos tambores, eram uns tamboretezinhos que as meninas tocavam, mas ai vinha aquela banda magnífica do Catarinense, do Instituto de Educação, da Escola Técnica, ai que inveja... isso foi muito bom. E quem carregava as bandeiras e os estandartes eram as mais altas e melhores na educação física, as atletas, era uma honra 7.

Conforme a Lei Orgânica do Ensino Secundário de 9 de abril de 1942 – capítulo VII, artigos 22 e 24 – os estabelecimentos de ensino secundário deveriam tomar cuidados especiais e constantes com a educação moral e cívica de seus alunos, buscando formar a compreensão do

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valor e do destino do homem, e, como base de patriotismo, a compreensão da continuidade histórica do povo brasileiro e dos seus problemas e desígnios. Ademais, esta educação não deveria ser dada em tempo limitado, mas em todas as atividades e circunstâncias, as quais deveriam transcorrer em termos de elevado fervor patriótico.

No Ginásio Feminino do Colégio Coração de Jesus eram privilegiadas as “disciplinas-saber” situadas no campo das humanidades e línguas. As Ciências Naturais eram reduzidas apenas às noções básicas, pois, a educação das elites femininas, sobretudo, “visava ampliar a cultura geral das mulheres, de tal modo que pudessem dialogar com seus maridos, sem deixar de faltar-lhe o saber-fazer que poderiam tornar mais agradável seu mister de dona-de-casa”.8 A maioria das

disciplinas era voltada, então, cada uma de sua maneira, ao exercício da maternidade e ao bom desempenho no lar, construindo um habitus de esposa e mãe burguesa.

Através das entrevistas realizadas com ex-alunas, foi possível identificar as diferenças entre as aulas no Ginásio Feminino do Colégio Coração de Jesus e no Ginásio Catarinense, o que acaba por refletir os conteúdos distintos ensinados para os homens e para as mulheres. Constata-se que as instituições escolares operam recortes específicos no conhecimento gerado pela sociedade a partir de critérios culturais e históricos, em que alguns conhecimentos são legitimados para cada um dos sexos e outros são preteridos. Este processo de “seleção cultural escolar” é contínuo e conflituoso, pois está transversalizado por relações de poder existentes na escola e provenientes da sociedade. Uma das entrevistadas, cujos irmãos estudaram no Ginásio Catarinense, conta:

Meus irmãos que estudaram no Catarinense nunca fizeram cursinho pra vestibular, entraram na faculdade com a maior facilidade. Nós tínhamos um ‘Grêmio Estudantil Coração de Jesus e Catarinense’ e o terceiro científico do Catarinense dava banho. Havia essa discriminação com as mulheres, diziam que a nossa cultura era de capa de revista, mas não se retrucava, as mulheres eram passivas, a gente aceitava as coisas, porque isso já vinha de casa mesmo nunca se teve razão. O professor sempre tinha razão, os pais diziam, e eu acho que estava certo9.

Além de um espaço de aprendizagem de “disciplinas-saber”, a escola pode ser percebida, também, como uma “instituição de seqüestro” e o internato “aparece como o regime de educação senão o mais freqüente, pelo menos o mais perfeito10”, pois, por meio de diversos mecanismos cotidianos de regulação corporal, intervia-se sobre os corpos, tornando-os treinados e obedientes. Ademais, ele pode ser visto também como um espaço de sociabilidade entre iguais.

Nos dormitórios existentes no ginásio feminino, as camas eram todas de ferro separadas por meio de cortinas brancas, que eram móveis para maior arejamento e vigilância. Cada aluna dormia numa cela formada por cortinas que, quando fechadas, cercavam totalmente cada uma das camas.

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necessidade eventual. A preocupação em esconder o corpo com o propósito de produzir ou reforçar o pudor feminino era bastante recorrente, além disso, os dormitórios eram lugares de fiscalizar e a sexualidade das alunas. Segundo uma ex-interna ”[...] não podia falar, a gente fechava as cortininhas e se a gente mexesse e fizesse barulho na cama que era de ferro, daí a freira chamava atenção: ‘pchii, pchii’ e isso era pela noite a fora12”. Essa lembrança é pertinente na medida em que mostra o cuidado das freiras com a ordem e a disciplina do dormitório, mas, sobretudo acerca da masturbação e do homossexualismo feminino.

Os dormitórios dos alunos internos do Colégio Catarinense se diferenciavam daqueles do “colégio das meninas”, uma vez que não havia cortinas para separar as camas de um aluno para o outro, contudo, este fator proporciona uma maior fiscalização. É sabido que as questões sobre o sentimento de culpa e pudor recaíam mais na educação das mulheres, pois eram elas que não deveriam expor seus corpos ou ter relações sexuais antes do casamento. Sendo assim, o controle da sexualidade parecia ser mais direto e objetivo para os meninos.

Ademais, a desigualdade de gênero pode ser constatada no Ginásio Catarinense e no Colégio Coração de Jesus, nas décadas de 1930 e 1940, em relação ao oferecimento dos cursos do ensino secundário. A Reforma Francisco Campos (1931) criou dois ciclos para o ensino secundário brasileiro: o curso fundamental, com cinco anos de duração, e o curso complementar, realizado no período de dois anos. Desta forma, em 1937 foi instituído o “Curso Complementar Pré-Jurídico” do Ginásio Catarinense, destinado aos estudantes que ambicionavam ingressar nos cursos superiores de Direito. A criação desse curso complementar do ensino secundário no colégio dos padres jesuítas estava articulado com a fundação da Faculdade de Direito, em Florianópolis, no início da década de 1930. Por outro lado, o Colégio Coração de Jesus oferecia somente o curso fundamental do ensino secundário, que proporcionava formação geral e não habilitava para o ingresso nos cursos superiores. Somente em 1947 o educandário das Irmãs da Divina Providência passou a oferecer o Curso Científico – segundo ciclo do ensino secundário de acordo com a Lei Orgânica do Ensino Secundário (1942).

Enfim, nas décadas de 30 e 40 do século XX, nos dois principais colégios de ensino secundário de Santa Catarina, dirigidos por congregações religiosas, constata-se flagrante divisão de gênero fundamentada no discurso da Igreja Católica. Essa divisão determinava que as adolescentes deviam ser educadas no Colégio Coração de Jesus pelas Irmãs da Divina Providência, enquanto que a formação dos adolescentes era conduzida pelos padres jesuítas no Ginásio

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no sentido de produzir sujeitos das classes abastadas para a sociedade burguesa “tradicional”, qual seja: preparar as moças para serem boas mulheres e mães especialmente no espaço privado e familiar e fabricar os moços para serem lideranças na vida pública e nas empresas privadas.

* O presente trabalho é parte integrante da pesquisa intitulada “Ensino Secundário em Santa Catarina entre as décadas de 1930 e 1950: redes e culturas escolares”, financiada pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e pelo CNPq.

1 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade: mulher e educação. Vol. 15, nº 2, Jul\Dez, 1990. p.05\22

2 SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria Bousquet; COSTA, Vanda Maria Ribeiro Costa. Tempos de

Capanema. São Paulo: Paz e Terra: FGV, 2000, p. 124.

3 SILVA, Tomaz Tadeu da. Apresentação. In: GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995 (Ciências Sociais da Educação). p. 08.

4 PETITAT, André. Produção da escola/ produção da sociedade: análise sócio-histórica de alguns momentos decisivos da evolução escolar no ocidente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994, p.38.

6 DALLABRIDA, Norberto. A fabricação escolar das elites: o Ginásio Catarinense na Primeira República. Florianópolis: Cidade Futura, 2001.

7 OROFINO, Dilma. Entrevista concedida a Letícia Cortellazzi Garcia. Florianópolis, 01. jun. 2006, p. 07. Mimeografado.

8 BRITO, Ângela Xavier de. “O saldo é positivo”: cultura escolar católica e socialização das elites femininas brasileiras, 1920-1970. Paris, 2004, p. 06 (mimeo.)

9 OROFINO, Dilma. Entrevista concedida a Letícia Cortellazzi Garcia. Florianópolis, 01. jun. 2006, p. 05. Mimeografado.

10 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 122.

12 SCHAEFER, Norma Migueis. Entrevista concedida a Letícia Cortellazzi Garcia. Brusque, 24. mai. 2006, p. 02. Mimeografado.

Referências

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