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Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos

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Academic year: 2021

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NARRATIVA SOBRE VIDA E MORTE EM “O TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA” – REFLEXÕES BIOÉTICAS

Alinne Arquette Leite Novais (UENF)

alinnearquette@gmail.com

Moyana Mariano Robles-Lessa (UENF)

moyanarobles@hotmail.com

Juliana da Conceição Sampaio Lóss (UENF)

ju.sampaio23@hotmail.com

Carlos Henrique Medeiros de Souza (UENF)

chmsouza@gmail.com

RESUMO

Ao narrar a vida e a morte de Policarpo Quaresma, Lima Barreto percorre o ca-minho de transformação do protagonista, que vai perdendo suas crenças iniciais e ga-nhando outros contornos, passando a defensor dos direitos humanos, em um processo de humanização, que, com o pedido em favor dos presos políticos, levou à sua execu-ção. Nessa narrativa, é possível vislumbrar a importância do gênero escolhido pelo au-tor, como experiência que passa de pessoa para pessoa e tem dimensão utilitária, con-forme Benjamin, em uma história contada sob a perspectiva do vencido que, embora íntegro, sofre com questões sobre sanidade mental, isolamento, prisão, condenação e morte, levando a reflexões bioéticas importantes. Assim, com o estudo objetiva-se ana-lisar questões bioéticas sobre vida e morte na narrativa e sua utilidade para reflexões atuais sobre dignidade da pessoa humana, utilizando-se a metodologia qualitativa, com pesquisa bibliográfica nas obras de Lima Barreto e Walter Benjamin, além da-quelas sobre bioética jurídica.

Palavras-chave: Bioética. Narrativa. Vida e morte.

ABSTRACT

By narrating the life and death of Policarpo Quaresma, Lima Barreto follows the path of transformation of the protagonist, who gradually loses his initial beliefs and gains other contours, becoming a defender of human rights, in a process of humanization, which, with the request in favor of political prisoners, led to his execution. In this narrative, it is possible to glimpse the importance of the genre chosen by the author, as an experience that passes from person to person and has a utilitarian dimension, ac-cording to Benjamin, in a story told from the perspective of the vanquished who, a l-though intact, suffers with questions about mental health, isolation, imprisonment, condemnation, and death, leading to important bioethical reflections. Thus, the study aims to analyze bioethical issues about life and death in the narrative and its usefulness for current reflections on the dignity of the human person, using the qualitative methodology, with bibliographic research in the works of Lima Barreto and Walter Benjamin, besides those on legal bioethics.

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Keywords:

Bioethics. Narrative. Life and death.

1. Considerações iniciais

Objetivando analisar uma obra literária à luz da bioética, partimos para esse desafio, que confessadamente nos tira da zona de conforto e nos mostra como os vieses da interdisciplinaridade nos escancaram as portas da investigação, da pesquisa, da reflexão sobre as complexas e va-riadas dimensões da existência humana.

A análise interdisciplinar da obra de Lima Barreto, notadamente “O triste fim de Policarpo Quaresma”, nos revela as feições de uma épo-ca que, embora distante no tempo, ainda se vê refletida em comporta-mentos atuais, em que os dilemas não são tão diversos daqueles de outro-ra mas, ao contrário, deles muito se aproximam.

Começando a vida cheio de sonhos e perspectivas, que depois se transformam em desilusão, o protagonista percorre um caminho de des-cobertas que o levam a perder sua ingenuidade, passando por situações de discriminação, autoritarismo, preconceito, descaso, abandono e, en-fim, punição por toda sua crença e luta pelos direitos humanos, que a ele mesmo foram negados.

Esse percurso permite uma importante análise bioética da vida e da morte do protagonista, buscando uma comparação com as atuais ques-tões que envolvem a dignidade da pessoa humana em toda a sua existên-cia e possibilitando a conclusão de que há muito que se evoluir para evi-tar que pessoas continuem, como o protagonista, tendo negados seus di-reitos mais essenciais.

A discussão envolve o gênero narrativo utilizado por Lima Barre-to para contar a saga do protagonista, a fim de demonstrar como a narra-tiva pode ser instrumento de preservação da memória, em que muitas ve-zes a história contada é uma escrita de si que, na verdade, revela um si além de si, um si que se forma não apenas pelo que foi vivido, mas pelo que foi contado.

O problema da pesquisa pode ser assim formulado: Em que ponto as discussões bioéticas se revelam na narrativa literária e, especialmente, na obra “O triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto? Ou, vis-to de outro modo, em que medida a literatura nos proporciona reflexões bioéticas?

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A metodologia utilizada no presente estudo foi a qualitativa, com base no referencial teórico sobre as questões tratadas, através de pesquisa bibliográfica na obra de Lima Barreto e de autores que analisam seus es-critos, descortinando a realidade por trás da narrativa. Também foram analisadas obras de Walter Benjamin e seus estudiosos, em que a figura do narrador é tratada profundamente, e obras envolvendo a bioética.

2. O gênero narrativo em Lima Barreto

Para Walter Benjamin, a narrativa tem sempre em si, embora às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária, que pode consistir num ensinamento moral, numa sugestão prática, num provérbio ou numa norma de vida, mas certamente o narrador é um homem que sabe dar conselhos (1994, p. 200), pois sua fonte é a experiência que passa de pes-soa a pespes-soa (1994, p. 198).

Embora Benjamin preveja a morte do narrador em tempos futuros, o que não é objeto deste estudo, é fato que seu texto muito nos fala sobre a arte de narrar e sua importância, sendo esse reconhecimento que enche o autor de nostalgia, conforme aponta Ewald (2008, p. 2).

Nesse sentido, ao analisar Benjamin, Adriana Hoffmann Fernan-des afirma:

Segundo o autor, a narrativa tem um caráter artesanal e funda-se na expe-riência transmitida oralmente de uma geração à outra carregando consigo a experiência daquele que a narra (narrador/contador de histórias). Quase sempre essa experiência narrativa – se abordada no ponto de vista do filó-sofo em questão – está fundada num interesse prático e aparece sob a forma de um conselho carregado de sabedoria. Por isso, teve, durante muito tempo, uma forte influência na difusão de acontecimentos, pois ti-nha como característica a ausência de explicações, cabendo ao leitor ou ao ouvinte interpretar o que ouvia ou lia. (FERNANDES, 2019, p. 7-8)

Nesse contexto, o gênero narrativo revela toda a sua importância para preservação da memória, especialmente em autores que retratam a tradição oral outrora impossível de ser escrita, como aqueles que abor-dam temas que permeiam a discriminação, a pobreza, a escravidão ou, como o próprio Lima Barreto chamou, o negrismo.

Mas essa importância vai além da transmissão da sabedoria pelas memórias, tendo, segundo Ewald, uma função integrativa, em que se tem sempre o presente em perspectiva, “mantendo a complexidade integrativa do evento humano da narrativa” (2008, p. 5), pois há uma ligação intrín-seca entre memória, narrativa oral e ação social, sendo a história

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"cons-truída socialmente, através de uma interação, nos momentos de espaciali-zação, por meio da voz, do corpo e de inscrições (EWALD, 2008, p. 6).

Assim, a narrativa como relato da memória e da tradição oral é meio de transmissão de sabedorias e de formação de conhecimentos, em uma perspectiva que se origina no passado, mas que permite, através de-le, viver criticamente o presente e buscar melhorias para o futuro.

Conforme Durand:

A tradição não é um depósito morto e imutável, mas um recurso inesgotá-vel, cuja riqueza só se revela de acordo com a capacidade de recepção e de reinterpretação das pessoas de hoje. Por outro lado, ninguém cria nada; a liberdade humana ainda é uma liberdade regulada pela retomada do que nos foi transmitido. (DURAND, 2014, p. 22)

Além disso, as narrativas de Lima Barreto extrapolam a expressão individual, importando ainda a expressão coletiva, em que as escritas de si envolvem as experiências do narrador e do grupo em que está inserido.

Para Schwarcz:

Expressas sob a forma de trocas epistolares, diários ou novelas, com en-redos e personagens ficcionais que mal escondem seus autores por detrás deles, essas obras literárias representam uma expressão individual, mas também coletiva, uma vez que pautadas por uma experiência de grupo, pela busca pela inclusão social, pela denúncia da exclusão e da discrimi-nação, pela luta por promoção da igualdade e da efetiva liberdade. (S-CHWARCZ, 2019)

Em Lima Barreto, essa função utilitária da narrativa, segundo S-chwarcz (2019), se expressa em testemunho, ou escrita de si, confundin-do-se com sua história privada e “com uma certa história do Brasil que prometeu inclusão, mas entregou muita exclusão social”. “Confunde-se, ainda, com sua obra sem ser um resumo dela, pois ele poderia ser reco-nhecido em cada um de seus personagens e passaria a viver como eles.” (SCHWARCZ, 2019).

Para Silva (2007, p. 25), “a literatura barretiana, malgrado não se limite a ser um mero relato de dramas pessoais, foi construída notada-mente a partir da transfiguração de suas vivências”.

Assim, a narrativa, enquanto transmissão da experiência individu-al e coletiva, traduzindo a memória partilhada e perpetuada, foi usada por Lima Barreto como forma de relatar os problemas sociais e denunciar a violação dos direitos humanos no Brasil de verdade, diferente daquele idealizado por Policarpo Quaresma.

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Nesse sentido, Ramos afirma que

[…] a tipificação em Lima Barreto não pode ser vista simplesmente como resultado do ressentimento social daquele que, pelas condições raciais e sociais, foi vítima da sociedade de seu tempo. Mais do que isso, a tipifica-ção revela uma orientatipifica-ção analítica e não apenas um brado, um desabafo do ressentido. Revela um desejo de entendimento do processo social su-portado em sua curta e malograda existência. (RAMOS, 2015, p. 14)

E isso é verdade, pois além de abordar os problemas enfrentados por ele próprio, Lima Barreto propõe, através de sua obra, reflexões so-bre as condições adversas a que submetidas as pessoas menos favoreci-das, revelando, em “O triste fim de Policarpo Quaresma”, a desconstru-ção dos “mitos e símbolos erigidos pela elite dominante no propósito de conferir identidade à nação” (SILVA, 2007, p. 47) e possibilitando a re-construção de tal identidade, a partir da realidade repleta de problemas e dificuldades sociais.

3. Reflexões bioéticas sobre a vida e a morte de Policarpo Quaresma

Em seu romance pré-modernista “O triste fim de Policarpo Qua-resma”, em tom irônico e sarcástico Lima Barreto relata a vida e a morte do protagonista, percorrendo o caminho de sua transformação, em que ele vai perdendo suas crenças iniciais e ganhando outros contornos, pas-sando a defensor dos direitos humanos, em um processo de humanização, que levou à sua execução.

A narrativa na terceira pessoa feita por Lima Barreto insere, no dizer de José Carlos Mariano do Carmo, o discurso em favor dos venci-dos, para não permitir que sua história seja apagada ou destruída, o que demonstra que, se no início Policarpo Quaresma era ingênuo e possuía crenças que o levaram a fazer determinadas escolhas que resultaram em sua ridicularização, no curso de sua trajetória ele vai perdendo essa inge-nuidade, chegando a ficar “transfigurado e totalmente mudado, sem espe-ranças, sem crenças e sem saída, ao final da narrativa” (CARMO, 2013, p. 173).

Essas escolhas, decorrentes de seu patriotismo exacerbado, fize-ram Policarpo tomar atitudes consideradas estranhas que, inicialmente, levaram à sua ridicularização, mas depois geraram consequências mais gravosas, sendo ele internado no hospício por comportamento que, se-gundo o narrador, sua afilhada Olga entendeu como um “grãozinho de sandice” (BARRETO, 1911). Aliás, Lima Barreto também foi internado

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num hospício, o que revela que a sorte de Policarpo não foi diferente, nesse aspecto, daquela de seu criador.

Questões bioéticas ligadas ao tratamento das pessoas com defici-ência mental ou psiquiátrica ganham relevo nesse ponto, considerando o modelo manicomial então usado, em que a pessoa era realmente enclau-surada, sendo submetida “a tratamentos desumanos e degradantes, já que nenhum reconhecimento lhe era possibilitado em torno da sua humanida-de ou sequer da sua autonomia” (SÁ; MOUREIRA, 2013, p. 147). A esse modelo, claramente inadequado, seguiram-se outras propostas, fundadas em uma abordagem mais humanizada, que culminou, no Brasil, com a edição da Lei nº 10.216, de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direi-tos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental e, posteriormente, pela Lei nº 13.146, de 215, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.

Para além das críticas sofridas pelos novos modelos de assistência às pessoas com deficiência mental, que não é nosso objeto de estudo, a obra examinada demonstra quão difícil e degradante era a situação de ou-trora, havendo, na narrativa, clara abordagem da angústia sofrida por A-delaide e Olga quanto à situação de Policarpo e, ainda, do sofrimento de todas as pessoas que tinham um parente ou amigo naquela situação, con-siderada até pior do que a morte (BARRETO, 1911).

Ainda nesse percurso de transformação, como afirmado, Policarpo se torna um incondicional defensor dos direitos humanos, a ponto de es-crever uma carta ao Presidente da República, protestando contra a cena vista na prisão, quando, conforme o narrador, ele não se pudera conter, pois:

Aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os seus sentimentos; pu-sera diante dos seus olhos todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a sua solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; fa-lou claro, franca e nitidamente. (BARRETO, 1911)

Ao defender os vencidos, presos e condenados, cujo infeliz desti-no somente entendeu com “o afastamento da lancha”, que o fez pensar em “por que força misteriosa, por que injunção irônica ele se tinha mistu-rado em tão tenebrosos acontecimentos, assistindo ao sinistro alicerçar do regime” (BARRETO, 1911), Policarpo Quaresma se transforma, pas-sando à defesa do que realmente se mostra importante – a defesa dos di-reitos humanos, aqueles didi-reitos considerados indispensáveis para uma

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vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade (RAMOS, 2018, p. 29).

Seguiu-se a sua prisão, e ele então começou a pensar e a se ques-tionar, buscando uma razão para aquele desfecho:

Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele estreito calabouço? Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão profundos pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim? De que maneira sorra-teira o Destino o arrastara até ali, sem que ele pudesse pressentir o seu ex-travagante propósito, tão aparentemente sem relação com o resto da sua vida? Teria sido ele com os seus atos passados, com as suas ações enca-deadas no tempo, que fizera com que aquele velho deus docilmente o trouxesse até à execução de tal desígnio? Ou teriam sido os fatos exter-nos, que venceram a ele, Quaresma, e fizeram-no escravo da sentença da onipotente divindade? Ele não sabia, e, quando teimava em pensar, as du-as coisdu-as se baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e exata lhe fugia. (BARRETO, 1911)

E, após refletir sobre porque “estava ali naquela masmorra, engai-olado, trancafiado, isolado dos seus semelhantes como uma fera, como um criminoso, sepultado na treva, sofrendo umidade, misturado com os seus detritos, quase sem comer” (BARRETO, 1911), pensou na carta es-crita ao Presidente e concluiu que somente por tal razão poderia estar preso, não havendo outra que justificasse seu triste fim.

A partir deste momento, o narrador revela todos os conflitos que passam, então, a povoar a mente de Policarpo, atormentada pelo senti-mento de injustiça, de ingratidão, de decepção, de grande tristeza, con-cluindo que, àquela altura, “não havia mais piedade, não havia mais sim-patia, nem respeito pela vida humana” (BARRETO, 1911).

A obra de Lima Barreto ora analisada nos remete a importantes questões bioéticas, que perpassam pela dignidade da vida, compreenden-do também a dignidade da morte, na medida em que seu protagonista se depara com esses questionamentos no fim de sua vida, que considerou seu triste fim, em expressão carregada de significados bioéticos.

A bioética se formou, segundo Guy Durand (2014, p. 13) a partir de vários termos conhecidos no mundo da saúde, como ética, moral e de-ontologia, envolvendo “o campo da vida e da morte, da saúde e da doen-ça, da qualidade de vida e do sofrimento”, revolucionado pelos desen-volvimentos biomédicos e suas aplicações.

Segundo Sá e Naves, “a bioética surge como corolário do conhe-cimento biológico, buscando conheconhe-cimento a partir do sistema de

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valo-res”, tendo entre suas preocupações principais a questão da autonomia do paciente e a questão ambiental, gerando um estreito entrelaçamento entre os discursos médico, ético e jurídico (2018, p. 2). Nesse contexto, surgiu a Bioética da Proteção que, segundo Schramm (2008):

[…] é proposta recente no campo da bioética, formulada inicialmente por pesquisadores latino-americanos, que torna explícitos conteúdos que per-passam a ética desde seus albores e que se referem aos problemas morais envolvidos pela vulneração humana, ou seja, a condição existencial dos humanos que não estão submetidos somente a riscos de vulneração, mas a danos e carências concretas, constatáveis por qualquer observador racio-nal e imparcial. (SCHRAMM, 2008, p. 11)

É possível analisar a narrativa sob a perspectiva bioética da situa-ção do protagonista, que sofre com a ridicularizasitua-ção, chegando a ser in-ternado em um hospício e que, depois de voluntariamente lutar em favor do governo, se vê preso por ele e submetido a condições indignificantes de sua condição humana, sendo ao final morto sem direito à defesa. Mas também é possível analisar, na própria narrativa, as preocupações bioéti-cas do protagonista com os outros, vulnerados e submetidos a condições indignas, que o levam a escrever a carta que, ao final, é sua sentença de morte, e consigo mesmo, quando começa a indagar sobre o que levou à sua prisão e sobre como tudo acabará.

Conforme Schramm (2008, p. 16), essas não são discussões estra-nhas à bioética, que realmente aborda as preocupações autênticas e legí-timas de cada humano com seu sofrimento e finitude, mortalidade e so-brevivência pessoal, e também discute a qualidade de vida de todos os outros seres vivos, humanos ou não.

Ao trazer um discurso em favor dos vencidos, a obra nos mostra a necessidade de analisar a situação dos vulnerados (não apenas generica-mente vulneráveis), revelando-se campo de estudo da bioética da prote-ção, para Schramm (2008):

[…] entendida como a parte da ética aplicada, constituída por ferramentas teóricas e práticas que visam entender, descrever e resolver conflitos de interesses entre quem tem os meios que o "capacitam" (ou tornam compe-tente) para realizar sua vida e quem, ao contrário, não os tem. (SC-HRAMM, 2008, p. 16)

As reflexões bioéticas propostas pela narrativa de Lima Barreto na obra em análise nos levam a pensar na dignidade da vida e da morte, con-forme já afirmado. Nesse ponto, é possível perquirir sobre a situação da indignidade da morte a que o protagonista é submetido.

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De fato, o direito à vida é fundamental, sendo pressuposto para o exercício dos demais direitos inerentes à pessoa humana, pois sem vida não há pessoa e, portanto, nenhum outro direito existe. No entanto, a ga-rantia do direito à vida pressupõe a necessidade de gaga-rantia ao seu exer-cício com dignidade, de modo que não assiste à pessoa humana simples-mente o direito à vida, mas o direito à vida digna, adjetivo dela indissoci-ável (ARQUETTE, 2018, p. 157).

A morte digna é parte da vida digna e, nesse aspecto, entra em ce-na a importante discussão sobre a existência de um direito de morrer dig-namente (ARQUETTE, 2018, p. 158), o que foi negado ao protagonista e àqueles que o levaram a escrever a fatídica carta ao Presidente.

Não está narrado o momento da morte de Policarpo Quaresma, restando a indagação de quanto tempo ficou ele naquela indigna prisão, abandonado, sequer sendo informado sobre as razões que o levaram à-quela triste situação e àquele triste fim. Revela-se, então, possível inda-gar se o protagonista foi submetido a uma situação de mistanásia.

Não há dúvidas de que o triste fim de Policarpo Quaresma revela um total desrespeito à dignidade da pessoa humana que, a despeito de, à época em que foi escrita a obra, em 1911, e à época da sua ambientação, entre 1891 e 1894, não estar prevista na Constituição de então, aquela de 1891, é fato que tal direito à vida digna independe de positivação norma-tiva, pois não é criado por lei, sendo, antes, inerente à condição humana, conforme expressa Antunes Rocha, para quem:

A justiça humana, aquela que se manifesta no sistema de Direito e por ele se dá à concretude, emana e se fundamenta na dignidade da pessoa huma-na. Essa não se funda naquela, antes, é dela fundante. Dignidade é o pres-suposto da ideia de justiça humana, porque ela é que dita a condição supe-rior do homem como ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa con-tingência, é um direito pré-estatal. (ANTUNES ROCHA, 2001, p. 51)

Assim, ainda que a mistanásia, a morte miserável, geralmente es-teja ligada à ideia de consequência da omissão estatal na promoção de políticas públicas de proteção à vida e à saúde, submetendo a população ao abandono e à falta de atendimento sanitário de qualidade, gerando a morte prematura, como abordam Cabral e outros (2016, p. 149), ela tam-bém pode estar configurada no abandono dos encarcerados, existente até os dias atuais, em que não apenas o Estado, mas também a própria socie-dade, se tornam algozes dessa indignidade estabelecida, situação que, se

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não é a mesma de outrora, pois não mais se admite a pena de morte, a ela se assemelha, pois se não como pena instituída pela lei, a morte ainda a-contece nas prisões, pelo abandono, pelo descaso, pela discriminação.

Conforme Carmo:

Fuzilado, Policarpo Quaresma faz parte da corveia humana de assassina-dos por regimes ditatoriais e, nas palavras do próprio ditador, é mesmo um visionário, capaz de ver que outras ditaduras acontecerão no Brasil e que teremos mais vítimas, mais vencidos. (CARMO, 2013, p. 174)

Mas não só – teremos outras vítimas da sociedade desigual, mes-mo na demes-mocracia, em que há outras formas de ditadura – aquelas da fal-ta de acesso aos mais fundamenfal-tais direitos da pessoa, decorrente da po-breza, da falta de informação, da falta de expressividade, da ausência de educação e tantas outras.

Policarpo não tem um triste fim apenas porque morreu, mas prin-cipalmente porque morreu de forma indigna, preso injustamente, desilu-dido, desamparado, isolado. Portanto, o fim dele foi triste, assim como é triste o fim dos desamparados e excluídos, não apenas dos condenados formalmente, mas também daqueles condenados à indignidade pelas condições a que são submetidos.

Portanto, no universo de Policarpo Quaresma é possível vislum-brar muitas situações que perduram até os dias atuais, exigindo, ainda ho-je, reflexão e tratamento bioéticos, demonstrando que, não obstante tenha havido muita evolução biotecnológica, a humanidade, em seu sentido mais profundo, precisar evoluir.

4. Considerações finais

A obra de Lima Barreto intitulada “O triste fim de Policarpo Qua-resma”, ao narrar a vida do protagonista a partir de sua idade adulta até o momento de sua morte, permite a análise de várias questões ligadas à conjuntura social do Brasil da época de sua ambientação, da época em que foi escrita e, para além disso, da realidade atual, de mais de um sécu-lo depois, mas em que os problemas sociais referentes à discriminação racial e social ainda persistem.

De fato, com a transformação da visão de Policarpo Quaresma so-bre o Brasil, passando da crença romantizada de uma nação cujas terras são mais férteis, cujas paisagens são mais bonitas, cujas raízes indígenas devem ser preservadas, inclusive na língua, à descrença e falta de

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pers-pectiva ao final, quando percebe a realidade nua e crua – em que a terra precisa ser trabalhada para que produza, em que ele e outros deixaram de ter importância após lutarem em favor da República recém estabelecida, em que sua vida e seus feitos passados de nada valiam ante a contrarie-dade do regime diante de suas reivindicações – a obra revela uma propos-ta de mudança do paradigma romantizado sobre o Brasil, escancarando o desrespeito com a vida dos opositores naquele regime e, para além deles, com a vida de todos os colocados à margem de uma elite empoderada.

A partir dessa análise, é possível perceber que o desrespeito à dignidade da pessoa humana, presente ainda hoje em nossa sociedade, vem de longo tempo, de modo que não é por acaso que foi estabelecida como princípio fundamental da República Federativa do Brasil na vigen-te Constituição da República, de 1988. Por óbvio, a simples previsão constitucional não é bastante para afastar a ocorrência de situações que degradam e indignificam a condição humana que a todos é garantida, mas não se pode ignorar que, a partir da sua inscrição formal, sua invo-cação na defesa contra tais situações se torna incontestável.

Assim, é possível concluir que Lima Barreto, em sua obra anali-sada, considerada realista, desvela os dilemas de vida e morte tão afetos à bioética, permitindo percorrer, através da literatura, parte do caminho que, no âmbito nacional, culminaram com a preocupação da busca pela garantia da dignidade da pessoa humana durante toda a sua existência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Referências

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