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(Re) Democratização, Estado de Direito e Violência

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Academic year: 2021

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(Re) Democratização, Estado de Direito e Violência

Luis Carlos Gontijo 1

A violência está presente na história da humanidade, seja por meio das relações interpessoais, de gênero, de grupo e classes sociais, ou por meio das relações de poder, das instituições e das agencias encarregadas do controle repressivo da ordem pública. O que diferencia a violência contemporaneamente é o fato de a mesma ter adquirido uma dimensão que foge dos padrões e regras de conduta sociais, definidas pela racionalidade moderna, e do controle do Estado, o qual deveria ser o único ente social a praticar o legítimo monopólio do combate à violência. Isso é o que vem preocupando as autoridades e a sociedade nos tempos modernos, sobretudo no que se refere à capacidade do Estado de desprivatizar a violência e produzir políticas públicas que dêem segurança para a população, sem desrespeitar o Estado Democrático de Direito.

Iremos nos ater à violência resultante das profundas transformações e mutações que ocorreram na sociedade contemporânea, em especial nos últimos vinte e três anos, em virtude dos processos de exclusão social e econômica, de uma cultura herdada, com bases no autoritarismo, e das práticas de controle social. Nesse contexto, a nova morfologia social tornou a convivência em sociedade mais complexa, gerando novas configurações sociais e novos problemas, pois as racionalidades modernas não forneceram mais respostas aos anseios e aspirações dos indivíduos, no que se refere à segurança de sua vida e de seu patrimônio.

As mudanças sociais que aconteceram no Brasil, nos últimos vinte e três anos, vêm combinando desenvolvimento desigual e excludente, o que só fez aprofundar as desigualdades sociais por intermédio da má distribuição de renda2. Embora não haja uma relação direta, de causa e efeito, esse

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Graduado em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2007), especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes RJ (2008), especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2009), especialista em Docência do Ensino Superior pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010), mestrando em Gestão de Segurança Pública e Defesa Social pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (2010/2012).

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“O Brasil, a exemplo de outros países latino-americanos, é uma sociedade que se baseia na exclusão, uma democracia sem cidadania. O impacto da globalização, acoplado à crise provocada pelo ajuste econômico, separa o rico do pobre como se fossem, diz Hector Castillo

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distanciamento entre ricos e pobres, segundo Tavares dos Santos (1999), continua sendo, em grande medida, uma contribuição para o aumento da criminalidade e da violência. As marcas das desigualdades sociais ficam bastante nítidas quando observamos que o crescimento urbano veio acompanhado de bolsões de pobreza e miséria nas periferias, dando origem a um novo tipo de segregação social representado pelas favelas, cortiços, loteamentos grilados e bairros sem a menor infraestrutura para receber um contingente tão grande de pessoas.

Nesses bairros em que predomina a pobreza e a miséria, forma-se um ambiente que propicia a proliferação de comportamentos e atitudes que redundam em violência e numa alta taxa de criminalidade. As transformações urbanas e rurais deram início a um novo padrão de acumulação de riqueza e de miséria que resultou numa segregação de parcela significativa da sociedade nas grandes metrópoles e nas médias cidades. Associado a esse novo padrão brasileiro, vem o crime violento, o medo da violência e o desrespeito aos direitos da cidadania.

Enquanto o crime e a violência estiveram mais restritos à periferia e praticados pela e contra as populações excluídas, a segurança continuava sendo um caso de polícia sem muita importância para as elites e para a classe média em geral. Com a mudança do cenário, à medida em que a violência e o crime violento se expandiram para o centro da cidade e para os bairros de alto poder aquisitivo, iniciou-se na sociedade um movimento no sentido de exigir mais segurança, bem como penas mais severas para os criminosos. Em contrapartida, a mesma sociedade começa a se armar para se defender do crime. Surgem os condomínios, bairros policiados por seguranças privadas, instalações de alarmes e câmaras nas residências de classe média, construção de muros altos, com cercas elétricas e cães de raça ferozes guardando as residências. Surgem e se expandem, também, os Shopping Centers para a classe média e as elites consumirem com comodidade, com segurança, sem serem importunados pelos pobres e livres de assaltos e roubos. É nesse cenário, anos 90, que se verifica o aumento dos roubos, furtos, sequestros e todo tipo de criminalidade violenta. A fortificação das cidades (Caldeira, 2000) não foi capaz de dar segurança aos habitantes. A violência e a criminalidade continuaram se expandindo para todas as áreas e seguimentos sociais, comprometendo a construção da cidadania e gerando uma comoção social em torno da insegurança.

Ainda que o aumento dos índices de criminalidade e de violência seja, em grande parte, esclarecido por esta nova ordem baseada na exclusão e segregação social, verifica-se que elas já estavam presentes nas relações

Berthier, água e óleo. Os países com grandes desigualdades – altas taxas de concentração de renda – tendem a ter maiores índices criminais e de violações de direitos humanos”. Pinheiro, Paulo Pinheiro. “Violência, Crime e sistemas policiais em países de novas democracias”. Tempo Social. Revista de Sociologia da Usp, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 45, maio 1997.

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sociais e de poder nos períodos anteriores à década de 80. O Brasil possui uma longa tradição de uso da força como forma de solução de conflitos sociais.

Desde a sociedade agrária tradicional, a violência vem sendo um recurso empregado pelas elites para regular as relações entre homens livres e escravos e o uso dos castigos como forma de consertar os comportamentos considerados inadequados ou que violavam as normas costumeiras estabelecidas pela sociedade escravocrata.

Com a Proclamação da República em 1889, o Brasil parecia ingressar na era do progresso, do crescimento social, na chamada, segundo Foucoault (1999), sobriedade punitiva, em que as leis eram rigidamente observadas pelos indivíduos e pelas instituições encarregadas de zelar pela segurança da sociedade. A observação das leis era proporcionada por um poder único, o que tornaria a violência um fenômeno do passado. A bandeira do Brasil, com o lema “Ordem e Progresso”, resumia a promessa, indicando a necessidade de o país ingressar na era das nações civilizadas. No entanto, as revoltas sociais que aconteceram no período da República Velha contra o poder central, e os movimentos sociais, bem como de trabalhadores, mostraram que o pais ainda estava longe de ingressar no rol das nações civilizadas. Contra os revoltosos e os trabalhadores, erguem-se “a espada, a lei e as sanções penais”. Sobre o emprego da violência na sociedade brasileira, regulando as relações sociais e de poder, Adorno & Cardia (1999:67-68) resume o período republicano afirmando:

“Ao longo de mais de cem anos de vida republicana, a violência em suas múltiplas formas de manifestação permaneceu enraizada como modo costumeiro, institucionalizado e positivamente valorizado – isto é, moralmente imperativo -, de solução de conflitos decorrentes das diferenças étnicas, de gênero, de classe, de propriedade e de riqueza, de privilégio, de prestígio. Permaneceu atravessando todo o tecido social, penetrando em seus espaços méis recônditos e se instalando resolutamente nas instituições sociais e de políticas em princípio destinadas a ofertar segurança e proteção aos cidadão”.

Na história da República, as aparições de violência, como forma de solução dos conflitos sociais, sempre estiveram presentes como forma de estranhamento entre os que são diferentes, ou para negar direitos, ou, ainda, quase sempre, para defender privilégios das elites. A violência, quer seja como prática de governo em reprimir violentamente os movimentos sociais, os trabalhadores, os adversários políticos dos grupos e das elites dominantes, quer seja como forma de solução dos conflitos interpessoais e grupais, sempre esteve presente na cultura, nas práticas autoritárias e nas formas de controle social. Essa violência permanece ainda impregnada na cultura das elites, e até

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mesmo entre as classes populares, mesmo depois de passado o regime autoritário que vigorou no Brasil entre 1964 e 1984.

Para compreender a permanência das práticas de violência na sociedade brasileira, mesmo depois da redemocratização do país (1975/88), é necessário trabalhar a noção de conflitualidades que se expressam na forma de uma “violência endêmica” (Pinheiro, 1997), e no “autoritarismo socialmente implantado (Pinheiro 2000). O que há de comum nesses conceitos é o fato deles chamarem a atenção para que, apesar dos avanços políticos e das conquistas sociais garantidas pela Constituição da República de 1988, tida como Constituição Cidadã, os conflitos violentos permanecem como práticas de amplos setores sociais e até mesmo como forma de controle social feita pelas políticas de segurança do Estado, o que, de certa forma, vem ocasionando o comprometimento do Estado Democrático de Direito. As manifestações de violência são aparentes: a física, representada pelo dilaceramento do corpo e da carne, ou “suplicio do corpo (Foucault, 1999) e a violência simbólica, exercida sobre os dominados com o consentimento destes, em virtude de estarem presos ao hábito, ao costume e às tradições.

De certa forma, pensava-se que a violência iria desaparecer do cenário após a promulgação da CR/88, quando o país estaria finalmente na era do processo civilizatório, em que os conflitos seriam resolvidos com base em leis justas, votadas, aprovadas, postas em práticas pelos governantes e respeitadas pelas elites e pela população. No entanto foi o inverso que aconteceu. A violência cresceu e se diversificou. Ela deixou de ser um quase monopólio do Estado, para ser amplamente assumida pela sociedade civil, com um grau de virulência inédito. Nesse sentido, a violência ganhou notoriedade e passou a ser tratada como uma questão pública de grande e imprescindível importância para a sociedade e para os governantes. Por um lado permaneciam as denúncias de violência contra os direitos humanos praticada pela ação dos agentes do Estado responsáveis pela repressão aos movimentos sociais e pelo controle social. A polícia continuava empregando, de forma generalizada e inadequada, o uso da força contra aqueles que agora passaram a ser considerados inimigos da sociedade. Por outro lado, verificou-se uma verdadeira onda de conflitos litigiosos no verificou-seio da sociedade civil, representados por assaltos a bancos e carros-fortes, sequestros, homicídios, execuções sumárias e todo tipo de crimes violentos ou não contra as populações segregadas.

Durante a década de 80/90 se acentuou o crescimento da violência policial contra as populações pobres e em repressão as lutas sociais no campo e na cidade, mas, fundamentalmente, no combate à criminalidade de modo geral.

Esse descompasso entre Democracia, Estado de Direito e Violência, no Brasil, produziu várias reflexões de intelectuais brasileiros sobre as condições

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estabelecidas pela lei e a realidade tal como ela se manifesta. Nesse diapasão, Pinheiro (1997) afirma que no Brasil, assim como em outros países da América Latina, a violência é “endêmica” e haverá o que ele denomina de um enorme

gap ente o que está escrito na lei e a realidade brutal da aplicação das leis. A

despeito da nova Constituição do Brasil, promulgada em 1988, ter conseguido incorporar uma série de direitos individuais e coletivos, denominados fundamentais, tais como direito à liberdade, à integridade física e moral, à vida, à educação, à saúde, à reforma agrária, à moradia, entre outros, o desrespeito a tais direitos se mantém. No entanto, não obstante o reconhecimento de tais direitos, a violência continua sendo a forma de comunicação entre agentes do Estado e das elites contra as populações marginalizadas.

Este gap entre a lei e a realidade é, segundo Pinheiro, a raiz do fracasso das democracias latino-americanas em consolidarem um dos grandes marcos de um governo democrático: o controle legítimo da violência. Para ele, a violência endêmica3 passou a fazer parte do nosso contexto histórico tão marcado pelas desigualdades sociais. Por outro lado, salienta Pinheiro (1997:44),

“A violência é no entanto também resultado direto da continuidade de uma longa tradição de práticas autoritárias das elites contras as não-elites, que por sua vez são reproduzidas entre os mais pobres. A volta ao constitucionalismo democrático pouco efeito teve na erradicação dessas práticas autoritárias na sociedade”.

Esse é, de fato, o grande paradoxo brasileiro: democratiza-se as estruturas políticas, mas a violência e a criminalidade crescem, atingindo, em todas as regiões do país, índices que despertam o medo e a insegurança na sociedade. O Brasil é uma sociedade que cultua a exclusão social, uma democracia sem cidadania, em que as relações sociais são marcadas pelo “autoritarismo socialmente implantado”.

Em fim, resta dizer que, no Brasil, a democracia política não foi capaz, ainda, de pacificar as relações sociais entre os indivíduos e as agências encarregadas do controle repressivo da ordem pública. A democracia não trouxe consigo o respeito à vida, aos direitos fundamentais, e a justiça. Pelo contrário, assistimos, desde a reimplantação da democracia política no Brasil, ao aumento da violência e da criminalidade violenta, bem como ao constante abuso de autoridade e desrespeito aos direitos humanos fundamentais.

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A violência endêmica – ambientada em um contexto de profundas desigualdades sociais e em um sistema de relações sociais bastante assimétricas – não é um fenômeno novo na região. Piorou nas duas últimas décadas, em parte porque as políticas econômicas neoliberais aprofundaram as desigualdades e condenaram milhões de pessoas da América Latina a viverem na pobreza e na exclusão social.

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ADORNO, Sérgio & CARDIA, Nancy, Dilemas do Controle Democrático da Violência: Execuções Sumárias e Grupos de Extermínio – São Paulo (Brasil) 1980-1981, in: Violência em Tempo de Globalização, São Paulo, Hucitec, 1999 ADORNO, Sérgio. Insegurança versus direitos humanos. Entre a lei e a ordem.

Tempo Social. Revista de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo). São

Paulo: Volume 11, n.º 02 (outubro de 1999). Editada em fevereiro de 2000. pp. 129-153.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Trad. Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo: Ed. 34; EDUSP, 2000.

FOUCOULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis. Ed. Vozes, 1999.

PINHEIRO, Paulo Sérgio de Moraes Sarmento. Introdução. O Estado de Direito e os não-privilegiados na América Latina. In: MÉNDEZ, Juan E., O’DONNELL, Guilhermo & PINHEIRO, Paulo Sérgio de Moraes Sarmento (Org.).

Democracia, violência e injustiça. O Não Estado de Direito na América Latina.

Tradução de Ana Luiza Pinheiro. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2000. pp. 11-29. PINHEIRO, Paulo Sérgio de Moraes Sarmento. Violência, crime e sistemas policiais em países de novas democracias. Tempo Social. Revista de

Sociologia da USP, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 43-52, maio 1997a.

TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. Globalização em Tempo de Violência. São Paulo, 1999, p. 121.

ZALUAR, Alba. Um debate disperso: violência e crime no Brasil da redemocratização. São Paulo. Fundação Seade: Revista São Paulo em

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