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Neste romance, chama-se Teodoro.

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Academic year: 2021

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Texto

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Reza a lenda perdida no tempo que um belo e miste- rioso soldado seguiu o guerreiro Viriato desde o início da luta contra os romanos até ao último dia da sua vida.

A lenda conta ainda que o suldório, ao ver o líder dos lusitanos imolado na pira, revelou a sua verdadeira identi- dade e saltou para as chamas, unindo a vida em morte à do seu herói.

Viriato eternizou-se na História de Portugal como o primeiro grande guerreiro e tornou-se símbolo de bra- vura e de resistência entre os lusitanos. Foi o primeiro herói nacional, séculos antes da fundação do Condado Portucalense.

No entanto, o nome do bravo soldado não ficou regis-

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Memórias

O

que são as memórias? Desde criança que me debato com as minhas. Andamos à luta durante a noite, assim que o sol se deita e o mundo mergulha na escuri- dão. Se os meus olhos alcançarem um ponto de luz qual- quer, consigo combatê-las, e quase sempre lhes ganho antes de o sono me embalar. Basta o brilho de uma estrela mais cintilante, a lua a subir no céu, uma fogueira ao lon- ge, uma tocha, um enxame de pirilampos. Qualquer luz é boa para me distrair das trevas infinitas nas quais a minha memória mergulha como num poço sem fundo.

Ou então o canto das sacerdotisas, que escolhem o ne- grume da noite para expulsar os maus espíritos e convo- car as divindades que nos guiam na guerra e na paz, na sorte e no infortúnio. Quando me junto a elas, sinto uma espécie de protecção sobrenatural, os deuses ficam mais perto. E mais perto ainda quando me refugio no templo de Idevor, o pai que o destino escolheu para mim.

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MARGARIDA REBELO PINTO

O templo é o lugar onde me sinto mais segura e tam- bém onde a paz prevalece no meu coração. Por vezes, se ficar muito quieta, sentada debaixo de uma das azinhei- ras do pátio interior, onde apenas se escuta o ruído das folhas que dançam ao vento e o zumbir das abelhas, e atingir um estado de imobilidade interior e exterior, sinto- -me a pairar como uma ave, e, não raro, tenho visões.

Nem sempre são boas, muitas vezes aparecem-me presságios de morte, de sangue e de sofrimento. Idevor ensinou-me que não se pode fugir das visões, devemos deixar que se esfumem aos nossos olhos, sem, no en- tanto, as esquecer ou desprezar, pois são mensagens dos deuses. Se cometermos tal imprudência, o futuro pode fechar-se e os deuses castigar-nos. Apesar de todo o trei- no que recebi como sacerdotisa, quando estou longe do templo, durante as campanhas, o medo assalta-me no si- lêncio e no breu, e os dois misturados roubam-me o sono, mesmo que esteja exausta.

A verdade é que guardar um segredo também me amedronta. Ninguém pode saber. Ninguém. Nem mesmo Viriato.

O silêncio e o negrume assustam-me, porque é neles que a minha memória desperta, contra a minha vontade, e se incendeia de recordações atrozes. E de novo vejo o sangue, primeiro fresco, a jorrar como uma fonte, e depois seco, manchando as caras e as roupas. E vejo as expressões torcidas de dor e de terror do meu pai, da minha mãe e dos meus três irmãos, porque a morte grava o sofrimento e o espanto nas feições sem vida. O corpo

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A LENDA DO BELO SOLDADO

não fala, mas as expressões de pavor que antecedem o derradeiro instante neste mundo eternizam-se como um grito silencioso que nunca termina.

A morte, esse monstro invencível que anda sempre à espreita, que tem lanças e garras, dentes e tentáculos, que pode ser uma serpente, um touro, um urso, que usa a ponta de uma lança ou a curva de uma falcata, está sempre à espreita. A morte nunca dorme e pode chegar a qualquer momento, vinda de onde menos se espera.

Mas isso fica para depois, não quero trocar a ordem dos factos, quero contar toda a história tal como aconte- ceu, embora saiba que isso é impossível, porque quando contamos uma história, na verdade, contamos apenas a nossa parte o melhor que sabemos. Contudo, é apenas a nossa versão. Quem está do outro lado irá contá-la de forma diferente, quase sempre oposta.

Para Roma, Viriato sempre foi um problema, uma ferida aberta no orgulho dos invasores. Para nós, lusitanos, era a nossa salvação. Para os romanos, o caudilho é um monstro sanguinário; para nós, um homem excepcional, um guerreiro sem par, um herói nacional, quase um santo.

O que sucedeu à Lusitânia depois da sua morte é outra história.

A morte está sempre nas nossas vidas de guerreiros e lidamos com ela como quem recebe em casa um velho amigo, um filho pródigo, um parente distante e ausente;

sabemos que corremos perigo em abrir a nossa casa a um desconhecido, mas, ainda assim, não temos como evitá-lo.

E também pode chegar de noite, aproveitando-se do breu

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MARGARIDA REBELO PINTO

e do sono, de forma natural ou por encomenda. Chega por despeito, vingança, ganância ou ciúme, e tantas vezes praticada ou ordenada pela mão dos que nos são mais próximos!

Não é preciso estar em guerra com Roma ou com outros inimigos para lhe ver o rosto. Ela anda de mãos dadas com a vida, sempre a rondar a porta, ou debaixo do mesmo tecto. É um monstro que nunca se vê nem ouve, e por isso imprevisível, cruel e invencível.

A morte é a sombra da vida e nunca a deixa, até a engolir.

  

Quando era ainda uma criança de colo e com pouca força nas pernas, vi a minha mãe em sofrimento por causa de um filho que não queria nascer. E vi as parideiras com as mãos munidas de ferros dentro das suas entranhas para puxar a criança maldita. E vi como nasceu, roxa, compri- da e feia com uma corda ao pescoço, como se tivesse sido enforcada dentro do ventre dela. Era mais um rapaz.

A minha mãe quase morreu de tanto sangue perdido.

Ardeu em febre durante muitos dias, quase uma lua. Até hoje, ninguém sabe se sobreviveu graças aos poderes mágicos das ervas de Idevor, o endre mais sábio entre os endres, ou se uma força dentro dela não a deixou partir para as trevas eternas.

Nessa noite tão longa e lancinante, sem lua e estra- nhamente com poucas estrelas a iluminarem o céu — é

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A LENDA DO BELO SOLDADO

assim que me lembro —, o corpo do meu irmão, que nunca chegou a ter nome, foi atirado aos porcos, e toda a gente se esqueceu dele. Lembro-me que fazia muito frio, o cume dos montes estava coberto de um manto branco e gelado. A única maneira de nos mantermos aquecidos era dormirmos os quatro na mesma cama, eu e os meus três irmãos, como era hábito durante Hiems, a estação do frio, da neve e da chuva.

Depois desse incidente, a minha mãe fugia do meu pai sempre que ele a procurava e pediu-lhe que se fosse aliviar com outras mulheres. Dizia que sentia as entra- nhas rasgadas. Talvez fosse essa a razão, mas o meu cora- ção pressentia que era mais do que isso. Talvez a dor que a devorava por dentro fosse provocada pela tristeza de ter perdido aquela criança, quando até então os deuses a tinham abençoado com quatro filhos que vieram ao mun- do sob a protecção dos deuses.

Talvez também nunca mais tenha esquecido essa noite horrível de sangue e de gritos, os ferros das parideiras dentro do seu corpo a puxarem a criança, pela desolação de perceber que de nada valera o suplício.

Mais tarde, a vida ensinou-me que trazer filhos ao mun- do pode pôr a vida em perigo, que tal acto de bravura pode levar mães e filhos à morte, mas quando isto aconteceu era muito pequena para entender as realidades do mundo.

Se a minha mãe perdeu mais filhos, nunca soube, nem nunca me lembrei de lhe perguntar. Quando somos crianças não fazemos perguntas, aceitamos a existência tal como ela é. Esse é um dos encantos da infância.

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MARGARIDA REBELO PINTO

Depois dessa noite de sangue e de gritos, a minha mãe mudou. Perdeu o olhar vivo, o sorriso rasgado, a alegria com que se erguia com a luz da alvorada e que a acompa- nhava durante todo o dia. Não perdeu a força, era uma mulher com um guerreiro dentro dela, acredito que, se tivesse nascido homem, teria sido um valente e deste- mido soldado, mas houve qualquer coisa que se partiu para sempre no seu coração. Nunca mais a ouvi cantar, como tantas vezes fazia em casa ou na horta, e apenas a presença de Idevor lhe emprestava à cara um sorriso, que se desvanecia quando o endre se ia embora. Foi sempre de uma enorme coragem e bravura até ao último dia da sua vida. Idevor diz que herdei dela essa força que me faz avançar sem medo em qualquer situação, desafiando o perigo como se fosse um jogo. Se ele o diz, deve ser verdade.

Este episódio aconteceu quando eu era ainda um naco de gente. Os meus irmãos e o meu pai não deram impor- tância ao caso, eu não tinha idade para entender o que se passava em meu redor. Apenas via e sentia, o que por vezes acaba por nos ensinar mais sobre o mundo.

Mais tarde, a vida fez com que aprendesse que a bravu- ra e a coragem valem tanto no manejo da espada quanto os ensinamentos de um bom mestre. A coragem é uma força que vem de dentro, dizia-me o meu pai, Andergus, o mais respeitado armeiro da Lusitânia, a quem Viriato encomen- dava as espadas e as falcatas para ele e para o seu exército, e com quem gostava de se aconselhar, por ter sido um valoroso guerreiro nas Guerras Púnicas.

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A LENDA DO BELO SOLDADO

Lembro-me de ver o meu herói, ainda muito jovem, mas já uma barba curta e corpo de homem, entrar na oficina com o seu grupo de soldados mais próximos, pegar-me ao colo e perguntar:

— Como se chama esta criança tão bela que traz o sol nos cabelos e o mar nos olhos?

— Calista — respondeu o meu pai, sem sorrir.

— Calista? Mas esse não é um nome de mulher da Lusitânia. Porque o escolheste?

— Não fui eu que o escolhi, nem sequer a minha mulher. Foi Idevor quem lhe deu o nome quando nos veio visitar pouco depois do seu nascimento. A minha mulher gostou e eu não me opus.

Suspirou e, por momentos, parecia que ia dizer mais alguma coisa.

Viriato brincava com os meus cabelos e eu mexia na sua barba. Por fim, o meu pai virou-se de costas e antes de voltar para a bigorna explicou:

— Calista significa a mais bela, disse-nos Idevor. E, como podes ver, é uma criança linda.

O meu pai, cuja cara já era marcada por sulcos profun- dos, não sei se do esforço do trabalho ou das apoquentações, endurecia sempre mais cada vez que pronunciava o nome do endre. A sua boca rasgava-se para baixo e por vezes dava esta- lidos. Era tudo muito rápido, quase imperceptível, nem sei se me lembro mesmo de o ver fazer isto, ou se a minha memó- ria construiu esta imagem que me revisita com frequência.

O guerreiro continuou a fazer-me festas nos cabelos.

Fitou-me com ternura e disse-me:

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— És mesmo muito bonita, Calista, devias casar-te com um príncipe.

Ao contrário dos meus três irmãos, que tinham a tez escura e os olhos da cor da noite, nasci clara como as pedras que escondem os templos secretos nos montes Hermínios, com os cabelos ruços e os olhos azuis. Nunca percebi porque é que o meu pai me olhava com estranhe- za, sempre cuidei que era pelo facto de ser rapariga. Ele tinha um temperamento alegre, pelejava com os meus irmãos e ria com eles como se fosse uma criança.

Comigo era diferente. Apanhava-o muitas vezes a olhar para mim em silêncio, enquanto mordia o lábio inferior, atravessado por uma cicatriz.

Lembro-me de lhe perguntar, pouco antes do dia mais fatídico da história da Lusitânia, porque mordia o lábio.

Respondeu-me:

— Uma ferida pode doer para sempre, mesmo quando a cicatriz fecha.

Como é evidente, não entendi o que me dizia.

Até então, eu vivia num mundo mágico, nunca sentira o perigo da guerra, era uma criança feliz, adorada pela minha mãe e pelos meus irmãos.

Só muito mais tarde aprendi que, para os homens, falar das suas fraquezas é como entregar as armas ao inimigo.

Na dúvida, calam-se. Na dúvida, escondem. Na dúvida, fingem que tais desbrios não existem. São homens, e por isso muito diferentes de nós. É como se existisse um abismo entre dois mundos, um fosso fundo e largo que só o poder do amor é capaz de vencer.

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A LENDA DO BELO SOLDADO

Os homens raramente sabem lidar com as mulheres, a não ser que tenham crescido com elas na mesma casa;

um bando de irmãs, uma prima com a mesma idade, me- ninas da família que se fizeram mulheres e que sempre precisaram de protecção e cujo dever de as proteger fez com que aprendessem a respeitar uma mulher, em vez de cegarem de desejo por ela e de quererem rasgá-la como uma peça de caça.

O meu pai só teve irmãos e a minha mãe deu-lhe três rapazes, facto que lhe trouxe muita alegria e orgulho.

Desta forma, tinha a quem deixar a oficina, e além disso, a minha mãe e eu tínhamos sempre quem nos protegesse.

Do que nada nem ninguém nos poderia ter protegido foi desse dia fatídico em que o cônsul Sérvio Sulpício Galba nos lançou a mais terrível e sangrenta das armadi- lhas até então perpetradas pelo invasor.

Roma não é só a cidade mais poderosa do mundo, também é uma corja de malfeitores, de traidores ganan- ciosos e de assassinos, uns de uniforme e elmo; outros enrolados em panos ridículos como mulheres. E são precisamente esses os mais perigosos, porque não em- punham espadas, ordenam que legiões inteiras o façam por eles. Estão quase sempre longe do campo de bata- lha quando proferem ordens sanguinárias, assistindo do cimo de uma colina, protegidos pelas suas altas patentes, ao espectáculo da guerra como se estivessem no circo em Roma. Ou então sabem das notícias mais tarde, depois de tudo estar consumado, confortavelmente instalados nas suas villas ou nos bancos do Senado.

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