Saúde Global 2018 - Aula 3 23 de março
Segurança, biopolítica e securitização
Exercício: Machado de Assis (1881). O Alienista
BIOPOLÍTICA
Georges Canguilhem (1904-1995)
• O normal e o patológico, de 1943, republicada em 1966
“Todo conceito empírico de
doença
conserva uma relação com o
conceito axiológico da
doença.
Por consequência, não é um método
objetivo que faz com que um dado fenômeno biológico
seja qualificado de patológico”
“A despeito da importância dos métodos objetivos de observação e análise na patologia, não me parece possível que se fale com correção lógica de
‘patologia objetiva’.
Sim, uma patologia pode ser metódica, crítica e experimentalmente armada.
Ela pode ser dita objetiva, por referência ao médico que a pratica.
Mas a intenção do patologista não faz com que seu objeto seja uma matéria vazia de subjetividade”
• “Normal é o termo pelo qual o século XIX vai designar o protótipo escolar e o estado de saúde orgânico”
• “Uma escola normal é uma escola onde se ensina a ensinar”
• Exemplo do peso normal do ser humano, associando idade, sexo e tamanho:
corresponde à “maior longevidade possível”
• “Mas a normalização dos meios técnicos da educação, da saúde, do transporte de
pessoas e de mercadorias
• é a expressão de exigências coletivas cujo conjunto,
• mesmo na falta de uma tomada de consciência por parte dos indivíduos,
• define numa dada sociedade histórica sua forma de remeter à sua estrutura, ou talvez suas estruturas,
• ao que ela estima ser seu bem singular”
“O que caracteriza um objeto ou um fato dito normal, por referência a uma norma externa ou imanente
é poder ser tomado como referência de objetos ou fatos que ainda esperam poder ser
considerados como tal.
O normal é então a extensão e a exibição da norma.
Ele requer então fora dele, ao seu lado e contra ele, tudo que ainda dele escapa.
Uma norma encontra seu sentido, sua função e seu valor no fato de que existe, fora dela, o que não responde à exigência a que ela serve”
“O anormal, como anormal, é posterior à definição do normal, é
sua negação lógica.
É portanto a
anterioridade histórica do futuro anormal que suscita uma intenção
normativa.
O normal é de fato obtido pela execução do projeto normativo”
“O anormal,
logicamente segundo, é existencialmente
primeiro”
Michel Foucault (1926-1984)
• Fazer morrer e deixar viver
• Fazer viver e deixar morrer
Biopolítica
• O termo designa a maneira pela qual o poder tende a se
transformar, entre o fim do século XVIII e o início do XIX,
• a fim de governar não
apenas os indivíduos por meio de processos
disciplinares, mas o conjunto dos vivos constituído em
população (Judith Revel)
• Soberania e disciplina: território e corpo
• Biopoder e biopolítica: população
Sérgio Aquindo
• associada à origem do liberalismo, laisser- faire – enquanto a
disciplina se aplicava essencialmente aos indivíduos,
• a biopolítica
representa esta
“grande medicina social” - governar a vida
Laisser-faire
• Deixar circular os passantes e
comerciantes, deixar os preços subirem, deixar que ocorra a
fome, em suma, fazer viver e
deixar morrer
• a biopolítica, por meio dos biopoderes locais, ocupar-se-á da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da
sexualidade, da
natalidade, etc., que se tornam desafios
políticos
Governamentalidade
“conjunto de instituições,
procedimentos,
análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bem específica, embora complexa, de poder, cujo alvo é a população”
Frédéric Gros
(Sciences Po Paris)
• Estados de violência – essaio sobre o fim da guerra (2006)
• O princípio segurança (2012)
• Desobedecer (2017)
“O excesso securitário mata a segurança”
Frédéric Gros em entrevista de 21/11/2015, sobre os atentados de 13/11 em Paris
• “É preciso conceber a necessidade de uma arbitragem entre as formas de
segurança”
• “O propósito da guerra difusa deflagrada pelo terrorismo é precisamente difundir a monstruosidade. E ele a difunde a partir do momento em que começa a ser dito que para combater de modo eficiente um inimigo tão monstruoso, é preciso aceitar tornar-se assim em certa medida”
• “A resistência ética, a recusa de constituir a si mesmo como sujeito securitário, é
fundamental também [além de participar nos esforços governamentais em prol da segurança] ...
• ... ela é a honra do sujeito político numa democracia”.
Mas o que é segurança?
• um velho conceito securitas (latim)/
ataraxia (grego)
• hoje, desafio político-midiático formidável
• preocupação maior das populações
• quando tudo vai mal, os medos se amplificam
• os que vendem a segurança estão com os bolsos cheios
• explosão semântica nos últimos anos, segurança de tudo ou de nada
• energética (fluxo de eletricidade, petróleo), alimentar (fluxo de alimentos, qualidade), informática (fluxo de informação), afetiva da criança (atmosfera de segurança
estruturante) etc.
• nem sempre relacionadas ao Estado
4 sentidos/paisagens
Segurança
Estado mental, disposição do
sujeito
Situação objetiva, estado do mundo
sem perigo ou ameaça
Garantia de ordem pública,
integridade territorial, conservação de bens e pessoas
Controle de fluxo, desenrolar normal
de um processo, funcionamento
sem falha ou interrupção
I
• serenidade, estabilidade mental, nunca deixar-se impressionar pelos eventos
• exercícios propostos pelos estoicos, céticos e epicurianos
• permanecer imperturbável diante do caos do mundo externo
II
• desaparição das fontes de perigo, ausência total de ameaças
• podemos sonhar com um mundo sem
maldade, morte, doenças, crimes, tristeza?
• foi imaginado pelo milenarismo, cristãos que, contra a Igreja oficial, criaram o dogma de
que o fim do mundo, o apocalipse seria precedido pelo período de mil anos de
plenitude – o domingo da história – o período de segurança
III
• hoje, nem técnica espiritual, nem sonho/
utopia medieval
• início da Era Moderna traz síntese cultural determinante entre segurança e Estado
• o Estado é a segurança, fórmula que aparece em Hobbes, Rousseau,
Espinoza, Locke, entre outros, para quem o Estado é o sujeito e o objeto da
segurança
ainda III • a justiça garante que se estes direitos forem
violados, os cidadãos podem recorrer à justiça
• a polícia garante a ordem pública (polícia política) e os bens, a integridade
física
• o militar protege as
fronteiras, a integridade territorial
O Estado
constituiu sua legitimidade se apresentando como guardião dos direitos
individuais e fundamentais, por meio de três figuras
IV - Biossegurança
• do paradigma moderno ao contemporâneo
• Segurança como continuidade de um processo vital
• referente a um indivíduo determinado e reconhecido em sua finitude biológica
• mecanismos, técnicas e dispositivos de securitização do centro vital do indivíduo
• Finitude biológica nos torna frágil, precário, permeável
• O indivíduo vivo precisa ser protegido porque ele é essencialmente vulnerável
• Viver é restaurar permanentemente um
equilíbrio: auto-regulação contínua do ser vivo
• Também é corpo identificável: digitais, DNA, sinais etc.
SECURITIZAÇÃO
Funções das teorias
Análise da realidade
• espelho (descrição)
• lente (focalização)
• moldura
(sistematização)
• previsão
• prescrição
Constituição da realidade
• produto de processos e interações sociais
• surge no contexto de paradigmas
sustentados por pressupostos normativos e
interesses de grupos
• teorias que dizem como as coisas são também diz como elas devem ser e como devemos agir
Prática política
• não é exterior à
realidade (escolha dos objetos de estudo, métodos, objetivos)
• teoria é uma prática (interação das ideias veiculadas por agentes sociais)
• reflete tensões sociais, configurações de poder e interesses de
determinados grupos
NUNES, João. Para que serve a teoria das RI? RI, dez/2012 http://www.scielo.mec.pt/pdf/ri/n36/n36a02.pdf
Escola de Copenhague
defende a natureza política
do "fazer"
segurança (relação entre
politização e securitização)
desafia abordagem tradicional de
segurança (ameaças
objetivas, autoevidentes)
introduz
perspectiva social construtivista
(ameaças socialmente construídas)
Referências de iniciação à Teoria da Securitização
VILLA, Rafael Antonio Duarte; SANTOS,
Norma Breda dos Santos. Buzan, Waever e a Escola de Copenhague: tensões entre o realismo e a abordagem sociológica nos estudos de segurança internacional. In:
Clássicos das Relações Internacionais. São Paulo: Hucitec, 2011, p.117-151.
DUQUE, Marina Guedes. O papel de síntese da escola de Copenhague nos estudos de segurança internacional. Contexto int., Rio de Janeiro, v. 31, n. 3, p.459-501, Dec. 2009.
Escola de Copenhage
• Ole Weaver, Barry Buzan e Jaap de Wilde
• Uma das ferramentas mais importantes dos chamados critical security studies
• Pretende responder à pergunta: o que faz um
determinado tema ser considerado uma questão de segurança?
• como um assunto deixa de ser um tema político
ordinário e adquire uma natureza diferente e específica - que o faz ser considerado uma ameaça à segurança?
Processo de securitização
Conjunto de práticas intersubjetivas por meio das quais um agente securitizador
procura estabelecer socialmente a existência de uma ameaça
à sobrevivência de uma unidade
Securitização
Supõe deslocar a política a um âmbito que encontra além das regras do jogo estabelecidas
ao classificar um assunto como ameaça, logo uma questão
especial
que requer medidas excepcionais
Dilema normativo
Questão da esfera pública submetida
ao debate e ao controle democrático
ordinário
passa a uma esfera de caráter
prioritário na agenda política –
ameaça
que justifica descartar procedimentos e
garantias e mobilizar recursos
excepcionais de resposta –
inclusive financeiros e
jurídicos
Ato de fala ( speech-act )
discurso que define/
apresenta ameaças à existência de uma unidade
veiculam demanda de que medidas sejam tomadas
para contrabalançar as ameaças
dirige-se a um público - audiência
Discurso
• para estudar a securitização é necessário estudar os discursos de securitização, que possuem estrutura retórica específica
• agente securitizador faz referência não só à sobrevivência de uma unidade, como
também à prioridade de ação para conter uma ameaça à existência da unidade -
sem necessariamente utilizar a palavra
"segurança”
Securitização não é automática
audiência
considera legítima a demanda do agente
securitizador
ameaça tem destaque
suficiente para que se justifique a quebra das regras normais da
política
iniciativa de securitização (securitization move) é aceita
Unidades de análise
Objetos referentes
Atores
securitizadores
Atores funcionais
Objetos referentes
• Unidades cuja existência o ator securitizador diz
ameaçada, para demandar que se tomem medidas de proteção
• Tradicionalmente o Estado - manutenção da
soberania
• coletividades limitadas - como Estados, nações ou civilizações – maiores
chances de aceitação do que objetos referentes
demasiado amplos
Atores
securitizadores
• Autores das iniciativas de securitização - utilizam a
estrutura retórica da segurança para chamar atenção para
necessidade de medidas de emergência, a fim de proteger determinado objeto referente da ameaça que identificam
• Em geral, líderes políticos, burocratas, representantes
governamentais e porta-vozes de grupos de pressão
• podem falar em nome do objeto referente (por ex.,
representantes do Estado) ou pode haver distinção analítica entre objeto referente e ator securitizador
Atores
funcionais
• atores que influenciam de forma significativa as decisões na área de segurança
Exs.:
• setor militar - Forças Armadas, indústria de armamentos,
empresas privadas de segurança, agências
governamentais que possam
influenciar as políticas externa e de defesa etc.
• setor ambiental - atores econômicos com atividade
vinculada à qualidade do meio ambiente, governos, agências governamentais, OIs, ONGs etc.
Alargamento do conceito de segurança
• unidades não estatais podem ser objetos referentes da securitização: Estado deixa de ser objeto referente exclusivo
• não há divisão rígida entre os níveis nacional e internacional: valores e
objetivos mais ou menos amplos - livre- comércio, mudança climática, saúde etc.
Política do pânico
• A securitização coloca as questões acima da “política normal”
• saída da “normalidade” justifica tornar assuntos confidenciais, criar poderes executivos adicionais ou desempenhar atividades que, de outro modo, seriam ilegais – regimes de exceção
• impacto considerável sobre o processo decisório relacionado ao objeto referente
3 passos da securitização bem sucedida
ameaças à
existência ação emergencial
efeitos nas relações entre as unidades por meio da quebra
de regras
• Nas últimas décadas, as discussões sobre segurança se desenvolveram de modo
significativo
• Sob diferentes paradigmas
• Estudos Internacionais de Segurança – sub-especialidade da disciplina de
Relações Internacionais
• Um dos enfoques mais importantes/
polêmicos é a teoria da securitização
voltando à Biossegurança (Gros)
Proteção
Controle Regulação
Proteção
• Oferta de proteção das populações vulneráveis, dos indivíduos fragilizados, contra todas as
ameaças
• afirmação dessa proteção como nova norma da política internacional, em lugar dos interesses estratégicos dos Estados
• segurança humana que pretende quase substituir os DH
• proteger as populações (os indivíduos concretos, vivos), justificar intervenções militares
• comunidade global das vítimas
Controle
• do gesto de fechamento (prisão,
fronteiras, hospícios) como paradigma de segurança passamos ao seguimento, ao acompanhamento de processos, de fluxos de mercadorias, imagens, pessoas, dados etc. – o rastreamento
Regulação
• Existe uma suavidade na regulação
biopolítica, como se falou no século XVII de uma suavidade no comércio
• tudo é incitação leve, solicitação sorrateira, convite promissor
• Regulamentações leves (soft law),
incitativas, que despertam os desejos e direcionam as energias em determinado sentido
• A perfeição de um sistema ocorre quando cada uma de suas partes participa de sua manutenção – mais do que ele se impõe a elas
• natalidade, consumo, crime