• Nenhum resultado encontrado

A morfologia da Fera. Sandra Regina Picolo. Shizuko Higashi

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A morfologia da Fera. Sandra Regina Picolo. Shizuko Higashi"

Copied!
7
0
0

Texto

(1)

A morfologia da Fera

Sandra Regina Picolo

Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comuni- cação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e docente na FASB Faculdade de São Bernardo do Campo.

ABSTRACT

This article aims to analyze the version of the tale Beauty

and the Beast, extracted from the work of the Traditional Tales Brazil (2000),by Câmara Cascudo seeking to

apply the study of narrative proposed by Vladimir Propp in

Morphology of the Folk Tale (1984) in order to

unravel the indices that denote the course of the narrative metamorphosis of the Beast character.

KEYWORDS

Tale’s Morphology; character functions; metamorphosis;

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a versão do conto A Bela e a Fera, extraído da obra Contos

Tradicionais do Brasil (2000), de Câmara Cascudo,

procurando aplicar os estudos da narrativa realizados por Vladimir Propp, em Morfologia do conto maravilhoso

(1984)2, a fim de desvendar índices que no decorrer da

narrativa, denotem a metamorfose da personagem Fera.

PALAVRAS-CHAVE

Morfologia do conto; funções da personagem; metamorfose;

Shizuko Higashi

Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e docente na Faculdade Anhanguera- Anchieta- São Bernardo do Campo, SP.

http://www.unprofound.com/viewpic.php?pic=masks.jpg&photographer=catherine

(2)

LITERATURA

O conto, em questão, é de autoria desconhecida e faz parte da tradição oral, a qual sem fronteiras geográficas ou linguísticas, alimentou e ainda alimenta a memória humana. Segundo Roman Jakobson em Diálogos (1985, p. 22), a literatura oral tem “um valor intrínseco e um caráter próprio”, o que a faz servir-se da palavra como canal de origem e de transmissão, fato que justifica estudiosos das narrativas orais resgatarem versões similares de um mesmo conto, em países e épocas distintas. Segundo Aarne e Thompson (1961 apud ABRAMOWICZ, 1995)

1

, os contos foram transmitidos de geração a geração por períodos longos, sem grandes transformações, numa mesma região; mas, nas emigrações dos povos para outras regiões, sofreram adaptações ao novo contexto cultural. Como os contos são transmitidos de boca em boca, estas manifestações simbólicas, quando codificadas, revelam diferentes universos culturais, produzindo, assim, novas semioses. Da passagem da oralidade para o texto escrito, deparamo-nos com o processo de ir e vir do texto cultural, o que Iuri Lotman chama de “unificação de diversos sistemas” (LOTMAN, 1979, p. 35).

Ao recolher o conto A Bela e a Fera e publicá- -lo no Brasil, em meados do Século XX, o autor Câ- mara Cascudo recupera um conto de encantamento que difere dos demais, pelo fato de nele ocorrerem transformações (maldições/encantamento) de per- sonagens em seres mágicos, em animais. Os contos de encantamento partem de uma indefinição espa- ço-temporal e retratam um heroi que depara com problemas durante suas aventuras, mas consegue superar suas dificuldades, auxiliado por objetos mágicos. Apesar da diversidade destes contos, há elementos invariantes e variantes os quais foram es- tudados por Vladimir Propp

2

, autor da Morfologia

do Conto Maravilhoso. Segundo o Autor as perso-

nagens “são dotadas de um feixe de funções que de- signam suas ações ao longo da intriga” (SEGOLIN, 1978, p. 36) formando um “princípio ordenador” da realidade.

Com o intuito de analisar o texto, recorremos a esta obra, que é o resultado de um estudo minucioso do conto maravilhoso russo. Na tentativa de estabelecer “uma morfologia, isto é, uma descrição

do conto maravilhoso segundo as partes que o constituem, e as relações destas partes entre si e com o conjunto” (PROPP, 1984, p. 25)

2

, o Autor parte para a descrição de cem contos da coletânea de Afanássiev

3

, decompondo os textos segundo suas partes constituintes e suas relações.

O pesquisador constata, a partir da compara- ção dos vários segmentos, que neles há elementos invariáveis − as funções das ações das personagens

− e elementos variáveis − os seus atributos, que de- terminam uma estrutura constante e específica dos contos maravilhosos, em torno da qual os motivos se agrupam. Os contos com funções idênticas são considerados do mesmo tipo. Além disto, Propp demonstrou que são as particularidades estrutu- rais que determinam os vários tipos e não apenas e simplesmente a combinação de motivos do enredo, fundamento da “crítica” que o etnólogo russo faz à classificação Aarne Tompson

4

, não obstante reco- nheça o mérito dessa classificação como guia práti- co, graças ao qual foi possível numerar os contos.

Os contos de encantamento ou de fadas, os quais Propp denominou de maravilhosos, apresen- tam um heroi que, ao sair de uma situação de esta- bilidade, é submetido a uma série de dificuldades e provações, que consegue superar graças à interven- ção de ajudantes mágicos. Em seguida, é reconhe- cido como heroi e casa-se com a princesa ou com o príncipe, isto significa haver um “final feliz”.

Tanto Vladimir Propp (2002) como Walter Benjamin (2008) retratam os antigos rituais de ini- ciação, percurso comum nos contos maravilhosos, os quais começam com um dano ou prejuízo cau- sado a alguém, ou o desejo de possuir algo; desen- volve-se com a partida do heroi, encontro com um doador que lhe dá um objeto mágico; segue-se o embate e a necessidade de cumprir tarefas e fina- liza com um casamento (PROPP, 2002, p. 4). Há, dessa maneira, uma situação inicial de conforto que é perdida, entretanto principia a jornada do heroi, a presença do elemento mágico, as tarefas impostas e a conclusão.

A partir da breve recapitulação dos estudos da

morfologia do conto maravilhoso, já é possível bus-

car estas funções no conto A Bela e a Fera.

(3)

LITERATURA

O CONTO A BELA E A FERA

O conto La Belle et la Bête foi escrito por Jeanne Marie Leprince de Beaumont (1711-1780). O texto integra a coletânea Le magasin des enfants (publi- cada em 1757). Segundo Mara Tatar

5

, a coletânea era estruturada como uma narrativa em que uma go- vernanta - cercada de meninas - contava histórias.

(TATAR, 2004, p. 350). Com caráter pedagógico, os contos da coletânea tiveram como público-alvo me- ninas e moças.

Em específico, La Belle et la Bête resume uma versão francesa que lhe é anterior, escrita por Ma- dame de Villeneuve (1740). O texto de Beaumont é o mais conhecido e foi escrito em 1756, antes da Re- volução Francesa, momento de grandes mudanças no país.

Na versão escrita em 1756, a personagem Fera é um noivo-animal, um monstro com um grande olho no meio da testa. Em outras versões está represen- tado por um boi, teiú, burro, sapo, cobra, papagaio ou peixe. Já, a personagem Bela, por sua vez, possui muitas virtudes e se entrega em lugar do pai à Fera para provar seus sentimentos em relação àquele.

Obediente, renuncia ao próprio direito de escolha, em sinal da gratidão.

O texto de Madame Beaumont, que se tornou espécie de texto-mãe para as recriações posteriores desse conto, certamente procede de uma versão do conto mítico Eros e Psique, de Apuleio, autor latino do século II, versão escrita mais antiga - até então registrada, em Metamorfose de Lucio, também co- nhecida como O asno de ouro.

Há, no conto, a presença do insólito, ou seja, do elemento maravilhoso. Este transporta o leitor para tempos distantes e indefinidos, fazendo-o aceitar o sobrenatural, sem questioná-lo. Sobre a questão do elemento maravilhoso, Tzvetan Todorov, na obra

Introdução à literatura fantástica (2004), afirma

que “o conto de fadas não é senão uma das varie- dades do maravilhoso e os acontecimentos sobre- naturais aí não provocam qualquer surpresa: nem o sono de cem anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas” (TODOROV, 2004, p.60).

No título do conto há dois termos antagônicos os quais nomeiam as personagens principais da

narrativa. Os nomes sugerem um distanciamento entre elas, entretanto, no decorrer da história, o que se observa é o contrário disto. Em A Bela e

Fera, o narrador não cria um confronto de visões,

apenas seleciona ambientes, muda os espaços, onde acontecem os fatos. Sua presença é sugerida por meio de índices como a seleção de personagens, a ausência de descrições deles, o que revela algumas intenções subjacentes.

Com uma narrativa em prosa de grande den- sidade semântica e valor simbólico, a ação contida no conto popular se reporta a um tempo e lugar indeterminado: “Era uma vez...” deslocando o lei- tor para um espaço maravilhoso, em que os acon- tecimentos e as coisas não podem ser explicados por uma lógica convencional. Revestem-se de uma função lúdica e, por vezes moralizante, entre outras funções possíveis.

Algumas das funções de Propp que se encon- tram no conto são: afastamento, interdição e trans- gressão, o combate, o reconhecimento e descoberta do engano e o casamento, que serão demonstradas a seguir.

Para Frye (1973), o conto inicia-se no inverno, devido ao feitiço lançado sobre o príncipe e seu castelo. A primavera que é a estação das flores e do amor chega para aflorar esse sentimento oculto em Fera. A primavera traz consigo o outono que ajuda na luta de Bela em transformar novamente a Fera em príncipe. E, por fim, o verão, a estação quente e do final feliz: todos os obstáculos são superados para o conto ter o esperado final feliz.

Inicia-se o conto A Bela e a Fera com “Há mui- tos anos, em uma terra distante”, o que representa o afastamento do aqui e agora, ou melhor, o desloca- mento no tempo e no espaço. Faz, portanto, o leitor penetrar no mundo do faz de conta. Diferente do mundo real, novas leis instauram-se, fato que não afeta a compreensão e a aceitação desse universo.

Tal fórmula indicial e transporte do mundo real para o mundo da fantasia proporcionam a fusão do natural e sobrenatural, favorecendo uma experi- mentação mais abrangente e profunda da realidade.

Ao longo do conto as indicações de natureza

temporal são limitadas e vagas, não permitindo

determinar com rigor a duração da ação ou a

(4)

LITERATURA

os atributos do futuro heroi, no caso, da garota Bela, sua superioridade em relação a suas irmãs.

Até mesmo a presença do número três, pode sugerir a ideia “de duas contra uma”, ou seja, a distinção entre Bela e as demais, que no conto, nem mesmo, são nomeadas. Sabe-se que é preciso que haja uma tensão para que ocorra o núcleo dramático; assim o conto se constroi a partir de oposições, inicialmente representada pela riqueza e pobreza e, depois, beleza e feiúra.

A

situação inicial apresenta membros de uma

mesma família: um rico mercador e suas três fi- lhas, numa situação de bem-estar e prosperidade, que servem de contraste à desgraça que advirá em seguida. Nota-se que cada uma das frases deve ser observada de maneira cuidadosa, pois evidencia fa- tos distintos. Segundo Propp, cada frase constitui um motivo, e a análise dos contos deve ser condu- zida a um nível que poderia ser chamado hoje de

“molecular”.

Após a exposição da situação inicial, uma per-

sonagem se ausenta e esta ausência acarreta uma des-

graça. No caso, o mercador parte a trabalho para terras muito distantes. Pergunta às filhas o que que- riam que lhes trouxesse, caso fosse feliz nos negó- cios. As mais velhas pediram, respectivamente, um rico piano e um vestido de seda, porém Bela dese- jou-lhe felicidade. Por insistência do pai, adquire a

função de mandante e pede “a mais linda rosa do

mais lindo jardim”.

O pedido de Bela é uma prova, na medida em que é algo proibido, o que se verificará depois. A rosa passa, então, a simbolizar

o primeiro objeto mágico. Já se percebe

o valor altamente simbólico da rosa. Na verdade, revela-se um pedido cifrado, pois Bela não pede algo tão simples assim de se encontrar.

Os negócios não foram bons e o mercador ao retornar ficou hospedado num castelo, onde havia apenas um criado de farda, que o recebeu muito bem. Ve-se que o criado também surge do nada e não aparece mais no conto. De

manhã, ao acordar, o pai lembrou- se do pedido de Bela. Avistou um jardim e nele uma rosa. Ao mesmo acontece relativamente ao espaço: um rico

castelo e uma casa, elementos citados. Na verdade, as vagas referências espaço-temporais aparecem apenas porque é uma exigência da narrativa, visto que nada acontece fora do tempo e do espaço. Não é o onde nem o quando que interessa, mas sim o que acontece e as próprias personagens são um mero suporte da ação.

O conto, carregado de simbologia, diz mais do que parece dizer. A manifestação mais evidente é a referência sistemática ao número três, símbolo da perfeição, desde tempos imemoriais. A heroína é frequentemente a mais nova (e por isso a suposta- mente mais pura e inocente) e afirma-se por oposi- ção às irmãs mais velhas. O heroi quase sempre tem que enfrentar uma série de provas antes de alcançar o objeto - símbolo do amadurecimento, que o leva a sair da casa paterna em busca da autonomia.

Não é diferente em A Bela e a Fera. No conto, o mercador empobrece. Observe-se que há uma lacuna em relação ao empobrecimento do mercador, fato não explicado. Com a pobreza, as filhas mais velhas, apegadas a bens materiais, entristecem;

entretanto, Bela, a mais nova, pensa sempre em consolar o pai. Ve-se

que antes de tecer a intriga, já se r e v e l a m

http://pedrotavars.files.wordpress.com/2012/08/beauty_and_the_beast_broadway_by_grodansnagel-d3acz4v.jpg

(5)

LITERATURA

colhê-la, deparou-se, de súbito, com um monstro,

que passa a ser uma nova personagem do conto.

Percebe-se que o pai adquire uma função auxiliar, pois auxilia a filha, no momento em que entra no jardim para colher a rosa, ou seja, aproxima-a de sua alma gêmea. Num segundo momento também auxilia o animal, intitulado no conto como a Fera, ao trazer sua filha para o castelo. Castelo este que pertence à Fera e não a um ser humano. O roubo da rosa simboliza o dano, o interdito, que induz a primeira partida de Bela ao castelo da Fera. O pai, ao retirar a rosa para satisfazer o pedido da filha mais nova, obriga a jovem, futura heroína, a sair de casa. A rosa, portanto, metaforiza o encontro de a Bela com a Fera, na medida em que é o elemento que os aproxima.

No conto maravilhoso, com ou sem a presen- ça de fadas, seus argumentos desenvolvem-se den- tro de um mundo mágico (reis, rainhas, príncipes, princesas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida etc.) e apresenta como eixo gerador uma problemática existencial. No caso, a personagem Fera demonstra estar imbuída desta problemática pela própria condição que é apresen- tada no texto: “um monstro”, “uma fera horrível”.

Personagem inicialmente antagônica, ou seja, aque- la que destoa do “normal”, que provoca medo pela própria aparência. Incrivelmente, apesar de ser uma criatura tão assustadora, alimenta-se de rosas, flo- res tão singelas. O fato de alimentar-se delas sugere que se alimenta daquilo que lhe falta, o que nos leva a crer que Bela é o ser que almeja e que pode lhe tra- zer de volta a vida, ou seja, pode torná-la humana.

Para a palavra “fera” há termos correspondentes como “monstro”, “animal” etc., seus atributos mudam, não as suas ações e as funções. Uma função é denotada por um nome de ação. Há no conto uma sequência de ações inesperadas que se interrelacionam. O texto passa a impor suas leis, ou seja, sujeito desta vez a uma lógica que tem mais raízes no próprio movimento de produção textual,

"os agentes submetem suas ações ao agir básico do texto, anulando-se como entidades funcionais específicas e iluminando a funcionalidade deste”

(SEGOLIN, 1999, p. 84). E é este movimento que

HUMANIZANDO-SE...

No momento em que há um diálogo entre o mercador e a Fera, observa-se que o agressor, no caso a Fera, tenta obter informações, que o pai for- nece, sem que haja combate, ou seja, resistência. Ao saber que a filha do mercador é responsável pela retirada da rosa, o monstro, por intermédio de um

estratagema, propõe uma troca, que representa, na

verdade, um roubo implícito, na medida em que a Fera solicita ao pai “a primeira criatura que avistar em sua casa, quando chegar”. Há, então, a cumplici- dade do pai, que acaba por aceitar tal troca.

Ao utilizar-se de um estratagema, ou seja, pro- por ao mercador uma permuta, a Fera já demonstra não ser uma criatura tão cruel assim, pois não se apresenta como um ser inflexível, o que esperamos de um monstro. Esta permuta sugere um “roubo implícito da Fera”, que tem suas segundas inten- ções. Observe que poderia apenas restituir a rosa roubada e alimentar-se; entretanto parece conhecer, antecipadamente, o resultado que a troca lhe pro- porcionaria.

Feita a troca, Bela parece não se preocupar com o fato de ter de morar no castelo com a Fera; pelo contrário parece segura, o suficiente para mudar as intenções do monstro. Chega o momento da parti- da, Bela vai ao castelo. No dia seguinte, pela manhã, colhe uma rosa e, nesse instante, a Fera aparece. Há, nesta passagem, certa ambiguidade, pois não fica claro o que Bela acaricia: a Fera ou a rosa. Novamen- te, já é possível notar uma nova mudança na perso- nalidade do monstro, que se enternece com o fato.

Paulatinamente, observa-se a humanização da Fera.

Após algum tempo, a moça sentiu saudades do pai e quis vê-lo. A Fera rapidamente mandou buscá-lo. Percebe-se que suas atitudes revelam que seu coração é generoso. O pai solicita à Fera que lhe entregue a filha, porém ele não aceita isto. Propõe ao mercador que visite a filha sempre que puder e lhe oferece muitas riquezas, que não são recusadas.

O pai se mostra, então, interesseiro. É exatamente

nestas relações de trocas e pactos realizados entre

a Fera e os demais personagens que se percebe sua

postura de homem, pessoa diplomática, que sabe

negociar e tirar vantagens disto.

(6)

LITERATURA

A narrativa prossegue e Fera decide levar Bela a um quarto encantado onde está um espelho mági- co, através do qual a família da moça é monitorada.

O espelho permite à Fera antever os fatos, facilitan- do as artimanhas do animal, que mais se aproxima do homem, ser racional. Diante disto, é possível en- tender que ao propor a troca ao mercador, quando a rosa é roubada, a Fera já tinha conhecimento do resultado do pacto firmado. A rosa pode ser enten- dida, a partir desta revelação, como uma mediado- ra, que condensa a beleza e a monstruosidade ou a alma da Fera, na medida em que lhe proporciona a vida, o que Bela passa a proporcionar-lhe.

Observando o espelho, Bela vê o casamento da irmã e pede à Fera para ir ter com eles. As duas per- sonagens fazem um pacto. Fera põe um anel, objeto mágico, em Bela, a fim de que não se esqueça dele e retorne no prazo de três dias. Caso não retornas- se, com certeza morreria. A moça concorda. O anel, elemento mágico, gravará dentro dela a lembrança da Fera e suscitará a prova final, ou seja, irá testar a fidelidade da jovem.

Bela retorna à casa de seu pai. Suas irmãs, ao saberem que Bela está feliz, escondem o anel da moça, o que provoca o esquecimento do pacto es- tabelecido. Somente após três dias e meio o anel é recuperado e, também, a memória de Bela, que vol- ta ao castelo e encontra o pobre animal moribundo.

Observe que Fera vai se definhando, fato provocado pela ausência de Bela, pela saudade - própria de se- res humanos quando distantes de entes queridos.

Bela supõe que Fera esteja morta. Como a es- timava muito, beija-a. O beijo quebra o encanta- mento, supre a sua falta, ou seja, a sua ausência, transformando o monstro em um belo príncipe, momento da plena humanização da Fera.

Observa-se que a Fera sofre uma transforma- ção gradativa, uma humanização percebida ao lon- go do conto. Inicialmente, é apresentada como um monstro, uma fera horrível e, no transcorrer da nar- rativa, é chamado de pobre animal e bicho. Persona- gem inicialmente vista como antagonista, revela-se um ser passível de mudanças, pois não age por im- pulsos, como se espera de um animal. Ao contrá- rio, premedita, propõe trocas, negocia, procurando levar vantagens, ações atribuídas a seres humanos.

Na medida em que se sensibiliza com as atitudes

de Bela, demonstra suas emoções, sua capacidade de mudar de atitudes em prol de harmonia, uma antropomorfização decorrente de um amor, que su- perou o esquecimento do que representaram mutu- amente quiçá num passado distante.

A união de Bela e Fera representa, primeiramente, para a personagem feminina, certa ascensão social (mesmo não demonstrado nenhum interesse de Bela) e para a personagem masculina, o amor como combustível para a recuperação da forma humana.

CONCLUSÃO

Segundo Nelly Novaes Coelho (2000, p.177-9), os contos maravilhosos asseguram a inserção de acontecimentos fora da “norma” como metamorfo- ses, por exemplo. Talvez, sejam o veículo que me- lhor exemplifique o uso da antropomorfização. Ne- les, suas personagens, muitas vezes não humanas, transmitem mensagens e ideais, essencialmente ao recorrer ao estilo humanizado das coisas e dos seres.

Dessa maneira, em vias de finalização, por meio do estudo da narrativa do conto A Bela e a

Fera, baseados nos estudos de Vladimir Propp, foi

possível desvendar na urdidura da trama os índi- ces que revelam a Fera como uma personagem que reflete, discute, argumenta e se emociona tal qual os seres humanos, porque também é portadora de personalidade e valor próprio. A sua crescente hu- manização é resgatada pelas ações e reações que, por amor, metamorfoseia o feio aparente, em bela essência (SEGOLIN, 1978, p. 36).

NOTAS

1. Páginas 126-129.

2. PROPP, Vladimir. “A estrutura e a forma – reflexões sobre uma obra de Vladimir Propp” em Morfologia do Conto Maravilhoso.

3. A coletânea Contos populares russos, lançada de 1855 a 1863 em oito volumes, foi resultado do cuidadoso traba- lho de Aleksandr N. Afanássiev (1826-1871), responsável pela reunião e publicação de cerca de 600 textos presentes nessa obra, que ganhou destaque por ser a primeira cole- tânea de contos populares russos de caráter científico, tor- nando-se assim um importante material de estudo, além

(7)

LITERATURA de apresentar a poesia e o humor inerentes aos contos.

4. O sistema de classificação de Aarnne-Thompsom é um sistema utilizado para classificar contos. Primeiramente desenvolvido por Antti Aarnne e publicado em 1910, o sistema foi traduzido e ampliado por Stith Thompson.

Como um tratamento de morfologia, ele usa motivos ao invés de ações para o grupo de contos.

5. Mara Tatar preside o Programa de folclore e mitologia na Universidade de Harvard, onde leciona cursos em Es- tudos Alemães, folclore e literatura infantil.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICZ, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo:

Scipione, 1995.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Pau- lo: Ed. Martins Fontes, 2003.

BEAUMONT, Leprince de & d’ AULNOY. La Belle et la Bête et autres contes. Paris:Hachette, 1979.

________________________________. A Bela e o Monstro e outras histórias. Lisboa: Portugália, s.d.(Col. Os Peque- nos Pioneiros).

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov e Experiência e Pobreza em Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

________________, Experiência e Pobreza, in Obras Esco- lhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.

BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fa- das. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.

CASCUDO, Luís da Câmara. A bela e Fera e Prefácio em Contos Tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2000.

_______________________ Contos tradicionais do Brasil:

folclore. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.

_______________________ Dicionário do folclore brasi- leiro. Rio de Janeiro: INL, 1954.

_______________________ Literatura Oral no Brasil.

Belo Horizonte: Itatiaia; São

Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1984.

CAMPBELL, Joseph. Da psicologia à metafísica e Histó-

rias folclóricas sobre criação em O heroi de Mil Faces, cap.I, Parte II. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995.

COELHO, Nelly Novaes. O Conto de fadas: Símbolos, mitos e arqueótipos. São Paulo: D.C. Suggotto, 2000.

ELIADE, Mircea. A estrutura dos mitos e os mitos e os contos de fada em Mito e Realidade. São Paulo: Perspec- tiva, 1972.

FRYE, N. Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.

FISCHER, Ernest. “A necessidade da arte”. 9 ed. Rio de Janeiro:LTC,2007.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Não contar mais? em Histó- ria e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspec- tiva, 1999.

JECUPÉ, Kaka Werá. Um mito tupy-guarani em A Ter- ra dos Mil Povos – História indígena brasileira contada por um índio. São Paulo: Peirópolis, 1998.

JAKOBSON, Roman. & POMORSKA, Krystyna. Diálo- gos. São Paulo: Cultrix, 1985.

JOLLES, André. Formas Simples – legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, conto, chiste. São Paulo: Cultrix, 1976.

LOTMAN, Yuri. Sobre o problema da tipologia da cul- tura. In: SCHNAIDERMAN, Boris. Semiótica russa. São Paulo: Perspectiva, 1979.

_____________. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Es- tampa, 1978.

PROPP,Vladimir.Morfologia do Conto Maravilhoso, Prefácio (Boris.Schnaiderman), cap.I – VII. Rio de Janeiro:

Forense-Universitária, 1984.

______________. “A estrutura e a forma – reflexões sobre uma obra de Vladimir Propp” em Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1984.

______________. As transformações dos contos fantásti- cos em Teoria da Literatura – Formalistas Russos. Porto Alegre: Ed.Globo, 1978.

SEGOLIN,Fernando.Personagem eAnti-personagem. 2 ed. São Paulo: Olho D’Água.1999,

TATAR, Mara (Introdução e notas). Contos de Fadas.

Edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica.

São Paulo: Perspectiva, 2004.

http://www.osmais.com/wallpapers/201206/castelo-alemao-wallpaper.jpg

Referências

Documentos relacionados

dignidade humana, pois promovem o bem-estar e desenvolvem habilidades do indivíduo e da coletividade. Entre esses direitos encontram-se aqueles relativos ao esporte e ao

A democratização do acesso às tecnologias digitais permitiu uma significativa expansão na educação no Brasil, acontecimento decisivo no percurso de uma nação em

j) Hospedeiro intermediário: Caramujo. Hospedeiro definitivo: Homem... Ciclo biológico de S.mansoni.. Schistosoma mansoni- ovo.. Figure 1: Scanning electron micrograph of a pair

A comparação das ocorrências só é possível, a fim de definir sua expressividade maior ou menor, em relação ao contingente em que atuam, através da

No entanto, “legalizar”, enquanto categoria nativa, “consiste em sinalizar que o consumo de maconha pode ser praticado com uma razoável probabilidade de que não

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

No mercado do Rio Grande do Norte, observamos clientes e arquitetos discutindo em seus programas de necessidades as questões que envolvem a sustentabilidade, tais como: a integração