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O neoliberalismo autoritário de Trump e Bolsonaro 1. Marcus Ianoni (UFF)

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Academic year: 2021

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O neoliberalismo autoritário de Trump e Bolsonaro1

Marcus Ianoni (UFF) Resumo

O artigo possui dois objetivos, um teórico e outro empírico-comparativo. O objetivo teórico é analisar a hipótese do novo neoliberalismo, que emerge após a crise de 2008, especialmente duas tendências políticas distintas, mas combináveis, e não opostas, de desdemocratização associadas a ele: por um lado, a oligarquização da democracia; por outro lado, o autoritarismo. O objetivo empírico-comparativo é investigar dois casos da tendência desdemocratizante-autoritária do novo neoliberalismo: o neoliberalismo nacional e hiper-reacionário de Trump e o neoliberalismo dependente-conservador de Bolsonaro. Cada um deles combina, à sua maneira e com inserções distintas na economia política internacional, políticas pró-mercado, propensão autoritária, nacionalista e antiglobalização.

Palavras-chave: Novo neoliberalismo, crise de 2008, desdemocratização, autoritarismo, coalizões

Este trabalho possui dois objetivos, um teórico e outro empírico-comparativo. O objetivo teórico é identificar e analisar o novo neoliberalismo, que supostamente emerge após a crise de 2008, especialmente duas tendências políticas distintas, mas combináveis, e não opostas, de desdemocratização associadas a ele: por um lado, a oligarquização da democracia; por outro lado, o autoritarismo. Essas tendências serão examinadas conectando o Estado ao mercado e às classes sociais, o que implica em trabalhar em uma perspectiva interdisciplinar, buscando o desafio de sintetizar contribuições da economia política, da sociologia política, da ciência política e da filosofia política. Nesse sentido, a oligarquização da democracia e as pressões autoritárias nos sistemas políticos de vários países são apreendidas como tendências de transformação de regime político articuladas às dimensões das estruturas e das agências, às relações e processos econômicos, sociais e políticos, aos atores, ao contexto, aos contrangimentos e possibilidades institucionais. O objetivo empírico-comparativo é investigar dois casos da tendência autoritária do novo neoliberalismo: o neoliberalismo nacionalista e hiper-reacionário de Trump e o neoliberalismo dependente-conservador de Bolsonaro (Fraser, 2017b; Cozzolino, 2018; Ianoni, 2019). Cada um deles combina, à sua maneira e com inserções distintas na economia política

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internacional, propensões autoritárias – inclusive com teor neofascista – e retóricas de conteúdo nacionalista e antiglobalização.

Nos EUA, a eleição de Donald Trump encerrou o que Nancy Fraser (2017a) chamou de neoliberalismo progressivo, dando lugar naquele país a uma versão nova do neoliberalismo, que ela adjetiva como hiper-reacionário, portadora de um conteúdo nacionalista e autoritário. Sua novidade em termos de ideologia política reside precisamente no fato de combinar nacionalismo e autoritarismo, componentes não explicitamente presentes no neoliberalismo progressivo do Partido Democrata, embora as políticas pró-mercado, desde Thatcher e Reagan, têm pressionado contra o princípio democrático da igualdade política, por combaterem ideologicamente o papel do Estado como contrapeso às injustiças mercado e por restringirem os recursos orçamentários para a implementação das políticas públicas promotoras de igualdade de oportunidades; ademais, no ambiente ultracompetitivo e utilitarista estimulado e desenhado pelas políticas do Consenso de Washington, o poder econômico atua para selecionar e capturar as decisões do sistema político, doando milionários fundos eleitorais aos representantes políticos eleitos, que ficam assim comprometidos com os interesses legislativos de seus patrocinadores. As relações e estruturas econômicas do capitalismo neoliberal restringem o debate público e o escopo decisório da política, dada a pujança do impacto dos interesses dos agentes-chave do mercado nas decisões do Estado.

Por um lado, o neoliberalismo-nacionalista de Trump caracteriza-se por um forte nacionalismo retórico contra a globalização, defensor de uma concepção xenófoba de soberania nacional, da primazia do território para os norte-americanos e da supremacia racial branca. Em relação à economia e às decisões de política econômica, seu nacionalismo é moderado pelo ideário neoliberal, que se faz presente na política macroeconômica, na redução dos programas sociais, no corte de impostos para os ricos e na desregulamentação dos mercados. Por outro lado, ao atuar para reduzir a margem decisória da política democrática e ao alavancar sua liderança com discursos políticos agressivos, que opõem amigos a inimigos (os imigrantes e a esquerda), esse novo neoliberalismo induz a processos de desdemocratização que, em alguns casos nacionais importantes, como os de Trump nos EUA e Bolsonaro Brasil, combinam-se com

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tendências protofascistas contra a democracia. No Brasil, a radicalização do neoliberalismo está associada a uma economia política de aprofundamento da dependência nacional, embora a retórica político-ideológica de Bolsonaro e seus conselheiros tenha conteúdos nacionalistas e antiglobalização.

Em seguida, revisarei uma pequena bibliografia selecionada sobre o neoliberalismo, tanto para identificar as principais características que lhe são atribuídas, desde os anos 1980, como para apreender distintos períodos da ordem social neoliberal, visando, sobretudo, refletir sobre a pertinência de se distinguir atualmente um novo neoliberalismo, no qual a redução do espectro decisório da política democrática e a tendência ao autoritarismo seriam suas principais expressões na dimensão do regime político e das políticas públicas do Estado. O passo posterior será perfilar as características de duas expressões do novo neoliberalismo, o neoliberalismo nacional e hiper-reacionário de Trump e o neoliberalismo dependente-conservador de Bolsonaro. Por fim, destacarei as conclusões.

Metamorfoses do neoliberalismo

O surgimento do neoliberalismo, entendido como uma totalidade nova e complexa, envolvendo um discurso ideológico emergente, um leque de políticas públicas e o regime de acumulação com dominância da valorização financeira (Paulani, 2009), ou seja, entendido como um conjunto de relações e práticas econômicas e políticas com características específicas, próprias de uma determinada etapa histórica do capitalismo, remonta à crise de estagflação dos anos 1970. Naquele contexto, os Conservadores venceram os Trabalhistas, no Reino Unido, e governaram o país de 1979 a 1997, ao passo que, nos EUA, os Republicanos desalojaram os Democratas e se mantiveram no governo de 1981 a 1993. Esses dois partidos liberais na economia e de ideologia de direita lideraram politicamente a revolução neoliberal em duas nações-chave da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

A crise de estagflação encerra o que os franceses chamam de Trente Glorieuses. Tal desfecho encadeia-se com duas recessões internacionais, uma em 1973-1975, outra em 1980-1983, ambas relacionadas a crises do petróleo, a primeira em 1973-1974, a segunda em 1979. O primeiro choque de preços na commodity energética estratégica

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induziu a economia à crise de estagflação, uma recessão que, nos EUA, durou 16 meses. A quadruplicação dos preços do ouro negro foi a principal causa da ocorrência simultânea, e até então surpreendente, de desemprego, inflação alta e declínio do crescimento, quadro que contrariava a teoria de suporte ao influente modelo da curva de Phillips.i

Por outro lado, dois anos antes, em 1971, haviam sido tomadas as decisões econômicas que ficaram conhecidas como Nixon shock: a ruptura unilateral com a conversibilidade internacional estabelecida em Bretton Woods, o padrão dólar-ouro de regime de câmbio fixo; o congelamento de salários e preços por 90 dias e uma sobretaxa de 10% nos produtos de importação. Essas medidas respondiam à especulação contra o dólar nos mercados privados de moeda e ao aumento do desemprego e da inflação e foram um marco no processo estrutural que induziu à substituição da taxa cambial fixa pelo regime de câmbio flutuante, típico do capitalismo neoliberal.ii O abandono do

padrão dólar-ouro significou uma vitória dos bancos privados sobre os governos em relação ao controle do sistema financeiro internacional. O sistema monetário passou a ser orientado para o mercado. O ambiente de desarranjo nos mercados de moeda, de crise cambial e de sinais iniciais de estagflação (aspecto esse que já se desenhava antes mesmo da primeira crise do petróleo), agravou-se com o embargo dessa commodity, executado pela OPEP no contexto da guerra do Yom Kippur. O índice Dow Jones da bolsa de valores de Nova York caiu 50%, entre o pico, no final de 1972, ao vale, em 1974, sendo esse fato econômico, até então, o maior crash desde a Grande Depressão. No Reino Unido, o impacto foi maior ainda.

Ademais, em 1979, no contexto da Revolução Iraniana, ocorreu outra crise internacional do petróleo, que implicou na duplicação do preço do barril. Combinada ao choque monetarista do FED, liderado por Paul Volcker, visando combater a inflação, o impacto dessa segunda crise internacional do petróleo foi ainda maior que o da crise de 1973, tendo desencadeado, entre 1980 e 1983, o que foi, até então, a maior recessão internacional desde a Grande Depressão. Ou seja, em um período de pouco mais que cinco anos, uma recessão internacional superou a outra em impacto, virando a página da história econômica relativamente estável do pós-guerra.iii

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Nesse quadro, deterioraram-se as condições econômicas e políticas de manutenção, nos países desenvolvidos, do compromisso histórico do pós-guerra, que haviam ensejado o compartilhamento relativamente consensual, durante três décadas, por governistas e oposicionistas, liberais e intervencionistas, de um leque de políticas públicas que equacionaram crescimento, pleno emprego e estabilidade de preços e que também abriram espaço para políticas de bem-estar social. Tal compromisso expressava politicamente dois equilíbrios, um entre classes, no interior dos países, outro entre potências no sistema internacional, respectivamente, entre capital e trabalho e entre os EUA e a URSS, em um contexto de bipolaridade e Guerra Fria.

A crise induziu a uma ampliação das divergências entre os economistas e entre os atores políticos sobre como enfrentá-la. Seus desdobramentos descortinaram uma onda conservadora internacional na política econômica, implicando no abandono do sistema de taxa de câmbio fixa, da perspectiva do pleno emprego e do controle de capitais (Skidelsky, 2009). Devido a mudanças estruturais, como a internacionalização das manufaturas, o aumento da competição das corporações no mercado mundial e o intenso crescimento das finanças, grupos empresariais de vários setores convergiram contra o trabalho (os salários e os sindicatos) e contra o Estado (impostos, políticas sociais e regulação dos mercados), visando restaurar as taxas de lucro e os ganhos dos principais acionistas e dos executivos. Assim, em linhas gerais, a economia política do neoliberalismo conforma uma tendência de coalização do capital em geral contra o trabalho e contra o Estado (Gourevitch, 1986). Tal convergência reforçou a tendência estrutural de mudança no regime de acumulação, no sentido de um capitalismo dirigido pelas finanças, o capitalismo neoliberal do Consenso de Washington, cujas políticas baseiam-se ideologicamente na teoria dos mercados desregulados (Skildelsky, op. cit.; Guttman, 2016).iv

Na medida em que esse modelo de capitalismo demanda Estado mínimo, ele pressiona contra a democracia. O princípio democrático da igualdade política requer que as preferências e interesses de todos os cidadãos sejam igualmente consideradas nas decisões governamentais, o que, por sua vez, depende de igualdade de oportunidades, ou seja, de condições minimamente igualitárias de acesso à educação, à saúde e à renda. Em comparação com o período do sistema de Bretton Woods (1951-1973), a financeirização resultou na piora dos indicadores econômicos e sociais, como

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uma menor taxa de crescimento do PIB mundial e do PIB per capita, o aumento da volatilidade cambial, do desemprego e da desigualdade.

Note-se que, entre as primeiras medidas dos governos neoliberais de Thatcher e Reagan destaca-se o enfrentamento dos sindicatos, das greves, dos closed shops, o enfraquecimento dos acordos coletivos de trabalho e assim por diante. Além disso, as reformas estruturais orientadas para o mercado e a gestão monetarista da política macroeconômica, que privilegia ajustes pelo lado da oferta, com efeitos recessivos, implicaram, ao menos em um primeiro momento, em aumento do desemprego.

Esses dois governos líderes da revolução neoliberal induziram a uma mudança na relação de forças entre capital e trabalho no Reino Unido e nos EUA, em benefício dos empregadores. Dada a importância desses dois países na economia internacional, o impacto extrapolou suas fronteiras anglo-saxônicas. Em ambos, foram restringidas a prerrogativa dos sindicatos garantirem que as empresas contratassem apenas trabalhadores sindicalizados e o direito de greve. O monetarismo, a desregulamentação dos mercados e as privatizações também favoreceram o capital. Apesar das políticas neoliberais não abolirem os conflitos de interesse entre os setores empresariais, elas consolidaram um ambiente estrutural que, por um lado, induz o Estado a reforçar ainda mais sua propensão a tomar decisões orientadas para o capital, eliminando custos e regulações e que, por outro lado, tende à conformação da frente única burguesa contra o trabalho em todos os setores da economia, dificultando bastante, embora não impedindo, a configuração de coalizões de poder com projetos nacionais de perfil desenvolvimentista e/ou social-democrata, como se dá respectivamente, nos países-chave da Ásia e na Noruega, para citar dois tipos-países-chave de exemplos.

O pacote ortodoxo de políticas públicas foi sintetizado em 1989 no Consenso de Washington, que teve impacto internacional e delimitou o perfil ideológico e programático de uma nova fase do capitalismo, sobretudo vigente após a queda do Muro de Berlim, ocorrida naquele mesmo ano. Entre as consequências econômicas e sociais do neoliberalismo, destacaria o aumento da participação do setor financeiro no PIB e da desigualdade. Entre suas consequências políticas, destacaria dois impactos: por um lado, nas decisões governamentais, que passaram a orientar-se pelo regime neoliberal de políticas públicas, mesmo quando os mandatários eram partidos de esquerda; por outro lado, na democracia, na medida em que, por um lado, aumenta a

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percepção, nos partidos conservadores e em segmentos do grande empresariado, de que as demandas democráticas precisam ser moderadas e, por outro lado, pela emergência de atores autoritários, destacando-se forças político-partidárias que vencem as eleições e governam corroendo pilares das instituições e valores democráticos.v

As interpretações sobre o neoliberalismo são diversificadas. Abordarei aqui algumas poucas obras e autores situados em campos diversos do conhecimento: economia política, sociologia, filosofia e ciência política. O´Connor (2010) argumenta que há uma ampla gama de estudos sobre esse tema, com diferentes abordagens e portas de entrada. Os relatos tradicionais o apreendem como ideologia, como políticas públicas ou como governança. Não haveria uma unidade teórica entre eles. Trabalhando com uma abordagem de economia política marxista, ele concebe o neoliberalismo como uma fase do capitalismo. Seu propósito é estudar a primeira fase do neoliberalismo, por ele delimitada entre 1980 e 1997. Avalia que, a partir da crise da Ásia, abre-se uma nova fase, caracterizada por novas questões econômicas e por críticas e resistências políticas. No pós-guerra, por diversos mecanismos, o Estado equilibrava a natureza social da produção e a apropriação privada do capital, particularmente os custos improdutivos do processo de acumulação e a reprodução da força de trabalho. Esses mecanismos configuravam, segundo o autor, uma socialização da atividade econômica, que o capitalismo neoliberal substitui por uma nova forma de coerção competitiva, caracterizada por três componentes: racionalização do Estado, pela contestabilidade do mercado e pela mobilidade dos fatores.

O´Connor destaca três movimentos no processo de construção da hegemonia do neoliberalismo em sua fase inicial, a de consolidação da coerção competitiva: a reformulação do equilíbrio de classes; o rearranjo do modo de produção e a reorganização da acumulação de capital. Os acordos entre capital e trabalho que vigoraram nos países desenvolvidos no pós-guerra implicaram em elevação dos salários e das políticas de proteção social. Ademais, o compromisso keynesiano de orientar a política macroeconômica no sentido do pleno emprego também reforçava o poder dos sindicatos no mercado de trabalho. Os interesses neoliberais dos agentes econômicos e dos atores políticos operaram no sentido de realizar uma mudança estrutural nas relações de poder entre capital e trabalho, restringindo a ação dos sindicatos,

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flexibilizando a legislação trabalhista, recorrendo à terceirização das atividades, criando um ambiente de competição que nivela por baixo os salários e optando por uma política macroeconômica que apresenta desempenho pior na sustentação do nível emprego e do crescimento que a prevalecente no fordismo; ademais esse ambiente competitivo pressiona contra as políticas sociais destinadas a contrabalançar os efeitos negativos e as injustiças do mercado.

Além disso, O´Connor considera que o conceito marxista de modo de produção contribui para analisar como a economia é estruturada nos diversos estágios do capitalismo.vi Ele distingue o capitalismo monopolista liderado pelo estado, vigente no

pós-guerra, do capitalismo neoliberal que o sucede.vii Argumenta que, de um estágio ao

outro, ocorrem mudanças no modo de geração de mais-valia, direcionadas à superação de imperfeições do mercado e de certas características rígidas das instituições econômicas e do fordismo – ainda que esse sistema de produção em massa não seja totalmente abandonado no período neoliberal.

A novidade é a introdução da produção enxuta, que reduz custos de capital e alavanca a flexibilidade produtiva, visando ofertar um maior leque de produtos. Além disso, a mobilidade dos fatores e a internacionalização da produção, do comércio e das finanças propiciam o deslocamento territorial do capital físico das corporações e a formação de cadeias produtivas globais. A acumulação de capital é reorganizada para abranger os mercados interno e externo. E os Estados competem entre si para atrair investimento externo direto.

Fine e Saad-Filho (2016), de modo ainda mais acentuado que O´Connor, também concebem o neoliberalismo como uma fase, estágio ou modo de existência do capitalismo, considerando que essa dimensão delimita os modos de (re)organização da reprodução econômica e suas implicações sobre a reprodução social em geral. Daí por que esses autores incorporam a ideia de que a originalidade do neoliberalismo implica em uma sociedade diferente, ou seja, uma sociedade neoliberal. Distinguem o período de laissez-faire, no século XIX, seguido pelo estágio monopolista, no início do século XX, e, como desdobramento da Grande Depressão e da Segunda Guerra, o keynesianismo ou período fordista. Eles diferenciam a abordagem dos estágios do capitalismo, que se apoia em uma perspectiva internacional da temática das variedades de capitalismo, que se dedica a aspectos nacionais dos países, alguns vistos como mais liberais ou

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keynesianos etc. O neoliberalismo é uma fase específica devido à financeirização, um sistema de acumulação articulado ao poder de Estado, que ampara, estimula e gerencia a internacionalização da produção e das finanças em cada território. A financeirização reinventou a organização econômica e a reprodução social. Não houve apenas mudanças nos resultados (em comparação com o fordismo), mas também das estruturas, processos, agências e relações que os determinam. Outro ponto é que a análise do neoliberalismo envolve dois conteúdos, o lógico e o histórico. O primeiro conteúdo especifica a natureza da reprodução econômica neoliberal, ao passo que o segundo conteúdo remete a especificidades dessa reprodução em distintos países.

Esses autores não avaliam que o neoliberalismo seja uma ideologia convincente e coerente, mas sim bastante fragmentada, composta, entre outros, por uma concepção individualista e de pretensão universalista do eu e da sociedade, que se desdobra em políticas e práticas pró-finanças de difícil contestação, dada sua força retórica, o estreitamento do debate público e dos canais institucionais de mudança a ela associada. Também não vêem o neoliberalismo como uma contrapartida reversa do keynesianismo, uma vez que, há três décadas, ocorre uma reestruturação global da produção, do emprego, do comércio, das finanças, da política, do Estado etc. Nesse sentido, o neoliberalismo não seria uma mera mudança em políticas públicas que poderiam ser prontamente revertidas. Tampouco eles avaliam que o neoliberalismo tem a ver, primeiramente, com uma mudança circunscrita ao dualismo entre Estado e mercado. Mais do que ter sido reduzida, a intervenção estatal transformou-se e articulou-se à reprodução econômica e social da financeirização. A mudança do equilíbrio de poder contra o trabalho e a favor do capital não diz respeito apenas à esfera da circulação (demanda efetiva fraca) e da distribuição (entre salários e lucros), mas ao conjunto da reestruturação econômica e social.

Ademais, delimitam duas fases no neoliberalismo, sendo que a segunda teria se iniciado no começo dos anos 1990. A primeira fase é de transição e foi uma fase de choque, na qual o Estado intervém para promover o capital privado interna e internacionalmente, conter o trabalho, desorganizar a esquerda e é também quando ocorre a primeira safra de reformas estruturais. A segunda fase foca, entre outros aspectos, na estabilização das relações sociais impostas na primeira fase e na implementação de políticas sociais compensatórias. Por fim, os autores consideram que

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apesar do neoliberalismo ser resiliente, incompatível com a democracia econômica e apesar dele esvaziar a democracia política, as demandas contra seus resultados antidemocráticos tende a deslegitimá-lo e a alavancar a emergência de alternativas.

Streeck (2016) avalia que o alinhamento entre capitalismo e democracia parece ser algo restrito ao contexto da Guerra Fria, devido ao progresso econômico ocorrido no pós-guerra, que compatibilizou o livre-mercado e as liberdades democráticas. Na atualidade, as dúvidas sobre a viabilidade desse alinhamento vêm ressurgindo entre eleitores e lideranças políticas, em função de uma percepção negativa do desempenho das instituições políticas, dos problemas de corrupção, dos vínculos entre os políticos e os apelos dos agentes do mercado, que avaliam não haver outra alternativa, a não ser o ideário neoliberal. Isso gera insatisfação com os partidos, com o regime democrático-representativo, abstenção eleitoral, instabilidade governamental e abre o caminho para o populismo autoritário, sobretudo de direita, que aposta no entretenimento político, na política como espetáculo. O aumento da desigualdade tem objetivamente questionado a capacidade de o Estado contrabalançar os resultados negativos do mercado.

Para esse sociólogo da política, a retórica da crise fiscal do Estado, que ampara o enfraquecimento da democracia, e o aumento da dívida pública nos países desenvolvidos desde os anos 1970 não têm relação com o aumento de políticas democrático-redistributivas, mas com as reformas tributárias ricos e pró-corporações. Em consequência, a receita tributária é substituída pela dívida pública, que acaba sendo uma via de expansão dos negócios para os que, ao deixarem de ser tributados, ganham mais oportunidades de financiarem o Estado em troca de juros. Ele observa que a crise fiscal do Estado e o aumento da dívida soberana ocorrem no mesmo processo de redução da participação eleitoral, de encolhimento dos sindicatos, de queda no número de greves, de cortes nas políticas de bem-estar social e de aumento da desigualdade. A bola de neve da dívida pública é usada para manter o ciclo vicioso dos cortes nos gastos sociais, das privatizações dos serviços públicos etc. A crise de 2008 abriu uma nova fase do neoliberalismo uma vez que, devido ao imenso aumento do endividamento, os credores, descrentes da capacidade de o Estado saldar seus compromissos, passam a uma ofensiva mais substantiva no sentido de influenciar as decisões públicas e, assim, restringir o leque decisório da política democrática.

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Enfim, essa breve e limitada revisão bibliográfica atesta que o neoliberalismo é um destacado objeto de estudo das ciências sociais e econômicas, nos quais destacam-se alguns pontos fundamentais, não exaustivos, sobre suas características: a ideia de que ele representa uma nova fase do capitalismo – que tem subfases –, na qual observam-se transformações estruturais no Estado, na economia e nas relações entre ambos, bem como em um novo padrão de sociabilidade; a percepção de que a financeirização torna-se o eixo central do novo padrão de acumulação; o aprofundamento da propensão das decisões públicas terem uma orientação pró-mercados desregulados e pró-competição dos agentes de mercado, desequilibra a relação de forças favoravelmente ao capital, aumenta a propensão às crises econômicas e políticas e restringe os recursos orçamentários para as políticas democráticas de promoção da igualdade de oportunidades. Ao abordar Trump, abaixo, outra autora será introduzida.

Trump e Bolsonaro

Escrevendo no contexto da vitória eleitoral de Trump, ocorrida em novembro de 2016, a filósofa Nancy Fraser (2017a) identificou dois tipos de neoliberalismo, o progressivo e o autoritário. O primeiro surgiu e se desenvolveu nos EUA, sobretudo com a eleição de Bill Clinton em 1992. Esse presidente formulou e defendeu as ideias dos Novos Democratas, uma espécie de versão americana da Terceira Via proposta por Tony Blair por meio do Novo Trabalhismo. A aliança de sustentação política das ideias novo-democráticas reunia empresários, classe média dos subúrbios, novos movimentos sociais e juventude. Trata-se de uma coalizão distinta da que amparou o New Deal, na qual estavam os sindicalizados, os afro-americanos, as classes médias urbanas e alguns segmentos do grande capital industrial. O programa, por assim dizer, da coalizão do neoliberalismo progressivo, cuja economia política é, na verdade, bastante regressiva, buscava equacionar os interesses de Wall Street e a agenda da diversidade, do multiculturalismo e do feminismo, ou seja, a financeirização e a emancipação, embutindo uma concepção meritocrática de enfrentamento da desigualdade. Essa aliança foi instrumental para o neoliberalismo tornar-se hegemônico, dada a herança política dos direitos, oriunda do New Deal.

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Nos EUA, o neoliberalismo progressista é uma aliança entre, de um lado, correntes majoritárias dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT) e, do outro lado, um setor de negócios baseado em serviços com alto poder “simbólico” (Wall Street, o Vale do Silício e Hollywood). Nesta aliança, as forças progressistas se unem às forças do capitalismo cognitivo, especialmente à financeirização. [...] Entregando a economia à Goldman Sachs, ele [Clinton] desregulou o sistema bancário e negociou acordos de livre comércio que aceleraram o processo de desindustrialização. Isso significou o fim do cinturão da ferrugem (o “Rust Belt”), outrora a maior fortaleza da democracia social do New Deal, que corresponde à região que na última eleição entregou a vitória a Donald Trump (tradução livre).

Segundo Fraser, a desindustrialização e a deterioração das condições de vida dos trabalhadores e da classe média nos EUA (os dois terços da parte de baixo da pirâmide populacional) têm estreita relação com a vitória de Trump, que representou não apenas uma revolta contra as finanças globais, mas também contra o neoliberalismo progressivo, cuja política econômica foi plutocrática, enfraqueceu os sindicatos, precarizou o trabalho e continha uma política distributiva irrisória, inclusive no governo Obama, que salvou os bancos da crise de 2007-08, mas não salvou os dez milhões de americanos que perderam suas casas hipotecadas. A adesão ao populismo reacionário da campanha eleitoral de Trump foi a válvula de escape dos eleitores insatisfeitos diante da falta de alternativa, uma vez que, derrotada a via do populismo progressista, presente na pré-candidatura de Bernie Sanders, os Democratas, escolhendo Hillary Clinton como candidata à sucessão de Obama, ofereceram ao eleitorado mais do mesmo.

A mesma autora, em outro trabalho (Fraser, 2017b), após alguns meses de governo Trump, aprofunda sua análise e identifica três momentos no neoliberalismo nos EUA: o reacionário, capitaneado pelos Republicanos, desde Reagan até Bush filho, que sucedeu seu pai; o progressivo (já mencionado) e o hiper-reacionário, de Trump. Os tipos reacionário e hiper-reacionário de neoliberalismo são conservadores na política de reconhecimento, mas Trump carrega nas tintas, não se contenta com um conservadorismo elegante ou de salão, por assim dizer. Ele faz questão não apenas de afirmar a etnia nacional, a anti-imigração e a religião cristã, mas de erguer bem alto as bandeiras opostas à do progressismo neoliberal: o racismo, a misoginia, a homofobia, a

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xenofobia e a islamofobia. A isso acrescentou também temperos de nacionalismo e protecionismo. Além disso, a autora argumenta que o populismo eleitoral reacionário de Trump, que, na questão distributiva, prometia o muro na fronteira com o México, não se manteve no governo, que ela enquadra, então, como já mencionado, no campo político do neoliberalismo hiper-reacionário.

O neoliberalismo reacionário estava centrado na promoção das finanças, da produção militar e da energia extrativa e visava ao 1% mais rico. Reunia, por um lado, os interesses das grandes corporações, especialmente bancos e especuladores financeiros em geral, setor imobiliário e setor de energia, e, por outro lado, segmentos sociais conservadores (evangélicos, brancos sulistas, brancos trabalhadores e habitantes do campo). A principal divergência com os progressistas não estava na questão distributiva, mas na demanda do reconhecimento.

Fraser (2017b) avalia que a vitória de Trump, então um outsider no Partido Republicano, evoca, a princípio, a ocorrência de uma crise política nos EUA. No entanto, uma vez que os sintomas dessa crise também aparecem em vários outros países da Europa e da América Latina, tratar-se-ia de uma crise política global. Mas a crise política é uma expressão na política de uma crise mais ampla e com múltiplas dimensões, econômica, social, ambiental, ou seja, é uma crise geral. Em função da crise política ser global e ser uma manifestação política de uma crise geral, Frase considera que essa crise política global é uma crise de hegemonia. A ascensão de Trump tem a ver com uma ofensiva política de preenchimento dessa lacuna hegemônica, uma fratura estrutural. Porém, segundo a avaliação de Fraser, o neoliberalismo hiper-reacionário não configura um novo bloco hegemônico, pelo contrário, é caótico, instável e frágil, inclusive pelo fato do populismo econômico prometido na campanha de 2016 não ter sido cumprido. Nesse contexto, a autora evoca a célebre ideia de Gramsci: “O velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. E arrisca dizendo que o mais provável candidato a superar a lacuna hegemônica seria o populismo progressista.

A crise internacional de 2008 e seus desdobramentos impactaram no Brasil, primeiro como marolinha, depois como maremoto. Após uma recessão em 2009, no fim do segundo mandato de Lula, o PIB de 2010 cresceu 7,5%. Porém, de 2011 em diante, já no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, com a crise das dívidas soberanas

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na Europa, os desafios da estratégia econômica e da política econômica tornaram-se peças-chave da dinâmica conjuntural. Na medida que a concorrência internacional recrudescia e que as decisões internas não favoreciam a transformação produtiva da indústria de manufaturas, enfraquecia-se a coalizão entre industriais e trabalhadores, mediada pelo governo federal encabeçado pelo PT.

Por outro lado, o boom de commodities, que havia sido uma das principais alavancas da inclusão social promovida desde o primeiro mandato do presidente Lula, por meio do mercado de trabalho, perdia fôlego, desaparecendo em 2014. As outras alavancas de inclusão foram a política valorização do salário mínimo, a expansão do crédito e o conjunto das políticas sociais, como a transferência de renda mediante condicionalidades. Para manter a atividade e o emprego, o governo implementou políticas de subsídio e incentivos fiscais, mas elas não alavancaram os investimentos produtivos do setor privado, ao mesmo tempo em que, por implicarem em renúncia fiscal, contribuíram para um inédito déficit primário em 2014, ano eleitoral. Esse resultado negativo, embora não significasse um problema estrutural para as finanças públicas, representou um alarme de incêndio para o setor financeiro e demais agentes do mercado comprometidos com os interesses e com a ideologia econômica neoliberal, que passaram, então, a demandar o pacote de austeridade que, sobretudo quando executado em momento de retração do ciclo econômico, tende a aprofundar a crise. Durante todo o período e, sobretudo, desde 2012, com a Nova Matriz Econômica executada pelo governo, a coalizão neoliberal, nucleada nas finanças e no PSDB, enquadrou os governos petistas e, sobretudo no governo Dilma, submeteu-o a uma guerra fria.

Outros elementos conjunturais compuseram o cenário: as manifestações de rua de 2013, a Operação Lava Jato de combate à corrupção e o crescimento de uma oposição movida pelo ódio político, na campanha eleitoral de 2014, vencida pela candidata à reeleição, Dilma Rousseff, mas por pequena margem de diferença contra o rival Aécio Neves, do PSDB. As quatro vitórias consecutivas do PT nas eleições presidenciais tornavam o custo da democracia elevado para certos atores sociais e políticos, entre eles a grande mídia corporativa, sobretudo em um contexto em que, estando o principal partido do governo de coalizão sob intensa pressão, devido ao envolvimento de suas lideranças em atos de corrupção, abria-se uma janela de

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oportunidade para se impor uma derrota extraeleitoral à gestão petista. Remonta aos idos de 2013-2014, a origem gradual e segura do maremoto na estrutura da relação de forças, um processo político cujo desenrolar conjugará o casamento entre dois grandes grupos de atores do campo da desdemocratização neoliberal: por um lado, o bloco autoritário, entre eles, liberais togados ou não e neofascistas (extrema-direita mobilizada nas ruas), interessados na eliminação do PT da competição política e em sua criminalização, críticos dos direitos sociais, defensores de uma política de segurança mais agressiva contra os criminosos e, também, predominantemente, defensores de uma pauta comportamental conservadora; por outro lado, o bloco do projeto pioneiro pró-mercado, implementado no Brasil nos anos 1990, que articulava os interessados na retomada de um projeto que, desde 2003, havia sido filtrado pelos governos do PT, resultando em algumas concessões ou conquistas de corte intervencionista e social-democrático nas decisões de políticas públicas, a depender do ponto de vista de quem cede e de quem ganha algo. Afora as manifestações de rua da esquerda, as que ocorreram de 2013 em diante trouxeram uma novidade: uma classe média em mobilização, que se alinhou à oposição à presidente Dilma e que, em 2018, alavancou a candidatura de extrema-direita de Jair Bolsonaro, hoje presidente da República.

De 2014 para cá, entre as características associadas ao processo social de produção lenta e gradual, mas talvez não tão segura, do autoritarismo no Brasil, com alguns temperos neofacistas (nesse caso, não como regime político, mas como movimento, ideologia e força degenerativa do mórbido Estado Democrático de Direito), destacaria as seguintes: crise do neoliberalismo, mobilização, anticomunismo (“nossa bandeira não é vermelha”), autoritarismo, carismatização e culto do líder (“mito”), além de uma versão dependentista do nacionalismo retórico também presente em Trump, discurso que, no Brasil da extrema-direita, serve ao alinhamento geopolítico do país aos EUA.

Desde as eleições de 2018, essas características ganharam tinturas mais claras. A unidade da burguesia pela deposição de Dilma, configurada no início de 2016, no contexto de ingovernabilidade e recessão, foi retomada no processo que levou Bolsonaro à presidência da República e se mantém na sustentação de seu governo, que logrou aprovar a reforma da previdência social em 2019.

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Florestan Fernandes e Bresser-Pereira caracterizam, cada qual a seu modo, a burguesia brasileira como nacional-dependente, termo paradoxal, conforme esses autores sabem.viii Afinal, a burguesia é nacional ou dependente? Ela é as duas coisas ao

mesmo tempo, uma vez que ocorreu a revolução burguesa, a industrialização tardia, a partir da mobilização política de um projeto nacional no período histórico descortinado pela Revolução de 1930. Mas seu espírito nacionalista é enfraquecido pela ação corrosiva da dependência externa encarnada nas relações de produção, nas multinacionais estrangeiras aqui presentes, na tecnologia, nos investimentos produtivos e especulativos e no financiamento das atividades econômicas. Pode-se pensar a retórica nacionalista de Bolsonaro como uma versão neofascista do atual momento experimentado pelo nacional-dependentismo estrutural das classes dominantes no Brasil, momento no qual, explicitada, por um lado, a fraqueza efetiva do nacionalismo tropical para fazer frente à crise nacional e internacional do capitalismo globalizado, como também explicitada, por outro lado, a incapacidade dos partidos tradicionais derrotarem eleitoralmente seu maior rival, o popular PT, a submissão antipopular ao capital estrangeiro precisa ser compensada ideologicamente por um nacionalismo de fachada, sobretudo retórica, erguido por um populismo que remonta ao processo de deposição presidencial de 2015-2016 e que visa dar legitimidade para um regime político desdemocratizado, que tem muito pouco ou quase nada a oferecer à cidadania em termos de retomada de uma trajetória política de superação das imensas desigualdades da população. Os líderes dessa empreitada reacionária esforçam-se, com o concurso da grande mídia, para transmitir à opinião pública a visão de que a deposição presidencial de 2016 e a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro em 2018, alavancada pela polêmica operação Lava Jato, foram fatos legais e legítimos, e não uma investida para combater e derrotar, a qualquer custo, inclusive do devido processo legal, o partido que tinha grande chance de vencer a quinta eleição presidencial consecutiva, por meio da candidatura de sua maior liderança. A roupagem nacional-democrática conservadora do “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, que não raramente nem sequer esconde seu espírito-corpo ditatorial, é o verniz ideológico do ultraliberalismo-dependentista-autoritário, que corrói o Estado de Direito com o apoio de setores da classe média e com a complacência, quando muito com a resistência tímida, do STF. O movimento autoritário, inclusive com um veio neofascista, é o monstro leviatânico

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produzido pela heterogênea coalizão sociopolítica e político institucional do capitalismo neoliberal no Brasil, no processo de conflito de classes e de oposição aguerrida à revolução democrática, para capturar as decisões do Estado, nos Três Poderes da república oligárquica, excluindo qualquer interferência efetiva das organizações políticas das classes populares, a começar pelos trabalhadores.

Considerações finais

As contradições do capitalismo neoliberal com a democracia manifestam-se desde sua primeira fase, a fase combativa, de abandono das regulações existentes nos Anos Dourados em várias áreas da economia, da produção, do comércio e das finanças.ix As ofensivas contra os sindicatos, os direitos trabalhistas e as políticas

sociais ocorrem já no período pioneiro de Thatcher e Reagan. Apesar dos autores abordados (O´Coonor, Fine and Saad-Filho, Streeck e Fraser) divergirem em relação à periodização e à terminologia, todos distinguem fases no neoliberalismo. O mundo está imerso em uma pandemia que contagiou uma economia internacional que, desde a crise de 2007-2008, não vinha bem. Particularmente relevante é a avaliação de Streeck referente ao aumento da ofensiva dos investidores sobre o Estado, nas principais economias do mundo, a partir da Grande Recessão. Essa investida tem afetado a democracia em todo o mundo, como apontou Fraser ao argumentar que a crise política nos EUA é uma crise política global, que afeta os partidos e o sistema representativo democrático e abre espaço para a desdemocratização e para o autoritarismo, inclusive o de feitio neofascista, por meio da emergência de líderes que se dirigem ao eleitorado erguendo uma bandeira salvacionista, anti-sistêmica, antiglobalização e de cores nacionalistas. Mas, contraditoriamente, em alguns casos, como nos EUA e no Brasil, trata-se de um nacionalismo subordinado ao neoliberalismo, uma vez que Trump e Bolsonaro defendem menos Estado para os de baixo e mais mercado para os de cima, cortes de impostos para os ricos e para as corporações, desregulamentações, desmonte das políticas de bem-estar e assim por diante.

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Nos EUA, a vitória de Trump substituiu a crise de hegemonia do neoliberalismo progressivo pelo neoliberalismo hiper-reacionário de Trump, sem que uma nova hegemonia tenha surgido. No Brasil, Bolsonaro também veio na onda da crise política do caminho de retomada do neoliberalismo progressivo, aquele capitaneado pelo PSDB e golpeado pela Lava Jato. A depender apenas da vontade das principais corporações econômicas e dos ricos brasileiros, os tucanos teriam sucedido os governos do PT e teria sido mantida a dualidade partidária configurada nas eleições presidenciais desde 1994. O PSDB era ou é uma espécie de versão brasileira do neoliberalismo do Partido Democrata de Clinton e Obama. Devido à Lava Jato, a via tucana cedeu lugar ao bolsonarismo, tábua de salvação autoritário-populista, com artérias neofascistas, dos interesses associados à financeirização da economia brasileira, encarnados em Paulo Guedes, contra o risco de uma quinta vitória consecutiva do PT. A aventura bolsonara viabilizou-se com a condenação e prisão de Lula e com a existência, no mercado político, de um aventureiro respaldado nos militares e demais corporações do aparato repressivo, policial e jurídico.

Tanto lá como cá, nos EUA e no Brasil, a crise do capitalismo neoliberal e a aposta na sobrevivência desse modelo de sistema econômico e social entrelaça-se com a crise da democracia e tem produzido um processo político que assombra o mundo: a desdemocratização, seja aquela embutida no neoliberalismo desde seu nascedouro, seja aquela mais recente, conduzida pelo autoritarismo encarnado em uma seleta safra emergente de líderes outsiders em relação aos partidos e aos políticos tradicionais, líderes que emergem ou para servir ao neoliberalismo, ou para apostarem, como no caso da Polônia, em projetos alternativos, intervencionistas. Não é de se surpreender que os índices de qualidade da democracia têm regredido. A crise entre capitalismo e democracia pulula.

REFERÊNCIAS

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Krugman, Paul (2019). The Legacy of Destructive Austerity. New York Times. Dec. 30, 2019. Disponível em: tinyurl.com/y2qz7sbc

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Tett, Gillian (2016). Donald Trump and the shifting symbolism of austerity. Financial Times, 21 July, 2016. Disponível em: tinyurl.com/y68mjowp.

i Dados do Banco Mundial mostram que o PIB Mundial em 1973 foi de 6,5%, caindo para 1,9% em 1974

e 0,6% em 1975. A inflação mundial foi, respectivamente, 11,7%, 16,3% e 11,7%. Consultar tinyurl.com/yxz25opf . Para uma análise da crise em vários países europeus, consultar Cox (1982).

ii Até a crise de 2008, 79 países adotavam regime de câmbio flutuante. Em 2014, esse número havia

caída para 65, cf. tinyurl.com/y6jekoys .

iii Consultar IMF (1973), Moffitt (1984), Davis (2003) e Kindleberger (2005). Conforme dados do Banco

Mundial, enquanto em 1973 o crescimento da economia mundial foi de 6,5%, em 1974 e 1975, devido à recessão nos principais países industrializados, esse indicador foi, respectivamente, 1,9% e 0,6%.

Consultar tinyurl.com/yxz25opf e tinyurl.com/yysb47uw.

iv Ver “The crisis of neoliberalism”, Gérard Duménil e Dominique Lévy, em tinyurl.com/yxhp3ctf .

Segundo a teoria da regulação, tratava-se da crise do fordismo. Ver Jessop (1992).

v Sobre o crescimento da participação do setor financeiro no PIB entre 1950 e 2010, consultar

tinyurl.com/yxojl349 . Acesso em: 10 ago 2020. Para dados de outros países, consultar Godechot (2016).

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vi A tentativa de periodizar o capitalismo distinguindo estágios é tradicional em autores de diversas

correntes teóricas, sobretudo no marxismo e nas abordagens históricas sobre a industrialização.

vii Apoiado em Fine and Harris (1979), diz que os primeiros dois estágios foram o competitivo e o

monopólico.

viii Consultar Trans/Form/Ação, vl. 34, 2011. Entrevista com Florestan Fernandes. Disponível em:

tinyurl.com/y6bx4tmt.

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