A CIÊNCIA DO SONO
DA FISIOLOGIA À (PSICO)PATOLOGIA
BÁRBARA ALMEIDA | CAROLINA MACHADO | CRISTINA FRAGOEIRO | SOFIA GOMES (Coordenação)
© Autores e Edições Parsifal, Lda. EDIÇÕES PARSIFAL
Av. Elias Garcia, n.º 76, 1.º F 1050 -100 Lisboa
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AUTORES: Ana Isabel Samouco, Bárbara Almeida, Carolina Lourenço Soares, Carolina Machado, Cristina Fragoeiro, Filipa Caetano, Filipa Martins Alves, Gustavo França, Inês Homem de Melo, Margarida Vasconcelos Araújo, Rodrigo Valido e Sofia Gomes
COORDENAÇÃO: Bárbara Almeida, Carolina Machado, Cristina Fragoeiro e Sofia Gomes TÍTULO: A Ciência do Sono – Da Fisiologia à (Psico)Patologia
CAPA: Pedro Gil
PAGINAÇÃO: Augusto Nunes REVISÃO: Edições Parsifal IMPRESSÃO: Tipografia Lousanense 1.ª EDIÇÃO: Outubro de 2020 ISBN: 978 -989 -8760 -76 -0 DEPÓSITO LEGAL n.º 473 663/20
DISTRIBUIÇÃO: Clube do Autor, S. A.
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ÍNDICE
PREFÁCIO ... 13
LISTA DE SIGLAS ... 15
INTRODUÇÃO ... 21
CAPÍTULO I – NEUROBIOLOGIA DO SONO ... 23
1. CARACTERÍSTICAS DO SONO ... 24
1.1. Neurofisiologia do Sono ... 24
1.1.1. Sistemas promotores do estado de vigília... 24
1.1.2. Sistemas promotores do sono ... 25
1.1.3. Sistemas circadianos ... 25
1.2. Regulação do Sono-Vigília ... 26
1.3. Arquitetura do Sono ... 27
2. FUNÇÕES DO SONO ... 28
2.1. Funções Cognitivas ... 28
2.2. Funções Restauradoras e de Desintoxicação ... 29
2.3. Funções Emocionais ... 29
3. O EFEITO DA IDADE E DO GÉNERO NO SONO ... 30
4. DESREGULAÇÃO DO CICLO SONO-VIGÍLIA ... 31
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 31
CAPÍTULO II – ABORDAGEM DIAGNÓSTICA ... 35
SEMIOLOGIA 1. ANAMNESE ... 35
2. SEMIOLOGIA DO SONO ... 37
2.1. Eventos Noturnos ou do Sono ... 37
2.2. Queixas Diurnas ou Durante a Vigília ... 41
3. QUESTIONÁRIOS E DIÁRIOS DO SONO ... 44
4. EXAME FÍSICO... 45
EXAMES AUXILIARES DE DIAGNÓSTICO 1. POLISSONOGRAFIA ... 48
1.1. Indicações Para a Realização de Polissonografia ... 49
1.2. Estadiamento do Sono ... 50
1.2.1. Vigília e estadios do sono ... 51
1.4. Movimentos ... 53
1.5. Relatório Final e Informações Obtidas Através da Polissonografia ... 53
1.6. Outros Tipos de Polissonografia ... 54
2. TESTES DE AVALIAÇÃO DA SONOLÊNCIA ... 55
2.1. Teste da Latência Múltipla do Sono ... 55
2.2. Teste de Manutenção da Vigília ... 56
3. ACTIGRAFIA ... 57
4. DOSEAMENTO DA HIPOCRETINA NO LÍQUIDO CÉFALO-RAQUIDIANO ... 58
CAPÍTULO III – PERTURBAÇÕES PRIMÁRIAS DO SONO ... 61
1. INSÓNIA CRÓNICA ... 61
2. PERTURBAÇÕES RESPIRATÓRIAS RELACIONADAS COM O SONO ... 63
2.1. Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono ... 63
2.2. Síndrome de Apneia Central do Sono ... 65
3. HIPERSONOLÊNCIA DE ORIGEM CENTRAL ... 67
3.1. Narcolepsia ... 67
3.2. Hipersónia Idiopática ... 68
3.3. Síndrome de Kleine-Levin ... 69
4. PERTURBAÇÕES DO RITMO CIRCADIANO SONO-VIGÍLIA ... 70
5. PARASSÓNIAS ... 71
5.1. Parassónias do Sono REM ... 72
5.2. Parassónias do Sono NREM ... 73
6. PERTURBAÇÕES DO MOVIMENTO RELACIONADAS COM O SONO ... 75
6.1. Síndrome das Pernas Inquietas ... 75
6.2. Movimentos Periódicos das Pernas Durante o Sono ... 76
ANEXO ... 79
CAPÍTULO IV – ALTERAÇÕES DO SONO NAS PERTURBAÇÕES PSIQUIÁTRICAS ... 81
PERTURBAÇÕES DO HUMOR 1. DEPRESSÃO UNIPOLAR ... 81
1.1. Alterações do Sono ... 81
1.2. Indicações Para Polissonografia ... 83
1.3. Explicações Neurobiológicas ... 83
1.4. Impacto das Alterações do Sono ... 85
1.5. Tratamento ... 86
2. PERTURBAÇÃO AFETIVA BIPOLAR ... 88
2.1. Alterações do Sono ... 88
2.2. Explicações Neurobiológicas e Psicossociais ... 89
2.3. Impacto das Alterações do Sono ... 90
2.4. Tratamento Farmacológico ... 91
PERTURBAÇÕES DE ANSIEDADE
1. PERTURBAÇÃO DE ANSIEDADE GENERALIZADA ... 96
1.1. Alterações do Sono ... 97 1.2. Explicações Neurobiológicas ... 97 1.3. Tratamento ... 98 2. PERTURBAÇÃO DE PÂNICO ... 98 2.1. Alterações do Sono ... 99 2.2. Explicações Neurobiológicas ... 99
2.3. Impacto das Alterações do Sono ... 100
2.4. Tratamento ... 100 3. FOBIA SOCIAL ... 101 4. FOBIAS ESPECÍFICAS ... 101 PERTURBAÇÕES PSICÓTICAS 1. ALTERAÇÕES DO SONO ... 106 1.1. Avaliação Subjetiva ... 106 1.2. Avaliação Objetiva ... 106 1.3. Correlações Clínicas ... 107
1.4. Perturbações Primárias do Sono ... 108
2. INDICAÇÕES PARA EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO DE SONO ... 110
3. EXPLICAÇÕES NEUROBIOLÓGICAS ... 110
3.1. Neurotransmissores e Hormonas ... 110
3.2. Genes CLOCK e Seus Produtos ... 111
3.3. Estruturas do Cérebro ... 111
4. IMPACTO DAS ALTERAÇÕES DO SONO ... 111
5. TRATAMENTO ... 112
5.1. Terapia Cognitivo-Comportamental Para a Insónia nos Doentes com Esquizofrenia ... 113
PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 1. ANOREXIA NERVOSA, BULIMIA NERVOSA E PERTURBAÇÃO DA INGESTÃO ALIMENTAR COMPULSIVA ... 116
1.1. Alterações do Sono ... 117
1.2. Explicações Neurobiológicas ... 118
1.3. Impacto das Alterações do Sono ... 120
1.4 . Tratamento ... 120
2. SÍNDROME DA INGESTÃO NOTURNA ... 121
PERTURBAÇÃO DE HIPERATIVIDADE E DÉFICE DE ATENÇÃO 1. ALTERAÇÕES DO SONO ... 125
1.1. Perturbação de Insónia ... 127
1.2. Perturbações de Movimento Relacionadas com o Sono: Síndrome das Pernas Inquietas ... 128
1.3. Perturbações do Ritmo Circadiano: Síndrome do Atraso da Fase do Sono ... 129
1.5. Perturbações Respiratórias do Sono: Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono 130
1.6. Perturbação do Sono Induzida por Substâncias ... 130
CONSIDERAÇÕES ... 131
DEMÊNCIAS 1. DOENÇA DE ALZHEIMER ... 135
1.1. Alterações do Sono ... 135
1.2. Explicações Neurobiológicas ... 136
1.3. Impacto das Alterações do Sono ... 137
1.4. Tratamento ... 138
2. DEMÊNCIAS POR ALFA -SINUCLEINOPATIAS ... 139
2.1. Alterações do Sono ... 140 2.2. Explicações Neurobiológicas ... 141 2.3. Tratamento ... 141 3. DEMÊNCIA VASCULAR ... 142 4. DEMÊNCIA FRONTOTEMPORAL ... 142 4.1. Alterações do Sono ... 143 4.2. Explicações Neurobiológicas ... 143 4.3. Tratamento ... 143
5. RELAÇÃO BILATERAL ENTRE SONO E DEMÊNCIA ... 144
PERTURBAÇÃO DE STRESSE PÓS-TRAUMÁTICO 1. ALTERAÇÕES DO SONO ... 147
1.1. Achados Polissonográficos ... 148
1.2. Insónia ... 148
1.3. Pesadelos ... 149
1.4. Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono ... 149
2. RELAÇÃO BILATERAL ENTRE PERTURBAÇÕES DO SONO E PERTURBAÇÃO DE STRESSE PÓS-TRAUMÁTICO ... 150
3. EXPLICAÇÕES NEUROBIOLÓGICAS ... 151
3.1. Alterações no Funcionamento da Amígdala e Córtex Pré-Frontal Medial ... 151
3.2. Medo Condicionado e Extinção do Medo ... 152
3.3. Modelo Preliminar da Explicação Neurobiológica ... 152
4. TRATAMENTO ... 153
4.1. Insónia ... 153
4.2. Pesadelos ... 154
4.3. Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono ... 155
CAPÍTULO V – ALTERAÇÕES DO SONO INDUZIDAS POR SUBSTÂNCIAS E FÁRMACOS ... 159
ALTERAÇÕES DO SONO INDUZIDAS POR SUBSTÂNCIAS 1. ÁLCOOL ... 160
1.1. Efeito Agudo ... 160
1.2. Consumo Crónico ... 160
1.3. Abstinência ... 161
1.5. Álcool e Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono ... 162
2. CANÁBIS... 162
3. COCAÍNA ... 163
4. OPIOIDES... 163
5. ABORDAGEM TERAPÊUTICA ... 164
ALTERAÇÕES DO SONO INDUZIDAS POR FÁRMACOS 1. BENZODIAZEPINAS E FÁRMACOS Z ... 168
2. ANTIDEPRESSIVOS ... 169
3. ANTIPSICÓTICOS ... 171
4. LÍTIO ... 172
5. ANTIEPILÉTICOS ... 172
6. ESTIMULANTES DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL ... 174
7. ANTIDEMENCIAIS ... 174 8. FÁRMACOS ANTIPARKINSÓNICOS ... 174 9. ANTAGONISTAS BETA-ADRENÉRGICOS ... 175 10. AGONISTAS ALFA-ADRENÉRGICOS ... 175 11. TEOFILINA ... 176 12. CORTICOIDES ... 176 13. ANALGÉSICOS ... 176 13.1. Analgésicos Opioides ... 176
13.2. Anti-Inflamatórios Não Esteroides e Analgésicos Antipiréticos ... 177
14. ANTI-HISTAMÍNICOS ... 177
CAPÍTULO VI – ALTERAÇÕES DO SONO INDUZIDAS POR PERTURBAÇÕES MÉDICAS ... 181 1. PATOLOGIA CARDIOVASCULAR ... 183 2. PATOLOGIA RESPIRATÓRIA ... 185 2.1. Síndrome de Hipoventilação-Obesidade ... 188 3. PATOLOGIA ENDÓCRINA ... 188 3.1. Síndrome Metabólica ... 190 4. SÍNDROMES DOLOROSAS ... 191 4.1. Cefaleias ... 192 4.2. Osteoartropatias ... 193 4.3. Fibromialgia ... 193 4.4. Cancro ... 194
5. DOENTES CRÍTICOS E HOSPITALIZADOS ... 195
CAPÍTULO VII – PSICOFARMACOLOGIA E PSICOTERAPIA NAS PERTURBAÇÕES DO SONO ... 201
1. PSICOFÁRMACOS UTILIZADOS NO TRATAMENTO DAS PERTURBAÇÕES DO SONO ... 202
1.1. Hipnóticos ... 202
1.1.1. Benzodiazepinas ... 202
1.1.2. Agonistas dos recetores benzodiazepínicos – fármacos Z ... 204
1.2. Fármacos Usados como Hipnóticos ... 204
1.2.2. Trazodona ... 206
1.2.3. Mirtazapina ... 207
1.2.4. Melatonina e fármacos relacionados ... 208
1.2.5. Anti-histamínicos ... 209
1.2.6. Antiepiléticos ... 210
1.2.7. Antagonistas da orexina ... 211
1.2.8. Antipsicóticos sedativos ... 211
1.3. Fármacos Promotores de Vigília ... 213
1.3.1. Anfetaminas ... 213 1.3.2. Metilfenidato ... 214 1.3.3. Modafinil ... 215 1.3.4. Bupropiom ... 215 1.4. Outros Agentes ... 216 1.4.1. Prazosina ... 216
2. MEDIDAS NÃO FARMACOLÓGICAS USADAS NO TRATAMENTO DAS PERTURBAÇÕES DO SONO ... 216
2.1. Higiene do Sono e Psicoeducação ... 216
2.2. Treino de Relaxamento ... 218
2.3. Terapia Cognitivo-Comportamental Para a Insónia ... 218
2.3.1. Terapia de controlo de estímulos ... 219
2.3.2. Restrição de sono ... 219
2.3.3. Terapia cognitiva ... 220
2.4. Perturbações do Ritmo Circadiano ... 221
2.4.1. Cronoterapia ... 221
2.4.2. Fototerapia ... 221
CAPÍTULO VIII – POPULAÇÕES ESPECÍFICAS ... 223
1. NORMAL DESENVOLVIMENTO DO SONO NAS CRIANÇAS ... 223
2. NORMAL DESENVOLVIMENTO DO SONO NOS ADOLESCENTES ... 224
3. ALTERAÇÕES DO SONO NA GRAVIDEZ ... 226
4. ALTERAÇÕES DO SONO NA MENOPAUSA ... 227
5. O SONO NOS MAIS VELHOS ... 228
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 230
NOTAS BIOGRÁFICAS... 233
PREFÁCIO
O sono é um dos aspetos mais importantes e intrigantes da nossa
vida, apresentando -se como um fenómeno essencial para a saúde,
bem--estar físico, psíquico e longevidade. Como mecanismo fisiológico
de regulação homeostática, é altamente dinâmico ao longo do nosso
desenvolvimento pessoal e assume um papel essencial na definição de
padrões de atividade, processos cognitivos, executivos e de atenção e na
regulação emocional, fatores tão definidores da nossa natureza humana.
Como fenómeno psíquico complexo, é colorido pelas nossas vivências,
emoções, pensamentos e contexto cultural e social, sendo carregado de
simbolismos e significados que despertam o interesse não só em
diver-sas áreas do conhecimento para além da medicina, como na expressão
artística e cultural.
Como exemplo desta expressão sobre o papel definidor do sono na
nossa identidade, Fernando Pessoa elaborava em Poesias:
Entre o sono e o sonho
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.
Nas últimas décadas, temos assistido a extraordinários
desen-volvimentos científicos e clínicos que têm permitido não só a nossa
compreensão mais detalhada dos fenómenos neurobiológicos
envol-vidos no sono com recurso a técnicas avançadas de neurofisiologia e
neuroimagiologia, mas, acima de tudo, o desenvolvimento de novas
formas de abordagem terapêutica nas patologias do sono com recurso
a metodologias específicas de intervenção psicoterapêutica e novos
fármacos promotores da qualidade do sono. No entanto, muitos dos
intrigantes aspetos funcionais e patológicos do sono continuam por
desvendar, exigindo um permanente esforço clínico e científico de
desenvolvimento.
14 a ciência do sono
A disrupção dos processos de sono nas patologias primárias do
sono está claramente associada não só ao desenvolvimento de patologia
médica com morbilidade e mortalidade significativas como a diabetes,
obesidade ou patologia oncológica, mas também ao aparecimento de
alterações psicopatológicas específicas associadas ao desenvolvimento
de patologias psiquiátricas como a ansiedade e depressão. Por outro lado,
na vasta maioria das patologias psiquiátricas, as alterações quantitativas
e qualitativas do sono são das alterações psicopatológicas com maior
impacto funcional na saúde mental e que frequentemente exigem formas
de intervenção específica. Desta curiosa relação bidirecional emerge uma
clara necessidade de um esforço colaborativo entre áreas específicas do
conhecimento médico como a neurologia e a psiquiatria, como fica bem
patente nesta obra científica, em que clínicos destas áreas unem esforços
para sistematizar de uma forma singular esta interação entre a fisiologia
e psicopatologia na ciência do sono.
Esta obra vem preencher um espaço fundamental na literatura
científica nacional relativa à ciência do sono, construindo de uma forma
clara, precisa e acima de tudo original, uma ponte entre a
compreen-são dos mecanismos fisiológicos do sono e a exprescompreen-são psicopatológica
da sua disrupção em perturbações primárias do sono e em patologias
com expressão psiquiátrica. Com uma perspetiva pedagógica original e
focada, os autores desta obra sistematizam os mais importantes tópicos
relacionados com a ciência do sono com extraordinário rigor científico
e solidez bibliográfica. Com recurso a tabelas, quadros resumo e
esque-mas detalhados, os autores organizam de uma forma detalhada,
sistema-tizada e pedagógica os pormenores fisiológicos, clínicos e terapêuticos
essenciais para a compreensão, diagnóstico e tratamento das principais
patologias do sono. Esta abordagem eminentemente prática e
transdiag-nóstica revela uma grande aplicabilidade na prática clínica diária para
uma abordagem sistematizada e compreensiva das queixas relacionadas
com o sono.
Como tal, considero que esta obra se apresenta como um
instru-mento pedagógico essencial não só para a aprendizagem médica, em
par-ticular nas áreas clínicas da neurologia e psiquiatria, mas também para os
leitores interessados num conhecimento mais aprofundado de um dos
fenómenos mais fascinantes do funcionamento da mente humana.
Professor João Bessa,
Presidente eleito da Sociedade Portuguesa
LISTA DE SIGLAS
5HT
5 -Hidroxitriptamina (também conhecida por Serotonina)
βB Antagonistas
Beta
-Adrenérgicos
Aβ Beta
-Amiloide
AASM American Academy of Sleep Medicine
ACTH Adrenocorticotropic Hormone (Hormona Adrenocorticotrópica)
AD Antidepressivo(s)
AE Antiepilético(s)
AIT Acidente
Isquémico
Transitório
AN Anorexia
Nervosa
ANP
Atrial Natriuretic Peptide (Peptídeo Natriurético Atrial)
AP Antipsicótico(s)
APOE Apolipoproteína
E
ATC Antidepressivo(s)
Tricíclico(s)
AVC Acidente
Vascular
Cerebral
AVP
Arginina Vasopressina (também conhecida como
Vasopressina ou Hormona Antidiurética)
BHE Barreira
Hemato
-Encefálica
BiPAP Bilevel Positive Airway Pressure (Pressão Positiva Binível
da Via Aérea)
BN Bulimia
Nervosa
BNP
Brain Natriuretic Peptide (Peptídeo Natriurético Cerebral)
BZD Benzodiazepina(s)
CPAP Continuous Positive Airway Pressure (Pressão Positiva
Contínua da Via Aérea)
CPFM Córtex Pré -Frontal Medial
CRF
Capacidade Residual Funcional
CRH Corticotropin Releasing Hormone (Hormona Libertadora
da Corticotropina)
CSRD Circadian Rhythm Sleep Disorders (Perturbações do Ritmo
16 a ciência do sono
CV Cardiovascular
CVF
Capacidade Vital Forçada
CYP Citocromo
P450
DA
Doença de Alzheimer
DBS
Deep Brain Stimulation (Estimulação Cerebral Profunda)
DCL
Demência com Corpos de Lewy
DDP
Demência da Doença de Parkinson
DFT Demência
Frontotemporal
DGS
Direção -Geral da Saúde
DMt2 Diabetes Mellitus Tipo 2
DP
Doença de Parkinson
DPN Dispneia
Paroxística
Noturna
DPOC Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica
DRGE Doença de Refluxo Gastroesofágico
DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
(Manual de Diagnóstico e Estatística de Perturbações Mentais)
DU Depressão
Unipolar
EAM Enfarte Agudo do Miocárdio
ECD
Exame(s) Complementar(es) de Diagnóstico(s)
ECG Eletrocardiograma
EDS
Excessive Daytime Sleepiness (Hipersonolência Diurna)
EEG
Eletroencefalografia ou Eletroencefalograma
EMG Eletromiografia ou Eletromiograma
EOG Eletrooculograma
FA Fibrilação
Auricular
FDA
Food and Drug Administration
FEV1 Volume Expiratório Forçado em um segundo
FM Fibromialgia
FS Fobia
Social
FT Fototerapia
GABA Gamma Aminobutyric Acid (Ácido Gama -Aminobutírico)
GE Gastroesofágico
GHRH Growth Hormone–Releasing Hormone (Hormona Libertadora
da Hormona de Crescimento)
GSK3 -β Glycogen Synthase Kinase 3 Beta (3 Beta Síntase Cínase
do Glicogénio)
HBP
Hiperplasia Benigna da Próstata
HC
Hormona de Crescimento
HDL High -Density Lipoprotein (Lipoproteína de Elevada
lista de siglas 17
HPA
Hypothalamic -Pituitary -Adrenal Axis (Eixo
Hipotálamo--Pituitária -Adrenal ou Eixo Hipotálamo -Hipófise -Adrenal)
HTA Hipertensão
Arterial
HTP Hipertensão
Pulmonar
Hz Hertz
IAH
Índice da Apneia -Hipopneia
ICC
Insuficiência Cardíaca Congestiva
ICSD -3 International Classification of Sleep Disorders
(Classificação Internacional de Doenças do Sono)
IL Interleucina
IMAO Inibidor(es) da Monoamina Oxidase
IMC
Índice de Massa Corporal
IRSN Inibidor(es) da Recaptação da Serotonina e Noradrenalina
ISRS
Inibidor(es) Seletivo(s) da Recaptação da Serotonina
LC
Locus Coeruleus
LCR Líquido
Cefalorraquidiano
LMS
Latência Média do Sono
LSD
Lysergic Acid Diethylamide (Dietilamida de Ácido Lisérgico)
MnPO Median Preoptic Nucleus (Núcleo Pré -Ótico Mediano)
NET
Norepinephrine Transporter (Transportador de Noradrenalina)
NR
Núcleos da Rafe
NREM Non -Rapid Eye Movement
NSQ Núcleo
Supra
-Quiasmático
PAB
Perturbação Afetiva Bipolar
PAG
Perturbação de Ansiedade Generalizada
PAP
Positive Airway Pressure (Pressão Positiva na Via Aérea)
PCA
Perturbação do Comportamento Alimentar
PCR Proteína
C
-Reativa
PHDA Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção
PIAC Perturbação da Ingestão Alimentar Compulsiva
PLMD Periodic Limb Movement Disorder (Perturbação de
Movimentos Periódicos dos Membros)
PLMS Periodic Limb Movements in Sleep (Movimentos Periódicos
dos Membros no Sono)
PP
Perturbação de Pânico
PPS
Privação Parcial do Sono
PPT
Pedunculopontine Tegmental (Tegmento Pedunculopontino)
PSG Polissonografia
PSPT Perturbação de Stresse Pós -Traumático
PTS
Privação Total do Sono
18 a ciência do sono
PUS
Perturbação ou Perturbações de Uso de Substâncias
QV
Qualidade de Vida
RAA
Renina -Angiotensina -Aldosterona
RBD
REM Sleep Behaviour Disorder (Perturbação
de Comportamento do Sono REM)
REM Rapid Eye Movement
REM -L Latência do Sono REM
RGE Refluxo
Gastro
-Esofágico
SACS Síndrome da Apneia Central do Sono
SAOS Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono
SARA Sistema de Ativação Reticular Ascendente
SIN
Síndrome da Ingestão Noturna (Night Eating Syndrome)
SE
Sleep Eficiency (Eficiência do Sono)
SHO
Síndrome de Hipoventilação -Obesidade
SMet Síndrome
Metabólica
SNC
Sistema Nervoso Central
SNAP Sistema Nervoso Autónomo Parassimpático
SNAS Sistema Nervoso Autónomo Simpático
SNP
Single Nucleotide Polymorphism (Polimorfismo de
Nucleptídeos Únicos)
SOL
Sleep Onset Latency (Latência do Sono)
SOREM Sleep Onset REM (Sono REM no Início do Sono)
SPI
Síndrome das Pernas Inquietas
SRBD Sleep Related Breathing Disorders (Perturbações Respiratórias
Relacionadas com o Sono)
SWS
Slow Wave Sleep (Sono de Ondas Lentas)
TA Tensão
Arterial
TC Tronco
Cerebral
TCC Terapia
Cognitivo
-Comportamental
TCC -I Terapia Cognitivo -Comportamental para a Insónia
TH Terapia
Hormonal
TLMS Teste de Latência Múltipla do Sono
TMV Teste de Manutenção da Vigília
TNF
Tumor Necrosis Factor (Fator de Necrose Tumoral)
TPM Temporomandibular
TRIS Terapia de Ritmo Interpessoal e Social
TSH
Thyroid -Stimulating Hormone (Hormona Estimulante
da Tiroide)
TST
Total Sleep Time (Tempo Total de Sono)
lista de siglas 19
UHR Ultra -High Risk (Risco Muito Elevado)
VAS
Vias Aéreas Superiores
VC Volume
Corrente
VIP
Vasoactive Intestinal Peptide (Peptídeo Intestinal Vasoativo)
VLPO Ventrolateral Preoptic Nucleus (Núcleo Pré -Ótico
Ventrolateral)
VNI
Ventilação Não Invasiva
VPM Ventilação Por Minuto
VTA
Ventral Tegmental Area (Área Tegmental Ventral)
WASO Wakefulness After Sleep Onset (Tempo Acordado Após Início
INTRODUÇÃO
O sono é um estado fisiológico complexo e universal, omnipresente
na maioria dos seres vivos. Um terço da nossa vida é passado neste estado,
e a persistência evolutiva do sono, diante dos custos aparentes da
vulnera-bilidade à predação e da ausência de procura de alimento ou reprodução,
sugere que ele desempenha funções vitais na homeostasia do organismo.
Apesar da inúmera investigação, especialmente desenvolvida a
par-tir do século xx até à atualidade, o sono e os seus mecanismos
permane-cem ainda hoje não totalmente esclarecidos.
A investigação sobre o tema não se restringe à Biologia e à
Fisiolo-gia. A curiosidade e o fascínio que desperta é transversal a várias áreas
do saber humano, como a Sociologia e a Antropologia, passando pela
Literatura, Música e Artes Plásticas, não descurando o interesse que a
Engenharia e a Arquitetura manifestam.
O sono e os seus distúrbios, desde as civilizações pré -históricas,
impuseram o desenvolvimento de técnicas e a utilização de compostos
para o seu tratamento. No Antigo Egito, são conhecidos a implementação
de medidas de higiene do sono em ambientes salubres e o uso de extratos
de plantas medicinais como a papoila -dormideira (Papaver somniferum)
e a beladona (Atropa belladonna) para o tratamento da insónia. Estas
mesmas plantas foram utilizadas pelas civilizações mesopotâmicas, de
entre elas, os sumérios, os assírios e os babilónios.
Na Grécia Antiga, eram praticadas cerimónias de cura em templos
dedicados a Asclépio (deus da Medicina) que incluíam a administração
de substâncias indutoras de sono aos enfermos e, após uma noite de sono
em que eram “visitados” por Asclépio nos seus sonhos, esperava -se que
acordassem curados na manhã seguinte. A importância de uma boa
qua-lidade do sono não se limitava apenas à saúde, desempenhando também
um importante papel na vitória de batalhas, na descoberta de saberes e na
libertação de preocupações e angústias. O sono, personificado por
Hip-nos (deus do Sono), irmão gémeo de Tânato (personificação da Morte) e
filho de Nix (deusa da Noite), permeia a mitologia grega e tem um papel
22 a ciência do sono
fundamental em diversos mitos. O poder do sono é tal, que na Ilíada e
na Odisseia de Homero encontramos o sono sob o epíteto de “soberano
de todos os deuses e de todos os homens”.
Em diversas tradições culturais e religiosas, os sonhos que
ocor-rem durante o sono aparecem revestidos de poderes pocor-remonitórios, ou
até mesmo como expansão da consciência. Os sonhos condicionaram
a tomada de decisões e estão relatados nos livros sagrados das religiões
judaico -cristã e islâmica. São também famosas as histórias de sonhos que
inspiraram cientistas, inventores e artistas, dos quais são exemplo René
Descartes, Thomas Edison e Albrecht Dürer.
Os padrões de sono estão profundamente conectados às
caracte-rísticas da cultura vigente e à forma como estas evoluíram ao longo da
História da Humanidade. Embora a maioria das perturbações do sono
esteja, provavelmente, presente desde a evolução dos seres humanos,
a sociedade contemporânea produz inadvertidamente várias novas
per-turbações: a descoberta da lâmpada elétrica permitiu que a luz do dia se
prolongasse até à noite, a generalização do trabalho por turnos
modifi-cou a sociedade laboral, as viagens intercontinentais permitiram o rápido
cruzamento de fusos horários, a massificação das novas tecnologias de
comunicação transformou -nos em indivíduos 24 horas online. Estas
pro-fundas alterações fazem -se, muitas vezes, à custa da perturbação do ritmo
circadiano e de outras perturbações do sono.
É em torno desta apaixonante e ainda intrigante condição fisiológica
que nasce esta obra, cujo objetivo maior é a transmissão de conhecimento
através da distinção entre o “normal” e o patológico e de como o sono e as
suas perturbações podem condicionar outras patologias mentais e físicas
numa relação, muitas vezes, bidirecional.
Esperamos ainda que este livro contribua para a prática clínica de
todos aqueles que se confrontam no seu quotidiano com os desafios
ine-rentes ao diagnóstico e ao tratamento das perturbações do sono.
CAPÍTULO I
NEUROBIOLOGIA DO SONO
Rodrigo Valido | Sofia Gomes
O sono representou, desde sempre, um enigma, e várias civilizações
ao longo da História conceptualizaram -no de acordo com os seus
valo-res e costumes. O sono foi visto de uma perspetiva da experiência
pes-soal até ao século xix, altura em que se tornou alvo de experimentação,
o que levou ao surgimento de inúmeras teorias, com um avanço
con-siderável na forma de compreender e reconhecer as suas perturbações.
Contudo, a história da medicina do sono, como a conhecemos hoje, surge
no século xx, impelida pela génese de meios complementares de
diag-nóstico sustentados por novas tecnologias, que permitiram desenvolver
investigação básica e clínica como nunca tinha sido possível.
A duração total do sono normal é difícil de estimar devido às
variá-veis das metodologias usadas em estudos. Constata -se que a larga
maio-ria das pessoas tem um número total de horas de sono situado entre as
seis e as oito horas. As perturbações do sono surgem com manifesta
importância no panorama da saúde dos indivíduos, estando associadas
à perda da qualidade de vida e produtividade, bem como ao aumento
de acidentes no trabalho ou nas atividades do dia a dia (ex.: condução),
e ainda ao surgimento de outros problemas de saúde, nomeadamente
problemas cardiovasculares e de saúde mental. No século xx, com a
disponibilidade de energia de forma generalizada, os hábitos de
traba-lho mudaram radicalmente, com uma troca de horas de sono por horas
de trabalho. Passámos a ter uma sociedade de trabalho de 24 horas,
estimando -se que cerca de 30% da população mundial trabalhe por
tur-nos, e destes, 10% em turnos noturnos. Além disso, novos aspetos
cul-turais, como os dispositivos eletrónicos, vieram alterar a forma como
organizamos as nossas rotinas, mais notavelmente as nossas rotinas
noturnas. O impacto na qualidade e duração do sono que advém de
todas as mudanças nos estilos de vida manifesta -se na insatisfação das
pessoas com o seu sono. Pelo menos cerca de 30% da população geral
tem queixas relativamente ao sono e 10% enquadram -se numa
pertur-bação de insónia.
24 a ciência do sono
1. CARACTERÍSTICAS DO SONO
O sono é um comportamento que foi preservado ao longo da
evo-lução e acerca do qual, surpreendentemente, ainda não se conhecem na
totalidade quais são as implicações no nosso cérebro e corpo. O sono
é, de forma geral, entendido como um ato de afastamento da atividade
consciente do dia a dia. Curiosamente, todos os seres vivos, dos mais
simples aos mais complexos, exibem algum comportamento “sono -like”.
O sono como estado comportamental preenche alguns requisitos,
nomeadamente, corresponde a um estado de baixa responsividade,
sujeito a ser rapidamente reversível e que é homeostaticamente regulado.
Podem -se distinguir três elementos definidores do ciclo sono -vigília:
o ritmo circadiano (“relógio interno”), a homeostase do sono (“pressão
para dormir”) e os elementos ambientais que influenciam os ritmos
bio-lógicos (ex.: luz solar, atividade física, refeições). O ritmo de 24 horas de
rotação do planeta Terra é definidor dos nossos ritmos internos, muito
em parte pela exposição à luz solar, em oposição à sua ausência durante
a noite. Contudo, demonstrou -se que mesmo na ausência de luz solar,
as células do nosso organismo continuam a demonstrar o mesmo ritmo
de 24 horas, o que sugere a existência de um relógio interno. A “pressão
para dormir” é um fenómeno ubíquo e reflete a dinâmica de um processo
hipotético que aumenta em função do tempo que se passa acordado e
diminui com o sono.
1.1. Neurofisiologia do Sono
O sono é induzido por um conjunto de neurónios que inibe os
sis-temas de vigília. A área pré -ótica do hipotálamo anterior é um dos mais
importantes centros regulatórios do sono, mais especificamente o núcleo
pré -ótico ventrolateral (VLPO) e o núcleo pré -ótico mediano (MnPO),
onde se encontra uma significativa população de neurónios
GABAér-gicos, o principal neurotransmissor inibitório. As áreas promotoras do
sono são elas próprias inibidas pela estimulação monoaminérgica
pro-movida por outras áreas promotoras do estado de vigília.
1.1.1. Sistemas promotores do estado de vigília
O sistema de ativação reticular ascendente (SARA) é o sistema que
promove o estado de vigília e está localizado no prosencéfalo basal, sendo
composto por neurónios colinérgicos do tegmento pedunculopontino
neurobiologia do sono 25
(PPT), noradrenérgicos do locus coeruleus (LC), serotoninérgicos dos
núcleos da rafe (NR), glutamatérgicos do núcleo parabraquial medial e
dopaminérgicos da área tegmental ventral (VTA). Durante o estado de
vigília, os neurónios GABAérgicos do VLPO são inibidos por sinais dos
sistemas de vigília, tais como a transmissão noradrenérgica e
histami-nérgica.
A orexina, ou hipocretina, é um neurotransmissor com importância
para a manutenção do estado de vigília, especialmente por longos períodos.
Os seus neurónios encontram -se principalmente no hipotálamo lateral,
sendo que as orexinas promovem a ativação das regiões cerebrais
relacio-nadas com o estado de alerta, como as enunciadas anteriormente.
1.1.2. Sistemas promotores do sono
O VLPO e o MnPO são áreas que promovem o sono e ajudam a
mediar a resposta à sua privação. Os neurónios promotores do sono são
GABAérgicos na sua maioria, mas também existem neurónios
galaninér-gicos, sendo que ambos os grupos celulares inervam e inibem fortemente
as regiões do cérebro que promovem a excitação, incluindo os neurónios
colinérgicos do PPT, os neurónios da orexina, o núcleo da rafe e o locus
coeruleus.
Nos últimos anos, foram descobertas outras estruturas e circuitos
envolvidos na promoção do sono, nomeadamente neurónios
GABAérgi-cos da zona parafacial, do núcleo reticular talâmico, interneurónios
corti-cais GABAérgicos e o núcleo accumbens.
1.1.3. Sistemas circadianos
As oscilações circadianas (ou relógio biológico) são
filogenetica-mente ubíquas e encontram -se em todas as espécies, desde os procariotas
aos humanos. Nos humanos, o núcleo supraquiasmático (NSQ) funciona
como um compasso que marca os ritmos biológicos. A sua localização é
imediatamente acima do quiasma ótico, sendo influenciado por
informa-ção luminosa que tem por base recetores específicos ao nível da retina,
mas também por informação não luminosa. Assim, existem vias diretas
e indiretas a partir do NSQ para núcleos hipotalâmicos, como o VLPO,
envolvido na mudança vigília -sono e a área pré -ótica, importante na
regulação da temperatura, do sono, da sede e do comportamento sexual.
Existem também vias dirigidas ao núcleo paraventricular do hipotálamo,
importante na regulação do apetite e dos processos endócrinos.
26 a ciência do sono
A glândula pineal é uma estrutura que se localiza na junção das duas
metades do tálamo, e recebe indiretamente informação do NSQ,
promo-vendo a libertação de melatonina. O padrão de secreção da melatonina
depende de dois recetores, os MT1 e MT2. Os recetores MT1, na
pre-sença de melatonina, tendem a diminuir as propriedades ativadoras do
NSQ (“ feedback negativo”), e os recetores MT2 influenciam a mudança
de ritmos circadianos (para mais cedo ou mais tarde). De facto, a
secre-ção de melatonina começa ao início da noite e tem o seu pico máximo a
meio do período noturno, diminuindo ao amanhecer.
A secreção de várias hormonas está dependente do ritmo de 24 horas
e relaciona -se com o ritmo sono -vigília. A hormona do crescimento, o
cor-tisol, a hormona estimulante da tiroide (TSH), a hormona luteinizante,
a grelina e a leptina estão fortemente ligadas ao ciclo sono -vigília, e a
dis-rupção do sono pode afetar a sua regulação. O pico diurno do cortisol
surge de manhã ao acordar e diminui ao longo do dia até à noite, quando
atinge o valor mais baixo (1h -3h da manhã), começando depois a aumentar
novamente. A insulina, bem como a glicemia, diminuem durante o sono.
A leptina e a grelina são responsáveis por modular aspetos do apetite e da
digestão, sendo que aumentam no período noturno. Simultaneamente ao
primeiro episódio de sono profundo, inicia -se a produção da hormona de
crescimento, que ocorre no primeiro terço da noite. A hormona
estimu-lante da tiroide tem níveis baixos durante o dia, que aumentam perto do
início do sono e diminuem no sono profundo, sendo que aumentam nos
despertares e também muito significativamente durante a privação de sono.
1.2. Regulação do Sono -Vigília
O sono é uma resposta fisiológica homeostaticamente regulada.
A propriedade homeostática do sono tem sido contextualizada num
modelo de dois processos de regulação do sono, que compreende um
“processo S” relacionado com a homeostase e um “processo C”
relacio-nado com o sistema circadiano. O NSQ é o pacemaker circadiano mestre
e é a origem do “processo C”. O sistema circadiano é na sua maioria
defi-nido por genes (ex.: Per1, Per2, Per3, Cry1, Cry2) que são reguladores
da transcrição ao nível celular e que também podem ter um papel na
homeostase do sono. A propensão para dormir, ou “processo S”, varia
em função do total de privação do sono, da repetição da privação parcial
do sono ou da disrupção seletiva do sono de ondas lentas (SWS), sendo
que estas condições aumentam a propensão para dormir. O substrato
anatómico para o “processo S” é apontado ao VLPO.
neurobiologia do sono 27
Um elemento importante da regulação homeostática é a
regula-ção pela acumularegula-ção de adenosina. Os níveis de adenosina extracelular
aumentam com a duração do estado de vigília e diminuem com o sono.
Verificou -se que as metilxantinas (ex.: cafeína) são antagonistas dos
rece-tores da adenosina e têm efeitos promorece-tores do estado de vigília.
Recentemente, o sistema das hipocretinas foi proposto como um
ponto de integração entre os mecanismos circadianos e homeostáticos.
A integração de sinais circadianos e homeostáticos também poderá
decorrer ao nível do NSQ.
1.3. Arquitetura do Sono
A arquitetura do sono compreende os diferentes estadios do sono
e a sua duração. A polissonografia (PSG) é o método standard para o
estudo do sono e implica a realização de pelo menos três elementos:
o eletroencefalograma (EEG), o eletromiograma (EMG) e o
eletro-oculograma (EOG).
O sono é classicamente dividido em quatro estadios: N1, N2, N3,
ou SWS, e sono REM (rapid eye movement). O sono não REM (NREM)
consiste na progressão do estado de vigília para o estadio N1,
caracte-rizado por sonolência e um baixo limiar para despertar, seguindo -se o
N2 com diminuição da atividade cerebral, da respiração e da frequência
cardíaca, com um aumento do limiar para despertar, e depois para o sono
de ondas lentas ou N3, o estadio mais profundo do sono. O estadio N1
tem um EEG caracterizado por perda do ritmo alfa, menor voltagem teta
e com alguma atividade de ondas em ponta, que depois dá lugar ao
esta-dio N2, com complexos -K e fusos do sono (sleep spindles) e um aumento
inferior a 1 -4 Hz na atividade delta. Por fim, no estadio N3 verifica -se
atividade delta superior a 20% com uma diminuição dos complexos -K
e fusos do sono.
Um ciclo do sono dura cerca de 90 minutos, ocorrendo três a cinco
ciclos num período de sono noturno. O sono NREM (non -rapid eye
movement) perfaz cerca de 79% da duração total do sono normal, com
o N1 a corresponder a 5%, o N2 a 51%, o SWS a 20% e cerca de 3% da
duração total do sono a corresponder a despertares breves. A proporção
de tempo que cada estadio dura está bem definida, sendo que a duração
dos estadios 1 e 2 é relativamente constante ao longo da noite, enquanto
o SWS e o sono REM são tempo -dependentes. Assim, o SWS dura mais
no início da noite e o sono REM é mais prolongado pela manhã. O sono
REM normalmente só surge na sequência do SWS e envolve, em termos
28 a ciência do sono
eletroencefalográficos, padrões de atividade “vigília -like”,
concomitan-tes com as alterações fisiológicas que se acompanham, como paralisia
do músculo esquelético, movimentos oculares rápidos, interrupção
tem-porária da termorregulação e ondas espiculadas no EEG, denominadas
picos pontino -geniculo -occipitais.
2. FUNÇÕES DO SONO
As funções do sono podem ser, de forma geral, divididas em
fun-ções cognitivas e funfun-ções restauradoras e de desintoxicação. A hipótese
da função cognitiva considera que o sono é importante para a
apren-dizagem e para a memória, e a hipótese da função restauradora e de
desintoxicação concebe que o sono está relacionado com processos que
suportam funções cognitivas superiores. Além destas, há uma hipótese
que assenta na relação que o sono pode ter com as funções emocionais
do cérebro.
2.1. Funções Cognitivas
O sono NREM e o sono REM parecem ter um papel importante na
formação da memória de longo prazo. Durante o sono NREM, há uma
comunicação entre o hipocampo e o córtex sobre a experiência anterior
da vigília. Vários modelos suportam a ideia de que a codificação e
conso-lidação da memória episódica envolvem a transferência de informações
entre o hipocampo e o córtex durante o sono, para dar lugar à formação de
memórias de longo prazo.
O sono pode servir para uma função de conectividade neuronal/
/glial (plasticidade). Nesse sentido, existem teorias que compreendem
uma série de hipóteses mais específicas, nomeadamente que o sono
extin-gue memórias obsoletas, solidifica circuitos neuromusculares, consolida
novas memórias e estabiliza e preserva a plasticidade.
Outra teoria é a da homeostase sináptica, que propõe que durante
o sono há um enfraquecimento sináptico global, que preserva a força
relativa entre sinapses, permite outras alterações sinápticas e evita
cus-tos metabólicos desadaptativos associados à manutenção sináptica
excessiva.
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