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[Margaret Way] a Flor Da Pele

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Academic year: 2021

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À FLOR DA PELE

Julia nº57 / Ed. de Colecionador nº 31 Copyright: Margaret Way Título original: "Storm Flower" Publicado originalmente em 1975 Digitalização/ Revisão: m_nolasco73

Contra capa: A beira do lago daquela maravilhosa fazenda, Catherine ficava longo tempo

sozinha, pensando que nada no mundo poderia amenizar sua tristeza. Primeiro, tinha sido rejeitada pela mãe, que a mandou para um colégio caríssimo, mas não aparecia para vê-la nem nas férias. Depois Catherine foi para aquela fazenda de parentes distantes, na Austrália, e se apaixonou por Coyne, o primo mais velho. Mas, mesmo agora, quando pela primeira vez o amor aquecia sua alma solitária, Catherine não podia alimentar nenhuma esperança: para Coyne, homem feito, a paixão da prima não passava de um entusiasmo romântico da adolescência...

CAPÍTULO I

Ellenor olhou em direção à mesa onde seu sobrinho estava curvado sobre alguns papéis, que ele examinava com ar sério e atarefado. Não era o momento indicado para se abordar o problema, mas o que fazer? Ela não tinha escolha. O ano letivo terminaria na semana seguinte e a garota não tinha para onde ir. Mesmo que tivesse, Ellenor sentia uma necessidade premente de tomar sob seus cuidados aquela pobre órfã. Por breves instantes fechou os olhos. Era uma senhora de cabelos prateados, pele clara e constituição delicada, que encarava a vida com extrema complacência. Era abnegada e sempre dedicara sua vida aos outros, uma espécie de anjo protetor.

Coyne, seu sobrinho, continuava atento aos papéis. Ele agora estava um homem feito. Um rapagão bonito, forte e viril, envolto numa aura de poder e autoridade. Não obstante, era um rapaz sensível e bem-humorado, embora ultimamente mal tivesse tempo para outras coisas que não fosse a fazenda. Isso porque, devido à morte de Justin, Coyne herdara a magnífica propriedade, tendo que arcar com o peso de todas as responsabilidades.

Mandala... o vasto império de criação de gado da família Macmillan, no coração da Austrália, no limiar do deserto. Mandala! Ellenor repetiu o nome mentalmente e suspirou fundo, sem fazer barulho para não atrair a atenção do sobrinho. Olhou para a reluzente mesa de mogno, onde ele estava, e relembrou o passado. Ela havia dedicado vinte anos, de sua vida a Mandala, envelhecera ali, dirigindo aquela casa, e, contudo ainda se sentia uma estrangeira numa terra desconhecida. Seu pai costumava dizer que aquele era o lugar mais inóspito, porém, o mais belo da face da terra. Naquela terra estavam os corpos de seu pai e de sua irmã, Sara. Com a morte dela, Ellenor se tornou tutora dos sobrinhos.

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Ellenor não podia deixar de concordar que ali, naquela região do mundo, tudo era tremendamente vasto, grandioso, forte e exuberante, as cores, as secas, o calor e as enchentes que transformavam tudo de repente num cenário de dilúvio. Para ela a civilização se limitava à fazenda e às construções das redondezas naquela região agreste e sem fim de Mandala, que Coyne conhecia como a palma de sua mão. Tanto poder e riqueza num lugar daqueles! Uma terra atordoante, cheia de miragens, que exercia estranha sedução, como se possuísse o poder de hipnotizar.

Uma vez, há muitos anos, ela se perdeu naquela imensidão e, em apenas algumas horas, chegou às portas da loucura. A sorte foi que dois rapazes da fazenda a encontraram logo. Ela nunca se esqueceria daquele dia, das dimensões assustadoras daquela terra, onde a cor predominante era o vermelho. Enormes rochedos avermelhados, formando gargantas estreitas e aterradoras por onde corriam rios caudalosos; as dunas de areia vermelha do deserto e a incrível cor do céu ao pôr-do-sol. O deserto Peã, que depois das chuvas se tornava impressionantemente belo... Realmente era uma estranha paisagem, aquela! Ela nunca conseguira se acostumar, embora tivesse conseguido sobreviver naquela terra hostil a mulheres... Era uma terra para homens, onde a força física e a resistência eram as coisas mais importantes. Sara não tinha suportado...

Não era de se admirar que Coyne, aos trinta e dois anos, fosse firme, rude e inflexível como as rochas do deserto povoado de lendas. O próprio Coyne tinha uma certa aparência lendária... era um Macmillan puro, com sangue celta. Aquela região do deserto estava cheia de nomes escoceses, irlandeses e galeses... homens que tinham sido atraídos pelo desafio do perigo, da aventura, e pela possibilidade de fazer fortuna. Havia muitos nomes históricos e famosos entre eles.

Sob a luz suave do lustre colonial, Ellenor analisava Coyne. A pele bronzeada, os cabelos castanhos claros e lisos, as sobrancelhas escuras e espessas que se encontravam, o nariz arrogante, os olhos negros, brilhantes e de olhar profundo, sombreados por longos cílios, a boca bem-feita, de lábios cheios e sensuais, apesar do ar sério e compenetrado. Não se cansava de olhar para ele e não era apenas porque se parecia com o pai... ele era realmente fascinante! Coyne era um homem cativante. Tudo o que fazia era com convicção e de um jeito decidido; mesmo num simples gesto de virar uma página podia-se notar isso. Determinação e exatidão era isso!

Ellenor sorriu e seus olhos azuis se enterneceram. Coyne era perfeito! Ele sempre fora assim, desde menino; às vezes nem parecia criança, tal a seriedade com que agia. Agora, lá estava ele, atento ao relatório da fazenda, uma ruga vertical na testa, os olhos negros impacientes percorrendo as linhas da página. Aquele tinha sido um dia trabalhoso para ele e ainda tinha que conferir o relatório. Nem era preciso dizer... pela cara dele, Ellenor sabia que Lacey tinha errado outra vez. Ao lado do irmão, Lacey sempre se tornava inseguro, instável e teimoso. Ellenor sabia que essa era uma reação natural ao fato dele viver à sombra majestosa do irmão mais velho. Ela o compreendia, embora reconhecesse que às vezes fazia travessuras que davam trabalho a Coyne.

Aos vinte e seis anos, Lacey ainda continuava sem juízo e rebelde como um adolescente. Já estava na época dele assentar um pouco e ajudar o irmão, tão sobrecarregado de serviço cuidando daquela vasta propriedade sozinho. Coyne andava tão ocupado ultimamente que nem mesmo tinha tempo para praticar seu esporte favorito, o pólo. Aliás, os dois irmão jogavam muito bem. Ellenor lastimava que Lacey fosse tão cabeça-oca e irresponsável, mas de certa forma o compreendia.

Não era fácil para Lacey ter tido um pai como Justin e depois um irmão como Coyne. Isso parecia roubar dele um certo senso de identidade, fazendo com que se rebelasse quase todos os dias contra o irmão mais velho para se auto-afirmar. Sem dúvida, ele devia sofrer com algum tipo de complexo ao qual Ellenor não queria dar um nome exato. Apenas rezava para que Lacey superasse isso tudo e se tornasse o homem maduro que deveria ser. Se isso não acontecesse, ela iria sentir que falhara. Afinal, ela o criara desde os seis anos de idade.

Ellenor amava igualmente os dois sobrinhos, mas apreciava e respeitava muito Coyne, embora não demonstrasse isso diante de Lacey. Toda vez que havia uma pequena discussão sobre algo sem muita importância, ela tomava o partido de Lacey. Mas, quando a coisa era mais séria, desaparecia de cena habilmente para não ter que concordar com Coyne. Lacey, sempre revoltado, arranjava encrencas memoráveis, algumas até bastante graves. Coyne não era um homem de natureza paciente, mas esforçava-se para tratar o irmão com bondade e compreensão. Queria ser para ele pai, mãe e irmão, tudo ao mesmo tempo. Mas era evidente,

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agora, que sua paciência estava por se esgotar. Ele abafou uma exclamação e ergueu os olhos para a tia, percebendo que ela estava apreensiva.

- Vamos lá, tia! Você anda muito agitada já há algum tempo, eu percebi... o que há, afinal? Ellenor tirou os óculos e limpou as lentes para ganhar tempo.

- Ah... você sempre me desconcerta quando fala assim...

- Tia - insistiu o sobrinho -, vamos lá, o que é? É alguma coisa com Lacey outra vez? Você sempre fica com essa cara quando quer interferir a favor dele... Pode ser que desta vez não funcione, mas em todo caso não custa tentar.

- Não, não é com Lacey - disse Ellenor, esboçando um sorriso.

Coyne olhou de novo para as páginas do relatório que tinha diante de si, impaciente pelos erros que encontrara.

- Olhe, tiazinha, eu nunca fui de fazer isso, mas acontece que agora estou com pressa, tenho que revisar tudo isso aqui, ainda... A essa altura você já deve saber que eu não mordo, não é?

- É, mas não duvido nada que algum dia morda! - respondeu a tia e ouviu a risada sonora dele. - Você se lembra de Moya? Moya Fitzgerald?

- E quem não se lembra dela! - respondeu ele, sem o menor interesse. - Mas o que é que essa mulherzinha boba tem a ver com o caso? Não vá me dizer que teve notícias dela?

Coyne olhou os papéis; irritado, imaginando de que se tratava, afinal. A tia não iria aborrecê-lo, principalmente quando estava tão ocupado, para contar as aventuras de Moya, que nascera na família Macmillan, mas já se casara duas vezes.

- É, eu recebi uma carta... uma longa carta.

- Não me diga que ela vem vindo para cá! - disse Coyne, como se depois de tudo o que enfrentara naquele árduo dia isso fosse a gota d'água.

- Moya, não... quem vem é Catherine, a filha dela.

- Ah... aquela pobre menina abandonada! Sempre jogada de cá para lá. Saindo de um colégio interno para outro! Eu tenho pena dela.

- Eu sabia que você sentiria pena...

Coyne imediatamente ficou sério e semicerrou os olhos.

- Ei, espere aí, não me comprometa. Eu disse apenas que tenho pena dela, mas parece que há algo por trás disso... o que é? Ela quer passar as férias aqui? Assim tão longe da civilização? Ou pelo menos do que a mãe dela chama de civilização! - As últimas frases foram carregadas de sarcasmo.

Moya fazia parte da alta sociedade e levava uma vida baste excêntrica. O primeiro marido dela fora um conde italiano, o segundo, Ashley Fitzgerald, um milionário criador de gado, que sumira sem deixar traços num desastre com seu avião particular, que se espatifara contra as montanhas de Nova Guiné. Alguns disseram que tinha sido proposital, para fugir de Moya, uma mulher linda e indomável.

- Afinal ela é parente sua... prima distante... - disse Ellenor como se estivesse fazendo rodeios antes de pedir alguma coisa.

- Não precisa me lembrar disso. - Ele largou a pasta em cima da mesa e virou-se para a tia - está bem, tiazinha, diga logo de uma vez. Moya está querendo largar a menina aqui, é isso?

- Exatamente.

- Por quanto tempo? Se ela for tão fútil e efervescente quanto a mãe dela, ninguém vai conseguir segurá-la aqui!

- Ora, Catherine ainda é uma colegial, não se esqueça! - disse a tia, um tanto abalada. - Ainda bem, porque se fosse a outra eu não toleraria. Não posso entender como é que a mãe dela pode viver eternamente embonecada daquele jeito, cheia de jóias, feito uma árvore de Natal... jogando a menina de um lado para o outro como um brinquedo. Desde que me conheço por gente que ouço falar nisso. Com que idade está a menina afinal?

- Catherine deve estar com uns dezoito anos agora. Todo ano eu mando a ela um presente de aniversário... estou com o nome do colégio de freiras aqui. - Ela se virou e pegou em cima do móvel da sala, atrás de uma bandeja de prata, a carta de Moya. Nesse momento, surpreendeu-se com a gargalhada sarcástica de Coyne.

- A filha de Moya num colégio de freiras? Ah, essa é boa! Como é que conseguiram convencer as freiras a aceitá-la? Elas devem mesmo gostar de fazer penitência!

- Mas, qual é a novidade? Moya também estudou num colégio de freiras! E até agora ela costuma procurar as freiras para se aconselhar. Parece incrível, mas é verdade. A vida é assim cheia de surpresas, meu filho, e uma delas é essa: o ano letivo termina na semana que vem e a menina não tem para onde ir.

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- Meu Deus, tia, já? - O rosto de Coyne ficou sério bruscamente. - E quem é que vai buscar a menina? Eu estou ocupadíssimo!

- E Lacey? Ele não poderia ir? - perguntou ela, cheia de esperança.

O sobrinho olhou para ela com ar de ironia. Pela cabeça dele desfilaram centenas de motivos para dizer que Lacey era um irresponsável, indigno de confiança para executar tal tarefa.

- O que você acha, tia? Se essa garota for bonita, e deve ser, com a mãe que tem, os dois são capazes de fugir juntos. Lacey é um desmiolado, louco por uma garota bonita... e essa menina, sendo filha de Moya, não deve ser nenhuma santinha!

- Ah, meu Deus do céu! - suspirou Ellenor, desolada.

- Eu sabia que hoje ia ser um dia daqueles logo que me levantei! - disse Coyne, cruzando os braços atrás da cabeça. - Não podemos mandar Lacey e ficar sossegados, você sabe disso. Vou ter que ir eu mesmo!

- Você vai?! Ah, você é maravilhoso, meu filho...

- Não precisa jogar confete, tia, você sabe por que estou fazendo isso... não é por ser, maravilhoso.

- Não é confete, não! - disse Ellenor, com veemência. - Conheço muito bem suas qualidades e sei que tem um coração de ouro. A pobre menina jamais teve o afeto da família. Esteve sempre afastada de todos. Eu até acho que ela deve sofrer de um tremendo complexo de rejeição.

- Meu Deus, tia, pare de ficar fantasiando as coisas! Ela deve ser uma garota absolutamente sadia e feliz... com a idade que tem!

- Não, meu filho, ela não deve ser... Minha intuição nunca falha.

- Isso é verdade! - Coyne sorriu. - E também os truques que você tem escondidos e que funcionam muito bem! Pode ficar sossegada, tia. Vou buscar sua pequena órfã, vou salvá-la da vida triste e angustiante que ela leva num dos colégios mais caros! Queria só ver o que papai falaria disso se fosse vivo. Eu me lembro de ouvi-lo sempre criticar as extravagâncias de Moya. - É, quanto a isso você tem razão - concordou Ellenor. - Não se pode negar que ela atormentou um bocado o pobre Ashley com seus caprichos... e ele era um homem maravilhoso, muito culto e inteligente! Nunca pude entender o que ele viu em Moya!

- Ora, tia... - insinuou ele, com ar irônico.

- Ah, meu filho, beleza não é tudo nessa vida, não é a única coisa importante! Sabe, por falar em Moya, esqueci de contar uma coisa: ela vai se casar de novo. Contou-me na carta... desta vez é com um argentino criador de gado, imagine!

Coyne ergueu-se bruscamente, num movimento ágil e rápido.

- Bem, tia, chega de conversa fiada. Não fique zangada comigo, mas estou ocupado. Vou fazer minha boa ação, indo buscar a garota conforme prometi, embora ache que isso ainda pode nos trazer encrencas. Ela já é uma moça... e posso até prever certas confusões que teremos pela frente. Mas, enfim, você me pediu e eu não recuso nada a você... - Ele olhou para a tia e esboçou um sorriso. - Também é besteira ficar me preocupando antes da hora; de repente a garota é magricela e desengonçada, tímida e retraída, e Lacey não vai nem reparar nela!

- Meu Deus do céu! Não tinha pensado nisso! Mas, mesmo que ela seja bonita, não deve ser provocante nem muito atirada. Afinal, não podemos esquecer que ela viveu fechada em colégios internos até agora. Moya nunca a deixou ficar em casa com ela.

- Uma atitude um tanto egoísta de Moya, não acha? Condenar a pobre menina ao exílio, assim sem mais nem menos... - Um certo brilho de compaixão passou pelo olhar dele. Ellenor percebeu, mas não disse nada. Ele se virou bruscamente com certa impaciência. - Bem, vou trazê-la para cá, mas depois lavo minhas mãos! Não quero saber de mais nada. Para mim mulher é sinônimo de problema, e se tratando da filha de Moya, então, acho que o problema será duplo! E eu já tenho problemas suficientes por aqui para me preocupar.

Ellenor sorriu, sentindo uma enorme ternura pelo sobrinho.

- Obrigada, meu filho, agora vou dormir tranqüila. Isso estava me preocupando, você nem imagina! Pobre garota... ela precisa de muito amor e a segurança de um lar... tenho certeza de que Catherine vai adorar este lugar!

Coyne fitou-a com ar preocupado.

- Será que não vamos nos dar mal com essa boa ação? A garota pode ser problemática, pode nos dar trabalho...

- Ah, isso não! Tenho certeza de que tudo dará certo, nós estamos agindo bem. Eu rezei muito antes de tomar em decisão...

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- Você não tem jeito, tia.

- Catherine deve ser uma garota meiga e boa! - disse Ellenor, com convicção. - O pai dela era um homem excelente!

- Não sei se era tão excelente assim... saiu desta vida e deixou a filha sozinha. Cheia de dinheiro, é claro, mas também cheia de problemas. Ele devia ter pensado um pouco mais nela. Olhe, realmente nunca entendi Ashley...

- É... quem sabe o que se passa na cabeça de uma pessoa? Às vezes acontece... Moya o tratava tão mal!

- É, mas ninguém pode ficar curtindo infelicidade, tia, você sabe disso também. Ficar curtindo sofrimento e auto-piedade não é uma atitude saudável. A pessoa precisa ter um objetivo, uma ocupação. O trabalho é o melhor remédio! Eu sempre achei o suicídio uma solução melodramática.

- Ah, meu filho, ninguém tem certeza disso... - Mas foi o que todos pensaram na época. - É... pode ter sido... não se sabe.

- Bem, deixe para lá. Nem sei por que puxei esse assunto. Não adianta nada ficarmos discutindo isso agora. Cada um tem um modo de reagir ao sofrimento e às asperezas da vida.

Com isso encerraram a conversa. Ellenor ficou sozinha com seus pensamentos. Só Deus sabia se a chegada de Catherine seria para melhor ou para pior. Só lhe restava rezar para que tudo corresse bem. Agora viveria em suspense até que a garota chegasse a Mandala.

CAP ÍTULO II

O calor era quase que insuportável naquela sala. Madre Dominic fazia o possível para esquecer o mal-estar que o calor lhe causava, apesar de estar usando o hábito de verão. Irritação e raiva não eram sentimentos elevados. Tirou os óculos e começou a limpar as lentes. Estava preocupada e mil pensamentos a invadiam.

Catherine Fitzgerald era a aluna mais rebelde e mais excêntrica que já passara pelo Colégio de St. Mary, incluindo Moya Macmillan, de cuja rebeldia madre Dominic se lembrava muito bem. Ela fora levadíssima, um diabinho com cara de anjo, uma menina linda. Mas a filha era diferente. Em certo aspecto era pior do que a mãe, mas em muitos era bem melhor. A garota tinha uma inteligência brilhante, algo que Moya nunca tivera, mas recusava-se terminantemente a ganhar prêmios, da destacar-se.

Madre Dominic, além de ser a superiora, lecionava Matemática e Ciências e conhecia bem seus alunos. Catherine era também muito bem-dotada para os esportes, mas não queria participar de campeonatos entre escolas. Uma vez, na véspera de um jogo decisivo, ela torceu o tornozelo e nunca ninguém soube dizer se aquilo tinha sido um acidente de verdade ou se fora um subterfúgio para não participar da competição.

Assim era Catherine. Não queria saber de compromissos nem responsabilidades. Era sempre esquiva. Detestava que alguém dependesse dela. Era uma líder inata que recusava qualquer tipo de liderança. Tinha uma capacidade natural de exercer influência sobre as outras garotas e uma incrível energia, que madre Dominic tentava canalizar da maneira que julgava ser correta, sem obter sucesso. Várias vezes ela fora ameaçada de expulsão, mas madre Dominic conseguia contornar a situação.

Ela sabia que os tempos haviam mudado e procurava se adaptar. Já não era mais possível incutir o temor a Deus nas meninas nem impressioná-las com isso, controlando assim o comportamento delas, coisa que era fácil antigamente. Naquele tempo bastavam algumas palavras severas, uma ameaça velada e as garotas baixavam o olhar, submissas. Agora era muito diferente. Eram todas tão indisciplinadas, falavam as coisas tão cruamente, sem rodeios, tratavam de todos os assuntos tão sem constrangimento! Catherine então nem se fala! Era a mais independente de todas. O apelido dela na escola era "furacão", porque por onde passava abalava tudo com sua vivacidade. Nisso era diferente da mãe. Quanto à beleza, se ela se cuidasse um pouco mais, se penteasse o cabelo, poderia tranqüilamente ofuscar o brilho da mãe. Mas isso seria uma catástrofe para Moya, que fora criada como uma princesa para ser servida e bajulada. Era uma pessoa egocêntrica e vazia, apenas muito bonita e até amável.

Madre Dominic gostava de Catherine, e estava triste com a partida dela, embora a garota tivesse lhe dado muito trabalho. Sentia algo de positivo no caráter da menina, uma coragem sem limite uma personalidade marcante e segura, apesar de ter vivido sempre em colégios sem jamais ter conhecido o aconchego de um lar, coisa tão importante na infância. Uma

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criança rejeitada dificilmente supera o sentimento de rejeição. É uma marca que fica para sempre e se manifesta de várias maneiras na vida adulta; é a base de toda instabilidade emocional. Madre Dominic sabia que no íntimo, Catherine era um garota magoada, solitária e atormentada. Era uma pena que o pai dela tivesse morrido tão cedo. Catherine precisava muito dele. Era a garota mais rica da escola em termos de dinheiro e a mais pobre em termos afetivos. E o triste é que ela tinha consciência disso.

Agora, parece que alguém a queria... uns parentes. Catherine ia passar as férias na enorme fazenda dos Macmillan, Mandala. E ela bem que estava precisando disso. Madre Dominic já ouvira falar da fazenda. Assistira junto com as alunas a um documentário, na televisão sobre aquele vasto país, o reino dos criadores de gado. E, apesar de Catherine disfarçar o entusiasmo, a madre sabia que no íntimo ela estava animada com a idéia.

Com quinze minutos de atraso, Catherine bateu na porta da sala da madre superiora o entrou quando ouviu a voz calma dizer que entrasse. Em todos esses anos que passara no St. Mary, Catherine jamais ouvira aquela voz se elevar para chamar a atenção de alguém, mesmo nas piores situações, em que teria sido normal perder a paciência. Por alguns instantes madre Dominic continuou de olhos baixos, lendo um carta que estava em suas mãos. Catherine ficou imóvel, esperando.

Ah, mas como estava quente! Estava um forno! Devia te prendido o cabelo. Assim que saísse dali faria isso. Ergueu a mão e afastou o cabelo do rosto. Ela era magra, esguia, tinha, o rosto fino e os olhos eram enormes e brilhantes. Olhos cheios de dúvidas e questões. Ficou olhando a madre. Gostava muito dela e, acima de tudo, respeitava-a muito.

- E então, Catherine? - A madre ergueu a cabeça e fitou-a, como se esperasse uma explicação.

- Desculpe, madre Dominic... é que irmã Bernard fez questão que eu terminasse meu experimento. Acho que ela não acreditou que eu tinha hora marcada com a senhora...

- Isso é o de menos. - Madre Dominic examinou a garota de alto abaixo. - Mas, minha filha, será que nem hoje você poderia ter se arrumado um pouquinho melhor? Olhe só esse cabelo, parece uma juba de leão! Por que não se penteia?

- Ah, é a moda, madre!

- O seu cabelo é tão bonito! Se o penteasse, ficaria muito melhor. Além disso, esse seu uniforme está muito desleixado, a saia está comprida demais... seja boazinha e arrume-se direito. O sr. Macmillan vem hoje à tarde. Pode usar as suas roupas em vez do uniforme, se quiser. As que a sua mãe comprou são lindas, aliás, ela tem muito bom gosto.

- Prefiro ficar de uniforme mesmo - disse Catherine, decida, encerrando a questão. - Como sempre, mamãe não estará presente, por isso não precisamos nos preocupar em agradá-la.

Catherine falava com pouco caso, mas o olhar expressivo revelava um enorme desconsolo, uma infinita solidão e a dor de uma frustração. E Moya era a culpada. A rejeição da filha era evidente. De que adiantavam roupas caras e elegantes quando o que a menina mais necessitava era de atenção e carinho, de se sentir amada?

A superiora olhava-a, compadecida. Pobre menina carente! As únicas coisas que a mãe dava a ela eram dinheiro, roupas e presentes. De resto, só se preocupava com suas festas e seus ricos maridos.

- Lembra como foi na Páscoa, madre? - disse Catherine com sua voz límpida. - Os poucos dias que passei na casa dela foram um desastre total! Eu não via a hora de voltar para cá! A vida que mamãe leva não tem nada a ver comigo. Nosso relacionamento não tem mais jeito mesmo, agora é tarde demais!

- Então seja corajosa e aceite a realidade. E trate de cuidar da sua vida da melhor maneira possível. Eu sei que a atitude de sua mãe magoa você, ela não fez o menor esforço para tentar estabelecer uma comunicação com você... mas talvez ela não consiga, talvez tenha dificuldade em relação a isso. Já pensou no caso sob esse aspecto? Talvez ela não seja do tipo maternal... Madre Dominic não pôde deixar de se sentir culpada pelo fracasso da Páscoa. Fora ela que insistira com Moya para que levasse a menina para casa. Era difícil acreditar que uma mãe dedicasse tão pouco tempo a uma filha. Por isso insistira, achara que poderia ser bom para as duas, mas tinha sido um erro. Catherine voltara mais magoada ainda. Fora pior sentir-se rejeitada, estando tão perto da mãe.

- A vida é uma viagem, às vezes longa, às vezes curta, em que não se pode voltar atrás, a não ser através de recordações. Por isso não deve se atormentar com o que passou nem com lembranças tristes. Você pode não ter tido uma infância feliz com o amor dos pais, mas terá muitas compensações! Até que tem mais sorte do que muita gente. Você é jovem, é inteligente e saudável, não tem problemas de dinheiro, o que já é uma grande vantagem, Catherine. Você

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pode cursar um faculdade. Planeje sua vida do melhor modo. Pense em seu futuro. Imagine que ele é um rio... não deixe que os ressentimentos e mágoas se acumulem no fundo e bloqueiem as águas. Deixe esse rio fluir livremente e ganhar força, realizando-se plenamente.

- Do jeito que a senhora fala, parece que essa viagem é cheia de perigos pelo caminho... - E é mesmo, minha filha, por isso é preciso traçar um plano, estabelecer um objetivo. Eu sei que você não é pessoa de se deixar arrastar pelos acontecimentos, Catherine. É preciso encarar os fatos de frente.

- Eu já encarei, madre. Eu sei que sou sozinha, não tenho ninguém que me ampare. Há muito tempo que estou sozinha, desde pequena. Minha mãe nunca cuidou de mim, nunca me pegou no colo... às vezes eu me pergunto como é possível eu ter nascido dela! Será que eu nasci mesmo? Ou minha identidade não passa de uma ilusão?

Houve um momento de silêncio e a superiora olhou para ela com paciência e ternura. - Você sabe muito bem quem você é, Catherine. Já tive alunas em pior situação do que a sua, que realmente nem sabiam quem eram os pais. Ouça meu conselho, filha: esqueça as coisas ruins e quando tiver os seus filhos trate-os de maneira diferente.

- Eu tratarei, madre. Pode ter certeza disso.

- Eu sei, Catherine. Tenho muita fé em você e no seu bom caráter, embora você fizesse questão de demonstrar o contrário para mim. Sempre acreditei em você e quero que você também acredite. Tenha confiança em si. Essas férias em Mandala serão uma experiência maravilhosa para você.

- Talvez eles estejam apenas fazendo um favor de me convidar, e essa idéia não me agrada nem um pouco, madre!

- Catherine! - Madre Dominic exclamou desgostosa com a antipatia que a menina tinha por tudo que se referia à família Macmillan. - Você sabe muito bem que a carta não podia ter sido mais calorosa e cheia de carinho, demonstrando uma vontade sincera de receber você! Não é preciso conhecer pessoalmente a srta. Ellenor para se saber que ela é uma mulher de bom coração, meiga e corajosa ao mesmo tempo. Tenho certeza de que se sentirá feliz lá, se relaxar um pouco essa tensão exagerada. Você é muito jovem para isso.

- Só que ela tem sobrenome Kennedy e não é a dona de Mandala. Os donos são os Macmillan. Ela é apenas a tia.

- E o que isso tem a ver com a história? Não vai querer me dizer agora que ela não é ninguém lá! Ela é uma pessoa muito importante na fazenda e tem seus direitos também.

- Pode ser que eles não me queiram lá - insistiu Catherine. - Estou falando dos outros. Pode ser que ela os tenha convencido a aceitar... uma senhora idosa fazendo caridade. Talvez tenha até usado chantagem para convencê-los. Todo mundo sabe como minha mãe é... ela é famosa, pelas loucuras que faz. As colunas sociais estão cheias das aventuras da efervescente Moya! Agora é aquele argentino! Ele nem sabe falar inglês direito... se bem que mamãe está pouco ligando para isso! Ela quer é casar com ele, a conversa dele não interessa. Ah, eu odeio ele! Tenho vontade de pôr veneno na comida dele. Odeio todos os homens! Nenhum deles vale nada! Tenho certeza de que vou detestar esses Macmillan... principalmente o chefão, o rei do gado! A senhora sabe, madre, que eu não suporto autoridade! Já imaginou como vai ser com esse cara autoritário? A senhora viu o documentário na tevê... aqueles latifundiários são verdadeiros ditadores!

- Sinto muito interromper seu discurso... - disse madre Dominic calmamente - suas acusações são generalizadas, Catherine. Nem todos são assim. Eu falei com o sr. Macmillan por telefone e ele me pareceu um homem cortês, muito educado e nem um pouco arrogante. Sem dúvida ele é um homem importante e cheio de responsabilidades, mas sabe muito bem moderar tudo isso e ser amável.

Madre Dominic alimentava muitas esperanças com relação às férias de Catherine. Ela precisava encontrar uma estabilidade, superar o sofrimento da infância e talvez lá em Mandala encontrasse o apoio e a solidariedade de que tanto necessitava. Ela era bonita e inteligente, não era de passar despercebida em lugar nenhum e poderia muito bem cativar aquela família, fazer-se querida.

A superiora tivera poucos contactos por correspondência com Mandala, mas ficara bem impressionada. A srta. Ellenor tinha escrito de um jeito carinhoso e espontâneo que a tranqüilizara. Tinha certeza de que havia sinceridade naquelas palavras. Aquele ambiente só poderia exercer boa influência em Catherine.

Agora as duas esperavam a chegada de Coyne Macmillan. Madre Dominic sentia que a hostilidade de Catherine era artificial, no fundo ela estava ansiosa para ir. Para acalmá-la um pouco, fez com que se sentasse e mudou de assunto, começou a falar sobre cursos de

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universidades. A madre era a favor de um curso universitário, mas Catherine tinha várias críticas ao sistema educacional e estava em dúvida quanto à validade de seguir o magistério.

Uma hora mais tarde, Coyne estava na sala e madre Dominic conversava com ele, enquanto Catherine o analisava rigorosamente. Então era esse o homem de Mandala! O rei do gado. Era sem dúvida uma presença marcante, com uma voz firme e cálida. Era visível o fato de ser um homem resoluto e bem-sucedido. Ele irradiava força e poder. Uma coisa era certa: seria uma pessoa difícil de ceder a provocações. Era uma pessoa segura de si, que só lutaria de igual para igual com alguém que tivesse a mesma força. Uma simples colegial não era páreo para ele. Imagine só se ele se preocuparia com ela! Aliás, até agora, quase nem prestara atenção nela, mas não de maneira agressiva. Era estranho o que ele lhe transmitia... não sentia que era um fardo incômodo para ele...

Com todos os outros membros da família Macmillan, Catherine sempre se sentira uma intrusa. Ou então sentia que estavam com ela por piedade, só para não dizerem que não praticavam boas ações. Mas com esse homem era muito diferente! De certa forma ele era como ela havia imaginado. Ali, naquele ambiente suave, totalmente feminino, ele era uma figura de destaque; um enorme contraste com os móveis antigos e os velhos quadros pendurados nas paredes com fotografias das ex-alunas, do papa e de bispos. Millicent, sua melhor amiga, teria gostado dele, sem dúvida.

Millicent só pensava em casar. Tudo o que queria era um marido fazendeiro... não precisava ser uma grande fazenda. Bastavam alguns poucos acres e uns cavalos. Será que o casamento afinal era tão bom? A maioria das garotas vivia pensando nisso! Sua mãe, mesmo, vivia se casando, não ficava sem marido! Esse tal de Coyne que estava ali, não era casado... Catherine podia perceber isso só de olhar para ele. Ele tinha um ar de independência, de pessoa livre, sem compromissos afetivos... Era bonito, sem dúvida! A pele era morena, bronzeada de sol, e os olhos tinham um brilho especial... Ele era bem alto, de ombros largos, o corpo esguio de músculos exatos, e movia-se com agilidade e elegância que não pareciam próprias de um vaqueiro.

Catherine conteve as lágrimas que lhe subiam aos olhos. Não queria chorar. Se chorasse poderia constranger e afastar aquele homem, e ela não queria que isso acontecesse. Pela primeira vez em sua vida, ela não queria causar má impressão. Era como se estivesse desesperada para uma nova vida, não queria mais causar problemas, estava decidida a não dificultar as coisas. Depois, era preciso reconhecer que o homem estava sendo muito gentil, não demonstrara o menor sinal de impaciência por ter feito uma longa viagem especialmente para ir buscá-la. É certo que também não demonstrara grande entusiasmo, mas era natural, afinal nem a conhecia. Entretanto ela sentia ter havido uma aceitação. Catherine não percebeu que relaxara a tensão, que mudara visivelmente sua atitude inicial de agressividade, que, aliás, assumia com todos por ser o único meio de se defender que conhecia.

Diante daquela presença calma, que irradiava uma certa autoridade natural e incontestável, não teve por que se rebelar.

Quem não a conhecesse poderia até supor que ela era uma aluna comportada e obediente. Madre Dominic estava encantada com aquela docilidade, embora desconfiasse que fosse apenas pose. Em todo caso, era melhor assim. Apesar de não ter havido nada que demonstrasse isso, a superiora tinha uma intuição de que aquele homem se enternecera com Catherine. Por isso resolveu ir providenciar o chá pessoalmente, embora pudesse ter apenas pedido para trazerem, só para deixá-los um pouco a sós, para que ficassem mais à vontade um com o outro.

Assim que madre Dominic saiu, Catherine achou que devia fazer algo, falar alguma coisa. Mas o que poderia dizer para aquele homem? Não conseguia pensar em nada que pudesse interessá-lo. Logo ela que era tão desembaraçada, que falava sobre qualquer coisa sem o menor constrangimento! Ela, o "furacão", estava muda e sem jeito diante dele, sem saber o que fazer. A presença dele a perturbava de maneira estranha. Ele era muito bonito mesmo. Lamentava-se intimamente por não ter se arrumado um pouco melhor.

Mas também não imaginara que ele fosse impressioná-la daquela maneira! Com essa não contava e por isso estava tão desconcertada diante dele. Sentia-se apagada, boboca e infantil. Ainda não tinha consciência disso, e levaria muito tempo para perceber, mas pela primeira vez em sua vida ela sentia um profundo respeito por alguém.

Virou-se para ele com brandura e ia falar algo sobre as eleições locais, só para puxar assunto, quando percebeu um brilho no olhar dele que imediatamente interpretou como

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expressão de triunfo. Ficou tão decepcionada e furiosa que voltou ao seu jeito agressivo de sempre.

-Olhe, não sei nem como devo chamar você... nunca vi um latifundiário em pessoa.

Ora, sou apenas um vaqueiro em uma roupa um pouco mais apresentável, Catherine! -disse ele, ignorando a agressividade dela.

- Ah, essa não... você é o rei do gado! E não adianta fingir modéstia. Que tal se eu escrevesse a história da família? Daria um livro interessante, você não acha?

- Acho sim, Catherine... só que já foi escrita - retrucou ele secamente. - Está na Biblioteca Nacional.

- Puxa vida! Eu não sabia. Nunca ouvi falar nisso! - É, você é muito jovem ainda.

Ele a fez se sentir tão tola que ela desviou o olhar sem jeito, e ficou olhando o retrato do bispo pendurado na parede. O coração batia descompassado e a garganta estava seca. Ela apertava a mãos, nervosa. Estava acostumada a ser a personalidade central e ser a que comanda, e agora que encontrara alguém mais forte do que ela estava atrapalhada, sem saber o que fazer.

Ele percebia tudo o que se passava com ela, sem perder um detalhe. Era sempre muito observador. Pobre menina, ainda era uma criança! Parecia, muito com a mãe, mas tinha mais vivacidade e inteligência. Apesar daquele cabelo loiro estar escondendo bastante o rosto dela, dava para se ver que era bonita. Os olhos eram enormes e expressivos, azuis como dois mares que às vezes estavam calmos e de repente se enchiam de ondas bravias. Mas era magra demais... parecia tão frágil. Alguém que precisava ser tocada com muita delicadeza, embora fosse hostil e agressiva na atitude. Parecia um pobre animal ferido, desesperado para se defender, desconfiado de quem se aproximasse! Depois de algum instantes de silêncio, ele achou que já era tempo de tentar reiniciar a conversa.

- Você parece uma jovem séria e bastante madura, Catherine, e também não é de muito falar, não é? Eu gosto disso!

Ela o olhou desconfiada, mas ele estava sério, não havia o menor traço de ironia naquele rosto másculo. Quando ela falou, sua voz soou branda e nervosa ao mesmo tempo. Ela própria mal se reconheceu.

- É muita bondade sua receber-me em Mandala.

- É um prazer para todos nós, Catherine. Minha tia está ansiosa esperando por você. Ela não tem companhia, lá. Eu sei que ela deve se sentir só embora nunca reclame ou se queixe.

Ele a analisava objetivamente, agora, perscrutando-a com aqueles olhos negros, de modo enervante, quase como se ela fosse um cavalo que ele fosse treinar para pular obstáculos. Foi a impressão que Catherine teve. Ela sacudiu a cabeça, num gesto de impaciência, e os cabelos se agitaram sobre os ombros como se aquilo fosse uma atitude de auto-afirmação. Pela primeira vez sentia-se insegura, confusa, sentia que não sabia na- da sobre as coisas.

Um raio de sol criou reflexos dourados no cabelo dela. Mas que cabeleira! Sim, senhor! Será que ninguém podia dizer àqueIa garota que se penteasse, que prendesse aqueles cabelos com uma fita? Seria bem melhor para ela. Assim, quase escondia o rosto todo dela. Na boca bem-feita um ricto de rebeldia. Ah, essa menina precisava de umas boas palmadas! Ao mesmo tempo parecia tão desamparada e assustada que inspirava sentimento de proteção. Estava tensa e trêmula. Aquela atitude de descaso estava em contradição com o olhar dela. Era evidente que tudo aquilo era para agredi-lo: a roupa desleixada, o cabelo extravagante...

Ele entendeu de imediato. Pronto, mais uma rebeldezinha para a fazenda, para fazer companhia a Lacey! Assim que chegara ali na escola ficara sabendo que o apelido da menina era "furacão". Que belo presságio! Lacey iria adorá-la e que belo par os dois iriam fazer! Um incentivando o outro... Ah! Só de pensar nisso seu rosto ficou sombrio e uma ruga de preocupação formou-se em sua testa.

Catherine mordiscava o lábio, nervosa, sentindo-se exposta demais àquele olhar penetrante e crítico. Era como se ele a estivesse vendo por dentro. Subitamente começou a sentir medo dele.

Sabe que você já me conhece? disse ela provocando, tentando esconder o que sentia. -Eu sou "furacão", não lembra?

- Para mim você é Catherine - ele disse ríspido, mas depois sorriu.

Quando viu aquele, sorriso, o coração dela quase parou. Como ele ficava bonito assim sorrindo! Seria difícil negar qualquer coisa que ele pedisse sorrindo daquele jeito! Realmente ele era imprevisível. Aqueles olhos escuros eram inescrutáveis. Mas, afinal, o que ele estaria querendo fazer com ela? Ele parecia agir como se quisesse domá-la! Acontece que ela ia só

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para as férias em Mandala, não ia para um reformatório para ser reabilitada! O que será que a madre Dominic tinha dito a ele? Impulsivamente, falou com infantilidade:

- O que é que madre Dominic andou lhe falando a meu respeito, hein?

- Ora, e o que ela poderia ter me dito, Catherine? - perguntou ele, surpreso. - Eu mal tive tempo de conversar com ela. A única coisa que ela me disse é que você é muito inteligente. O resto posso julgar por mim mesmo, basta olhar para você.

- Ah, sei... Sabe de uma coisa? Não sei se devo mesmo ir com você para Mandala... afinal eu nem o conheço!

- Mas vai ficar conhecendo. Ah, madre Dominic! - disse ele.

Depois ergueu-se e pegou a bandeja de prata das mãos dela. As xícaras eram de porcelana finíssima e havia pratos de sanduíches e bolos.

Catherine recebeu com certo alívio a chegada dela. Será que tia Ellenor era tão enervante quanto Coyne? Precisava rezar para que não fosse!

Madre Dominic estendeu a ela uma xícara de chá, que Catherine tomou em silêncio, fazendo um ar de mártir, expressão que não era nem um pouco convincente. Lá no fundo dos olhos dela, estava o brilho de entusiasmo e animação, dizendo que ela não via a hora de chegar a Mandala.

CAPÍTULO III

Catherine olhou pela janela do pequeno avião Piper e viu pela primeira vez a imensidão da Austrália Ocidental. Parecia um lugar rude, seco, castigado pelo sol que incendiava tudo com cores fortes. Ficou assustada, mas esforçava-se para não deixar transparecer o medo. Era muito importante manter as aparências... Aprendera isso muito cedo em sua vida, desde que fora afastada de casa. Além disso, não podia demonstrar fraqueza diante de Coyne; ele acharia ridículo e não se comoveria nem um pouco. Enquanto isso ele pilotava o avião, descontraído e muito à vontade, como se estivesse dirigindo um carro através de campinas verdejantes!

A Austrália é uma grande nação, entre os oceanos Pacífico e Índico, rica em recursos naturais. Uma nação do futuro. Estavam sobrevoando já há algum tempo aquela terra e Catherine sentia-se como uma formiguinha diante das proporções desmedidas que ela jamais imaginara. Realmente, para quem está acostumado com os países europeus, que não são muito grandes, aquilo era de assustar! Na Europa as distâncias são pequenas, não há regiões desabitadas, em poucas horas muda-se de um país para outro... mas ali, não!

Não havia o menor sinal de vida em toda a extensão que tinham sobrevoado. Absolutamente nada. Só uma planície sem fim, deserta e ensolarada. O que será que havia por ali? Será que existiam lagartos daqueles enormes? Devia haver... e devia haver camelos também. Será que na fazenda tinha camelo? Ela que não se atreveria a chegar perto de um... já imaginou um coice ou uma mordida daquele bicho? Em todo caso, bem que gostaria de ver um e de fotografá-lo. Queria tirar milhares de fotografias com a máquina sofisticada que a mãe lhe dera de presente.

E os cães selvagens que havia naquela região... Como era mesmo o nome deles? Ah, dingo, era isso! Pois queria fotografá-los também. Diziam que era um animal muito bonito, de pêlo castanho-dourado que podia cruzar com cães domesticados. Eram amigos dos nativos e não lhes faziam mal algum, mas para os homens brancos eram uma terrível ameaça. Ela ouvira falar... até hoje era preciso construírem cercas e tomarem muito cuidado para que os dingos não entrassem nas propriedades. Eles eram animais muito inteligentes e perigosos, jamais se deixavam domesticar. Havia vários casos de dingos que tinham atacado e estraçalhado pessoas. O caso mais horripilante era o de uma criança que fora atacada. Todos tremiam quando ouviam o uivo lancinante de um dingo.

Mas, sem dúvida, em Mandala não devia haver esse perigo. Coyne devia ser muito precavido e era capaz de apostar como ele nunca deixara um dingo sair vivo de suas terras! Pena... assim não ia poder fotografar o animal. Resolveu que não faria nenhuma pergunta sobre o assunto, não queria parecer infantil. Será que ela seria capaz de atirar num dingo? Ele parecia um cachorro... É, estava pensando assim porque nunca vira um deles faminto e feroz atacar um bezerro ou um carneiro. Imagine então se visse um atacando uma criança! Ficou arrepiada só de imaginar. Era melhor pensar em outras coisas!

Que diferença de paisagens! Ela, que estava acostumada com o cenário suave de Adelaide, que fica na Austrália Meridional! Agora estavam sobrevoando a região dos imensos lagos salgados. Se ela não estivesse tão assustada poderia se dizer que estava fascinada. Era uma terra misteriosa, quase sobrenatural, de onde parecia emanar a própria morte. Lá embaixo

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estavam os lagos Eyre e Sturt, que tinham o nome dos primeiros exploradores da região, homens intrépidos e destemidos que gastaram as suas vidas explorando aquela região e acabaram morrendo sem nunca terem saído dali. Catherine começou a lembrar das histórias que lera sobre a Austrália e sentiu um frio na barriga. O que faria se o avião apresentasse alguma falha mecânica e precisassem pousar ali naquela região desolada? Ah, meu Deus! Ela, que nunca fora medrosa, sentiu um calafrio e achou melhor parar de olhar para baixo e distrair-se um pouco.

Mexeu-se na cadeira e soltou o cinto se segurança. Estava um calor terrível! Ela parecia ter uma fogueira dentro do corpo. A tarde findava e o céu, que estava avermelhado, começou a ficar num tom dourado vivo. Parecia que eles estavam voando para dentro do sol. Catherine começou a sentir as pálpebras pesadas e pestanejou para afastar o langor. Nesse momento Coyne olhou para ela.

- Ânimo, Catherine! Isso não é o fim do mundo, você não está correndo nenhum perigo. Vamos lá, diga alguma coisa, há uns vinte minutos que você não fala uma só palavra!

- Estava pensando - disse ela com voz cansada e um brilho de deslumbramento no olhar. - Em quê?

- Ora, nisso! - disse ela, abrangendo com um gesto toda aquela amplidão, como se não conseguisse achar uma palavra para defini-Ia. - Isso que está aí embaixo de nós! Estava pensando em quantos exploradores morreram aí... Eu estudei História, sei que muitos nunca voltaram de suas viagens de reconhecimento... Olhe, só sei que nunca vi nada igual em toda a minha vida.

- É, realmente, posso acreditar.

- Parece outro mundo! Quase não dá para acreditar que eu estou no mesmo país, que você atravessou apenas uma região para ir me buscar...

- Pois é, e tudo num dia só, Catherine.

- Eu lhe agradeço por isso, pode estar certo. É que estou simplesmente desarmada com a grandiosidade do país. Quando penso em nossa velha casa de verão ao pé das colinas, em Adelaide, toda rodeada de verde... parece estranho que haja diferenças tão grandes dentro de um mesmo país, você não acha?

- É - respondeu ele, tentando se lembrar de quando ele também não conhecia essas diferenças.

Era evidente que a garota já sucumbira ao feitiço do território do interior. Ela não queria olhar para baixo, mas seu olhar era irresistivelmente atraído pela paisagem que parecia ter estranhos poderes. Coyne ficou em silêncio, analisando-a. O patinho feio tinha se transformado num belo cisne! Não sabia bem dizer se isso o deixava contente ou aborrecido. Lacey ia ficar maluco por ela, sem dúvida. Apesar de toda sua ingenuidade e inocência, havia no rosto dela uma certa sensualidade. Era realmente muito bonita! Ele começou a falar para distraí-Ia um pouco. Era fácil perceber que ela era uma garota muito sensível e estava bastante impressionada.

- Pois é, Catherine, este país é paradoxal. Um enorme continente com as extremidades onde impera o verde, e no centro, como se fosse o coração, uma terra vermelha e árida. Mas não é sempre assim. Nos anos em que há boas chuvas, isso fica uma beleza de fazer perder a fala! E, depois, existe também a Grande Bacia Artesiana, que é um imenso reservatório subterrâneo, cerca de meio milhão de quilômetros quadrados... estou certo de que você estudou isso também. Sem isso teria sido impossível povoar o oeste e torná-lo produtivo, pois leva anos para chover nesta região! Aliás, temos um pouco do mundo todo aqui num só país. Temos selvas tropicais impenetráveis no extremo norte e montanhas com neve no sul, os Alpes Austral, onde se pode esquiar melhor do que na Suíça! Temos as plantações de cana-de-açúcar, que se equiparam às de Cuba; plantações de trigo, as vinhas no seu estado, a Austrália Meridional; as terras de criação de gado e de carneiros no meu estado, Queensland. E as ilhas de jade da Barreira dos Recifes. Então, você pode imaginar coisa mais linda do que isso? Ah, você precisa ver a cor do mar de Coral! No extremo norte de Queensland e Top End há a exuberância tropical, com toda sua fauna e flora. Rios cheios de crocodilos, pântanos... tem de tudo, lá no Top End: pérolas, camarões, búfalos, milhões de aves, jibóias... elas são impressionantes! Eu mesmo já matei algumas, quando era mais jovem. Agora não faço mais isso, é preciso preservá-las. Aliás, temos uma imensa em Mandala... foi meu pai que a matou... é melhor avisar você para que não se assuste. Muitas pessoas se assustam mesmo. Mas é totalmente inofensiva... a pobre virou tapete na sala de armas.

- Ainda bem que você me avisou! Que bela perspectiva encontrar um monstro na sua casa! - disse ela, rindo.

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- Pode ficar tranqüila que não deixarei que nada lhe aconteça. - Ele riu. Olhou para Catherine e, vendo que ela estava vermelha de calor, tentou consolá-la. - Daqui a pouco vai melhorar. Aqui os contrastes são muito violentos... o deserto esfria de repente. Esse calor já vai passar.

Mas no íntimo ficou pensando que aquele não era o melhor lugar para uma garota frágil. Para ela seria melhor a Tasmânia, que era uma ilha muito bonita e tinha paisagens suaves e delicadas, parecidas com as da Inglaterra, não aquele lugar onde estavam. Talvez fosse melhor ela não ter vindo.

- Eu pretendo viajar! - ela anunciou com grande pose. - E você, já viajou?

- Já dei a volta ao mundo duas vezes, depois viajei por meu país e acho que já é mais do que suficiente. Quando você viajar, Catherine, vai descobrir que esta é a melhor terra do mundo. Temos coisas aqui que não existem em nenhum outro lugar. Eu, por exemplo, não trocaria Mandala por nada. Você vai ver depois que conhecer um pouco melhor a região central. Muitos viajantes acham que é uma experiência devastadora, porque ali está a parte mais antiga da crosta terrestre. Você precisa ver a cadeia de rochas, é uma visão alucinante quando se passa de avião. Fica um brilho azul que parece uma aura. É que as rochas são revestidas de mica e isso produz reflexos incríveis! Dependendo da posição do sol e da incidência dos raios, os reflexos formam arco-íris! Tem muita coisa bonita para você ver. Ellenor vai levar você a vários lugares.

- Você não vai junto?

- Eu sou um homem ocupado, Catherine. - E não gosta de sair de Mandala...

- Isso é uma pergunta ou uma afirmação? Mas, essa é a verdade mesmo. Meu lugar é aqui, em casa, onde me sinto à vontade. Não gosto de ficar muito tempo nas cidades... aquelas multidões andando nas ruas, aquela sensação de estar aprisionado. Ah, para mim não existe lugar melhor do que Mandala, mesmo com as enchentes e tudo. Nossa você deve ter ouvido falar na grande enchente de 74 em Queensland... acho que ninguém esqueceu ainda, foi um desastre nacional. E um pouco mais a oeste a seca era total.

- Parece que não há meio-termo por aqui, não é? Ou é seca ou é enchente.

- Mas depois que passa a chuva, a transformação é total. Fica tudo verde e com muitas flores... - Coyne se virou e sorriu para ela e, tal como da primeira vez, Catherine quase perdeu a fala. Os olhos negros dele brilhavam intensamente. Ele irradiava uma incrível vitalidade. Ela nunca vira um homem assim! Não conseguia desviar o olhar daquela figura atraente. - Essa é a primeira vez que você me olha realmente - comentou ele com brandura.

- Ah, não é, não. É que você fica tão diferente quando sorri! Devia sorrir com mais freqüência. É como o deserto depois das chuvas... Mas, você estava falando das flores, como é o nome delas? São conhecidas?

- Isso você vai ter que perguntar a tia Ellenor. Tem uma variedade infinita. Eu só conheço algumas, mas não sei os nomes... sei que tem uma que a gente chama de "flor da tempestade", que nasce nas regiões mais inóspitas. Apesar de ser linda e frágil ela cresce até onde nem mesmo os cactos crescem.

- Como eu, teimosa e obstinada - disse com ar petulante. Ele a olhou de soslaio, sem sorrir, e Catherine insistiu:

- Não vai fazer nenhum comentário? Você não acha que sou teimosa e obstinada? - Acho que você ainda é jovem demais para ser alguma coisa.

- Puxa, mas que declaração! Então o que eu pareço para você?

- Uma menininha que está se sentindo um tanto deslocada. Mas, felizmente para você, eu gosto muito de crianças!

Ela enrubesceu, furiosa.

- Não sabia que você estava fazendo uma análise tão profunda de minha personalidade! - Mas não estou! - disse ele com suavidade. - Vou ter bastante tempo para fazer isso com calma. A única coisa que notei por enquanto é que você está quase subnutrida. Por acaso não alimentam direito vocês lá naquele colégio?

Ela achou que ele tinha sido muito mordaz, mas resolveu fingir que não percebera, por isso disse em tom de brincadeira, imitando a voz de madre Dominic:

- Bem, o senhor sabe, já passamos por épocas bastante difíceis em que quase não havia o que comer, mas desde o século passado que não temos mais esse problema. As alunas comem muito bem e a alimentação aqui é boa... algumas voltam para casa bem mais gordas. Millicent, por exemplo, sempre repete as refeições e já engordou mais de dois quilos! - Depois riu.

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- É, mas pelo jeito você não seguiu o exemplo dela!

- Não, é verdade, mas se pensa que vai ter uma hóspede que não dá despesa, Coyne, você vai cair do cavalo. Eu como muito bem. Gosto de um bom jantar, acompanhado de vinho... é que ainda não tive oportunidade de demonstrar isso. Sinto muito!

- É, mas Lacey não vai sentir. Tenho certeza de que ele vai ter uma bela surpresa. Ninguém imagina que uma colegial possa ser tão impetuosa.

- Quem é Lacey? É parente seu? - É meu irmão.

- Puxa, então são dois?! Meu Deus, para mim um só já era o bastante!

- Está querendo insinuar algo?! Esse tipo de malícia é bem característico da adolescência. Mas pode ficar tranqüila, você vai gostar muito mais de Lacey do que de mim. Tenho certeza de que ele é mais do seu gosto.

- Puxa, que alívio! Quase morri de susto pensando que ele fosse igual a você.

- Ainda bem que não morreu. Lacey vai ficar contente. Agora vocês poderão se unir, não precisarão mais continuar suas revoluções separadamente. Unam as forças e façam uma revolução só! Só quero que uma coisa fique bem entendida: nada de revoltas ou agressões com tia Ellenor. Eu gosto muito dela e a respeito bastante.

- Já entendi, Coyne. Mensagem recebida. - Ótimo.

- Só que eu não tinha a menor intenção de me rebelar contra ninguém - disse ela com sinceridade. - É só o meu jeito de falar... às vezes sou meio impulsiva.

- O que pode ser perigoso para você. Guarde bem isso!

- Calma aí, Coyne - disse ela de um jeito travesso -, eu não sou maluca de querer brigar com você. Seria a última coisa que eu faria!

- Ah, quanto a isso pode ter certeza.

- Bem, então vamos esclarecer uma coisa: o que você quer que eu faça? Quer dizer, como espera que eu ocupe meu tempo? Você sabe, as garotas da minha geração não são de ficar cozinhando ou costurando.

- É nisso que dá essa educação moderna, colégios caros e todas essas coisas. Eu, pessoalmente, não tenho nada contra mulheres que fazem isso, bem pelo contrário, até gosto.

- Ah, já imaginava isso mesmo.

- Acontece, Catherine, que comemos muito bem e temos excelentes cozinheiras e vários empregados domésticos para todos os tipos de trabalho. Como vê, não vai precisar fazer nada dessas coisas em casa.

- Ah, meu Deus, só falo besteira! Vou tentar ficar de boca fechada de agora em diante. - Não vai ser fácil, aposto. Olhe, não estou querendo amordaçar você... não é preciso dizer que é uma garota bastante corajosa, e imprudente também. Só peço que tome cuidado com o que fala e evite participar de discussões, principalmente sobre problemas raciais. Meus empregados são muito bem tratados.

- E será que vai ter alguma?

- Se tiver não vai ser em Mandala, pode estar certa.

- Ah, estou indo de mal a pior. Peço que me desculpe se eu o ofendi, Coyne. Não gostaria de perder sua aprovação assim tão cedo. Ainda nem chegamos...

- É, mas tome cuidado, pode chegar um dia em que só pedir desculpas não vai adiantar nada. - Ele riu baixo e a expressão do seu rosto se distendeu. - Sabe, de certa forma, é pena que você seja tão inteligente. Garotas muito inteligentes acabam perdendo a feminilidade, às vezes.

- Já vi que vou ter que bancar a boba, dando risadinhas à toa...

- Ora, na sua idade não seria nada extraordinário. Aliás, por falar em risada, até agora não vi você rir nenhuma vez.

Ela ficou pálida de repente.

- Há muito tempo que não sei o que é rir. Desde a Páscoa...

- O que aconteceu na Páscoa? - perguntou ele quase com desinteresse, sem olhar para ela.

- Fui para a casa de mamãe. - E isso foi tão horrível assim?

- Por que está dizendo isso? - A voz dela estava trêmula e nervosa e ele virou-se para fitá-la.

- Estou vendo em seu rosto, Catherine. Ele é muito expressivo.

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Ele teve vontade de rir, mas disfarçou.

- Ora, vamos, Catherine, não se enfureça tanto. Eu não sou uma de suas coleguinhas. - É, eu sei...

- Então - Ele olhou para ela, que estava cabisbaixa. - Você estava me falando sobre sua mãe. Continue.

- Não é tanto mamãe... disse ela meio constrangida. - Sabe, são os amigos dela. Ela vai se casar de novo, você sabia?

- Sabia.

- Eu não fui convidada. - E você queria? - Não.

- Pois então, qual é o problema?

- Você ia querer ir ao casamento de sua mãe? - disse ela, fitando-o com olhar súplice. - Está certo, eu sei que não é um acontecimento muito comum, mas é preciso enfrentar a realidade, Catherine. Eu não sei como me sentiria. Minha mãe morreu quando eu tinha doze anos.

- Sinto muito.

- Está bem, mas não precisa ficar me olhando com essa cara, como se eu tivesse dito uma coisa espantosa. Ela morreu, mas eu fiquei com meu pai e tia Ellenor.

- Você teve mais sorte do que eu. Mas, voltando ao que eu estava falando... foi uma loucura, foi de alucinar!

- Não dramatize. Conte a história.

- Olhe bem para mim. Eu pareço tanto assim uma colegial? - Ah, sem dúvida! - disse ele, rindo.

- Ora, mas é claro, assim como estou... com esse uniforme! Só por isso não vou considerar um insulto. Mas quando eu trocar de roupa você não vai nem me reconhecer!

- Ah, não faça isso. Eu gosto dessa roupa. - Ele olhou para ela, sorrindo.

- Ah, deixe pra lá! Quer ou não quer ouvir minha história? Como eu estava dizendo, um amigo de mamãe, magricela e horroroso, se apaixonou por mim. Ele é guru.

- Apaixonou-se por você? Será que ouvi mal ou foi isso mesmo o que você disse?

- É, apaixonou-se por mim, sim, senhor! - explicou ela, enrubescendo. - Puxa, será que é assim tão difícil de se acreditar?

- Bem, eu nunca me apaixonei por você. Não sou maluco, tenho os pés no chão. Por isso é difícil imaginar. E que idade tinha ele?

- Era um pouco mais velho do que você. Ele até esteve na guerra, muito antes de eu nascer, imagine!

- Mas que malandro! E é amigo de sua mãe?

- é um dos melhores amigos dela. Mas foi horrível, ele não me deu sossego. Sabe o que ele disse? Que eu era excitante...

- O guru disse isso?

- É, e um dia ele quis me agarrar no terraço. - Epa, está ficando interessante.

- É, mas para mim não foi.

- Ainda bem, senão eu ia ficar preocupado. Como é que você conseguiu escapar? Apareceu alguém para salvá-la?

- Não, eu mesma me salvei... era a única saída.

- Eu percebi logo que você é do tipo que sabe se defender sozinha. Estou vendo que a educação no colégio interno não foi de tudo inútil, você aprendeu boas coisas.

- Para mim são todos iguais... gurus, músicos, políticos... só pensam numa coisa! Eu não gostei daqueles caras! - Ela abaixou a cabeça e os cabelos caíram sobre o rosto.

Coyne já entendera a situação, apesar do pouco que a menina falou. Essa gente de sociedade que vive em festas e leva uma vida devassa... Os amigos de Moya! Ele bem podia imaginar o que acontecera! A menina não estava fantasiando, ela era sincera.

- E o que mais esse tal de guru fez?

- No dia seguinte estava tão fraco que não podia fazer nada, nem que quisesse. - O que foi que você fez com ele?

- Não sei por que está rindo! - disse ela, brava. - Eu bati nele com um jarro de bronze. - Você poderia tê-lo matado, Catherine! - exclamou ele, parando de rir .

- É, eu sei. Mas na hora foi o único jeito de me livrar dele. O que ele fez também não foi direito. - Ela virou o rosto de lado. - Eu sei que você está do meu lado, Coyne.

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- É... mas quero que se lembre de uma coisa: em Mandala é diferente... lá mando eu. - E eu obedeço. Tenho que entrar na linha!

Ele deu uma breve risada e ela olhou para as mãos. - Está bem, eu vou tentar!

- Espero que sim. Basta não querer fazer jus a seu apelido.

- Certo! Não precisa se preocupar com isso. É verdade, não estou mentindo, eu nunca minto. Pode acreditar no que estou dizendo: eu não vou fazer nada. Aterrorizar as freiras é uma coisa, mas você já é outra.

Ele estendeu a mão subitamente e afastou os cabelos que escondiam o rosto dela.

- Agora, sim! Madre Dominic deve ter suspirado de alívio depois de ter abdicado da responsabilidade sobre você... posso imaginar.

- Ela gosta de mim! - afirmou, categórica, como se fosse importante provar que alguém gostava dela.

Ele sorriu, mostrando dentes alvos e perfeitos em contraste com a pele morena.

- Eu também gosto de você, Catherine. Todos nós vamos gostar muito, tenho certeza, você é cheia de vivacidade e muito simpática. Só peço que esqueça por algum tempo os motivos que tem para ser rebelde. Enquanto estiver em Mandala, deve fazer o que eu disser. Como você mesma já observou, isso aqui é bem diferente de Adelaide. Nunca saia sozinha para lugar nenhum. Não se deixe enganar pela idéia de que pode ser interessante fazer explorações pela região. Você estará sempre acompanhada. Há muitos perigos que você não conhece. Além do mais, estamos no auge do verão. A temperatura é muito elevada e a atmosfera excessivamente seca. Se você se perder ou sofrer um acidente, e estiver sozinha, pode criar uma situação perigosa. É certo que não há beleza igual à do deserto, mas também não há crueldade igual. Em quarenta e oito horas uma pessoa pode morrer de desidratação. Sei que você vai querer ver muitas coisas, mas nada de sair por aí, sozinha, com máquina fotográfica a tiracolo, atrás de paisagens interessantes... você pode estar vendo uma miragem e se afastar demais. Isso acontece às vezes. A pessoa jura que está vendo árvores e lagos, mas não há nada, apenas areia.

- E como é que vou saber quando é miragem e quando não é? - Não precisa saber. Basta não ir sozinha.

Ele olhou para ela sério e o sorriso de Catherine morreu nos lábios. Ele parecia um príncipe do deserto. Era tão difícil sustentar aquele olhar!

- Eu li um livro sobre o deserto daqui... - É? E o que dizia?

- Ah, uma coisa terrível, nem camelo agüenta passar por lá. Cheio de dunas altíssimas, como ondas gigantes. Os nativos têm pavor desse lugar. Durante o dia é um forno e à noite é frio como uma geladeira. Posso lhe emprestar o livro, se quiser.

- Obrigado, mas não é necessário. - Ele sorriu de novo, com certa ironia, achando muita graça nela.

Catherine começou a pensar: o que Coyne era mesmo de sua mãe? Primo em segundo grau? Agora que o conhecia, estranhou o fato da mãe nunca ter ligado para ele. Ela apenas escrevia de vez em quando para tia Ellenor. É verdade que Mandala estava bem longe do mundo social que ela freqüentava. Aquela gente toda com as conversas fúteis e as vidas sem sentido eram bem diferentes de Coyne. A vida dele tinha um sentido bem definido, um objetivo, tinha consistência. Ele cuidava de toda aquela terra. Imagine se ele seria capaz de tentar agarrar uma colegial. Era a cena mais absurda que podia imaginar! Coyne no terraço querendo agarrá-la, tal como o guru.

Catherine afastou os cabelos num gesto de desagrado. Normalmente o cabelo solto não a incomodava, ao contrário, servia de proteção, era como um escudo atrás do qual se escondia... engraçado, nunca pensara nisso sob esse aspecto. Talvez fosse influência de Coyne... Ficou sentada imóvel e demorou um pouco para perceber que ia presenciar um espetáculo inédito: o pôr-do-sol ali naquela região.

- Olhe só o sol se pondo! Que coisa incrível! - disse ela com exagerada euforia, como quem quer esconder outra emoção.

- Acalme-se, Catherine. Eu sei que você está nervosa, mas não precisa ficar assim... Você está numa idade difícil entre criança e mulher, mas não tenha pressa de mudar, deixe que venha naturalmente. Não posso dizer que sua beleza não me impressione, mas ainda não está completa. Lacey vai achar você linda e vai dizer logo... mas em Mandala você estará mais segura do que no seu colégio. Ellenor vai adorar você, nem precisa se preocupar com isso. Pode olhar o pôr-do-sol sossegada. Daqui a meia hora estaremos chegando.

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Catherine respirou fundo. As palavras dele surtiram um efeito extraordinário. Ela olhou furtivamente para o perfil de Coyne. Nariz reto, boca de lábios cheios, queixo firme. No mesmo instante sentiu que aquele homem iria fazê-la sofrer. Sem intenção, é claro, mas ele a faria sofrer e ela não teria como se defender.

- Ah, estou completamente maluca! - disse ela em voz alta. Ele riu.

- Assim que vi você eu percebi isso.

O céu estava incrível, as cores se sucediam... do rosa pálido passando ao laranja, vermelho, até o dourado. Era como se estivesse presenciando o próprio dia da Criação. No horizonte ao lado oeste o sol se escondia com todo esplendor, afundando em uma nuvem que de repente pareceu ter se incendiado. Era uma beleza comovente.

- Viva o sol! Viva Mandala! Viva tudo! - bradou com veemência, num tom apaixonado de quem ama a natureza.

- Amém! - respondeu ele, deixando-a à vontade.

CAPÍTULO IV

Catherine estava diante do espelho escovando os cabelos com gestos bruscos e furiosos. Por que era assim? Será que nunca mudaria? O que estava acontecendo com ela? Não conseguia entender... Aproximou-se do espelho e olhou o próprio reflexo, minuciosamente. Espantou-se com o brilho felino em seu olhar... parecia uma gata. Mas, afinal, o que era ela? Uma adolescente, boboca e egocêntrica, que exigia ser o centro das atenções? Parecia estar à beira de uma crise emocional. Sentia uma agonia imensa. Seus olhos pareciam ainda maiores. Ela não era mais criança, uma colegial... sabia disso! Mas também não podia dizer que era uma mulher. E, então, o que era, afinal? Largou a escova, desolada, concluindo que ela não era ninguém, era absolutamente inexpressiva e insignificante!

Há apenas algumas horas estava confiante e achava-se perfeita, só pelo que Coyne lhe dissera. Ela não era assim tão infantil e ingênua que não pudesse perceber que sua segurança dependia muito da atitude dele. Aquela personalidade forte e enérgica exercia enorme influência sobre ela. A aprovação dele tinha significado muito e perto dele sentia-se protegida, segura e confiante. Tinha sido assim como entrar num círculo mágico do qual até então não pudera fazer.

Naquele momento acreditou pela primeira vez que estaria realmente entre amigos. Se Coyne a aceitara, porque não o irmão dele? Era evidente que Lacey não gostava de garotinhas que vinham de colégio interno como ela! Senão, por que estaria fugindo? Está certo que ele não deveria estar esperando a chegada dela com ansiedade, afinal nem a conhecia, mas fora indelicado desaparecendo sem nem ao menos querer conhecê-la.

Como será que ele a estava imaginando? Uma magricela, sardenta, com aparelho nos dentes e um terço pendurado no pescoço? Puxa vida, se era isso, não era de se estranhar que tivesse sumido. Mas também, quem mandara vir com aquele uniforme desleixado? Por que não trocara de roupa como madre Dominic tinha sugerido? Podia ter colocado um traje um pouco melhor! Por alguns instantes se arrependeu de ter sido teimosa e não ter seguido o conselho da madre.

Coyne quisera apresentar o irmão a ela, mas o "ilustre senhor" Lacey não tinha se dignado a aparecer. Sem querer, Catherine tinha ouvido trechos da conversa entre ele, Coyne e tia Ellenor. Ouviu nitidamente a voz petulante de Lacey falando mal de Moya e citando coisas pouco lisonjeiras.

Ah, mas ele ia pagar por isso! Quem ele estava pensando que era? Bancando o tal, desprezando-a, só porque ela era filha de Moya? Então era isso! Mas ela não podia ser culpada pelo comportamento da mãe! Com certeza Lacey era um boboca que não tinha a menor profundidade para entender isso. Pronto, ele conseguira estragar tudo, com uma simples atitude!

Catherine caminhou até a porta de veneziana que dava para a sacada. Mandala lhe transmitia uma estranha emoção, tão forte que era quase insuportável, mas ela gostava. Apenas uma casa no meio de um deserto, e uma amplidão sem fim, mas era aconchegante. A brisa perfumada da noite roçou seu rosto trazendo o aroma das flores da trepadeira que subia pelas colunas do terraço até as sacadas. Ela ergueu o rosto para olhar a lua enorme e alaranjada. Depois olhou o horizonte. Dali de onde estava a planície de areia, com suas dunas, parecia um campo de neve ao luar.

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