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A Invencao Do Psicológico - quatro séculos de subjetivação 1500-1900

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Academic year: 2021

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Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, em A inveru;ão do psico!ó,::ico - Quatro stculos de sul~;etivação, problematiz.a o modo de suh_ictivaçf1o contempo-râneo, hem como as di versas concepçôcs contemporâneas da psicologia, como tendo se cons-tituído num momento em que o ciclo da rnodemidadc se e ncon-trd em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anuncia sua <.t is-solução. Para o autor, a expe -riência suhjctiva pr6pria da mo -dernidade deve sua emergência a uma intensificação da vivência da diversidade e da mptura, que acontece desde o final do século XV, acompanhada de diferentes tentativas de ordenação e de costura, que vão desembocar na formação daquilo que se co n-vencionou chamar de ·sujeito moderno'. I~ este sujeito que, no final do século XIX, vive seu apogeu e, ao mesmo tempo, o início de sua dissohu~ão: começa a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa o centro do mun-do e que, desde esse lugar, ele tudo vê c tudo pode, ilusão ali -cen;ada no expurgo do cao~. O

'psicológico', segundo o autor. teria sido inventado e.x:namente a partir do que foi expurgado deste sujeito supostament~ unitá-rio e soberano, e que se co nsti-tuiu no objeto das psicologias.

Para desenvolver estas idé-ias, o autor rcalil.a uma instigan -te investigação de fi!!uras que veiculam uma visão negativa do caos, rrodul.idas desde o século XVI ao XIX, na literatura, na filosofia, na pintura e na música.

Luís Cláudio \"lcndon<.;a Figueiredo, na.-.cido no R i

o

de Janeiro, em 1945, é psiçóloco mestre c doutor em

ps

i

col

o

~

i~

pela L:SP.

C

professor na

L

:

niv

~

r

­

sidadcdeSão Pauloena f'l!C-SI', aonde coordena os cursos de Mestrado c Doutorado em Psi -cologia Clínica: também diric-<>e na lJ]'.:Jr>, o Centro de Pesquisa em Psicologia e EducAção.

F.

autor de Psicologia, uma intro -duçiW - Uma visão histórica da psicologia como cié11cia ( bluc, 1991 ) c Matrizes do pensamento psicoló,::ico (Vozc~. JI.J<-JI 1, além de diversos trabalhos em rcvisl<ts cspcc i ai izadas.

.'\ lista <:Gmplcta Jas obra.-. pu-hlicadas pela Ld itor:1 Escuta e al~uns tírulos do <.:atálogo da E.duc enc<)ntr::un-sc no final deste I ivr0.

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Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, em A inveru;ão do psico!ó,::ico - Quatro stculos de sul~;etivação, problematiz.a o modo de suh_ictivaçf1o contempo-râneo, hem como as di versas concepçôcs contemporâneas da psicologia, como tendo se cons-tituído num momento em que o ciclo da rnodemidadc se e ncon-trd em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anuncia sua <.t is-solução. Para o autor, a expe -riência suhjctiva pr6pria da mo -dernidade deve sua emergência a uma intensificação da vivência da diversidade e da mptura, que acontece desde o final do século XV, acompanhada de diferentes tentativas de ordenação e de costura, que vão desembocar na formação daquilo que se co n-vencionou chamar de ·sujeito moderno'. I~ este sujeito que, no final do século XIX, vive seu apogeu e, ao mesmo tempo, o início de sua dissohu~ão: começa a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa o centro do mun-do e que, desde esse lugar, ele tudo vê c tudo pode, ilusão ali -cen;ada no expurgo do cao~. O

'psicológico', segundo o autor. teria sido inventado e.x:namente a partir do que foi expurgado deste sujeito supostament~ unitá-rio e soberano, e que se co nsti-tuiu no objeto das psicologias.

Para desenvolver estas idé-ias, o autor rcalil.a uma instigan -te investigação de fi!!uras que veiculam uma visão negativa do caos, rrodul.idas desde o século XVI ao XIX, na literatura, na

Luís Cláudio \"lcndon<.;a Figueiredo, na.-.cido no R i

o

de Janeiro, em 1945, é psiçóloco mestre c doutor em

ps

i

col

o

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pela L:SP.

C

professor na

L

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­

sidadcdeSão Pauloena f'l!C-SI', aonde coordena os cursos de Mestrado c Doutorado em Psi -cologia Clínica: também diric-<>e na lJ]'.:Jr>, o Centro de Pesquisa em Psicologia e EducAção.

F.

autor de Psicologia, uma intro -duçiW - Uma visão histórica da psicologia como cié11cia ( bluc, 1991 ) c Matrizes do pensamento psicoló,::ico (Vozc~. JI.J<-JI 1, além de diversos trabalhos em rcvisl<ts cspcc i ai izadas.

.'\ lista <:Gmplcta Jas obra.-. pu-hlicadas pela Ld itor:1 Escuta e al~uns tírulos do <.:atálogo da E.duc enc<)ntr::un-sc no final deste I ivr0.

(4)

~ by Luís Cláudio Mendon'? Figueiredo

© by Editora Escuta e EDUC. para a edição em língua portuguesa 7• edição: setembro/2007

EnrroRES Manoel Tosta Bcrlinck Maria Cristina Rios Magalhães

CAPA (ARTe HNAL)

Yvotr ~acambira. com grafismo de Roberto Loeb PRODUÇÃO EotTOIUAL

Araide Sanches

Catalogação na Fonle - Biblioteca Central/ PUC-SP Figueiredo, Luís Cláudio Mendonça

A invenção do psicológico : quatro séculos de subjetivação ( 1500-1900) I Luís Cláudio Mendonça Figueiredo. 7.ed. -São Paulo : Escuta, 2007.

184 p. ; 21 em - (Coleção Linhas de fuga) Bibliografia.

ISBN 85-7137-054-0 (Escuta) I. Psicologia- história. I. Título

CDD 19• 150.9

EDITORA ESCUTA L TDA. Rua Dr. Homem de Mello, 446 05007-001 São Paulo, SP

Telef11x: (OI I) 3865-8950/3675-1190 I 3672-8345 e-mail: escuta @uol.com.br

www .editoracscuta.com.br

Luí

s

Cláudio M

e

ndonça Fi

g

ueired

o

A invenção do psicológico

Quatro século

s

de subjetivação

1500- 1900

escuta

(5)

~ by Luís Cláudio Mendon'? Figueiredo

© by Editora Escuta e EDUC. para a edição em língua portuguesa 7• edição: setembro/2007

EnrroRES Manoel Tosta Bcrlinck Maria Cristina Rios Magalhães

CAPA (ARTe HNAL)

Yvotr ~acambira. com grafismo de Roberto Loeb PRODUÇÃO EotTOIUAL

Araide Sanches

Catalogação na Fonle - Biblioteca Central/ PUC-SP Figueiredo, Luís Cláudio Mendonça

A invenção do psicológico : quatro séculos de subjetivação ( 1500-1900) I Luís Cláudio Mendonça Figueiredo. 7.ed. -São Paulo : Escuta, 2007.

184 p. ; 21 em - (Coleção Linhas de fuga) Bibliografia.

ISBN 85-7137-054-0 (Escuta) I. Psicologia- história. I. Título

CDD 19• 150.9

EDITORA ESCUTA L TDA. Rua Dr. Homem de Mello, 446 05007-001 São Paulo, SP

Telef11x: (OI I) 3865-8950/3675-1190 I 3672-8345 e-mail: escuta @uol.com.br

www .editoracscuta.com.br

Luí

s

Cláudio M

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ndonça Fi

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A invenção do psicológico

Quatro século

s

de subjetivação

1500- 1900

escuta

(6)

A invenção do psicológico

Quatro

séculos de subjetivação

(7)

A invenção do psicológico

Quatro

séculos de subjetivação

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AGRADECIMENTOS

A elaboração destes cns;lios, numa dosagem incomum, envolveu a participação de uma quantidade significativa de colaboradores. Alguns, cientes c voluntários; outros. talve7., não pudessem avaliar o ai<.:ance de suas contribuições. A todos agradeço, mas entre eles desejo nomear os mais próximos, queridos e assíduos: Elisa Ulhoa Cintra, Marisa Trcncl'l Fonterrada, Marta Gambini, Fáhio Caramuru, Yara Ca:z.nók c Sidney Cazzeto. Com o texto já redigido, os agradecimentos vão para

Maria

Inês Neves de Oliveira.

que

datilografou os originais. permitindo as primeiras leituras pública~. Nesta fase, é preciso agradecer a Anaelena Pereira Lima o acolhimento do livro para publicação na Educ c a Suely Rolnik. que o incluiu em sua coleção 'Linhas de Fuga' na Editora Escuta. É a Elisa, a Suely e à turma de alunos que acompanhou com entusiasmo e bom humor o meu curso 'A gestação do espaço psicológico', do Núcleo de Pesquisas da Subjetividade no Prob,1fama de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, que c~:~ dedico o trabalho.

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AGRADECIMENTOS

A elaboração destes cns;lios, numa dosagem incomum, envolveu a participação de uma quantidade significativa de colaboradores. Alguns, cientes c voluntários; outros. talve7., não pudessem avaliar o ai<.:ance de suas contribuições. A todos agradeço, mas entre eles desejo nomear os mais próximos, queridos e assíduos: Elisa Ulhoa Cintra, Marisa Trcncl'l Fonterrada, Marta Gambini, Fáhio Caramuru, Yara Ca:z.nók c Sidney Cazzeto. Com o texto já redigido, os agradecimentos vão para

Maria

Inês Neves de Oliveira.

que

datilografou os originais. permitindo as primeiras leituras pública~. Nesta fase, é preciso agradecer a Anaelena Pereira Lima o acolhimento do livro para publicação na Educ c a Suely Rolnik. que o incluiu em sua coleção 'Linhas de Fuga' na Editora Escuta.

É a Elisa, a Suely e à turma de alunos que acompanhou com entusiasmo e bom humor o meu curso 'A gestação do espaço psicológico', do Núcleo de Pesquisas da Subjetividade no Prob,1fama de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, que c~:~ dedico o trabalho.

(10)

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ... 13

AD~lÊNCIA ... 19

A DESNATIJRE2A HUMANA

OU O NÃO NO CEN1RO 00 MUNOO ... 21

UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA ...... 'ZI A multiplicação das vozes ... 'ZI

A

variedade das coisas ...

32

Identidade e conversão ... 40

A nostalgia dos anos dourados ... .f'! Refonnas ... 51

Refonnadores católicos ... 58

Uma santa católica na idade da polifonia ... õl Notas ... 79

IDEN'IIDADE E ESQUECIMENTO: ASPECf()S DA VIDA CIVU..lZADA ... 81

A atualidade de Cervantes ... 81

Imagens da civilização ...

..

...

...

...

....

...

....

.. 88

Subterrâneos da civilização ... 96

A dupla filiação da psicologia ... 100

Notas ... 102

A REPRESENTAÇÃO E SEUS AVESSOS ... 105 O público e o privado: raízes de uma cisão ... l<Xi A consolidação da privacidade ... l<E

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ... 13

AD~lÊNCIA ... 19

A DESNATIJRE2A HUMANA

OU O NÃO NO CEN1RO 00 MUNOO ... 21

UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA ...... 'ZI A multiplicação das vozes ... 'ZI

A

variedade das coisas ...

32

Identidade e conversão ... 40

A nostalgia dos anos dourados ... .f'! Refonnas ... 51

Refonnadores católicos ... 58

Uma santa católica na idade da polifonia ... õl Notas ... 79

IDEN'IIDADE E ESQUECIMENTO: ASPECf()S DA VIDA CIVU..lZADA ... 81

A atualidade de Cervantes ... 81

Imagens da civilização ...

..

...

...

...

....

...

....

.. 88

Subterrâneos da civilização ... 96

A dupla filiação da psicologia ... 100

Notas ... 102

A REPRESENTAÇÃO E SEUS AVESSOS ... 105 O público e o privado: raízes de uma cisão ... l<Xi A consolidação da privacidade ... l<E

(12)

A privacidade militante ... 113 Do iluminismo ao romantismo:

a floração da privacidade na Alemanha ... 118

A síntese mesmeriana ... 123

Os usos da privacidade ... 126

Notas ... 128

A GESTAÇÃO 00 ESPAÇO PSICOLÓGKX> NO SÉCULO XIX: LIBERALISMO. ROMANTISMO E REGIME DISCIPLINAR ... 129

As vi

c

i

ss

itude

s

do liberalismo e do

jnd

ividualismo ...

....

129

O romantismo: promessas e realizações ... 139

O território da ignorância ... 146

Notas ... 150

PARA ALÉM DO ESTILO. UM LUGAR PARA A PSIOOLOOIA ... 151 O Duque Jean des Esseintes, vida e obra ... 152

Estilismo e excentricidade ... 157

Para a

16m

do estilo

... 161

Notas ... 165

REFERÊNCIAS BffiUOORÁFlCAS ... 167

APRESENTAÇÃO

A coleção 'Linhas de Fuga'

O homem contemporâneo vive uma intensificação da experiência de ruptura, ao mesmo tempo em que se encontra em plena transformação o modo como esta experiência

o

afeta. Em outras palavras, é a relação do homem com o caos o que está em jogo nesta transição. De negativo da ordem, o caos passa a ser considerado em sua positividade: ele é a processualidade intrínseca a todos os corpos, efeito de seu inelutável encontro com outros corpos- ou seja. o caos é efeito da inelutável a!teridade. De tendência do mundo para a morte (mundo aqui incluindo, evidentemente, as formas de existência humana, individuais e coletivas). o caos passa a ser considerado como tendência a uma evolução contínua c irreversível, na qual vão se produzindo uma diferenciação e uma complexificação cada vez maiores.

Esta delicada transição que o homem vem efetuando na conte rnpo-raneidade não se dá apenas no plano da consciência, e sim no plano do próprio modo de subjetivação. O caos, ao deixar de ser vivido como negativo da ordem e, portanto. como fatal, torna-se menos aterrador. Com isso. vai deixando de fazer sentido uma subjetividade constituída na base da dissociação da experiência do caos e da indissociável idea-lização de uma suposta completude. E o que vai nascendo é um modo de suhjetivação constituído na base da abertura para o outro e, po r-tanto, para o caos. Uma subjetividade intrinsecamente processual.

Realizar esta travessia. no entanto, não é tão simples assim: I ibertar a subjetividade da tutela do terror em relação ao outro e ao 13

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A privacidade militante ... 113 Do iluminismo ao romantismo:

a floração da privacidade na Alemanha ... 118

A síntese mesmeriana ... 123

Os usos da privacidade ... 126

Notas ... 128

A GESTAÇÃO 00 ESPAÇO PSICOLÓGKX> NO SÉCULO XIX: LIBERALISMO. ROMANTISMO E REGIME DISCIPLINAR ... 129

As vi

c

i

ss

itude

s

do liberalismo e do

jnd

ividualismo ...

....

129

O romantismo: promessas e realizações ... 139

O território da ignorância ... 146

Notas ... 150

PARA ALÉM DO ESTILO. UM LUGAR PARA A PSIOOLOOIA ... 151 O Duque Jean des Esseintes, vida e obra ... 152

Estilismo e excentricidade ... 157

Para a

16m

do estilo

... 161

Notas ... 165

REFERÊNCIAS BffiUOORÁFlCAS ... 167

APRESENTAÇÃO

A coleção 'Linhas de Fuga'

O homem contemporâneo vive uma intensificação da experiência de ruptura, ao mesmo tempo em que se encontra em plena transformação o modo como esta experiência

o

afeta. Em outras palavras, é a relação do homem com o caos o que está em jogo nesta transição. De negativo da ordem, o caos passa a ser considerado em sua positividade: ele é a processualidade intrínseca a todos os corpos, efeito de seu inelutável encontro com outros corpos- ou seja. o caos é efeito da inelutável a!teridade. De tendência do mundo para a morte (mundo aqui incluindo, evidentemente, as formas de existência humana, individuais e coletivas). o caos passa a ser considerado como tendência a uma evolução contínua c irreversível, na qual vão se produzindo uma diferenciação e uma complexificação cada vez maiores.

Esta delicada transição que o homem vem efetuando na conte rnpo-raneidade não se dá apenas no plano da consciência, e sim no plano do próprio modo de subjetivação. O caos, ao deixar de ser vivido como negativo da ordem e, portanto. como fatal, torna-se menos aterrador. Com isso. vai deixando de fazer sentido uma subjetividade constituída na base da dissociação da experiência do caos e da indissociável idea-lização de uma suposta completude. E o que vai nascendo é um modo de suhjetivação constituído na base da abertura para o outro e, po r-tanto, para o caos. Uma subjetividade intrinsecamente processual.

Realizar esta travessia. no entanto, não é tão simples assim: I ibertar a subjetividade da tutela do terror em relação ao outro e ao

(14)

caos passa. necessariamente, pela conquista da possibilidade de experimentá-los. Ora, muito em nós e ao nosso redor funciona ainda como força que se opõe a isso. Mas também, sem dúvida alguma. aJgo

em nós e ao nosso redor funciona como força a favor.

A iniciativa da coleção 'Linhas de Fuga' visa justamente propiciar a circulação de textos que veiculem afetivamente esta transição, podendo por isso funcionar talvez como torça a seu favor. Textos dessa natureza são produúdos nas mais diversas áreas do conhecimento, em torno de diferentes temas, com os mais variados estilos e recorrendo às mais variadas referências. Eles têm em comum não só o fato de nos trazerem, direta ou indiretamente. recursos de articulação e elaboração

desta travessia. mas, também, e mais fundamentalmente, o fato de que cada um deles. à sua maneira, em:arna tal lravessia, e assim sendo, mesmo que ela não seja explicitamente reconhecida e valorizada, ela é com certeza reconhecida e valorizada em tennos afetivos, o que faz destes textos possíveis cúmplices de nossa própria travessia.

A invenção do psicológico

A invenção do psicológico - Quatro séculos de subjetivação,

de Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, é uma obr.1 que compartilha estas indagações. O autor visa problematizar o modo de subjetivação contemporâneo, bem como as diversas concepções contemporâneas da psicologia, como tendo se constituído num momento em que o ciclo da IPOdernidade, pr~esso engendrado a partir do final do século XV, encontra-se em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anuncia sua

dissolução. Para o autor, a experiência subjetiva no sentido moderno, instaurada neste processo, deve sua emergência a uma intensificação da vivência da diversidade e da ruptura, que aconteçe desde o final do século XV, acompanhada de diferentes tentativas de ordenação e de costura, que vão desembocar na formação daquilo que ·se convencionou chamar de 'sujeito moderno'. E é este sujeito que, no final do século XIX. vive seu apogeu e, ao mesmo tempo, o início de sua dissolução: começa a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa

o centro do mundo e que, desde esse lugar, ele tudo vê e tudo pode,

ílusiio alicerçada no expurgo do caos. O 'psicológico', segundo o autor, teria sido inventado exatamenle a partir do que foi expurgado deste

14

sujeito supostamente unitário e soberano, e que se constituiu no objeto das psicologias.

Assim, para o autor, é das ruínas do humanismo que nascem as psicologias. e é na relação que cada uma dela'i estabelece com este fato que se distinguiriam as diferentes 'escolas': de um lado, aquelas que visam restaurar o humanismo, salvar a suposta unidade do sujeito (ou seja. salvar o sujeito moderno)

e

. de

outro, aquelas que buscam sustentar a emergência de uma subjetividade indissociável do caos e,

portanto, da processual idade. Este último seria basicamente o caso da

psicanálise, embora o autor considere que nem tudo que se pratica em

nome da psicanálise busque efetivamente sustentar a passagem para este outro modo de subjetivação e, por outro lado, quando é isto o que realmente se faz, tal prática encontra "dificuldades extremas para

a sua própria articulação e consistência" teórica; além disso, para o autor. a psicanálise, num certo aspecto, é como as demais psicologias: também ela não compreende a proveniência de seu objeto e, com isso, tende a naturalizá-lo.

Para desenvolver estas idéias, Luís Cláudio M. Figueiredo realiza uma rigorosa investigação de figuras que veiculam uma visão negativa

do caos, produzidas entre os séculos XVI e XIX. Com uma sensibilidade aguçada e criativa, ele vai fazendo escolhas de vias de acesso a tais figuras: não só textos, numerosos e variados (de santos a tilósofos· e poetas, passando por um tesoureiro de armazém geral português), mas também aspectos da pintura e da música (aliás, vale a pena lembrar que, no curso ministrado pelo autor, em 1991, no Núcleo

de Estudos da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, no qual apresentou pela primeira vez estas idéias, ele as acompanhava com audições musicais e projeção

de l·fídex a cada aula). ./

Com igual sensibilidade, o autor vai captando no material

esco-lhido sinais de uma concepção negativa do caos em certas figuras: o hon·or às margens. tanto geográticas como humanas, nutrido pelo h o-mem do século XVI, por não suportar o fato de que nas margens anu -lam-se as formas estáveis, dissolvem-se as identidades, já que aí se está exposto à variedade e às misturas. Medo, por exemplo, das mar-gens marinhas e dos oceanos. tanto por sua imensidão descontrolada, quanto por serem vias de esvaziamento da Europa e de contato com a 15

(15)

caos passa. necessariamente, pela conquista da possibilidade de experimentá-los. Ora, muito em nós e ao nosso redor funciona ainda como força que se opõe a isso. Mas também, sem dúvida alguma. aJgo

em nós e ao nosso redor funciona como força a favor.

A iniciativa da coleção 'Linhas de Fuga' visa justamente propiciar a circulação de textos que veiculem afetivamente esta transição, podendo por isso funcionar talvez como torça a seu favor. Textos dessa natureza são produúdos nas mais diversas áreas do conhecimento, em torno de diferentes temas, com os mais variados estilos e recorrendo às mais variadas referências. Eles têm em comum não só o fato de nos trazerem, direta ou indiretamente. recursos de articulação e elaboração

desta travessia. mas, também, e mais fundamentalmente, o fato de que cada um deles. à sua maneira, em:arna tal lravessia, e assim sendo, mesmo que ela não seja explicitamente reconhecida e valorizada, ela é com certeza reconhecida e valorizada em tennos afetivos, o que faz destes textos possíveis cúmplices de nossa própria travessia.

A invenção do psicológico

A invenção do psicológico - Quatro séculos de subjetivação,

de Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, é uma obr.1 que compartilha estas indagações. O autor visa problematizar o modo de subjetivação contemporâneo, bem como as diversas concepções contemporâneas da psicologia, como tendo se constituído num momento em que o ciclo da IPOdernidade, pr~esso engendrado a partir do final do século XV, encontra-se em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anuncia sua

dissolução. Para o autor, a experiência subjetiva no sentido moderno, instaurada neste processo, deve sua emergência a uma intensificação da vivência da diversidade e da ruptura, que aconteçe desde o final do século XV, acompanhada de diferentes tentativas de ordenação e de costura, que vão desembocar na formação daquilo que ·se convencionou chamar de 'sujeito moderno'. E é este sujeito que, no final do século XIX. vive seu apogeu e, ao mesmo tempo, o início de sua dissolução: começa a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa

o centro do mundo e que, desde esse lugar, ele tudo vê e tudo pode,

ílusiio alicerçada no expurgo do caos. O 'psicológico', segundo o autor, teria sido inventado exatamenle a partir do que foi expurgado deste

sujeito supostamente unitário e soberano, e que se constituiu no objeto das psicologias.

Assim, para o autor, é das ruínas do humanismo que nascem as psicologias. e é na relação que cada uma dela'i estabelece com este fato que se distinguiriam as diferentes 'escolas': de um lado, aquelas que visam restaurar o humanismo, salvar a suposta unidade do sujeito (ou seja. salvar o sujeito moderno)

e

. de

outro, aquelas que buscam sustentar a emergência de uma subjetividade indissociável do caos e,

portanto, da processual idade. Este último seria basicamente o caso da

psicanálise, embora o autor considere que nem tudo que se pratica em

nome da psicanálise busque efetivamente sustentar a passagem para este outro modo de subjetivação e, por outro lado, quando é isto o que realmente se faz, tal prática encontra "dificuldades extremas para

a sua própria articulação e consistência" teórica; além disso, para o autor. a psicanálise, num certo aspecto, é como as demais psicologias: também ela não compreende a proveniência de seu objeto e, com isso, tende a naturalizá-lo.

Para desenvolver estas idéias, Luís Cláudio M. Figueiredo realiza uma rigorosa investigação de figuras que veiculam uma visão negativa

do caos, produzidas entre os séculos XVI e XIX. Com uma sensibilidade aguçada e criativa, ele vai fazendo escolhas de vias de acesso a tais figuras: não só textos, numerosos e variados (de santos a tilósofos· e poetas, passando por um tesoureiro de armazém geral português), mas também aspectos da pintura e da música (aliás, vale a pena lembrar que, no curso ministrado pelo autor, em 1991, no Núcleo

de Estudos da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, no qual apresentou pela primeira vez estas idéias, ele as acompanhava com audições musicais e projeção

de l·fídex a cada aula). ./

Com igual sensibilidade, o autor vai captando no material

esco-lhido sinais de uma concepção negativa do caos em certas figuras: o hon·or às margens. tanto geográticas como humanas, nutrido pelo h o-mem do século XVI, por não suportar o fato de que nas margens anu -lam-se as formas estáveis, dissolvem-se as identidades, já que aí se está exposto à variedade e às misturas. Medo, por exemplo, das mar-gens marinhas e dos oceanos. tanto por sua imensidão descontrolada, quanto por serem vias de esvaziamento da Europa e de contato com a

(16)

diferença; medo, também, dos hereges e conversos (judeus e mouros conve1tidos ao cristianismo, no século XVI), vividos como empesteados portadores de conrágio e de poluição da comunidade, por não possuí

-rem identidade demarcada. Outro aspecto da experiência subjetiva do século XVI ligado a uma qualificação negativa do caos é a utilização

da

memória, nas

a

u

tobio

g

rafia

s

quinhentistas. como instrumenlo mais existencial do que cognitivo: cabe a ela congelar a experiência, através da atribuição a seus objetos de uma espécie de estabilidade c pcnna-nência de sentido; a memória, aqui, portanto. é uma espécie de 'ins tru-mento antimisrura'. Indício, já num outro momento, desta mesma con-cepção negativa é o medo da invasão pelas misérias e agressões do mundo, como causadoras de desintegração, manifestando-se, por exem

-plo, na hipocondria do Duque Jean des Esseíntes, personagem de um romance de J.-K. Huysmans, bem como em sua construção de um " es-tilo de indisponibilidade", indisponibilidade para tudo que é do mun-do, ou seja, para qualquer espécie de outro. A inexistência do sem· sentido no romance de cavalaria é um último exemplo que evocamos

aqui. dentre as inúmeras figuras veiculadoras de uma visão negativa do caos, produzidas ao longo dos quatro séculos pesquisados por Fi· gueiredo, que seu livro vai generosamente nos dando a conhecer.

O leitor talvez perceberá uma certa instabilidade no modo como o próprio autor aborda o caos· em seus comentários: ele parece, às veze~. oscilar entre qualificações negativas e positivas. Entretanto, a escolha do objeto de sua investigação constitui. por si só, um sinal evidente de que prevalece no autor a inclinação a reconhecer o caos

em

sua positividade: em primeiro lugar, fazer um levantamento exaustivo precisamente das figuras portadoras de qualificação negativa do caos; em segundo lugar, apoiado nas figuras pesquisadas, circunscrever a géncsc de um modo de subjetivação que funciona, como assinala o próprio autor. citando Auerbach, através de "um isolamento atmosférico do acontecimento". ou seja, através do isolamento daquilo mesmo onde se produz o caos; em terceiro lugar, tendo cartografado o modo de subjctivação próprio da modernidade e suas ftssuras. o autor se propõe cartografar o 'campo psi', elegendo como crilério para avaliar as várias 'linhas' que o atravessam exatamente a presença ou não de uma ''disposição de acolher e lidar com um complexo sistema de forças em conflito".

16

Há inúmeras outras indicações da concepção positiva do autor em relação ao caos, elas despontam a todo momento c ao longo de todo o livro. por isso não caberia evocá-las no contexto de uma apr~sentação. assim como, tampouco, caberia evocar e discutir alguns momentos - muito mais raros, é verdade - em que o autor parece veicular, ele próprio, uma teoria negativa do caos. O que sim cabe colocar é que tais oscilações fazem pensar que é como se, através da presente investigação, Luís Cláudio M. Figueiredo estivesse se cksvcnci!hando das figura~ portadoras de uma qualificação negativa do caos c encarnando a presença de uma concepção do caos em sua positividade. Como este é um processo que não se dá apenas no plano intelectual, as oscilações do texto não di1.em respeito a uma falta qualquer de rigor conceitual, provavelmente elas constituem marcas elas oscil<~ções deste processo na experiência do autor. Marcas de que, no silêncio, onde o texto se engendra, uma travessia está efetivamente se operando, travessia que nos é dado o privilégio de acompanhar, lá onde em nós inscrevem-se os efeitos intensivos da leitura.

Sucly Rolnik

(17)

diferença; medo, também, dos hereges e conversos (judeus e mouros conve1tidos ao cristianismo, no século XVI), vividos como empesteados portadores de conrágio e de poluição da comunidade, por não possuí

-rem identidade demarcada. Outro aspecto da experiência subjetiva do século XVI ligado a uma qualificação negativa do caos é a utilização

da

memória, nas

a

u

tobio

g

rafia

s

quinhentistas. como instrumenlo mais existencial do que cognitivo: cabe a ela congelar a experiência, através da atribuição a seus objetos de uma espécie de estabilidade c pcnna-nência de sentido; a memória, aqui, portanto. é uma espécie de 'ins tru-mento antimisrura'. Indício, já num outro momento, desta mesma con-cepção negativa é o medo da invasão pelas misérias e agressões do mundo, como causadoras de desintegração, manifestando-se, por exem

-plo, na hipocondria do Duque Jean des Esseíntes, personagem de um romance de J.-K. Huysmans, bem como em sua construção de um " es-tilo de indisponibilidade", indisponibilidade para tudo que é do mun-do, ou seja, para qualquer espécie de outro. A inexistência do sem· sentido no romance de cavalaria é um último exemplo que evocamos

aqui. dentre as inúmeras figuras veiculadoras de uma visão negativa do caos, produzidas ao longo dos quatro séculos pesquisados por Fi· gueiredo, que seu livro vai generosamente nos dando a conhecer.

O leitor talvez perceberá uma certa instabilidade no modo como o próprio autor aborda o caos· em seus comentários: ele parece, às veze~. oscilar entre qualificações negativas e positivas. Entretanto, a escolha do objeto de sua investigação constitui. por si só, um sinal evidente de que prevalece no autor a inclinação a reconhecer o caos

em

sua positividade: em primeiro lugar, fazer um levantamento exaustivo precisamente das figuras portadoras de qualificação negativa do caos; em segundo lugar, apoiado nas figuras pesquisadas, circunscrever a géncsc de um modo de subjetivação que funciona, como assinala o próprio autor. citando Auerbach, através de "um isolamento atmosférico do acontecimento". ou seja, através do isolamento daquilo mesmo onde se produz o caos; em terceiro lugar, tendo cartografado o modo de subjctivação próprio da modernidade e suas ftssuras. o autor se propõe cartografar o 'campo psi', elegendo como crilério para avaliar as várias 'linhas' que o atravessam exatamente a presença ou não de uma ''disposição de acolher e lidar com um complexo sistema de forças em conflito".

Há inúmeras outras indicações da concepção positiva do autor em relação ao caos, elas despontam a todo momento c ao longo de todo o livro. por isso não caberia evocá-las no contexto de uma apr~sentação. assim como, tampouco, caberia evocar e discutir alguns momentos - muito mais raros, é verdade - em que o autor parece veicular, ele próprio, uma teoria negativa do caos. O que sim cabe colocar é que tais oscilações fazem pensar que é como se, através da presente investigação, Luís Cláudio M. Figueiredo estivesse se cksvcnci!hando das figura~ portadoras de uma qualificação negativa do caos c encarnando a presença de uma concepção do caos em sua positividade. Como este é um processo que não se dá apenas no plano intelectual, as oscilações do texto não di1.em respeito a uma falta qualquer de rigor conceitual, provavelmente elas constituem marcas elas oscil<~ções deste processo na experiência do autor. Marcas de que, no silêncio, onde o texto se engendra, uma travessia está efetivamente se operando, travessia que nos é dado o privilégio de acompanhar, lá onde em nós inscrevem-se os efeitos intensivos da leitura.

(18)

ADVERTÊNCIA

Os textos que se seguem fontm redigidos de agosto de 1990 a

junho de 1991 na ordcnl em que estão sendo apresentados. De acordo

com o plano original. contudo, eles deveriam figurar como ensaios

independenteS e não como capítulos encadeados. Ao término da redação, porém, descobri que apenas 'Uma santa católica na idade da polifonia' permanecia naquela condição; os demais acabaram se engrenando numa certa seqüência e, paniculannente, os dois últimos formam mesmo uma unidade. De qualquer maneira, convém esclarecer que não houve a pretensão de rcali1.ar um trabalho exaustivo e sem lacunas (viva a lacuna!). Estes ensaios podem se desdobrar em irlUmcrávcis outros. o que, alias. é meu projeto e meu convite.

Os textos tiveram na sua origem uma destinação acadêmica, já tendo sido usados, inclusive, como leitura básica em disciplinas dos

cursos de mestrado e doutorado em psicologia clínica e em psicologia S(lcial na PUC-SP. Há quem não aprecie a leitura de trabalhos acadêmicos. O que posso garantir é que este foi escrito com grande

pr.1.1.er e que parte do meu esforço foi para transmitir um pouco deste prazer ao meu eventual leitor. Boa viagem!

(19)

ADVERTÊNCIA

Os textos que se seguem fontm redigidos de agosto de 1990 a

junho de 1991 na ordcnl em que estão sendo apresentados. De acordo

com o plano original. contudo, eles deveriam figurar como ensaios

independenteS e não como capítulos encadeados. Ao término da redação, porém, descobri que apenas 'Uma santa católica na idade da polifonia' permanecia naquela condição; os demais acabaram se engrenando numa certa seqüência e, paniculannente, os dois últimos formam mesmo uma unidade. De qualquer maneira, convém esclarecer que não houve a pretensão de rcali1.ar um trabalho exaustivo e sem lacunas (viva a lacuna!). Estes ensaios podem se desdobrar em irlUmcrávcis outros. o que, alias. é meu projeto e meu convite.

Os textos tiveram na sua origem uma destinação acadêmica, já tendo sido usados, inclusive, como leitura básica em disciplinas dos

cursos de mestrado e doutorado em psicologia clínica e em psicologia S(lcial na PUC-SP. Há quem não aprecie a leitura de trabalhos acadêmicos. O que posso garantir é que este foi escrito com grande

pr.1.1.er e que parte do meu esforço foi para transmitir um pouco deste prazer ao meu eventual leitor. Boa viagem!

(20)

A DESNATUREZA HUMANA

OU

O

NÃO NO CENTRO

DO

MUNDO

Setenta e cinco anos pa.~sados, a página com que Lukács abre ~ua Tc•oria do romance conserva toda a força evocativa:

Felizes os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa das vias que lhe siio abertas e que eles devem percorrer. Felizes os tempos cuja~ vias estão iluminadas pela !uz das estrelas. Para eles tudo é novo e, no entanto, familiar; tudo significa aventura e entretanto tudo lhes pertence. O mundo é vasto e nele. conwdo, encontram-se à vontade, pois o fogo que arde nas almas é da mesma natureza do das estrelas. O mundo e o

eu, a luz e o fogo distinguem-se nitidamente e, apesar disso, nunca se tornam definitivamente estranhos um ao outro. pois o fogo é a alma de loda luz e todo o fogo se reveste de luz. Assim, não há nenhum ato que

não adquira plena signilicação e que não se complete nesta dualidade:

perfeito em seu ~entido e perfeito pnra os sentidos. ([ 1914-1915/1920)

1963;p.l9)

Não importa que estas palavras não sejam uma tradução fiel da experiência grega na época das grandes epopéias. Não importa que a experiência do mundo nas 'civilizações fechada.~· apareça a{ idealizada. Importa sim ouvir, por detrás desta evocação maravilhada e nostálgica,

a perplexidade do jovem intelectual húngaro num tempo de muitas promessas e muitas ameaças. tempo finalmente imerso num processo aparentemente irreversível de esfacelamento e desmoralização. Escrito

durante a Primeira Grande Guerra. o texto de Lukács está impregnado pela atmosfera de "desespero pennanente diante da situação mundial" c pela questão de saber "quem salvará a civilização ocidental''. conforme as paJavras do autor numa introdução redigida em 1962.

(21)

A DESNATUREZA HUMANA

OU

O

NÃO NO CENTRO

DO

MUNDO

Setenta e cinco anos pa.~sados, a página com que Lukács abre ~ua Tc•oria do romance conserva toda a força evocativa:

Felizes os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa das vias que lhe siio abertas e que eles devem percorrer. Felizes os tempos cuja~ vias estão iluminadas pela !uz das estrelas. Para eles tudo é novo e, no entanto, familiar; tudo significa aventura e entretanto tudo lhes pertence. O mundo é vasto e nele. conwdo, encontram-se à vontade, pois o fogo que arde nas almas é da mesma natureza do das estrelas. O mundo e o

eu, a luz e o fogo distinguem-se nitidamente e, apesar disso, nunca se tornam definitivamente estranhos um ao outro. pois o fogo é a alma de loda luz e todo o fogo se reveste de luz. Assim, não há nenhum ato que

não adquira plena signilicação e que não se complete nesta dualidade:

perfeito em seu ~entido e perfeito pnra os sentidos. ([ 1914-1915/1920)

1963;p.l9)

Não importa que estas palavras não sejam uma tradução fiel da experiência grega na época das grandes epopéias. Não importa que a experiência do mundo nas 'civilizações fechada.~· apareça a{ idealizada. Importa sim ouvir, por detrás desta evocação maravilhada e nostálgica,

a perplexidade do jovem intelectual húngaro num tempo de muitas promessas e muitas ameaças. tempo finalmente imerso num processo aparentemente irreversível de esfacelamento e desmoralização. Escrito

durante a Primeira Grande Guerra. o texto de Lukács está impregnado pela atmosfera de "desespero pennanente diante da situação mundial" c pela questão de saber "quem salvará a civilização ocidental''. conforme as paJavras do autor numa introdução redigida em 1962.

(22)

Expulso do paraíso das civilizações fechadas, o homem da modernidade colhe no tempo de Lukács o fruto mais amargo da abertura do mundo. da expansão cósmica dao; suas possibilidades, da muhiplicação infinita dos seus enigma.~;: a desorientação, o caos, a guerra total.

Houve um tempo, porém. em que a abertura do mundo, embora já revelando perspectivas traumáticas c assustadoras. podia ser acolhida c comentada com orgulho e altivez.

Em 1486, na Oratio de lwnrinis dignitatt, Giovanni Pico Della Mirandola ( 1463-1494), talvez o mais fecundo representante da escola pitag6rico-platônica de Florença. concordava com os que reconheciam o homem como o mais digno c maravilhoso de todos os seres.

Discordava, conludo, das ra1..õcs que costumeiramente eram dada.c; para esta avaliaçãu.

Ora. cnqunnco meditava acerca do significado desta~ afirmações. não me satisfaziam de todo as múltipla~ nrzi'íe\ que são aduzidas habitualmente por muitos a propósito da grandcr.a da natureza humana: ser o homem vínculo das criatura~. familinr com as superiores, soberano das inferiores; pela agudeza dos ~enlidos, pelo poder indagador da razão e pela luz do intelecto. ~er intérprt:te da natureza; intermédio entre o tempo e a ~:temidaUe e. como dizem os Persas. cópul:~ portanto. himeneu do mundo e. segundo atestou David, em pouco inferior aos anjos. Grandes coisas c:~tas. sem dúvida. ma~ não as mni~ importantes, isto é, não tais que consintam na reivindicação do privil6gio de uma admiração ilimitada. PÔr que. de f~to, não deveremos nós admirar mais os anjos e os bcatissilllQ,; eoro.s celestes'! <Mirandola [1486]1989; p. 49)

Não. Não é por ter

um

a na

turc1..a,

posto que natureza complexa, que o homem é o mais digno de nossa admiração.

Quando Deus pensou em um ser capaz de amar toda a beleza e magnitude do mundo por ele criado. não e~"Ontrou, segundo Pico De lia Minmdola, umn única criatura a partir da qual o homem pudesse ser modelado, um único lugar que o homem pudes:;e ocupar definitivamente para daí contemplar o esplendor do Universo. Todos os sítios c possibilidades da natureza já estavum ocupados e preenchidos. Por fim. o grande Criador inventou este ser "a quem nada pertence naturalmente''. Ele recebeu (l homem como uma criatura de "natureza indeterminada" para colocá-lo no centro do Universo dizendo:

22

Ó Aó~o. não te demos nem um lu~ar determinado, nem um aspecto que te scj;J próprio, nem tarefa nlguma específica. a fim de que obtenhas c po~~uas aquele lugar. aquele aspcl·to. <UJnela tarefa que lu seguramente dc~cjarcs. tudo segundo o teu parecer c a tua decisão. A natureza bem llefinida dns outros seres é rcfrcada pur lei~ por nós prescritas. Tu. pelo comr.írio. não cnnslrangido por nenhuma limitação. dctermína-J a-;)s par.t ti. segundo o teu arhítriu. a cujo poder te entreguei. Coloquei-te nn meio do muoon para que daí rx'ssa.o; olhar melhor tudo que há no mumJn. Nàulc fizemos celeste nem Lerrcn<l. nem monal nem inwrtal. a lim de que tu. ;írhilm c sohcrano. artífice de li me~mo. te plasmas.~es e lc inf"nrmasses. n;l form<l que tiv~scs seguramente escolhido. Poderás degenerar .ué ns seres que são as bestas, poderá~ regenerar-te até as realidades superiores que são divinns. por dcds3n de teu ânimo. Clbid.; 1> • .í2)

Convém desde logo assinalar a curiosa t.:onccpção de 'centro do mundo' expressa neste texto. Embora numa rrimcirctleitura pudéssemos reconhecer nus palavras de Giovanni Pico o antigo geo c tmtrnpoccntrismo aristotélico-cristão. o autor, na verdade, destituiu o centro de sua dimensão ontológif.:a: o centro é ngora o lugar daquele que tudo pode mas nada é, o lugar privilegiado do não-ser. O centro está, assim. ocupado pelo tu'io. e esta ncgatividadc estrategicamente localizada acabará dcscstahilizando tudo o Universo c superando a possihilidadc de cnnccOê-lo na forma fechada c perfeita do círculo. E..;tá sendo preparado o terreno para a nova astronomia de Copérnico e para a extcnsãn metafísica desta astmnnmia na concepção do Universo inlinitu de Giordano Bruno (I 54N-16Cl0). Universo definitivamente desccntrado (c f. Koyré. 1979). Nas próprias palavras de Bruno ([ 1584)

1978):

. .. existe um campo inlinitQ c um espm;n continente que compreende c penetra tudo. Nele se encontram inllnitos C<lrpos semelhantes. não estando nenhum deles mais no centro dn univcr~o \lUC os outrns. porque 11 univcP.'o é inriníLu c. pcmanto. ~m centro c sem margens.

O homem. como pura negalívidade c possibilidade de escolha. que nasce sem natureza certa c hnhita um mundo infinitamente aberto ao seu engenho c arte. deve se preocupar. desde o momento em que m1scc. sobretudo C()lll isso: sua fibcrd<tdc c sua destinação; deve depender sempre mais de sua "consciência do que do juízo dos 23

(23)

Expulso do paraíso das civilizações fechadas, o homem da modernidade colhe no tempo de Lukács o fruto mais amargo da abertura do mundo. da expansão cósmica dao; suas possibilidades, da muhiplicação infinita dos seus enigma.~;: a desorientação, o caos, a guerra total.

Houve um tempo, porém. em que a abertura do mundo, embora já revelando perspectivas traumáticas c assustadoras. podia ser acolhida c comentada com orgulho e altivez.

Em 1486, na Oratio de lwnrinis dignitatt, Giovanni Pico Della Mirandola ( 1463-1494), talvez o mais fecundo representante da escola pitag6rico-platônica de Florença. concordava com os que reconheciam o homem como o mais digno c maravilhoso de todos os seres.

Discordava, conludo, das ra1..õcs que costumeiramente eram dada.c; para esta avaliaçãu.

Ora. cnqunnco meditava acerca do significado desta~ afirmações. não me satisfaziam de todo as múltipla~ nrzi'íe\ que são aduzidas habitualmente por muitos a propósito da grandcr.a da natureza humana: ser o homem vínculo das criatura~. familinr com as superiores, soberano das inferiores; pela agudeza dos ~enlidos, pelo poder indagador da razão e pela luz do intelecto. ~er intérprt:te da natureza; intermédio entre o tempo e a ~:temidaUe e. como dizem os Persas. cópul:~ portanto. himeneu do mundo e. segundo atestou David, em pouco inferior aos anjos. Grandes coisas c:~tas. sem dúvida. ma~ não as mni~ importantes, isto é, não tais que consintam na reivindicação do privil6gio de uma admiração ilimitada. PÔr que. de f~to, não deveremos nós admirar mais os anjos e os bcatissilllQ,; eoro.s celestes'! <Mirandola [1486]1989; p. 49)

Não. Não é por ter

um

a na

turc1..a,

posto que natureza complexa, que o homem é o mais digno de nossa admiração.

Quando Deus pensou em um ser capaz de amar toda a beleza e magnitude do mundo por ele criado. não e~"Ontrou, segundo Pico De lia Minmdola, umn única criatura a partir da qual o homem pudesse ser modelado, um único lugar que o homem pudes:;e ocupar definitivamente para daí contemplar o esplendor do Universo. Todos os sítios c possibilidades da natureza já estavum ocupados e preenchidos. Por fim. o grande Criador inventou este ser "a quem nada pertence naturalmente''. Ele recebeu (l homem como uma criatura de "natureza indeterminada" para colocá-lo no centro do Universo dizendo:

Ó Aó~o. não te demos nem um lu~ar determinado, nem um aspecto que te scj;J próprio, nem tarefa nlguma específica. a fim de que obtenhas c po~~uas aquele lugar. aquele aspcl·to. <UJnela tarefa que lu seguramente dc~cjarcs. tudo segundo o teu parecer c a tua decisão. A natureza bem llefinida dns outros seres é rcfrcada pur lei~ por nós prescritas. Tu. pelo comr.írio. não cnnslrangido por nenhuma limitação. dctermína-J a-;)s par.t ti. segundo o teu arhítriu. a cujo poder te entreguei. Coloquei-te nn meio do muoon para que daí rx'ssa.o; olhar melhor tudo que há no mumJn. Nàulc fizemos celeste nem Lerrcn<l. nem monal nem inwrtal. a lim de que tu. ;írhilm c sohcrano. artífice de li me~mo. te plasmas.~es e lc inf"nrmasses. n;l form<l que tiv~scs seguramente escolhido. Poderás degenerar .ué ns seres que são as bestas, poderá~ regenerar-te até as realidades superiores que são divinns. por dcds3n de teu ânimo. Clbid.; 1> • .í2)

Convém desde logo assinalar a curiosa t.:onccpção de 'centro do mundo' expressa neste texto. Embora numa rrimcirctleitura pudéssemos reconhecer nus palavras de Giovanni Pico o antigo geo c tmtrnpoccntrismo aristotélico-cristão. o autor, na verdade, destituiu o centro de sua dimensão ontológif.:a: o centro é ngora o lugar daquele que tudo pode mas nada é, o lugar privilegiado do não-ser. O centro está, assim. ocupado pelo tu'io. e esta ncgatividadc estrategicamente localizada acabará dcscstahilizando tudo o Universo c superando a possihilidadc de cnnccOê-lo na forma fechada c perfeita do círculo. E..;tá sendo preparado o terreno para a nova astronomia de Copérnico e para a extcnsãn metafísica desta astmnnmia na concepção do Universo inlinitu de Giordano Bruno (I 54N-16Cl0). Universo definitivamente desccntrado (c f. Koyré. 1979). Nas próprias palavras de Bruno ([ 1584)

1978):

. .. existe um campo inlinitQ c um espm;n continente que compreende c penetra tudo. Nele se encontram inllnitos C<lrpos semelhantes. não estando nenhum deles mais no centro dn univcr~o \lUC os outrns. porque 11 univcP.'o é inriníLu c. pcmanto. ~m centro c sem margens.

O homem. como pura negalívidade c possibilidade de escolha. que nasce sem natureza certa c hnhita um mundo infinitamente aberto ao seu engenho c arte. deve se preocupar. desde o momento em que m1scc. sobretudo C()lll isso: sua fibcrd<tdc c sua destinação; deve depender sempre mais de sua "consciência do que do juízo dos

(24)

outros". mas deve ser capaz de estabelecer contato com todos os outros para neste confronto construir sua própria identidade.

É este mesmo homem que, embora associado à idéia da posição intermediária, encontramos no texto que em 1516 Pietro Pomponazzi

(1462-1525), da escola aristot~lica de Pádua, escreveu, sobre a imortalidade da alma:

O homem não é certamente de uma natureza simples, mas múltipla, de uma nawreza certa, mas ambígua( ... ) ele não é puramente temporal nem puramente eterno, desde que compartilha ambas as naturezas. E para o homem que assim existe como uma média mtre as duas, é dado o potkr

de assMmir qualquer/latw·t!w que deseje. ([15161 1977; p. 393-irifo meu)

A ambigüidade da natureza humana impl.ica imediatamente seu desenraizamento do mundo das coisas e seres naturalmente detenninados. "perfeitos em seu sentido e perfeitos para cs sentidos". Os temas do homem livre, sem raízes, viajante e exilado, encarnam-se nas experiências da maioria das grandes figuras do século XVI e realiutm-se paradigmacicamente nas trajetórias de pensamento e vida de Giordano Bruno, o grande arauto do Universo sem limites (cf. Dilthey [1914] 1978) que afirmou: "Não há fins, termos, limites ou muralhas que nos possam usurpar a multidão infinita das coisas ou privar-nos delas".

Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das virtudes que consistem desde então no bom uso desta liberdade. É ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem arrimos nem garantias. E, finalmente, o espaço insólito da ignorância, da iluslo, do erro, da d~vida e da suspeita.

Poucos homens escapam às incertezas deste espaço e às suas ameaças. Alguns, "tendo subjugado a vida vegetativa e sensitiva, tornam-se quase que só racionais". Pomponazzí sabe muito bem que estes são raros. "Alguns. pela total negligência do intelecto e se ocupando tão-somente do vegetativo c do sensitivo convertem-se em animais." Para estes, de fato, o tem tório da liberdade e da virtude está fechado. A grande maioria, porém, é constituída pelos "homens normais": •• ... nem se devotam completamente ao espírito nem se entregam totalmente aos poderts do corpo". É preciso reconhecer nesta aparente hesitaçlo do homem normal uma certa fidelidade à

indeterminação original da sua natureza. A ele caberá a infindável,

24

imprecisa e arriscada tarefa de "viver toleravelmente segundo as virtudes morais" no solo movediço da ética. Aqui, vive-se apenao; toleravelmente porque este é exatamente o terreno das idéias nunca completamente claras, das escolhas nunca suficientemente justificadas, das opções sempre em aberto. Mais que jsso. Ao ser colocado fora da natureza, o homem perde

a

medida que lhe poderia ser imposta pelo reino das necessidades naturais e fica sob o império sem regras e limites dos seus próprios desejos. O pregador religioso e reformador político Savonarola (1452-1498), admirado por Pico Della Mirando! a, no

seu Tratado sobre o regime e o govenw da cidade de Florença ([ 1498} 1991 ; p. 135) coloca a questão claramente:

De fato o homem guloso é muito mais ávido e incomparavelmente mais insaciável que rodos os animais. não lhe sendo suficientes todos os alimentos nem todos os modos de cozinhar no mundo; o homem não procura satisfazer a sua natureza, mas o seu tksejo dese/Jfreado ( ... ) Do mesmo modo supera rodos os animais na bestialidade da luxúria,

pois. ao contrário odos animais, não observa os tempos nem os modos devidos( ... ) Também os supera na crueldade ... * (Grifo meu)

Caberá aos homens, nesta medida, instituir suas próprias leis e

se colocarem sob o jugo do que lhes pareça um bom governo.

É fácil reconhecer todos estes temas e concepções a.tlorando regularmente ao longo da história da modernidade e se expressando, por exemplo, nos pensadores existencialistas dos séculos XIX e XX.

O otimismo, contudo, nem sempre permanece. O que foi um dia motivo de honra e dignidade tem sido freqüentemente uma carga a ser suportada. Mais que isso: foram e são inúmeras as tentativas de nos livrarmos dela. Sistemas filosóficos, dispositivos: macro e micropolíticos, saberes científicos e outros foram mobilizados, seja para descobrir no homem uma natureza e uma identidade, seja para lhes impor uma e outra. Nestas tentativas, o espaço das virtudes morais era algumas vezes brutalmente fechado pelas práticas e discursos teológicos, econômicos, polfticos e, mais recentemente, científicos e tecnológicos. Freqüenteme!lle, este espaço era reduzido e confinado

• Creio ndo ser ab~urdo ver n.:sta afirmaçllo de Savonarola uma precisa anteci · pa-;Ao do que: a psicanálise reconhecer' como a diferença especffko da se•uali· dade humana em relaçao à vida inscintiv:1 dos animais.

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outros". mas deve ser capaz de estabelecer contato com todos os outros para neste confronto construir sua própria identidade.

É este mesmo homem que, embora associado à idéia da posição intermediária, encontramos no texto que em 1516 Pietro Pomponazzi

(1462-1525), da escola aristot~lica de Pádua, escreveu, sobre a imortalidade da alma:

O homem não é certamente de uma natureza simples, mas múltipla, de uma nawreza certa, mas ambígua( ... ) ele não é puramente temporal nem puramente eterno, desde que compartilha ambas as naturezas. E para o homem que assim existe como uma média mtre as duas, é dado o potkr

de assMmir qualquer/latw·t!w que deseje. ([15161 1977; p. 393-irifo meu)

A ambigüidade da natureza humana impl.ica imediatamente seu desenraizamento do mundo das coisas e seres naturalmente detenninados. "perfeitos em seu sentido e perfeitos para cs sentidos". Os temas do homem livre, sem raízes, viajante e exilado, encarnam-se nas experiências da maioria das grandes figuras do século XVI e realiutm-se paradigmacicamente nas trajetórias de pensamento e vida de Giordano Bruno, o grande arauto do Universo sem limites (cf. Dilthey [1914] 1978) que afirmou: "Não há fins, termos, limites ou muralhas que nos possam usurpar a multidão infinita das coisas ou privar-nos delas".

Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das virtudes que consistem desde então no bom uso desta liberdade. É ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem arrimos nem garantias. E, finalmente, o espaço insólito da ignorância, da iluslo, do erro, da d~vida e da suspeita.

Poucos homens escapam às incertezas deste espaço e às suas ameaças. Alguns, "tendo subjugado a vida vegetativa e sensitiva, tornam-se quase que só racionais". Pomponazzí sabe muito bem que estes são raros. "Alguns. pela total negligência do intelecto e se ocupando tão-somente do vegetativo c do sensitivo convertem-se em animais." Para estes, de fato, o tem tório da liberdade e da virtude está fechado. A grande maioria, porém, é constituída pelos "homens normais": •• ... nem se devotam completamente ao espírito nem se entregam totalmente aos poderts do corpo". É preciso reconhecer nesta aparente hesitaçlo do homem normal uma certa fidelidade à

indeterminação original da sua natureza. A ele caberá a infindável,

imprecisa e arriscada tarefa de "viver toleravelmente segundo as virtudes morais" no solo movediço da ética. Aqui, vive-se apenao; toleravelmente porque este é exatamente o terreno das idéias nunca completamente claras, das escolhas nunca suficientemente justificadas, das opções sempre em aberto. Mais que jsso. Ao ser colocado fora da natureza, o homem perde

a

medida que lhe poderia ser imposta pelo reino das necessidades naturais e fica sob o império sem regras e limites dos seus próprios desejos. O pregador religioso e reformador político Savonarola (1452-1498), admirado por Pico Della Mirando! a, no

seu Tratado sobre o regime e o govenw da cidade de Florença ([ 1498} 1991 ; p. 135) coloca a questão claramente:

De fato o homem guloso é muito mais ávido e incomparavelmente mais insaciável que rodos os animais. não lhe sendo suficientes todos os alimentos nem todos os modos de cozinhar no mundo; o homem não procura satisfazer a sua natureza, mas o seu tksejo dese/Jfreado ( ... ) Do mesmo modo supera rodos os animais na bestialidade da luxúria,

pois. ao contrário odos animais, não observa os tempos nem os modos devidos( ... ) Também os supera na crueldade ... * (Grifo meu)

Caberá aos homens, nesta medida, instituir suas próprias leis e

se colocarem sob o jugo do que lhes pareça um bom governo.

É fácil reconhecer todos estes temas e concepções a.tlorando regularmente ao longo da história da modernidade e se expressando, por exemplo, nos pensadores existencialistas dos séculos XIX e XX.

O otimismo, contudo, nem sempre permanece. O que foi um dia motivo de honra e dignidade tem sido freqüentemente uma carga a ser suportada. Mais que isso: foram e são inúmeras as tentativas de nos livrarmos dela. Sistemas filosóficos, dispositivos: macro e micropolíticos, saberes científicos e outros foram mobilizados, seja para descobrir no homem uma natureza e uma identidade, seja para lhes impor uma e outra. Nestas tentativas, o espaço das virtudes morais era algumas vezes brutalmente fechado pelas práticas e discursos teológicos, econômicos, polfticos e, mais recentemente, científicos e tecnológicos. Freqüenteme!lle, este espaço era reduzido e confinado

• Creio ndo ser ab~urdo ver n.:sta afirmaçllo de Savonarola uma precisa anteci · pa-;Ao do que: a psicanálise reconhecer' como a diferença especffko da se•uali· dade humana em relaçao à vida inscintiv:1 dos animais.

(26)

às esferas cada vez mais fntimas da privacidade. Estas esferas iam ganhando, assim, uma densidade

e

profundidade novas. Experiências radicalmente subjetivas e individuais estavam sendo, desta maneira, historicamente constituídas como objetos de cogitação e conhecimento. Já pertencem, de fato, ao século XVI inúmeras afirmações que. como as do humanista espanhol de inspiração erusmiana Iuan de Valdéli {I S00-1541 ). assinalam o privilég.io do mundo privado como objeto de pesquisa:

Enquanto o homem estuda meramente nos livros de outros. entra em contato com a mente ~ seus autor~ e não com a sua própria. Porém.

como é dever do cri~tão conhecer a :r;i mesmo ( ... ) tenho o costume de dizer que o estudo apropriado ao cristão deveria ser o seu prâprío livrn.

1Valdés. 1535; p. 727J

De variada.-; maneiras, a história dos estudos psicológicos está entrelaçada à história da modernidade

e

às

suas vicissitudes. São múltipla-; as relações da-; 'psicologias' com

os

movimentos de expansão e, ptincipalmente, como veremos, de retraimento do espaço das virtudes morais, pois foi exatamente deste duplo movimento que nasceu o 'psicológico'.

Os ensaios que se seguem tratam destas questões. Mais

particulannente, tratam de compreender alguns momentos do processo histórico que preparou o terreno parn n emergência dos projetos de psicologia como área especflica c autônoma de conhecimento.

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UMA

SANTA

CATÓLICA

NA IDADE DA POLIFONIA

A multiplicação das vozes

"Não sei como se pode desejar viver. sendo tudo tão incerto."

Sallta Tuesa d·Ávila "Non podrio anar plus mau. Nyga Nyga Nyga." Ca11çélo tmn•tmçal do sécttl() XVI

Na segunda metade do século XVI a Antuérpia era um dos maiores. senão u maior. centro comercial c financeiro da Europa e também ocupava uma posição deslocada na produção manufatureíra. Em I 560 o diplomata florentino Ludovico Guiccíardini ( 1523-1589) relatou suas observaçfles sobre a vida nesta cidade. Guicciardini, em primeiro lugar. contempla as orientações políticas que pennitirarn e estimularam o extraordinário desenvolvimento material da Antuérpia. Aqui. porém. vou me ater às características socioculturais assinaladas por ele.

Há riqueza, há fausto, há suntuosidade na vida social burguesa: "Podem-se ouvir a toda..; as horas, bnda.c;, fcs1ins c danças. Pode-se ouvir em toda parte o som dos instrumentos e o burburinho dos encontros ulcgrcs". '(cf. Guicciaróini I 1567) 19RO; p. 189)

Não se lrata, porém. a(lenas de uma sociedade produtiva e diligente. mas também festiva c agitada. Antuérpia é, antes de mais nada. uma cidade que cresce sob o impulso de elementos estrangeiros. É um núcleo de convergência c difusão das atividades econômicas e fiMncciras em escala mundial. Vem a ser, igualmente, um campo de expcriênci~ cultur.:~is extremamente rica..; e diversificadas:

(27)

às esferas cada vez mais fntimas da privacidade. Estas esferas iam ganhando, assim, uma densidade

e

profundidade novas. Experiências radicalmente subjetivas e individuais estavam sendo, desta maneira, historicamente constituídas como objetos de cogitação e conhecimento. Já pertencem, de fato, ao século XVI inúmeras afirmações que. como as do humanista espanhol de inspiração erusmiana Iuan de Valdéli {I S00-1541 ). assinalam o privilég.io do mundo privado como objeto de pesquisa:

Enquanto o homem estuda meramente nos livros de outros. entra em contato com a mente ~ seus autor~ e não com a sua própria. Porém.

como é dever do cri~tão conhecer a :r;i mesmo ( ... ) tenho o costume de dizer que o estudo apropriado ao cristão deveria ser o seu prâprío livrn.

1Valdés. 1535; p. 727J

De variada.-; maneiras, a história dos estudos psicológicos está entrelaçada à história da modernidade

e

às

suas vicissitudes. São múltipla-; as relações da-; 'psicologias' com

os

movimentos de expansão e, ptincipalmente, como veremos, de retraimento do espaço das virtudes morais, pois foi exatamente deste duplo movimento que nasceu o 'psicológico'.

Os ensaios que se seguem tratam destas questões. Mais

particulannente, tratam de compreender alguns momentos do processo histórico que preparou o terreno parn n emergência dos projetos de psicologia como área especflica c autônoma de conhecimento.

UMA

SANTA

CATÓLICA

NA IDADE DA POLIFONIA

A multiplicação das vozes

"Não sei como se pode desejar viver. sendo tudo tão incerto."

Sallta Tuesa d·Ávila "Non podrio anar plus mau. Nyga Nyga Nyga." Ca11çélo tmn•tmçal do sécttl() XVI

Na segunda metade do século XVI a Antuérpia era um dos maiores. senão u maior. centro comercial c financeiro da Europa e também ocupava uma posição deslocada na produção manufatureíra. Em I 560 o diplomata florentino Ludovico Guiccíardini ( 1523-1589) relatou suas observaçfles sobre a vida nesta cidade. Guicciardini, em primeiro lugar. contempla as orientações políticas que pennitirarn e estimularam o extraordinário desenvolvimento material da Antuérpia. Aqui. porém. vou me ater às características socioculturais assinaladas por ele.

Há riqueza, há fausto, há suntuosidade na vida social burguesa: "Podem-se ouvir a toda..; as horas, bnda.c;, fcs1ins c danças. Pode-se ouvir em toda parte o som dos instrumentos e o burburinho dos encontros ulcgrcs". '(cf. Guicciaróini I 1567) 19RO; p. 189)

Não se lrata, porém. a(lenas de uma sociedade produtiva e diligente. mas também festiva c agitada. Antuérpia é, antes de mais nada. uma cidade que cresce sob o impulso de elementos estrangeiros. É um núcleo de convergência c difusão das atividades econômicas e fiMncciras em escala mundial. Vem a ser, igualmente, um campo de expcriênci~ cultur.:~is extremamente rica..; e diversificadas:

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Direi que na AntuéJpia há, em primeiro lugar, além do povo do pafs que em grande n6mero para aqui vem e habita, e além dos franceses que em tempos de paz vêm aqui diariamente, seis nacionalidades principai:s que aqui residem tanto na paz como na guerra e que incluem mais de mil comerciantes e seus principais administradores e assistentes. Há alemães, dinamarqueses. junto a mercadores ingleses e porcugueses ... Todos estes mercadores observam as leis e ordenamentos da cidade; no mais conduzem-se, vestem-se e vivem livremente conforme seus desejos. Na verdade, há na Antuérpia e em todos os pafses baixos mais liberdade para estrangeiros do que em qualquer outra parte do mundo. É assim maravilhoso ver tal mistura de homens e ainda mais maravilhoso ouvir tal variedade de lfnguas tão diferentes umas das outras, de forma que, se for do desejo. pode-se aqui, sem viajar, imitar a natureza, modo de vida e costumes de muitas nações. (lbíd.; p. I 89)

Os nativos não se fazem de rogados:

Os habitantes desta cidade estão, na maior pàrte, metidos no comércio ( ... ) Eles são corteses. civis, engenhosos, rápidos para imitar os estrangeiros e para se casar com eles. São capazes de morar e fazer negócios em qualquer parte do mundo. Muitos deles, e até as mulheres

( ... ),sabem falar três ou quatro lfnguas, para não mencionar os que falam cinco, seis ou até sete. (lbid.; p. 187)

É

esta coexistência de línguas, modos e costumes diversos que me levou a escolher o caso da Antuérpia para nos introduzir numa das principais dimensões da vida quinhentista: a multiplicação das vozes. Outros

grandes

centros financeiros, comerciais e manufatureiros, como Florença, Veneza ou Lyon, ou centros político-religiosos como Roma. poderiam ter sido escolhidos, igualmente.

De fato, o crescimento das atividades comerciais e os projetos de expansão da cristandade, por um lado, e o renovado interesse pelos textos sacros e filosóficos nas suas versões originais, por outro, já no século XIII tinham levado Roger Bacon (1214-1292) a insistir, na sua Opus maius, no estudo das línguas. dando para isso uma grande variedade de razões teóricas e práticas. Sabe-se, também, que a expansão do comércio ultramarino e a polftica colonialista de Portugal haviam determinado a necessidade de se considerar o estudo das línguas como essencial no campo das grandes navegações. O contato europeu com a Ásia, África e América. durante muito tempo a cargo

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de portugueses e, Jogo depois, espanhóis, não apenas alterou hábitos de toda a espécie na Europa (por exemplo, a difusão do tabagismo) como colocou frente a frente vozes e falas absolutamente distintas, trazendo, inclusive, para o português, tennos populares como 'sacana' e 'banzé'. importados do Japão (cf. Barreto, 1989).

Não é por acaso que os estudos filológicos e os procedimentos hennenêuticos ganharam enonne relevo na cultura humanista (cf. Dihhey [ 1914] 1978). É necessário conviver com outras línguas, sejam as das literaturas antigas, o hebreu, o grego e o latim, sejam as línguas exóticas de outras civilizações, como o árabe e as línguas asiáticas, sejam as dos selvagens africanos e americanos. É preciso saber aproximar-se de falantes antigos, remotos e radicalmente distintos, alguns dos quais são mesmo concebidos como nãofalantes, dada a sua radical diferença em relação ao europeu (c f. Todorov, 1983; cap. 3).

É preciso um esforço intenso e disciplinado para enfrentar os conflitos de interpretação inerentes a uma atividade generalizada de tradução imposta pela multifacetada descoberta da alteridade intra e ex.tra-européia. A amena convivência da Antuérpia não é a regra e, mesmo Já, está sujeita a reveses motivados pelas lutas religiosas. Os mal-entendidos proliferam e freqüentemente se transformam em contendas mais ou menos sérias, tanto nos terrenos teóricos da filosofia, ciências e teologia, como nos terrenos práticos dos costumes, da organização poUtica e religiosa, do comércio etc. O século XVI, sem dúvida. foi um século de guerras, massacres (cf. Davis, 1990, sobre massacre de Lyon; e Partner, 1979, sobre massacre de Roma) e práticas de extennínío, como as efetuadas pelos espanhóis na América (cf.

Todorov, 1983; cap .. 7).

A multiplicação das vozes e a confusão das línguas encontram uma expressão cristalina na música contrapontista que começou ·a se desenvolver na Europa desde o século XI e alcançou seu apogeu no século XV, no estilo flamengo da composição polifônica.1

A partir dos países baixos, daquela mesma Antuérpia por onde iniciamos e que na época pertencia ao ducado de Borgonha, a polifonia flamenga (ou escola borgonhesa) difundiu-se pelas cidades e cortes européias.

Em contraposição à música sacra medieval -a voz coletiva, repetitiva, envolvente e funcional do cantochão -,às músicas profanas e danças populares e, finalmente, à música trovadoresca - em que já se reconhece a marca de uma individualidade em canções simples e

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