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Direito Penal - Parte Geral (Taipa de Carvalho) 1

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AMÉRICO

TAIPA

DE CARVALHO

Professor .da Faculdade de Direito da Universidade Católica (POrto)

DIREITO .PENAL

PARTE

GERAL

Questões Fundamentais

Teoria Geral do Crime

·EDIÇÃO

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M'1'Qn>t::M<U

Coimbra Editora

2008

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A todos os meus alunos

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omposiçõo e impressão

oimbra Editora, Limitada

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~;:: ISBN978-972-32-1618-9 Setembro de 2008 Depósito Legal o,' 281 09112008

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NOTA

Em Setembro de 2003, foi publicada a L' edição do livro DIREITO

PENAL - PARTE GERAL - QUESTÕES FUNDAMENTAIS; em

Outubro de 2004, foi publicada a L". edição do livro DIREITO PENAL

- PARTE GERAL - TEORIA GERAL DO CRIME.

Esta 2.a edição, que agora vem a público através da Coimbra Edi-tora, contém, num só volume, as matérias tratadas nos dois volumes acabados de referir.

Como é natural, procurei ter em conta as alterações que - sobre-tudo nas matérias da "lei no tempo" e da "lei no espaço" - foram introduzidas pelas Leis D.OS 48/2007, de 29 de Agosto, e 59/2007, de 4

(4)

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SJlQ.LSlIflO

(5)

TÍTULO I

O PROBLEMA

CRIMINAL-PENAL

1.0 CAPÍTULO

A CIÊNCIA GLOBAL DO DIREITO PENAL

L O sentido fundamental actual da designação "ciência global do direito penal"

§ 1. A designação "ciência global do direito penal" foi criada, em fins do

séc,

XIX, pelo célebre penalista Franz v.

Liszt,

Segundo este autor, o direito penal não se podia reduzir a uma tarefa meramente téc-nica, dogmática ou sistemática, de aplicação do direito penal legislado ao caso concreto.

Ao lado do direito penal em sentido estrito ou dogmática jurídico--penal, deviam colocar-se a política criminal e a criminologia, À poli-tica criminal cabia a função de propor ao legislador, numa perspectiva de eficácia, as estratégias e os meios da luta contra a criminalidade, e as consequentes reformas legislativas do direito penal positivado.

Mas a eficácia da política criminal, no 'combate

a

criminalidade, não podia prescindir do conhecimento ernpírico da realidade dos facto-res sociais e psicológicos associados aos comportamentos criminosos. Assim, era considerada também como parte integrante da ciência penal em sentido amplo ou global a criminologia, dado que só esta ciência empírica permitia o conhecimento da realidade social criminal, conhe-cimento este indispensável à eficácia da política criminal.

Todavia, na construção de v. Liszt, a "ciência global do direito penal", embora também abrangesse a política criminal e a crimínolo-i

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12 Parte I - Questões Fundamentais Tttuio 1 - O problema criminol-penol l~ gia, O certo é que estas duas ciências criminais não passavam do

esta-tuto de ciências auxiliares do direito penal ou dcgmática jurídico--penal, cabendo a esta o topo da hierarquia das ciências criminais.

E,

para 'acentuar esta primazia da dogmática jurídico-penal, o próprio v. Liszt formulou a conhecida frase de que «o direito penal (i. é, a dogmática jurí-dico-penal) constitui a barreira intransponivel da política

criminal».

Isto

é, o direito penal ou dogmática jurídico-penal seria, dentro da "ciência global do direito penal", o depositário dos princípios normativos que garantiam os direitos individuais fundamentais do delinquente, entre os quais se destacam os princípios da legalidade e da culpa. Estes princí-pios jurídico-penais é que decidiam sobre a legitimidade ou ilegitimidade das estratégias e dos meios propostos pela política criminal para a redu-ção ou controlo eficazes da criminalidade.

Em síntese: o direito penal ou dogmática jurídico-penal operava

segundo critérios de legitimidade nonnativa; a política criminal ope-rava apenas segundo critérios pragmáticos de eficácia; a criminologia, +o2.<..'ec"-

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como ciência empírica neutra, fornecia o conhecimento da realidade

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criminal, conhecimento necessário para a eficácia da política criminal que,

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por sua vez, não podia deixar de estar limitada pelas exigências e

prin-L-tilu..e-Lt.tI.

cípios normativos, sedeados na dogmática penal.

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§ 3. Foi mérito de autores como C. Roxin e H. Zipf o terem, nos

anos 70 do séc. XX; reelaborado esta nova arrumação, dentro da chamada

"ciência global do direito penal", da política criminal face à dogmática jurídico-penal. E foi a partir daqui que se começou, com razão, a falar, relativamente ao direito penal stricto sensu, em "sistema penal aberto ". Aberto às directrizes da política criminal. Só que, há que acentuá-lo, agora a política criminal não é vista como uma mera "ciência" técnica, preocupada apenas com a eficácia da luta contra o crime, mas também como ciência normativa, preocupada com a legitimidade dos meios a uti-lizar nesse combate

à

criminalidade.

E, assim, se compreende que esta nova concepção da política cri-minal (cujo objectivo éa eficácia da luta contra a crirninalidade, mas efi-cácia limitada pela legitimidade dos meios que utiliza) tenha sido assu-mida pelas actuais Constituições do Estado de Direito Democrático e Social. Na verdade, hoje, os principias fundamentais da politica criminal estão expressamente consagrados na Constituição: princípios da legali-dade, da máxima restrição da pena, da presunção de inocência, etc.,

falando-se mesmo, e com acerto, de uma "Constituição político-crimi-nal" como parte integrante da Constituição Política Geral.

Como conclusão, pode dizer-se que a chamada "ciência global do direito penal" compreende a política criminal, a dogmática jurídlco-penal e a críminologia, e que estas ciências, embora sejam autónomas entre

si

(pois cada uma tem um objecto imediato e um método especi-ficas), são complementares e interdependentes. Pois, todas elas têm por objecto último e comum o crime, e todas elas são indispensáveis para uma abordagem, que se queira eficaz e justa, da delinquência. E, por-que complementares e interdependentes, é correcta a designação "ciên-cia global do direito penal" como conjunto da política criminal, da dog-mática penal- e da criminologia.

§2. Com a afirmação e consagração do Estado de Direito Mate-rial, a partir do termo da TI Grande Guerra, operou-se uma alteração na relação de subordinação da política criminal

a

dogmática jurídico-penal. A política criminal deixou o seu estatuto de mera ciência auxiliar do direito penal em sentido dogmático para passar a ciência autónoma, face

:Jct.l.-ea C,-túviv"lao direito penal, passando mesmo a ser tida como motor dinamizador da 1 dogmática penal e, portanto, a ocupar uma posição de supremacia face

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ao direito penal em sentido estrito. Verificou-se, assim, uma troca de

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"n~ões entre a política criminal e a dogmática penal: aquela passou de

J \ ciência auxiliar a ciência fundamental e primeira, enquanto adogmática

v penal passou a ciência "subordinada" à política criminal, na medida em

L-'C~ {(},•.f'<lOUI!.. que passou a caber

a

política criminal não só a fixação dos objectivos a serem realizados através da dogmática penal, mas também os princípios

normativos fundamentais, ético-individuais e ético-sociais, que devem orientar a construção dogmàtico-sistemàtica do direito penal e a inter-pretação e a aplicação deste aos casos concretos a decidir.

li. Política criminal, direito penal e criminologia

§

4. A polltica criminal pode definir-se como o conjunto dos princípios ético-individuais e ético-sociais que devem promover, orien-tar e controlar a luta contra a criminalidade. O objectivo ou função da política criminal é a prevenção do crime e a confiança da comunidade

(7)

14 Po/'te I - Questões Fundamentais Tttulo { - O problema criminal-penal 15

§ 5. O direito penal em sentido estrito ou dogmátlca jurídico--penal pode definir-se como a teorização das diferentes categorias ou ele-mentos constitutivos da infracção criminal, e das diferentes espécies de consequências jurídicas do crime.

Esta teorização, que se traduz numa desconstrução-construção ana-Iitico-conceitual e sistemática do comportamento criminal, deve ser' orientada e dinamizada pelos princípios da política criminal e apoiada nos resultados ernpiricos da investigação criminológica. Daqui resulta a correcção da actual consideração do direito penal ou dogmática penal como "sistema penal aberto".

É, portanto, de recusar, quer a dicotomia normativista, 'que auto-nomiza, de forma radical e antagónica, o "ser" e o "dever ser", isto é, os planos do histórico real concreto e dos valores transcendentes e imu-táveis (Kant, Binding), quer o .positivismo sociológico-jurídico, que transforma o direito penal num mero instrumento de controlo e de garante da funcionalidade do sistema social (Jakobs).

§ 6. A criminologia é o ramo da ciência criminal que, baseado na observação 'e experimentação, estabelece a relação entre determi-nados factores (bio-psicológicos e sociais) e as diferentes espécies de delinquência.

Assim, e a título de exemplo, será objecto da criminologia a inves-tigação das conexões entre o desemprego, a perda da auto-estima, a marginalização, a toxicodependência e a crirninalidade patrimonial, nomeadamente, o furto e o roubo. Da mesma forma, caberá à investi-gação criminológica a influência criminógena das políticas urbanísticas que remetam determinados grupos étnico-culturais para os subúrbios das grandes cidades - guettzação.

São dois os ramos da criminologia: a biologia criminal e a socio-logia criminal. A primeira, a biologia criminal, contra-se, fundamen-talmente, nos factores bio-psicológicos favoráveis à delinquência; a sociologia criminal tem por objecto primordial a investigação dos fac-tores sociais (económicas, culturais, religiosos, ete.) geradores de com-portamentos desviantes.

Nesta introdução à visão global do direito penal, é de assinalar a importância da 'chamada 'crimínologia nova ou criminologia crítica, que, surgida na década 60-70 do séc. XX, veio reagir contra o tradicional estatuto de subordinação total da criminologia ao direito penal, afir-mando a sua autonomia na determinação do seu próprio objecto, e rei-vindicando uma função crítica da própria organização e funcionamento das chamadas "instâncias formais de controlo do crime" (legislador, magistraturas, administração prisional).

social na ordem jurídico-penal, isto é,na afirmação e vigência efectiva dos valores sociais, indispensáveis à livre realização da pessoa de cada um dos indivíduos integrantes da sociedade.

Esta prevenção do crime, esta luta contra a delinquência, não pode fazer-se a todo custo; ela tem, sim, de realizar-se no respeito dos pró-prios valores e princípios que visa defender.

São, portanto, duas as coordenadas da política criminal: eficácia, quanto aos fins; Iegitlmídade (ético-Jurídica), quanto aos meios.

Assim, entre os princípios da política criminal de um Estado de Direito Democrático e Social, podem referir-se: o princípio da legali-dade, qual garantia contra a arbitrariedade judicial e administrativa; o princípio da culpa, com a consequente recusa de qualquer forma de res-ponsabilidade penal objectiva;

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princípio da humanidade na definição legal 'das penas (donde, a proibição da pena de morte e das penas degra-dantes da dignidade humana da pessoa do recluso) e na sua execução (donde, a recusa da prisão perpétua e das consequênciasjuridicas de duração indetenninada); o princípio da recuperação social do recluso, o que obriga à criação de estabelecimentos "penitenciários" adequados, eà modelação da execução da pena de prisão em condições que possi-bilitem tal recuperação.

§ 7. Uma vez que a política criminal e, portanto, o direito penal não pode ser um instrumento ao serviço de um qualquer sistema social, então é indispensável o conhecimento 'da realidade individual e social em que a justiça penal intervém. Por outra palavras: uma política cri-minal, para ser justa e eficaz, não pode esquecer as informações dadas pela criminologia, Eis a importância da críminologia para o direlto penal. O próprio princípio da culpa material jurídico-penal (i. é, o juizo de culpa que não se reduza a lU11amera fórmula abstracta de res-ponsabilização penal) não pode deixar de ter em conta as condições em que se realizou a socialização primária (a fase infantil, que é aquela em que se estrutura a personalidade) e, portanto, não pode desatender,

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(8)

l6 Parta I - Questões Fundamentais

no juizo da "culpa da personalidade", as condições familiares e sociais

anómicas, isto é, a inexistência das mais elementares regras axiológicas derelacionamento com o outro. Esquecer este condicionalismo é trans-formar a "culpa da personalidade" também num mero juízo formal, numa quase ficção, o que levaria a lançar contra esta "culpa da perso-nalidade" a mesma crítica que, maioritária e justificadarnente, se lançou contra a tese da "culpa da vontade", alicerçada no indemonstrável

livre-arbítrio. .

A sociedade e o estado já sabem, ou deveriam saber, que não é somente com o aumento das polícias 'e com o agravamento das penas que a criminalidade diminuirá; mas é indispensável uma atenção às políticas sociais da família, da infância, da escola, da juventude e do trabalho. Com efeito, ao lado de uma ética da responsabilidade individual, há também uma ética da corresponsabilidade social.

O direito penal não pode deixar de ser assumido como a ultima

ratio da política social. Não pode o Poder (estadual ou internacional) recorrer ao direito penal como meio de "resolver" problemas que só poderão ser solucionados, ou minirnizados, por políticas sociais.' E, nestes tempos de "globalização", serão vãs todas as tentativas de redu-zir a criminalidade nacional e transnacional, se o actual processo de globalização seguir o rumo de um neoliberalisrno à escala mundial, absolutizando a economia de mercado, e subordinando à lógica desta as sociedades nacionais e internacionais. A economia de mercado tem de ser assumida, na prática política, como meramente instrumental em rela-ção

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sociedade das pessoas.

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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL

I. A importância da história do direito penal

§ 8. A análise de evolução das instituições jurídico-penais, ao longo das diversas etapas da história dos povos com características sociais e culturais próximas, tem uma dupla importância: político-social e jurídico-criminal,

Importância políticu-sccla], na medida em que, sendo o direito penal um dos barómetros por excelência do modo de relacionamento entre o poder político e as pessoas e os grupos sociais a ele sujeitos, bem como o melhor indicador dos valores dominantes em cada época, a história da evolução do direito penal é essencial para a caracterização política e social da respectiva época histórica.

É

'na configuração do direito penal de cada época que podemos descobrir quais os 'seus valores estruturantes, qual a sua estratificação social, como se exerce o poder político, etc.

E, obviamente, que também é inegável a sua importância jurí-dico-criminal. Pois

a

história da evolução do direito penal patenteia-nos a historicidade e a relatividade do próprio. direito penal. Revela-nos a historicidade do direito penal, quando nos comprova que O direito penal é a expressão das condições económicas; sociais, culturais, religiosas e poli-ticas, que caracterizam cada época. Mostra-nos a relatividade do direito penal, ao nos patentear as alterações profundas que as instituições jurídico--penais sofrem com o decurso da evolução sócio-cultural dos povos.

§ 9. Está implícito, no que acabámos de escrever, que a história do direito penal só terá utilidade e não se transformará num trabalho árido, estéril e fastidioso, se a procurarmos Inserir no contexto sócio-cul-tural da respectiva época. Acentuando esta necessidade da inserção

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18 Parte I - Questões F u/ldamenrais

sócio-cultural da história do direito - inserção que, como parece evidente, tem uma importância acrescida, quando está em causa o direito penal -, razão tinha alto Brunner, ao considerar a tendência para iso-lar a história do direito da história social geral como um grave vício meto-dológieo e como um dos principais factores do descrédito dos estudos histórico-jurídicos. E Heinz Zipf, referindo-se à política criminal, escre-veu que esta «está sempre enquadrada num determinado marco cultural e social e situa-se numa tradição àqual pode sentir-se mais ou menos vinculada, mas nunca a podendo negar como factor socialmente relevante. O homem insere-se na historicidade na qual se tem de realizar, prosse-guindo a criação em cada caso, e da qual não pode desprender-se». E, sem querer maçar o leitor, não resisto fitranscrever uma passagem da vigorosa "História de Cristo" do maravilhoso escritor Giovanni Papini: «Os homens mal domados, mal jungidos à Lei, como se vêem no Maha-barata e na Iliada, no Poema de Izdubar e nos Livros das Guerras de Jehovâ, teriam sido, sem o terror dos castigos dos Deuses, ainda mais ferozes e desencadeados. Nesses tempos em que por um olho se pedia a cabeça, por um dedo um braço e por uma vida cento e vinte, a Lei de Talião, que pedia apenas olho por olho e vida por vida, era uma assi-nalada vitória de generosidade e da justiça, embora, hoje, depois de Jesus, nos pareça pavorosa» (I).

H. O direito penal na alta Idade Média ou Reconquista Cristã

(sécs, VIII-XII)

,§ la. Duas palavras devem ser ditas: uma sobre a divisão da Idade Média em alta Idade Média e baixa Idade Média; a segunda sobre a associação entre alta Idade Média e Reconquista Cristã.

A distinção entre alta Idade Média e baixa Idade Média fun-damenta-se num conjunto de fenómenos sociais que; ocorridos a partir

(I) Sobre a historicidade do Direito Penal, 'lerAMÉRICa TAIPA osCARVALHO,

"Condicional idade Sócio-Cultural do Direito Penal», Boletim da Faculdade de Direito

de Coilllbra - Estudos em Homenagem aos Profs. Manuel Paulo Merêa e Guilherme

Braga daCruz, 1983,

Tttulo [ - O problema criminal-penal 19

da segunda metade do séc. XI, e dada a sua interacção, vieram dar aos últimos séculos da Idade Média uma configuração especifica e muito dife-rente da que caracterizou os primeiros seis séculos da Idade Média,

A seu tempo, veremos quais foram esses factores (cf. § 20 8S.).

§ 11. Quanto à associação entre a alta Idade Média e a Recon-quista Cristã, é evidente que não esquecemos que a Idade Média e, portanto, a alta Idade Média, enquanto primeira fase da Idade Média, começa com a queda do Império Romano do Ocidente, no ano 476.

Simplesmente, entendemos prescindir do período da dominação visigó-tica na península ibérica, e começar a análise da alta Idade Média no período da Reconquista Cristã, ou seja no início do séc, VIII, momento a partir do qual se gerou e consolidou a nacionalidade portuguesa.

§12, Operíodo situado entre oséc, VIII e oséc. XII caracterizou-se por uma profunda instabilidade social e polftica. Pisando solo ibérico, em 711, os maometanos, num curto espaço de tempo, dominaram toda a peninsula, excepção feita ao reduto montanhoso das Astúrias, Iniciada, aqui, 'a plurissecular reacção contra a dominação sarracena, eis que se gerou toda uma nova situação económica, social, política e jurídica,

A prioridade conferida à defesa militar das terras e populações já recuperadas aos árabes eàreconquista de novos territórios provocou um clima geral de insegurança na vida comunitária dos povos peninsulares. O edifício político-jurídico que os monarcas visigóticos, inspira-dos na Roma Imperial, que tinha acabado de sucumbir, procuraram levantar, em colaboração com os Concílios de Toledo, desmoronou-se por completo. À fraqueza do poder central segue-se a pulverização das ins-tituições sociais, políticas e jurídicas.

Em consequência, as populações sentem-se entregues a si mesmas e só com as suas próprias forças poderão contar para se opor aos seus inimigos externos e internos.

§ 13. Esta insegurança e isolamento, consequência da inexístência de uma autoridade pública forte e organizada e da perda do sentimento comunitário nacional, teve, por uma dinâmica de compensação, o efeito psicológico de fomentar uma intensa solidariedade entre os membros das micro-sociedades. Estava criado o ambiente psicossocíológico para que

(10)

20 Parte i - Questões Fundamentais

duas instituições assumissem um papel vital nesta sociedade politica-mente desestruturada, papel que o direito haveria de reconhecer. Primeiro, a família; posteriormente, o município.

A solidariedade, o«um POl- todos etodos por um», naturalmente que só se pode manter e frutificar

na

base do sentimento e

dever

de fideli-dade, lealdade e confiança entre os membros do respectivo grupo social. E, assim, efectivamente, aconteceu: o valor da fidelidade, interiorizado na sua indispensabilidade, é assumido como vital pelos referidos grupos

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§14. Esta consciência, individual esocial, daessencialidade, para a sobrevivência pessoal e comunitária, dos valores da solidariedade e da lealdade teve a sua projecção no direito penal da alta Idade Média.

No tocante à solidariedade familiar, a ofensa cometida sobre um membro da comunidade doméstica era considerada como agravo a toda a família. Assim, a obrigação de reparar as ofensas sofridas recaía não apenas sobre o directamente ofendido mas também sobre toda a colectividade familiar - eis a solidariedade penal activa .. Segundo as fontes jurídicas da época (os chamados «foros e costumes», «estatutos municipais» ou «fueros extensos», de origem predominantemente con-suetudinária), o ofendido e a sua família tinha o "direito de vingança" e os efeitos de exercício desta vindicta recaíam não só sobre o agres-SOl' como também sobre os seus familiares - eis a solidariedade penal passiva.

A

partir do séc.

XI,

vão

os

municípios desempenhar um papel vital na defesa e promoção das respectivas populações. A grandeza do con-celho radicava na coesão dos seus habitantes, sendo esta coesão dina-mizada pela solidariedade municipal. De forma algo semelhante ao que se passou, e passava, com a solidariedade familiar, também, no cenário jurídico municipal, se pode detectar, ao lado de uma solidariedade activa, uma solidariedade passiva. Assim, quanto à primeira, várias fontes da época '(p_ ex., foros e costumes da Guarda) consagravam o dever de auxílio mútuo dos convizinhos e referem a proibição de advogar causas de estranhos (ao município) contra os conterrâneos.

Mas

havia, também, uma certa responsabilidade colectiva, embora subsidiária, dos conce-lhos pelos delitos praticados por um dos seus membros, os "vicini" (cf. foros de Bragança, Trancoso, etc.).

Tltuio I - O problema criminal-penal 2J

§ 15. Sendo esta uma época de isolamento, de ausência de um poder político forte e protector, de tumultos e guerras contra o inimigo mouro e dos povos peninsulares entre si (Portugal, Leão, Castela, etc.), a paz entre os membros da mesma comunidade foi tida como o bem mais preciso e a melhor garantia da subsistência individual e colectiva. Mas sente e tem consciência de que apaz só se pode alcançar através da soli-dariedade entre os seus membros e que esta solisoli-dariedade, por sua vez, só pode converter-se em realidade viva na medida em que for dinami-zada pela lealdade efidelídade mútuas. Efectivamente, solidariedade, fidelidade e.paz são assumidas pela consciência ético-jurídica de então como valores fundamentais. Não admira que assim tenha sido, pois que a importância de determinados valores só se reconhece quando, preci-samente, tais valores se encontram em crise - tal como só nos aper-cebemos do bem saúde, quando estamos doentes. E, porque assim era, também natural foí que, numa perspectiva retribucionista, a pena apli-cável aos víoladores da fidelidade e da paz tenha consistido, exacta-mente, na perda da paz jurídica.

O mais grave de todos os delitos era a traição. Consistia este crime dos crimes na violação de uma especial relação de fidelidade, existente entre o criminoso e a vitima, mediante a prática do

homi-cidio, Traidor era, pois, um homicida qualificado pela ruptura do

vínculo especial de fidelidade e lealdade que ligava o infractor à vítima.

Esta relação pessoal de fidelidade e solidariedade tinha por fontes o parentesco próximo ("comunidade de sangue"), a interdependência económica ("comunidade de vida" entre o senhor ou amo e o que lhe prestava serviços domésticos ou agrícolas), as relações de confiança geradas, espontaneamente, entre determinadas pessoas (o "companheiro de viagem", o convidado para um "colóquio a sós") ou, ainda, relações de lealdade impostas pela ordem jurídica, em função da defesa e pro-moção de interesses económicas muito relevantes para a época (a "paz do mercado").

Naturalmente que a pena aplicada ao traidor era a mais grave de todas: a perda absoluta da paz. Esta sanção tinha as seguintes con-sequências: o traidor ficava destituído da sua personalidade jurídica e, assim, qualquer membro da comunidade (concelho ou reino, consoante se tratasse de traição municipal ou de traição régia) O podia,

(11)

impune-22 Parte [ - Questões Fundamentais

mente, matar; a sua casa era "derribada" (a casa, nesse período de inse-gurança generalizada, representava .o melhor refúgio de protecção); e todos os seus bens eram confiscados.

§ 16. Numa escala de gravidade decrescente, seguiam-se como crimes muito graves e bornicldio simples, o rapto e a violação de

mulhe-res. Apena aplicada a estes crimes era chamada inimicitia (o condenado era declarado "inimigo") ou perda relativa da paz. Pena que tinha as seguintes consequências: o criminoso tinha de pagar uma determinada soma pecuniária, denominada coima, calúnia ou multa (sendo uma parte para a vítima ou sua família ea outra para o erário público); tinha de sair do concelho dentro de um prazo fixado; não saindo, podia ser morto pelo ofendido ou seus familiares.

§ 17. Para crimes menos graves, havia a pena chamada

composí-çã? pecuniária, que se traduzia no pagamento de 'uma certa

importân-ci~ ao ofendido,

Esta pena, com o decurso dos anos, começou também a ser utilizada como pena substitutiva da perda relativa da paz, no intuito de se evita-rem as sangrentas lutas entre as famílias do criminoso e da vítima, em que, muitas vezes, redundava a execução da perda relativa da paz.

§ 18. A titulo de curiosidade, interessa referir a pena da com-posição corporal ou "entrar às varas". Esta pena, descoberta pelo historiador Paulo Merêa em alguns foros da região 'de Bragança, era aplicada a crimes deofensas corporais e tinha a curiosidade de consistir em provocar no agressor um ferimento ou golpe igual ao que ele tinha causado na vítima. Daí a designação de "entrar às varas",.o que quer dizer utilizar uma vara para medir a extensão do golpe causado, pois quy a sua punição era provocar-lhe um golpe igual (retribucionisrno taliónico puro).

§ 19. A conclusão geral é a de que o direito penal da alta Idade Média é um direito penal dejustiça privada. Ocrime era considerado como ofensa individual (excepção feita ao delito de traição), cabendo aos particulares a efectivação da justiça penal, que assumia formas bárbaras

ecruéis,

Tltulo 1 - O problema criminal-penal 23

Mas, como salienta Alexandre Herculano

e),

era «impossível que não sucedesse assim; que os hábitos selvagens e ferozes, adquiridos 110meio

de tão precária existência, e que a falta de auctoridade nos chefes (até por-que faltavam instituições civis) não fizessem com por-que em todas as

pha-ses da vida se manifestassem as consequencias de semelhante situação». Por outro lado, a relevância ético-jurídica concedida aos valores da paz, da solidariedade e da fidelidade não significa senão a cons-ciência da sua imprescindibilidade face a um período histórico marcado por uma profunda insegurança individual e colectiva.

Ill, O direito penal na baixa Idade Média (sécs,

Xl1I-XV)

e na Idade

Moderna (sécs. XV-XVllI)

§ 20. A associação destes dois periodos históricos, vulgarmente tidos por muito diferentes e, por isso,

autonomizados,

carece de uma justifi-cação.

Para nós, são maiores as diferenças existentes entre a sociedade altornedieval e a baixomedieval (e respectivos direitos penais) do que as existentes' entre esta e a Idade Moderna. Efectivamente, se a história em geral, tal como a natureza, não apresenta soluções de continuidade na sua evolução - natura non fit saltus, diziam os. latinos -, parece não haver dúvidas de que o período que vai do séc. XV ao séc. XVIII não só não apresenta qualquer ruptura face ao período da baixa Idade Média como, até, pode ser visto, em muitos aspectos, como prolongamento natural do processo histórico iniciado nos sécs. XII-XIII.

As características económicas, sociais, culturais, políticas e jurídi-cas da chamada Idade Moderna - ou, numa perspectiva mais político--jurídica, do período das Monarquias-Absolutas - começam a esboçar-se e a desenvolver-se, quer a nível europeu em geral quer no palco

penin-.sular

em especial, a partir da baixa Idade Média, acabando

por

se

revi-gorar e consolidar na Idade Moderna.

Reportando-nos ao direito penal, pode afirmar-se que a fisionomia de que se revestiu; no absolutismo monárquico, não foi mais do que

(12)

24 Farte I - Questões Fundamentais

uma evolução na continuidade dos princípios e características funda-mentais do direito penal, afirmados a partir dos sécs, XII-XIII.

§ 21. Ultrapassada a fase de natural desagregação em que a Europa Ocidental mergulhou, na sequência do declínio e queda do Império Romano do Ocidente, eis que, a partir dos sécs. XI-XII, uma interacção de múltiplos factores vai gerar uma nova Europa que, alicerçada na tra-dição cultural greco-latina, reencontra, na sua caminhada histórica, novos factores de progresso. A partir dos fins do séc. XI, processa-se uma pro-funda transformação na vida económico-social. Entre assuas princi-pais causas há que mencionar: o incremento

do

comércio e do artesanato que, através da nova e dinâmica classe social dos mercadores (burgue-ses) e das corporações de artes e oficios (artesãos), muito contribuiu para a formação dos centros urbanos (as, agora, partes históricas das actuais cidades) e para o fortalecimento do municipalismo medieval; o aumento demo gráfico e a emigração do campo para a cidade; as cruza-das que, apesar da sua motivação religiosa de libertar os Lugares San-tos, possibilitaram a descoberta de novas rotas e entrepostos comerciais mediterrânicos, para além de promoverem o intercâmbio e a aproxima-ção de diferentes povos cujas nacionalidades estavam em formação. Paralelamente a estas transformações económico-sociais e, em certa medida, com elas relacionada, inicia-se, em Bolonha, a redescoberta do direito romano-justinianeu, que, reorientado, mais tarde (séc. XIV), por Bártolo e sua escola dos comentadores, irá ter influência decisiva na for-mação dos novos Estados europeus e na criação da unidade cultural euro-peia. Éde todos conhecida a relevância do intercâmbio cultural que, desde os sécs. XlI--XII1, se estabeleceu entre os estudiosos de vários países da Europa, em tomo das ciências do direito romano e do direito canónico.

No plano cultural, não pode esquecer-se ou menosprezar-se a trans-cendente importância do reencontro com a filosofia e o pensamento helé-nícos, tarefa a que a Igreja Católica prestou um contributd fundamental.

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§22. No campo estritamente político-jurídico, o poder central vai-se, progressiva e firmemente, consolidando, acabando os monarcas por rei-vindicar para si os mesmos poderes que os imperadores romanos de ti-nham. À auctoritas universalis do império sucede aefectiva potestas do rei.' Este, à imitação do imperador romano cujo direito passa, agora, a ser

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Tltulo I - O problema criminoí-penol 2S

estudado e a inspirar as leis nacionais, vai chamar a si a primordial tarefa de legislar para todo o território nacional, reduzindo, simultânea e con-sequentemente, O papel dos direitos consuetudinário e municipal.

Este fenômeno de centralização e fortalecimento do poder poli-tíco, inspirado no lema «unum imperiurn unum ius», toma-se patente, na Península, a partir do seco XIII. Basta pensar, quanto a Portugal, na acti-vidade legislativa de D. Afonso 11 (Cortes de Coimbra, 1211), actiacti-vidade que e incrementada nos reinados seguintes. Relativamente a Castela, a extensa obra legislativa (Flores das Leis, Foro Real e, sobretudo, as

Sete Partidas) do rei sábio Afonso X, se, a um tempo, revela um nota-velmente profundo conhecimento do direito romano justinianeu e uma técnica jurídica admirável para um autor do séc, XIII, reflecte, também e de forma inequívoca, a preocupação centralizadora da época.

§ 23. O direito penal, como tónica sensível das transformações sociais, culturais e políticas, não podia deixar de reflectir os efeitos das transformações operadas a partir dos sécs. XII-XIII.

De facto, o processo de centralização política, que se virá a conso-lidar na Idade Moderna, determinou, naturalmente, urna progressiva publí-. cização dos iuspuniendi: A baixa Idade Média constitui como que a

char-neira entre um direito penal de justiça privativa (alta Idade Média) e um direito penal público (Idade Moderna). Na verdade, o direito penal, vigente no período que vai do seco XIlI ao séc, XV, revela-se como um sistema misto: ao lado de um direito penal público que, sob a influência do direito romano e do direito canónico, atribui à autoridade real o ius

puniendi, passa a considerar o crime como ofensa a toda a comum-da de nacional, começa a recorrer, com frequência, àpena de morte e evo-lui para a consagração do processo ínquísitórío, dizíamos que, lado a lado com este direito penal oficial, sobrevive, ainda e até cerca do séc. XV, o tradicional direito de auto tutela, de cariz e influência gennânica. Com-preende-se que assim tenha sido. Não seria da noite para o dia que as populações iriam abandonar hábitos enraizados ao longo de vários sécu-los. E assim, é que os reis, apesar de se considerarem absolutos, tiveram de condescender com certas práticas de justiça privada.

§ 24. A nova teorização política (iniciada pelos "glosadores" dos sécs. XI-XII1, desenvolvida pelos "comentadores" no séc. XIV, e

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26 Parte I - Questões Fundamentais

matizada pelos "tratadistas" ou "praxistas" dos sécs. XV-XV1), conver-tendo o rei em senhor absoluto, detentor directo de um poder divino e, por-tanto, responsável somente perante Deus, titular exclusivo do poder legi-ferante (cquod principi placuit legis habet vigorern»), colocado acima das suas próprias leis (cprinceps a legibus solutus»), administrador e juiz único e supremo, dizíamos, esta nova visão política, ao mesmo tempo que fere de morte as instituições político-sociais intermédias (municipais, senho-riais, corporativas), retira à solidariedade e à lealdade o conteúdo e a seiva psicossociológica e ético-pessoal que elas possuíam na alta ldade Média. A concepção altomedieval da fidelidade ou lealdade, entra em crise. Pois que, ao passaro monarca a considerar-se como senhor abso-luto e a deter um efectivo poder absoabso-luto sobre o seu reino e os .seus súb-ditos, estes já não careciam, para a sua segurança frente aos Inimigos externos e internos, de fazer apelo àlealdade reciproca dos membros do mesmo grupo a que pertenciam. Agora, essa segurança devem eles procurá-la no poder soberano absoluto do rei. Deixa, pois, a relação entre o monarca e os governados de ser uma relação de coordenação, de reei-procidade, mas de subordinação e de sujeição.

Assim, a noção e O sentimento de fidelidade pessoal são

substituí-dos pelo conceito e pelo dever jurídico de sujeição ao rei.

Posto em causa o valor da lealdade nas suas características de espon-taneidade e 'pessoalidade do vínculo

e

de reciprocidade dos deveres, em causa ficou

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crime de traição que na infracção daquele valor pessoal tinha a sua nota essencial. Esta crise do conceito altomediaval de traição consuma-se, nos sécs, XIV-XV, por influência da literatura jurídica italiana baixomedieval, acabando o crime de traição por se identificar com o «cri-, meu Iesae maiestatis: do direito imperial romano.

Traição passa a reduzir-se à traição régia e esta a ser sinónima de crime de lesa-majestade. De ora em diante e até finais do séc. XVIll, o delito de traição converter-se-à num meio de protecção do poder polí-tico personificado no rei e na sua majestade. A figura da traição for-maliza-se e empobrece (J).

(3) Sobre a caracterização da Alta Idade Média e da Baixa Idade Média, e do

res-pectivo Direito Penal, ver AMÉRICaTAIPA DECARVALHO, «Condicionalidade

Sócio-Cul-tural do Direito Penal» (cit. na nota I).

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Titula ( - O problema criminaí-penal 27

§ 25. O direito penal do período em análise caracteriza-se pela sua desumanidade, crueldade, desigualdade social, arbitrariedade e, conse-quentemente, pela sua natureza exacerbadamente repressiva e intimidativa.

A pena deixa de ter como objectivo principal o restabelecimento ' da ordem social ejurídica perturbada pelo delito, mediante a aplicação, ao infractor, de um castigo (mal) equivalente ao mal (dano) que ele cau-sou - retribucionismo objectivo; e passa a ter uma finalidade de inti-midação, muitas vezes de verdadeiro terror - prevenção geral de

inti-midação. ' , ,

O terror intimidatório era potenciado, para além da gravidade da pena, pela barbaridade do modo de execução desta e pela publicidade do local onde as mais graves penas eram aplicadas (junto ao pelourinho, no centro das vilas ou cidades) ou da condenação (marcas de ferro quente na testa ou no rosto).

§26. Havia as seguintes espécies de penas: penas capitais (morte simples e morte cruel,

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precedida de tormentos); penas corporais (flagelação, mutilação, castração, etc.); penas contra a liberdade (degredo, desterro, servidão, galés); e penas pecuniárias (confisco e multa). No caso dos mais graves crimes (de "lesa majestade divina", p. ex., sacrilégio, blasfémia, heresia; e de "lesa majestade humana", i. é, crimes contra o rei, a corte ou o reino), havia, ainda, a pena da infâmia do condenado, a qual se transmitia aos seus descendentes, implicando, para estes, urna série de incapacidades sociais, profissionais e jurídicas (p. ex., incapa-cidade de herdar).

§

27. A partir da baixa Idade Média, O rei, detentor da plenitude do poder soberano, chama a si o direito de perdoar. Se só o rei podia fazer as leis e se só ele estava acima .das suas leis, então também só a ele pertencia o direito de agraciar. E podia exercê-lo quando, como e a' quem quisesse. Era a arbitrariedade e a voluntariedade real que carac-terizavam o direito de conceder perdão (4).

C<) Sobre a história do direito de clemência, ver AMÉRICa TArPA DE CARVALHO,

«História do Direito de Clemência», in Estudos dedicados ao Prof Doutor Mário Júlio

(14)

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28 Parte I .-. Questões Fundamentais

Seguindo uma tradição, que remontava ao direito imperial romano, as medidas de clemência podiam consistir na amnistia (por motivos reli-giosos ou políticos), no indulto e na comutação (usada, muitas vezes, com objectivos económicas - p. ex., substituição de penas corporais ou mesmo de morte pelas penas de permanência nas colónias ultramarinas ou das galés).

IV. O direito penal na Idade Contemporânea (2.' metade do séc. XVIll - séc. XX) e o Estado de Direito

§ 28. Somos chegados ao período histórico, correntemente desig-nado por Idade Contemporânea. E, porventura, ainda correctamente denominado, apesar do propalado pós-modernismo como caracterizàdor e diferenciado!' dos tempos actuais face aos tempos anteriores, que vão dos fins do séc, XVIII até mais ou menos à década de 80 do séc. XX. A verdade, porem, é que ainda parece ninguém saber quais as matrizes culturais. consistentemente estruturantes deste dito pós-modernismo. Será a ausência ou o amolecimento das ideologias no sentido filosófico' e no sentido político-social? Será o pragmatismo imediatista? Será a renún-cia agnóstica aos ideais? Será a globalização do homo oeconomicus anestesiante do homo sapiens? Será a absolutização do "corno", des-prezando-se o porquê e o para quê? - Supomos e esperamos que não seja nada disto. É que, se foi criado o "forum económico mundial de Davos", logo surgiu o "forum social mundial dePOlia Alegre" - ao redutor pragmatismo econornicista há-de contrapor-se uma nova ideologia com renovados valores e ideais.

Feito este parêntese sobre a eventual gênese actual de um hipoté-tico novo ciclo da evolução histórica da humanidade, digamos que, ape-sar dos sinais de crise, os tempos actuais ainda se podem considerar abrangidos pela ainda chamada Idade Contemporânea. Com efeito, a estrutura social, cultural e política do tempo, em que nos é dado viver, ainda é a que foi gerada pela pluralidade e antagonismo das ideias e das teorias que irromperarn entre os

sécs.

XVIII e XX, a que nos referire-mos. No campo politico e jurídico, a consagração do Estado de Direito, a partir da

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metade do séc, XVIII, foi a matriz essencial da Idade Contemporânea, ao estabelecer um corte radical com a teoria

e

a prática

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Titulo I - O problema crirninal-penal 29

política e jurídica do absolutismo monárquico da chamada Idade Moderna (sécs. XV-XVIII).

1. A ideologia da ilustração e O direito penal - o Ilumínísmo

Criminal

§ 29. O séc. XVIIl assinala uma profunda viragem na história do pensamento, da cultura, da sociedade em geral. Viragem que não deve ser olhada como algo que abruptamente tivesse irrompido no espírito "ilu-minado" dos pensadores deste "século das luzes". Pois que os factores, que estiveram na origem deste novo ambiente cultural, político e jurídico de setecentos, já se vinham desenvolvendo de há muito, nomeadamente a partir dos sécs, XV-XVI. Entre eles, devemos destacar os Descobri-mentos, o Renascimento, a Reforma Protestante, a Revolução Cientí-fica e a Filosofia Racionalista.

É, todavia, no séc. XV1iI, que ganha forma e se sistematiza todo um conjunto de princípios que vão consagrar, no campo social, uma nova filosofia política, que se caracteriza pela substituição do teocentrismo pelo antropocentrismo e pela .substituição do Estado Absoluto inonárquico pelo Estado de Direito.

§ 30. O novo ideário filosófico-político-juridico caracteriza-se pelo individualismo, pelo jusnaturalismo e pelo racionalismo,

Individualismo, ao afirmar-se o princípio da prioridade do indivíduo face ao Estado; aquele, o indivíduo passa de "sujeito" a cidadão, i. é, do estatuto de submissão ao Estado para o estatuto de autonomia individual. Jusnaturalísmo, com a proclamação de um leque de direitos que, por natureza, pertencem a todo o indivíduo e que ao Estado apenas cabe o dever de os reconhecer, legal' e praticamente.

Racíonalísmo, pois se passa a considerar a razão humana como fonte e critério da verdade e da justiça. À heteronornia e transcendên-cia da fundamentação na lei divina passa-se para a autonomia e imanêntranscendên-cia do critério da verdade teórica e prática na razão humana.

§

31. Esta nova filosofia política não podia deixar de se repercu-tir profundamente no direito penal. Assim, critica-se, frontal e global-mente, o direito penal então ainda vigente. Concretaglobal-mente, o alvo dos

(15)

3Q Parte I - Ques/ÜesFundamentais

ataque; situou-se na arbitrariedade da justiça criminal, na instrurnenta-lização política do "ius puniendi", na ausência de quaisquer garantias de

defesa-do arguido, no casuísmo, classismo e crueldade das penas. Propõe-se um novo direito penal, uma nova política criminal que assenta nos seguintes princípios: contratualismo, utilitarisrno,'secularização e legalisrno.

§ :32. Recusando a estratificação social do Ancien. Régime e o carácter autónomo e absoluto do poder real, o pensamento iluminista pro-clama, na linha da teoria de Rousseau, a igualdade de todos os indiví-duos .e estabelece, como fundamento do direito de punir, o "contrato social", mediante o qual os cidadãos, detentores originários. do poder, delegam no Estado - contratualísmo - o direito de definir os cri-mes e de determinar as penas correspondentes, direito este que deve ser exercido e limitado pelo critério da necessidade ou utilidade social -- utílítarismo: pena justa é a pena útil, i. é, a pena que é necessária para prevenir a prática do crime.

§ 33. A defesa da liberdade e da igualdade de todos os Cidadãos exigiu que os crimes e as penas respectivas estivessem, prévia e clara-mente, descritos na lei e que o juiz estivesse sujeito e uma rígida inter-pretação literal - legalismo/gal'antismo.

§ 34. A afirmação da autonomia da razão humana e do poder poli-tico face à lei divina e ao poder religioso conduziu à exclusão dos cri-mes religiosos e à negação da influência do direito canónico na legislação . criminal - secularização.

§ 35. Como conclusão pode dizer-se que vários dos princípios fundamentais do direito penal actual nasceram com o iluminismo criminal. Entre 'eles, destacam-se os principias da legalidade, da celeridade pro-cessual (em conexão' com o fim preventivo-geral da pena) e o princípio da humanidade das penas e da sua aplicação, que iria levar à substitui-ção das penas corporais pela pena de prisão.

§ 36. Cabe, agora, fazer referência a alguns dos mais destacados penalistas do "Iluminismo Criminal".

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Cesare Beccariaé,justamente, considerado como um dos primeiros e mais importantes dinamizadores e difusores do novo ideário político--criminal do Ilurninismo. O seu pequeno, mas histórico livro Dei Deliui

e delle Pene (Sobre os Delitos e as Penas), de 1764, constitui um marco

na evolução do direito penal, evolução que, no caso, assumiu o carác-ter de uma verdadeira revolução ou ruptura como o direito penal cruel e repressivo no seu tempo ainda em vigor.

Os princípios fundamentais defendidos por Beccaria foram: a fun-damentação da pena na necessidade social de prevenir o crime; a pro-porcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do crime; o princípio da legalidade dos 'delitos e das penas; o humanitarismo das reac-ções ao crime, propondo a abolição, salvo casos excepcionais, da pena de morte e a substituição das penas corporais pela pena de prisão; e o princípio da celeridade processual, considerando que. a eficácia preven-tiva da pena depende mais da rapidez na sua aplicação do que da sua severidade.

§ 37. Anselm von Feuerbach, considerado pai da moderna ciência do direito penal alemã e tendo sido o principal autor do Código Penal da Baviera de 1813, criou a chamada teoria da coacção psicológica da pena. Esta teoria parte do princípio hedonlstico de que o sentido e o fun da acção humana é a busca de prazer e, em correlação negativa, . a fuga ao sofrimento. O crime reconduzir-se-ia, pois, a urna acção que,

desencadeada pelo infractor para a satisfação do seu "ego", vai, ilegiti-mamente, causar sofrimento a outra pessoa.

Sendo esta, segundo Feuerbach, a explicação "científica" do crime, não haveria outro processo coerente de o legislador evitar o delito senão através da ameaça de aplicação de um sofrimento a quem praticasse a acção prevista na lei penal.

-Nesta dialéctica psicológica prazer/desprazer (prazer, ligado à pra-tica da infracção; desprazer, contido na pena), naturalmente que a san-ção penal, se quer ser eficaz, há-de implicar um "quantum" de sofrimento superior ao prazer queOindivíduo (potencial delinquente) retiraria da

con-duta proibida. Eis a teoria da prevenção geral de intimidação através do mecanismo da coacção psicológica (psychologísche Zwang).

O momento fundamental desta intimidação-coacção reside na ameaça contida na lei penal. . Todavia, caso esta ameaça não se revele

(16)

32 Porre I - Que.rtOes Fundamentais

suficientemente dissuasora, então a execução efectiva da pena reforçará o efeito inibitório da ameaça legal, acabando esta por se tomar eficaz mesmo face aos m1USrenitentes (insensíveis).

'Para Feuerbach, o princípio da legalidade era o resultado lógico da conjugação de uma dupla exigência: a necessidade da defesa do indi-víduo face ao poder punitivo do Estado (garantia política) e a exigência de prevenção geral (garantia de eficácia). O efeito dissuasor da pena só se lograria na medida em que os factos prejudiciais à sociedade (os cri-mes) e os sofrimentos que lhe forem associados (as penas) estiverem, pré-via e claramente, descritos e estabelecidos na lei: nullum crimen, nulla

poena sine lege, na formulação latina criada pejo próprio Feuerbach.

§ 38. Em Portugal, um dos maiores arautos do Iluminismo Criminal foi Pascoal José de Mello Freire. Este autor seguiu, directamente, o pensamento do italiano Beccaria.

Entre a obra de Mello Freire, destaca-se a elaboração de um pro-jecto de Código de Direito Criminal (1789) e de umas lições de direito penal, intituladas Institutiones Iuris Criminalis Lusitani.

§ 39. Os princípios garantísticos do Iluminismo Criminal tiveram a sua consagração constitucional na primeira Constituição Portuguesa de 1822. Assim, O art. 10,0 desta primeira lei fundamental portuguesa declarava: «nenhuma lei, muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta necessidade»; e o art. 11.° estabelecia que «toda a pena deve ser proporcionada ao delito e nenhuma deve passar da pessoa do delinquente. Ficam abolidas a tortura, aconfiscação dos bens, a infâmia, o baraço e o pregão, a marca de ferro quente e todas as penas cruéis

e

infamantes». Quanto àlei ordinária, depois da elaboração de vários projectos de Código (que não chegaram a ser aprovados), entre os QU1USo já referido de Mello Freire eO de José da Veiga de 1837, foi, finalmente, publi-cado, em 1852, o primeiro Código Penal Português. Este Código, que revogou, definitivamente, o livro V da Ordenações Filipinas (chamado "liber terribilis") e que se inspirou nos Códigos Penais francês de 1810, brasileiro de 1831 e espanhol de 1848, deu corpo a várias das propostas do Iluminismo Criminal. Assim, consagrou: o princípio da legalidade; imputou à pena uma finalidade preventivo geral de intínúdaçâo, embora esta finalidade de intimidação fosse limitada pela proporcionaJidade entre

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Tltulo 1 - O problema cruninal-penal 33

a gravidade da pena e a gravidade do crime; proibiu a aplicação analó-gica e a interpretação extensiva no âmbito da incriminação.

2, A filosofia idealista e a Escola Clássica (I" metade do

séc, XIX)

§ 40. Na L" metade do séc, XIX, afirma-se uma nova concepção do direito penal, concepção que vem 'contrapor à visão pragmática e utilitária dos autores do Iluminismo Criminal urna perspectiva filosó-fico-metafisica do direito penal. Esta concepção, de que apresentaremos os pontos principais, ficou conhecida por Escola Clássica e inspirou-se na filosofia idealista alemã, nomeadamente no pensamento de Kant, expresso na sua obraMetafisica dos Costumes ("Grundlegung zur

Metap-hysik der Sitten", 1785), mas também no de Hegel, contido na obra

Fundamentos da Filosofia do Direito ("GlUnd1inien der Philosophie des

Rects", 1821).

Estes filósofos, com o seu racionalismo gnoseológico é com a sua antologia idealista, procuraram refundamentar, ético-filosoficamente, o direito penal.

§ 41. Os postulados do chamado humanismo idealista, proposto por estes autores, eram: a dignidade da pessoa humana deve sempre ser considerada como um fim em si mesma, como um valor absoluto - «Age sempre de modo que a humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, seja sempre considerada como fim, numa como meio» (Kant); a característica essencial desta dignidade é o livre-arbítrio, i. é, a capacidade de urna decisão absolutamente livre e incondicionada; a esta liberdade ontológica e radical corresponde uma responsabilidade ética individual autónoma e absoluta; esta.liberdade deve ser exercida no res-peito da norma fundamental da acção humana, norma que está inscrita na consciência moral de cada um e que é racionalmente apreendida - «O imperativo categórico é, portanto, um só, e, sem dúvida, este: age sempre segundo uma máxima tal que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se tome uma lei universal» (Kant).

§ 42. Esta antropologia tão racionalista e idealista pouco tinha que ver com a concepção utilitária e hedonística da ideologia da "Ilustração",

(17)

34 Parte I - Queslões Fundamentais

Ao homem dos sentidos e dominado pela busca do prazer sensível de um Bentliam ou de um Feuerbach contrapõe-se a visão sublime e exaltante do homem kantiano, iluminado apenas pela razão e norteado pela trans-cendente realização da Justiça.

Estes pressupostos racionalistas e idealistas provocaram uma pro-funda alteração da concepção do direito penal, nomeadamente nos

pro-blemas da legitimação do ius puniendi e da finalidade da pena. A Escola Clássica enfrentou a eterna e sempre recorrente questão da legitimidade da pena, num momento histórico caracterizado pelos excessos de terror cometidos durante a Revolução Francesa.

Esta questão foi resolvida através do principiada retribuição ética: a pena justa é a pena retributiva, i. é, aquela que corresponde à gravidade do ilícito e da culpa do infractor. Esta retribuição 'ética, imputada à pena, é uma exigência ontológica para o mau exercício do livre-arbítrio, éum imperativo categórico da justiça. .

Para a Escola Clássica, a retribuição ético-jurídica é o único e abso-luto critério da aplicação e determinação da pena criminal. Para os autores desta Escola, o «se», Ó «quando» e o «como» da pena não podem ser influenciados por considerações heterónornas de utilidade social. Pois que tal dependência dos critérios pragmáticos 'da necessi-dade de defesa da socienecessi-dade conduziria à instrumentalízação politica da pessoa humana e à relativização do Direito. Instrumentalização e rela-tivização que, segundo os autores da Escola Clássica, é fomentada pelas teorias da: prevenção geral (pena como meio de intimidar a cornuni-dade) e da prevenção especial (pena como intimidação do delinquente para que não reincida).

Assim, escreveu -Kant: «A pena judicial [... } não pode nunca ser aplicada como meio para obter um outro bem, seja no interesse do delinquente ou da sociedade civil, mas deve ser sempre

e

só aplicada ao réu porque ele delinquiu; com efeito, nunca o homem pode ser' tratado como simples meio para a realização das intenções de outro e ser incluído entre os objectos do direito das coisas, do que o protege a suaperso-nalidade inata».

E Hegel, criticando os «superficiais pontos de vistal) das teorias da «prevenção, intimidação, ameaça, correcção», afirma, contra a teoria da coacção psicológica de Feuerbach que (\0 Direito e a Justiça têm que ter o seu fundamento na liberdade e na vontade, e não na falta de

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Tttulo I - O problema criminal-penal 35

liberdade à qual se dirige a ameaça. Quando se fundamenta a pena desta maneira é como se ameaçássemos um cão com um pau, não sendo o homem tratado segundo a sua honra e liberdade, mas como um cão». E o mesmo, elevando o Direito a uma ordem absolutamente perfeita e como que transcendente, acrescenta:

«o

facto do delito não é um quid

originário e positivo a que sobrevenha a pena como negação, mas é, sim, um quid negativo de modo que a pena ésó a negação da negação» - teoria da retribuição jurídica da pena: a pena como reafirmação do Direito.

§ 43. Como apreciação crítica da Escola Clássica, há que regis-tar o seu mérito, mas também o seu demérito,

O seu mérito esteve em ter elevado o principio da culpa indivi-dual a principio fundamental do direito. O seu demérito esteve em ter - a partir de um pretenso bumanismo que tem tanto de idealista como de irreal -:- absolutizado a liberdade (livre-arbítrio), a culpa, o direito, o crime e a pena, negando ou, pelo menos, menosprezando a historicí-dade e consequente relativihistoricí-dade de todas estas categorias. Não pode, com efeito e contra o que radicalmente proclamava a Escola Clássica, con-ceber-se a punição criminal, a pena, como um imperativo ético categó-rico, mas, pelo contrário, tem que ser, prática e humildemente, vista como uma necessidade pragmática de prevenção, geral e individual, da prática de futuros crimes. Utilizando as expressões latinas, não se pune'

quia

peccatum,

mas, sim, ne peccetur; ou seja, a razão de ser da pena não olha ao passado, mas sim ao futuro: pune-se como prevenção de novos crimes, embora a punição pressuponha a culpa do que infringiu, e não possa ultrapassar o "grau" da .culpa do infractor.

3. A Escola Correcclonalista- e

o

humanitarismo penal (a par-tir de meados do séc, XIX)

§ 44. Inspirado no pensamento de Krause, Rõder veio defender, contra a Escola Clássica, uma concepção mais pragmática e realista do homem e do direito penal.

Os princípios fundamentais do correccionalismo foram: ao lado de uma responsabilidade individual, há uma corresponsabilidade social; esta corresponsabilidadesocial vincula o estado a criar as condições para

(18)

36 Parte J - Questões Fundamentais o delinquente poder corrigir as suas tendências' para o crime e, assim, exercer a sua liberdade no respeito do direito; a pena é o meio para a correcção do delinquente ~ fim de prevenção especial; enquanto não forem esgotadas todas as possibilidades de recuperação social, todo o delinquente deve ser considerado corriglvel.

. § 45.. O ideário correccionalista teve profunda influência na penín-sula ibérica e noutros países católicos (como, Bélgica ePolónia) .

. Levy Maria Jordão foi o grande divulgador, em Portugal, das ideias correccionalistas. Elaborou dois Projectos de C6digo· Penal (1861-64), que, assumiam os princípios correccionalistas, e que visavam a substituição do Código Penal de 1852.

Apesar de não terem sido aprovados, as suas 'ideias tiveram grande influência em várias e importantes leis penais, aprovadasna 2." metade 'do séc. XIX, Foram elas: Lei de 1 de Julho de 1867, que aboliu a pena de morte (para os crimes comuns, pois que, para

os.

crimes polí-ticos, já tinha sido abolida pelo acta adicional de 1852) e a pena de tra-balhos forçados, e que, no capitulo da execução da pena de prisão, aco-lheu O chamado "modelo penitenciário de Filadélfia"; e Lei de 6 de

Julho de 1893, que criou os institutos da suspensão condicional da pena,

e ·da liberdade condicional.

§ 46. Enquanto o Càdigo Penal de 1886 (que assumiu a Reforma Penal de 1884, e que substituiu o Código Penal de 1852) reflectiu uni. misto do retribucíonismo clássico e do humanitarismo correccionalista, já as reformas penitenciárias foram sempre no sentido de um aprofun-damento da execução da pena de prisão como meio de

correcção

do' delinquente.

Assim: a Lei de 29 de Janeiro de 1913 substituiu O "modelo peni-'

tenciário de Filadélfia" (isolamento celular, nocturno e diurno) pelo "modelo penitenciário de Aubum", caracterizado pelo trabalho diurno em comum; o Decreto 11.026643, de 28 de Maio de 1936 (cujo pro-jecto foi da autoria de Beleza dos Santos), adoptou o chamado "modelo progressivo ou irlandês", em que a execução da prisão ia desde uma fase inicial de isolamento até à fase em que o preso podia conviver com os outros presos, e desempenhar cargos de confiança; finalmente, o

Dec-Lei n.o265/79, de 1 de Agosto (cujo projecto foi da autoria de

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Tttulo I - O problema criminal-penal 37

Eduardo Correia), vai no sentido de que a execução da pena de prisão não pode ignorar os direitos fundamentais do recluso, e deve ser orien-tada para a criação do sentido de responsabilidade do preso e para a sua preparação para a vida em liberdade. Este Decreto-Lei também consagrou a jurisdicionalização da execução das reacções criminais privativas da liberdade, através da criação dos Tribunais de Execução das Penas (S).

4. O cientlsmo oitocentista e.a Escola Positiva (últimas déca-das do séc. XIX - primeiras décadéca-das do séc. XX)

§ 47. A Escola Positiva recusou, frontal e globalmente, todos os postulados filosófico-metafisicos da Escola Clássica, apresentando uma política criminal nova e radicalmente. oposta à da Escola Clássica.

§ 48. O positivismo jurídico-criminal foi o resultado da trans-posição, para a ciência penal, da mentalidade positivista da 2.ametade do séc, XIX: substituição da razão ("deusa razão") pela experimentação científica ("deusa ciência").

Assim, o comportamento humano, individual e colectivo, e, portanto, o comportamento criminoso, passou a ser tratado como um puro fe116-meno natural, explicável pelo único (para eles) critério válido de conhe-cimento, que era o da investigação experimental.

Conclusão: contra o abstraccionismo e o dedutivismo rnetafísicos da Escola Clássica, passa-se para um reducionismo positivista-naturalista: redução do real ao empírico (positivismo ontológico), e redução do método de conhecimento à investigação experimental (positivismo epis-. temológico)epis-.

§ 49. Comte, Darwin, Marx e Freud são símbolos destacados e influentes na afirmação deste clima cientista, respectivamente, nos

cam-pos

sociológico, biológico, económico-social-cultural, e psicanalítico.

(I) Sobre a evolução hlstérica dos regimes de execução das penas privativas da

liberdade (i.é, história do direito penitenciário), veja-se PAUJ..O PINTO.DE ALBUQU13RQUE,

(19)

38 Parte 1- Questões Fundamentais

§.50. A Escola Positiva proclamou, contra a trilogia da Escola

Clás-sica "liberdade, culpa, pena", a trilogia positivista "deterrninísmo, perl-gosídade, medidas de segurança". Toda a política criminal passa a dever centrar-se na perigosidade do delinquente. Pois que, -afirmadoo deterrninismo da conduta humana (não sendo a liberdade senão a ignorância da relação causal entre factores bio-psicológicos e/ou sociais e o com-portamento delinquente), a perigos idade do infractor é o único pressu-posto e critériojustificativo da intervenção da sociedade, através do Estado. Assim, em vez da preocupação com as tipologias dos factos (pois que estes são apenas sintomas de determinada perigosidade), a preocu-pação e a investigação das diferentes espécies de perigosidade, i. é, das tlpologias de delinquentes. E, consequentemente, em vez de penas (que são castigo e pressupõem uma liberdade inexistente), medidas de segurança: segurança da sociedade, e, se possível, tratamento da

peri-gosidade do delinquente. .

o.

critério da definição dos crimes (reduzidos a meros fenômenos humanos socialmente danosos) e da determinação das suas consequên-cias jurídicas dependeria apenas das concepções sociais do legislador: con-fluência do positivismo naturalista comopositivismo jurídico.

Donde, a conclusão: nada de retribuição (que pressupõe a culpa), nada de prevenção geral (que pressupõe a intirnidabilidade dos potenciais delinquentes), mas só prevenção especial de tratamento da perígosídade, ou de inocuização do delinquente, no caso dos delinquentes' incorrigíveis.

§ 5 L A Escola Positiva dividiu-se em duas perspectivas e em dois ramos: biologia criminal e sociologia criminal.

A biologia criminal: Lombroso, com o livro "L'Uomo Delin-quente" (1876), defende, inicialmente, uma explicação meramente. bio-lógica do crime (o atavismo do "delinquente nato"). Posteriormente, aco-lhe, ao lado da explicação biológica do criminoso-nato, propenso à criminalidade violenta, a explicação bio-psicológica. Esta perspectiva, que se reconduz à aceitação de uma categoria de delinquentes com um carácter incapaz de resistir às influências perniciosas da sociedade, expli-caria a chamada "criminalidade evolutiva", caracterizada pelo recurso à fraude e à burla.

A sociologia criminal: Ferri, com o seu livro "Sociologia Crirni-nale" (1892), acentuou os factores sociais como principais causas do

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I.,

Titulo 1 - O problema criminal-penai 39

crime. Esta via explicativa sociológica também foi seguida pela sua contemporânea escola franco-belga, nomeadamente por Lacassagne e G. Tarde (6).

§ 52. Apreciação crítica da Escola Positiva: o grande contri-buto, para o direito penal, foi ter chamado a atenção para a necessidade da consideração da personalidade concreta do delinquente, o ter inter-pelado a doutrina e o legislador para a adopção de medidas alternativas

àprisão, e ter elevado a criminologia à categoria de verdadeira ciência;

os

aspectos negativos foram a secundarização (e, por vezes, negação) das garantias legais e jurisdicionais do delinquente, e a negação de qual-quer dimensão ética do direito penal, assim se correndo o risco de redu-ção do direito penal a um mero conjunto de técnicas de um qualquer defensismo social.

5. As Correntes Mistas do direito penal (desde fins do séc. XIX até cerca da década de 70 do

séc,

XX)

§ 53. Razão de ordem: acabámos de ver como o iluminismo cri-minal em sentido estrito, a escola clássica e a escola positiva se apre-sentaram como teorias claramente estruturadas em posturas filosóficas e antropológicas radicalmente demarcadas, e como, consequente e coe-rentemente, conduziram a concepções globais do direito penal, claras e

radicais. .

É também de salientar que, apesar do seu unilateralisrno radical, cada uma destas correntes ou escolas consagrou aspectos positivos funda-mentais do direito penal: o ilumínismo criminal afirmou a necessidade civilizacional da defesa dos direitos fundamentais individuais frente ao poder punitivo do Estado; a escola clássica consagrou o princípio da culpa como condição irrenunciável da aplicação da pena; a escola posi-tiva radicou a justificação do direito penal na necessidade da defesa da sociedade contra a perigosidade dos delinquentes, elevando a prevenção especial à categoria de fun principal da pena.

(6) Sobre a perspectiva criminológíca da Escola Positiva, pode ver-se

(20)

40 Parte J - Q"eslões Fundamentais

§54. As correntes mistas ou "terceiras-vias" resultaram do

reco-nhecimento destes contributos positivos, e da tentativa de articulação conciliadora (síntese) destes contributos: garantias individuais, princí-pio da culpa, retribuição e prevenção geral e especial.

Certo é que tais tentativas não podiam lograr êxito completo. Pois que: ou se aceitava o livre-arbítrio (a absoluta liberdade de

deci-são no momento do facto), e, então, a decisão e a determinação da medida concreta da pena deveria fazer-se em função da gravidade da culpa, imputando-se à pena uma natureza e uma função primordialmente ético-retributiva, e, assim, ficando reservada para a prevenção (geral e especial) um papel secundário ou complementar; ou, pelo contrário, se optava pela prevenção (especial e geral), e, então, tinha-se de subal-temizar o princípio da culpa, em matéria de fundamentação e deter-minação da pena.

§

55.

A primeira posição foi defendida pelas teorias. étlco-retrl-butivas ou neoclássicas (p. ex., Bettiol), que conferiam à culpa o papel fundamental na determinação da pena,

ao

-mesrno tempo que afirmavam que a pena justa (i. é, a pena correspondente àculpa) era aquela que melhor cumpria as funções de prevenção, quer geral quer especial.

Mas estas teorias, quando colocadas diante da incontornável exis-tência da categoria dos imputáveis perigosos, ou tinham que juntar, ao lado da pena referida à culpa, a medida de segurança para fazer face à perigosidade (sistema dualista), ou, então, tiveram que recorrer à chamada "culpa pela (não) formação da personalidade" (p. ex., Mezger, Eduardo Correia), considerando que a perigos idade dos imputáveis era também culposa, e, portanto, aos imputáveis perigosos só deviam ser aplicadas penas (sistema rnonista),

§ 56 .. Outros autores, embora sem pôr de lado o princípio da culpa, optaram pela fundamentação e consideração da pena como uma neces-sidade social. Assim, imputaram à prevenção especial (e à prevenção

geral) o fim da pena. .

Relativamente à questão da liberdade, enquanto suporte do juizo de culpa, recusavam-na enquanto livre-arbítrio ou "liberdade de

indife-rença", defendendo uma como que concepção psicológica da liberdade,

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problema criminal-penai 41

da culpa e da responsabilidade individual e social. Assim, Marc Ancel,

fundador da chamada "Nova Defesa Social", escreveu: a liberdade é «sentimento íntimo e natural da responsabilidade pessoal».

Este quadro de pensamento jurídico-penal também já tinha sido, anteriormente, proposto pela "Escola Moderna ou Sociológica" alemã (fundada por Franz vou Liszt, em [mais do séc. XIX) e pela "Terza Scuola" italiana (fundada por Carnevale e por Alimena, nos princípios do séc. XX).

Uma

vez

que estas doutrinas vinham na linha da escola correccio-nalista e da escola positiva (embora sem o radicalismo desta), écorrecto designá-las por correntes neopositivas .

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