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Os peixes sob a ótica dos viajantes do passado e do conhecimento atual

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Os peixes

sob a ótica dos viajantes do passado

e do conhecimento atual

Carlos Bernardo Mascarenhas Alves 1

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1Biólogo do Projeto Manuelzão, Coordenador do Subprojeto S.O.S. Rio das Velhas 2Biólogo do Projeto Manuelzão

Cará Geophagus brasiliensis.

Fotografia: Paulo dos Santos Pompeu.

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Introdução

O Rio das Velhas é um dos únicos rios do Brasil a ter sua ictio-fauna intensivamente estudada no século XIX. Entre os anos de 1847 e 1856, o zoólogo dinamarquês Johannes Theodor Reinhardt realizou pesquisas sobre os vertebrados da região do entorno de Lagoa Santa, a convite do colega Peter Wilhelm Lund. A coleção reunida àquela época foi enviada para a Dinamarca, onde se matém preservada no Museu de Zoologia de Copenhague, dando origem à monografia Velhas — Flodens Fiske — Et Bidrag til Brasiliens Ichthyologi (Peixes do Rio das Velhas — Uma Contribuição para a Ictiologia do Brasil), publicada por Chistian Frederik Lütken, em 1875. Este trabalho foi recentemente traduzido para o português, em esforço empreendido pelo Projeto Manuelzão, através do Subprojeto S.O.S. Rio das Velhas.

A importância da obra para a época é enfatizada por Britski, con-tudo reconhece-se sua importância ainda hoje. Até aquele momento, eram conhecidas cerca de 40 espécies para toda a bacia do Rio São Francisco, sistema do qual o Rio das Velhas é um dos principais aflu-entes. Apenas no Rio das Velhas, foram registradas por Reinhardt 55 espécies, 20 delas descritas pela primeira vez na obra de Lütken.

Os relatos da obra de Lütken, muitos deles baseados nas ano-tações do professor Reinhardt, juntamente com a narrativa de ou-tros naturalistas que percorreram a bacia do Rio das Velhas no sécu-lo XIX, são permeados de informações sobre o rio, a ecosécu-logia dos peixes e a pesca, além de lendas e contos dos pescadores da região. Nesse contexto, também se destaca o trabalho de Sir Richard Francis Burton, que empreendeu a Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico, também traduzido em 1977.

Algumas dessas informações são discutidas aqui à luz do conheci-mento atual, mais de 150 anos após as empreitadas daqueles aven-tureiros. O atual estado de degradação do Rio das Velhas, sua conse-qüência sobre a fauna de peixes e as perspectivas para sua recupe-ração também são abordados. O privilégio de podermos consultar dados históricos confiáveis permite as comparações e interpretações, fato raro para a grande maioria das bacias hidrográficas brasileiras.

A pesca na bacia do Rio das Velhas

Nos relatos dos naturalistas que percorreram a bacia do Rio das Velhas, chama a atenção o destaque dado à atividade pesqueira, testemunho da riqueza e abundância originais da fauna de peixes. Referindo-se à região de Santa Luzia, que provia de peixes a Mina de Morro Velho, Burton salientou:

Surubins pescados no Rio São Francisco para o presidente Mello Vianna, 1925.

Arquivo Nelson Coelho de Senna. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.

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Figura 1 – Bacia do Rio das Velhas. Em destaque a provável área de estudos de Reinhardt no século XIX.

1= Locais de coleta: RV-01 √ São Bartolomeu; RV-02 √ Sabará; RV-03 √ Lagoa Santa; RV-04 √ Curvelo; RV-05 √ Corinto; RV-06 √ Lassance; ON-01 √ Rio da Onça; CP-01 e CP-02 √ Rio Cipó, PG-01 √ Rio Pardo Grande; CU-01 √ Rio Curimataí e BI-01 √ Rio Bicudo.

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Esta parte do rio apresenta perspectivas para uma indústria muito mais valiosa nos grandes cardumes de peixe que percorrem as águas. . . Quem visitar estes rios, deve vir munido de caniço com os maiores anzóis de água doce e com sistema de enrolamento mais resistente; do contrário, os peixes que pesam mais de 50 kg o surpreenderão. . .

Além dos relatos sobre a situação e perspectivas da pesca na bacia, não são raras as narrativas sobre algumas das pescarias viven-ciadas pelos estudiosos que por aqui estiveram:

O céu tropical, a densa floresta, quase impenetrável, as muitas pessoas nuas pretas ou morenas que ora estavam se movimentando pelo rio, ora cor-riam pelas margens aos gritos e gargalhadas, enquanto outros preparavam comida junto a uma fogueira com parte do resultado da pesca, compunham em toda a sua simplicidade uma cena pictórica e selvagem; precisava-se muito pouca imaginação para confundir as pessoas de diferentes cores com os índios selvagens e se ver no meio de verdadeiras crianças da selva tropical. . .(Lütken)

Naquela noite (13 de setembro de 1867), a temperatura mostrou-se deli-ciosa, fresca mas agradável. Os homens pescaram com sucesso; os peixes morderam vorazmente as iscas. Cinco douradinhos (considerado como espécie menor de dourado) e oito mandins logo se viram atirados no chão, e quando a linha, quase da espessura de um dedo, foi deixada dentro d’água, não tar-dou a ser cortada, segundo o piloto, por uma piranha. . . (Burton)

A espécie mencionada acima como douradinho trata-se possivel-mente da tabarana ou dourado branco (Salminus hilarii), espécie pis-cívora de médio porte, que hoje ainda é encontrada com freqüência nos afluentes com maior grau de conservação. No mesmo relato, chama a atenção a fama da piranha (Pygocentrus piraya).

Recentemente, essa espécie foi registrada na calha do Rio das Velhas durante um episódio de mortandade no seu curso médio, mas não tem sido capturada durante os estudos regulares na bacia, denotan-do sua baixa prevalência.

Outros peixes foram objeto de descrição a partir das técnicas específicas de pesca para a sua captura. Wells descreve a pesca do surubim em outro importante afluente do Rio São Francisco: o Rio Paraopeba.

O rio era cheio de peixes que se pode pescar com linha e anzol. O modus operandi de se pescar o surubim, peixe grande, pintado e sem escamas, é um processo progressivo. Primeiro se usa uma vareta leve, uma jarda ou duas de fio de algodão, um alfinete curvo e uma minhoca, exata-mente como os garotos londrinos usam nos lagos suburbanos para pegar esgana-gatas. Uns piaus pequenos, de duas ou três polegadas de comprimen-to, eram logo pescados, em seguida dispensava-se o equipamento e

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transfer-íamo-nos para outra parte da ribeira; um bambu longo e flexível era usado agora como vara de pescar, com uma linha fina e forte de crina trançada, presa a ele e um anzol de fabricação caseira na ponta; um dos piaus servia de isca. Uns poucos peixes de tamanhos variados de diferentes espécies eram pegos; dourados, uma espécie de salmão dourado; matrinxão, uma espécie de pardelha; e o resmunguento mandim que, em forma e cor, lembra uma save-lha, mas a cabeça é toda envolvida em uma substância que parece uma con-cha. Um dos matrinxões, de cerca de meia libra de peso, era selecionado para próxima isca. Mudava-se então para a beira de um poço muito fundo, em uma curva do rio onde havia um redemoinho. Um forte cabo de crina mistu-rada com fibras internas da parasita ‘barba-de-velho’, era desenrolado; um anzol grande, capaz de segurar um tubarão, era preso em uma extremidade e enfiado no rabo do infeliz matrinxão; uma pedra grande era amarrada ao cabo a uma distância de aproximadamente quatro pés do anzol e a linha, assim preparada, era jogada no poço, a extremidade do cabo enrolado no tronco de uma árvore pequena, e aí pode-se ir embora para voltar só na manhã seguinte e encontrar, duas vezes em três, um surubim na extremidade do cabo, com isca e anzol no estômago.

Sobre as observações de Reinhardt sobre a curimatá-pioa (Prochilodus costatus), Lütken escreveu:

. . . é muito comum no Rio das Velhas e seus afluentes e ocorre também na Lagoa Santa; . . . Não morde anzol, . . . mas é capturado com rede ou com um instrumento de pesca conhecido como pari: em lugares onde o rio tem uma pequena queda, faz-se uma represa de gravetos e galhos, na qual se deixa somente uma abertura de 3–4 pés (0,95m a 1,25m); abaixo desta prende-se uma grande caixa com o fundo de treliça, na qual os peixes que nadam contra o fluxo do rio pela abertura ficam presos e são capturados, já que não con-seguem voltar subindo a corrente de água em queda que derrama na caixa. . .

As curimatás, ainda bastante abundantes na bacia do Rio das Velhas, possuem hábito alimentar iliófago (comem lodo), o que difi-culta a sua captura com anzóis. Devido a essa característica, outros tipos de pesca são utilizados para a sua captura. Entre as técnicas de pesca descritas pelos naturalistas ainda podem ser citadas a gamboa ou curral, o jequi ou jiqui, a grozeira, chiqueiro, linha douradeira, jirau, entre outras. Destas, apenas o jequi, a linha douradeira, que é um bambu com linha e anzol, e a grozeira (um tipo de espinhel) tiveram o seu uso registrado em estudos recentes.

Quanto ao jequi, cabe um interessante relato de como algumas das formas de captura descritas no século XIX se mantiveram em prática, passados quase dois séculos:

Reinhardt esclarece que “a razão pela qual a barriga nos ‘mandis’ capturados freqüentemente estivesse cheia de uma espécie de Polistes (gênero de vespas) é que são freqüentemente pescados em armadilhas, nas quais se

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coloca como isca um ninho de vespas. Apesar do fato de este ficar na água, as pupas completam o seu desenvolvimento nas celas fechadas e amadurecem com o tempo; tão logo os ‘mandis’ as percebem, entram nas armadilhas e as comem, à medida que estas vão saindo”. (Lütken)

No trabalho desenvolvido na calha do Rio das Velhas, encon-tramos em Nossa Senhora do Glória, no lugarejo denominado Caquende, um pescador que ainda se utilizava da mesma técnica para capturar seus peixes. Ninhos de vespa, marimbondo ou mesmo abelhas são colocados dentro do covo ou jequi. Naquela oportu-nidade, em 1999, a armadilha continha três bagres-sapo

(Pseudopimelodus fowleri).

A região de Lagoa Santa

A partir do estabelecimento do pesquisador dinamarquês em Lagoa Santa, a região passou a ser regularmente visitada por diver-sos naturalistas. Por esta razão, a maioria das narrativas sobre a fauna da bacia diz respeito aos seus arredores. Esses relatos são par-ticularmente importantes, já que a cidade faz parte, hoje, da Região Metropolitana de Belo Horizonte, com elevado grau de urbanização e turismo intenso.

Nas últimas semanas de minha estada em Lagoa Santa, perto do início da estação das chuvas, em meados de outubro, tanto os moradores da cidade como os fazendeiros locais começaram a praticar com empenho pesca com redes no Rio das Velhas e seus afluentes menores. . . Os frutos da pesca eram mandi, mandiaçu, mandi-bagre, surubim, crumatã, dourado, matrinchã e corvina. . . . Algumas vezes participei da pescaria a pouco mais de uma légua de Lagoa Santa, no ribeirão do Mato, que passa dentro de uma flores-ta basflores-tante fechada. . . (Lütken)

As espécies mencionadas acima são as mais importantes na pesca comercial da bacia do São Francisco. O curso d’água menciona-do, hoje conhecido como Ribeirão da Mata, passa por vários municí-pios da RMBH e encontra-se em acentuado estado de degradação. É difícil imaginar a floresta e a fauna descritas na região, onde hoje encontramos um ambiente totalmente descaracterizado e poluído.

Pouco tempo depois, entre 1865 e 1866, integrantes da Expedição Thayer (Orestes Saint-John, George Sceva, Thomas Ward e Joel Allen) foram até a região de Lagoa Santa. Freitas, em pesquisa realizada com base no material literário da época, revela que

. . . na mesma região (Lagoa Santa), que era conhecida como uma estação de caça abundante, especialmente num lugarejo chamado Ribeirão da Mata, o taxidermista George Sceva permaneceu por vários meses e fez uma imensa

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e valiosa coleção de animais, entre mamíferos, aves e peixes, que pode ainda ser vista como parte integrante do acervo do Museu de Zoologia Comparada, em Cambridge.

Dentre os relatos históricos sobre os peixes da Lagoa Santa, o que trata da pesca do mandi é, talvez, o de maior importância histórica, já que contrasta, fortemente, com a dinâmica atual da ictiofauna. O mandi-amarelo é encontrado não só no Rio das Velhas, mas também no lago (Lagoa Santa). No outono, o peixe deixa o lago em densos cardumes, através de riacho que serve de escoadouro para este; se o peixe retorna em outra estação do ano, não se sabe, mas é avidamente pescado em sua viagem, quando desce o pequeno riacho. No dia 10 de fevereiro de 1855, os mandis estavam saindo do lago, que ficou muito cheio após uma chuva incomumente forte; foram caçados com rede, anzol, cestos e até mesmo com varas, enquan-to eles estavam retidos na parte cheia do junco do lago, onde situava sua saída. Vários foram capturados, embora não fossem muitos em relação à grande quantidade de peixes que se movimentavam juntos para sair do lago, talvez para depositar suas ovas nas águas correntes do rio. . . o pequeno Tetragonopterus , que os brasileiros chamam de “piaba-do-córrego”, foi por ele freqüentemente obtido em um pequeno riacho por onde a Lagoa Santa derrama sua água excedente, e que nem mesmo no tempo da seca fica sem água. Ao contrário, ele nunca viu ser capturado na própria lagoa e, apesar de ele ter observado muitas centenas de meninos realizando a pesca de “piaba-do-lago”, nunca havia ali uma única “piaba-do-córrego”, e, vice-e-versa, ele nunca viu a “piaba-do-lago” ser pescada no riacho. . . (Lütken)

Hoje, o mandi-amarelo, a curimatá-pioa e várias outras espécies não ocorrem mais na Lagoa Santa e, na maior parte do ano, nenhum peixe pode ser encontrado no Córrego Bebedouro, que liga a lagoa ao rio. Assim, essa narrativa serve para salientar algumas das razões que fizeram diminuir a riqueza, diversidade e abundância de peixes. A ligação existente entre a lagoa e o rio hoje não passa de um córrego canalizado, poluído por esgotos e que serve como depósito de lixo. A saída da lagoa encontra-se obstruída por uma grade e os juncos que a circundavam não existem mais, devido à alteração no nível da água da lagoa. Sobre essa vegetação, Burton relata que nas margens da Lagoa Santa “cresce um fino junco, do qual se fazem colchões.”

A conexão original entre a Lagoa Santa e o Rio das Velhas foi interrompida pela ação do homem (canalização), impedindo que a maioria das espécies nativas da lagoa completem o seu ciclo de vida. Atualmente, o pescado da lagoa é constituído apenas por tilápias e tucunarés, espécies exóticas, trazidas da África e da bacia amazôni-ca, respectivamente. Anteriormente, segundo aquele viajante inglês, “. . . os pobres quase vivem só de traíra, curimatão e da perigosa piranha” (provavelmente a pirambeba, Serrasalmus brandtii)”.

Tabarana Salminus hilarii. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

Curimatá-pioa Prochilodus costatus. Fotografia: Paulo dos Santos Pompeu.

Matrinchã Brycon orthotaenia. Fotografia: Paulo dos Santos Pompeu.

Piranha Pygocentrus piraya. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves

Piau-rola Leporellus vittatus. Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

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Surubim, o maior peixe do Rio das Velhas

O surubim (Pseudoplatystoma coruscans) é o maior peixe da bacia do Rio São Francisco e, no século XIX, era encontrado em abundância ao longo do Rio das Velhas. Seu tamanho expressivo, quando com-parado com as espécies de água doce do velho mundo, inspirou diversos relatos:

. . . Alcança 8–10 pés de tamanho, mas exemplares tão grandes só se encontram no São Francisco, não no seu afluente Rio das Velhas. . . . Um dos pescadores de cujos serviços Reinhardt se utilizou distinguia dois tipos de ‘sorubins’ . . . um com manchas menores e mais densas(segundo ele a fêmea) e um com manchas grandes e espalhadas (macho?). Em razão disso,

Reinhardt examinou uma grande série de exemplares com manchas menores, mas constatou que, ao contrário, todos eram machos; mais tarde, ele exami-nou também uma fêmea muito grande, pesando 18 libras, com cabeça inco-mumente grande, mas não notou qualquer diferença no tamanho das man-chas ou em sua posição com relação aos machos anteriormente examinados. De acordo com o que foi dito a Reinhardt, os indivíduos grandes que, como mencionado anteriormente, recebem o nome de ‘loango’ sempre são fêmeas. . . (Lütken)

. . . Afirma-se que o surubim chega a atingir um comprimento de 8 pés. Eu mesmo vi um magnífico espécime, de 6 pés e 2 polegadas de comprimento, que foi trazido um dia à Fazenda da Picada. Sua bocarra pode facilmente abarcar em seu interior a cabeça de um homem. . . (Wells)

. . . segundo o vulgo, loango é o surubim macho; outros dizem que o moleque é que é o macho do loango. . . . os habitantes da região hão de aprender a salgá-lo e exportá-lo. É uma espécie de esturjão, sem escamas, com manchas e jaspeado, de focinho chato e com ‘bigodes’, . . . e feio como a jamanta. Freqüentemente alcança um metro e meio de comprimento e o peso de 64 quilos, produzindo duas latas de óleo. . . . Afirma-se que é canibal, como o lúcio. É pescado com rede e, pelos selvagens, com setas. A carne é seca-da ao sol e vendiseca-da no sertão. A carne é excelente, branca, firme e gorseca-da. Nunca provei um peixe de água doce mais gostoso; goza, contudo, de má fama de causar moléstias da pele. . . (Burton)

Hoje, sabe-se que, entre os indivíduos maiores da espécie, rara-mente encontra-se um macho. Pescadores mais antigos ainda chamam de loangos os exemplares maiores e moleques os menores. Convertendo as medidas da época, os maiores exemplares menciona-dos poderiam medir entre dois e três metros. Peixes com essas dimensões não são mais pescados no Rio São Francisco, onde a cap-tura de um surubim com mais de 80 quilos gera notícia que corre rapidamente entre os pescadores. O maior peso mencionado por Lütken é de 144 quilos. É comum a analogia feita por naturalistas com os peixes que conhecem em seus países. Porém, o surubim nada

Leporinus marcgravii. Leporinus reinhardti. Leporinus taeniatus. Franciscodoras marmoratus. Litografias do livro Velhas–Flodens Fiske, do zoólogo dinamarquês Christian Frederik Lütken (1827–1901), Copenhague, 1875.

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tem a ver com o esturjão. Pelas características de sua carne e porte é a principal espécie comercial da bacia do São Francisco.

Os naturalistas que por aqui passaram no passado também regis-traram algumas lendas sobre o surubim. A mais curiosa delas diz respeito ao suposto hábito da espécie de cuidar de seus filhotes: . . . uma das estórias de todos os pescadores mineiros, segundo a qual o suru-bim guarda seus filhotes sob o opérculo, até que eles alcancem um certo tamanho. Este esconderijo permite que os filhotes nadem em volta da mãe, mas, tão logo algum perigo se aproxime, a mãe abre tanto seu opérculo quanto a sua boca e os jovens se escondem lá dentro” . . . Reinhardt conver-sou com um pescador que havia puxado um casonete (outro antigo nome popular para exemplares mais velhos) para dentro da canoa e viu os jovens saírem do esconderijo. . . os supostos filhotes de ‘sorubim’ seriam bagres par-asitas (Stegophilus insidiosus). (Lütken)

Até hoje, encontramos pescadores da bacia do Rio São

Francisco que acreditam que os pequenos bagres que são observa-dos após a captura de um surubim seriam seus filhotes. Alguns vão além e chegam a afirmar que em cada mancha do peixe se instalaria um filhote que ali ficaria para “mamar”. O surubim, por ser uma espécie de desova total, libera milhões de óvulos na água corrente do rio, não possuindo qualquer tipo de cuidado parental. Esses ovos, após serem fertilizados pelo esperma do macho,

descem rio abaixo, desenvolvendo-se nas lagoas marginais for-madas pela inundação do rio.

Situação atual da ictiofauna da bacia do Rio das Velhas

As descrições dos naturalistas que passaram pela região do Rio das Velhas em séculos passados constituem importante testemunho da abundância e diversidade originais da fauna de peixes da bacia. Atualmente, a ictiofauna do Rio das Velhas reflete diretamente os efeitos do avanço da ocupação humana, especialmente da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Através dos ribeirões Arrudas e do Onça, a RMBH despeja diariamente no Rio das Velhas os esgotos doméstico e industrial produzidos por cerca de três mi-lhões de pessoas. Inúmeros são os efeitos desse importante impacto sobre a fauna de peixes. Notadamente, deve ser destacada a

mudança na distribuição das espécies ao longo do rio e a ocorrência periódica de episódios de mortandades de peixes.

Em rios não impactados, é observado o aumento gradual do número de espécies de peixes das cabeceiras em direção à foz. Isso ocorre porque quanto maior o curso d’água, maior o número e a variedade de ambientes disponíveis. Por outro lado, a distribuição

Dourado Salminus brasiliensis.

Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

Surubim Pseudoplatystoma coruscans.

Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

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582 Figura 2

Riqueza de espécies por local de amostragem. No lado esquerdo os pontos da calha do Rio das Velhas, com destaque para a menor riqueza em Lagoa Santa (*), a jusante de Belo Horizonte. No lado, os afluentes do Rio das Velhas. (veja a localização diretamente dos pontos no mapa da Figura 1)

0

10

20

30

50

S. Bart olomeu

40

Sabará L. Santa* Curv elo Corint o Lassance Rio do Onça Rio Cipó Rio P ardo G. Rio Curimataí Rio Bicudo

Número de espécies de peix

es (n)

Locais de coleta

das espécies de peixes também está diretamente relacionada com as mudanças no grau de conservação do rio, ao longo do seu curso.

Estudo realizado através do Projeto Manuelzão evidenciou acen-tuada diminuição das espécies de peixes imediatamente abaixo do ponto de despejo dos efluentes da RMBH. Nessa região do rio, obser-vam-se as piores condições ambientais da bacia, com níveis de oxigênio dissolvido próximos a zero durante a maior parte do ano. Por outro lado, afluentes de menor porte, como os rios Cipó,

Curimataí, Bicudo e Pardo Grande, que teoricamente apresentariam menor número de espécies, possuem hoje fauna de peixes com riqueza comparável à da calha principal. Cabe salientar que, atual-mente, 37 espécies (34 % da fauna da bacia) só são encontradas nes-ses ambientes, que ainda conservam boa parte de suas características originais. Destacam-se entre estas algumas raras ou ameaçadas de extinção, como as piabas (Characidium lagosantense e Hysteronotus megalostomus) e o timboré (Leporinus marcgravii).

As profundas alterações impostas pelo homem ao Rio das Velhas também se manifestam nos episódios de mortandades de peixes no médio curso do rio, geralmente associados ao início do período chu-voso. Em julho de 1999, foi iniciado através do Projeto Manuelzão

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em conjunto com o Instituto Estadual de Florestas (IEF), estudo específico com o objetivo de determinar as possíveis causas dessas mortandades. Questionários para avaliação visual da qualidade da água do rio e para preenchimento em caso de mortandade foram distribuídos para moradores ribeirinhos, ao longo do curso do rio, denominados ‘Amigos do Rio’. Esses moradores também foram encarregados de coletar amostras dos peixes mortos, que foram ana-lisados no laboratório de ictiologia da UFMG.

Em novembro de 1999, foi noticiada a ocorrência de uma mortan-dade no médio curso do Rio das Velhas, precedida por fortes chuvas na região da RMBH. A mortandade teve início a jusante dos pontos de descarga de esgotos da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) e propagou-se rio abaixo até uma extensão de aproximada-mente 150 km. Em visita a campo subseqüente ainda eram observa-dos peixes mortos no leito do rio. Durante o episódio de mortan-dade, a água apresentava-se escura e com odor desagradável. Foram coletados indivíduos de 21 espécies de peixes. Em biópsia com análise macroscópica não foi detectada nenhuma alteração mor-fológica significativa nos indivíduos coletados. Espécies com reco-nhecida tolerância a hipóxia não foram registradas.

A diminuição repentina dos níveis de oxigênio dissolvido foi apontada como causa mais provável dessa mortandade. Essa rápida deterioração da qualidade da água seria provocada pelo revolvimen-to dos sedimenrevolvimen-tos, ricos em matéria orgânica, depositados no leirevolvimen-to e no fundo do rio. Esse revolvimento se daria por ocasião da ocorrên-cia de fortes chuvas sobre as cabeceiras do Rio das Velhas e na própria RMBH. A elevação da temperatura associada ao grande vo-lume de matéria orgânica disponível na coluna d’água faz aumentar o metabolismo de microrganismos presentes na água. Ao con-sumirem essa matéria orgânica proveniente de esgotos não tratados, esses seres retiram o oxigênio dissolvido na água, comprometendo a sobrevivência de muitas espécies de peixes.

Outro impacto de grandes proporções foi o verificado na Lagoa Central de Lagoa Santa. As alterações ambientais nos últimos 150 anos provocaram a extinção de aproximadamente 70% da fauna nativa origi-nal. Entre elas pode-se citar a alteração do nível da água da lagoa, elimi-nação da vegetação marginal (Cyperaceae) e submersa (Characeae), poluição por esgotos domésticos sem tratamento até o início da década de 1990 e, principalmente, a introdução de espécies exóticas (como tucunaré, trairão e tilápia) e interrupção da comunicação com o Rio das Velhas, através do córrego Bebedouro. Hoje o córrego está canaliza-do e poluícanaliza-do e na saída da lagoa foi construícanaliza-do um ladrão de cimento e grade, impossibilitando o fluxo descrito anteriormente.

Trairão Hoplias lacerdae.

Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves.

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Perspectivas de recuperação da fauna de peixes do Rio das Velhas Apesar do avançado grau de degradação ambiental da bacia do Rio das Velhas, sua ictiofauna ainda guarda possibilidade concreta de recuperação. No trecho pesquisado pelo Projeto Manuelzão, exis-tem dois cursos d’água enquadrados entre as áreas de “importância biológica extrema” do Estado de Minas Gerais: o próprio Rio das Velhas e o Rio Cipó. A inclusão foi motivada pela ocorrência de fenômeno biológico especial (piracema), alta riqueza de espécies de

dis-tribuição restrita e papel importante na manutenção da integridade da planície de inundação do São Francisco em Minas Gerais. Além deste fato, soma-se a ocorrência de uma espécie oficialmente ameaçada de extinção (Characidium lagosantense). Várias outras espé-cies raras e ⁄ ou ameaçadas da sub-bacia constam em listas

disponíveis na literatura técnica.

Os recentes projetos de implantação de Estações de Tratamento de Esgotos (ETE) em Belo Horizonte e outros municípios da sub-bacia trazem novas perspectivas de melhoria da qualidade da água do Rio das Velhas. Com essa melhoria, a ictiofauna do Rio das Velhas terá plenas condições de recuperar-se, sem a necessidade de adoção de medidas de manejo específicas. A presença de 107 espécies de peixes e a manutenção de afluentes bem preservados, como o Rio Cipó, são condições suficientes para que espécies que tenham sido extintas em alguns trechos possam repovoá-los. Cinco dos principais afluentes estudados comportam 75% da fauna total registrada na sub-bacia do Rio das Velhas. Some-se a isso o fato de que no médio e baixo curso do Rio das Velhas e no Rio São Francisco, entre as represas de Três Marias e Sobradinho, não há obstáculos naturais (cachoeiras) ou arti-ficiais (barragens) para o livre deslocamento dos peixes. Em pesquisa desenvolvida pelo professor Alexandre Godinho, surubins marcados com rádio-transmissores no Rio São Francisco e acompanhados pela técnica de rádio-telemetria, chegaram a subir cerca de 200 quilôme-tros no Rio das Velhas, comprovando a conexão entre o rio principal e seu afluente. Assim, a conectividade do sistema, tanto com o canal principal quanto com seus afluentes poderá permitir a recoloniza-ção natural do Rio das Velhas, a partir dos estoques provenientes dessa imensa região da bacia do São Francisco e de seus tributários.

Abaixo:

Pequira Bryconamericus stramineus.

Fotografia: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves 1 Astyanax fasciatus. Astyanax scabripinnis rivularis. 4 Astyanax bimaculatus. 5 Hemigrammus gracilis. 6 Hasemania nana. 2 e 3

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ALVES, C. B. M., POMPEU, P. S., org. Peixes do Rio das

Velhas: passado e presente. Belo Horizonte: Projeto

(20)

Abstract

Fishes seen by the past centuries naturalists and the present

knowledge

Velhas River is one the few Brazilian rivers that had been intensively

studied since the 19thcentury, for many years with focus on a specific

group of vertebrates: the fish. Some of the facts, stories, folklore and tales about the river, its fish and fisheries, available in such reports as the ones of Christian F. Lütken, Richard F. Burton and other naturalists are presented and commented at the light of the present knowledge. The present situation of great environmental degradation and their consequences on the fishes are also exposed as well as the prospects of recovery of Velhas River’s ichthyofauna.

Referências

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