• Nenhum resultado encontrado

DE ANJINHOS A SUJEITOS DE DIREITO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MORTALIDADE DE CRIANÇAS EXPOSTAS EM SALVADOR NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "DE ANJINHOS A SUJEITOS DE DIREITO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MORTALIDADE DE CRIANÇAS EXPOSTAS EM SALVADOR NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX"

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

DE ANJINHOS A SUJEITOS DE DIREITO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MORTALIDADE DE CRIANÇAS EXPOSTAS EM SALVADOR NA

PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

Maihara Raianne Marques Vitoria1

Resumo

O presente trabalho pretende tecer algumas considerações sobre a morte de crianças abandonadas na roda dos expostos da Santa Casa de Salvador nas primeiras décadas do século XX, a partir das novas percepções sobre a morte surgidas no período, sobretudo, com a inserção do saber médico-higienista no cuidado à infância. O recorte aqui analisado vai de 1936 a 1940, quando ocorreu uma mudança significativa na forma de acolhimento do Asilo, a extinção da secular roda dos expostos.

Palavras-chave: Assistência, infância, Santa Casa da Misericórdia da Bahia.

Abstract

This article propose to realize some considerations about the death of foundling children in the “Roda dos Expostos” of Santa Casa de Salvador in the first decades of the 20th century, from the new perceptions about death that emerged at the turn of the century, above all, with the insertion of knowledge medical hygienist in child care. The period analyzed here goes from 1936 to 1940, when there was a significant change in the way of shelter of the Asylum, the extinction of the secular “Roda dos Expostos”.

Keywords: Assistance, childood, Santa Casa de Misericórdia of Bahia.

Introdução

O Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia, popularmente conhecido como Asilo dos Expostos, instituição pertencente à Santa Casa de Misericórdia da Bahia foi, durante muito tempo, o principal responsável pelo acolhimento e criação de menores abandonados. Desde o período colonial, mais precisamente em 1726, quando a Roda dos Expostos foi instalada, esta era a única forma de acesso à Instituição, e assim permaneceu por mais de dois séculos. Os bebês enjeitados eram colocados em um dispositivo de madeira que girava em torno do próprio eixo, fixado no muro da instituição, onde também havia uma sineta para avisar a chegada de mais uma criança. Tal forma de ingresso possibilitava o anonimato dos progenitores e/ou responsáveis. Entretanto, não foram raros os casos em que, por meio de bilhetes, objetos ou até

(2)

mesmo entrega de documentos, como cartas de alforria, cartões de vacina, dentre outros, era possível identificar a filiação dessas crianças.

Segundo Andréa da Rocha Rodrigues (1998, p.129), em 1934, a Santa Casa aprovou a instalação de um “escritório aberto” ou “escritório de admissão”, que, de acordo com o regulamento, deveria funcionar em conjunto com a Roda. As mudanças no regulamento foram substanciais, o acolhimento das crianças passou a ser feito mediante justificativa, por parte dos familiares ou acompanhantes em relação às causas do abandono, bem como nome e registro do nascimento da criança. Nesse sentido, o meu intuito é perceber de que forma os novos ideais de higiene e cuidados com a infância influenciaram, não somente na diminuição do número de óbitos precoces, mas também, na mentalidade da população baiana sobre a mortalidade infantil.

O Imaginário Sobre a Morte dos Expostos

Ao estudar os indícios da mortalidade infantil nos séculos da Idade Moderna, Cláudia Pancino (2010, p. 185-186) aponta que, até as últimas décadas do XIX, no contexto Europeu, falar de infância é falar de morte. A autora assinala que o conceito social de infância era determinado por uma consciência um tanto fatalista de que uma criança poderia estar presente hoje e no dia seguinte não mais. Essa efemeridade da infância ocasionou, por vezes, a ausência destes nos registros demográficos do período em que a pesquisadora analisou. No Brasil, somente a partir da segunda metade do século XIX, o olhar médico em relação às doenças que acometiam a infância irá tomar um novo direcionamento, ocasionando uma série de impactos nas taxas de mortalidade infantil. A criação da cadeira de pediatria, na década de 1870, foi um dos fatores fundamentais no processo.

Os índices de óbitos de crianças expostas sempre foram bastante alarmantes, havendo oscilações em determinados intervalos e atingindo números recordes nos períodos de crise, sobretudo, em tempos de epidemias. Ao longo dos séculos, as atitudes tomadas pelos médicos, mesa diretora, irmãs de caridade e demais membros da Irmandade responsáveis pelo cuidado com os expostos diante do elevado número de mortes foram bastante distintas. Desde as designações das moléstias, seus agentes causadores, bem como os possíveis tratamentos, que variavam de acordo com o período e crença dos envolvidos.

(3)

Segundo Renato Pinto Venâncio, dentre as camadas mais baixas da população, era comum acreditar que as doenças causadoras da morte de crianças pequenas tinham origem espiritual, o que pode ser percebido através de uma longa lista de ditos populares, dentre eles:

“menino pagão dormir no escuro; menino brincar com flores – dá agouro

menino não chorar quando se batiza – não se cria;

dormir nu – o anjo da guarda vai-se embora”(VENÂNCIO, 1998, p. 113.)

Deste modo, seguindo uma preocupação comum ao mundo católico havia enorme empenho dos familiares em batizar os recém-nascidos o quanto antes, para que, caso não fosse possível salvar o corpo, salvassem ao menos a alma. A crença no Limbo faria com que essas crianças mortas sem receber o sacramento batismal se tornassem “almas errantes que vagariam eternamente por esse local penoso”. A urgência em se batizar os pequeninos era tamanha, que possibilitava que o sacramento fosse ministrado por leigos quando havia real ou presumido risco de morte do bebê. Era o chamado batismo sub condicione, geralmente realizado pelas parteiras ou por outra pessoa que auxiliasse o parto. Segundo Cláudia Pancino, “se a criança sobrevivesse, o batismo seria repetido posteriormente pelo sacerdote com cerimônia na igreja em um ritual que levava em consideração a possibilidade de uma criança já ter sido batizada” (PANCINO, Op. Cit., p.192-194). Provavelmente foi ocaso da pequena Vitorianna, deixada à Roda dos Expostos com pouco menos de um mês acompanhada do seguinte bilhete.

Essa menina nasceu no dia 11 de novembro de 1872 já foi batizada em casa, só lhe falta os santos óleos, chama-se Vitorianna, não tem mãe,[esta] faleceu de uma congestão sobre o parto2.

Na Santa Casa, a menina foi rebatizada com o nome de Efigênia de Mattos e sobreviveu à dura infância das crianças expostas, tendo sido retirada do Asilo por seu pai, o africano liberto Victorino Fernandes de Castro em 18783.Mesmo com a virada para o século XX e as modificações dos sentimentos em relação à infância, o batismo ainda era uma preocupação constante, tanto por parte dos familiares, como da Santa Casa. Ao abordar as práticas fúnebres no cemitério de São Miguel das Almas – RS, no contexto de secularização dos campos santos e da inserção do saber médico-higienista

(4)

nos cuidados com a morte, Mauro Dillmann (2013, p.59) aponta que a diminuição da efetiva participação e da ingerência da autoridade religiosa na vida social não significou declínio da religião ou da religiosidade. Deste modo, o autor afirma que houve uma secularização dos costumes sem, no entanto, haver uma descristianização.

Na grande maioria dos bilhetes deixados junto com os enjeitadinhos, havia a preocupação em informar se a criança havia (ou não) sido batizada, com o intuito de evitar novos assentamentos, mas principalmente, de salvar a alma dos seus bebês caso viessem a falecer. A mãe do pequeno Lourival fez o seguinte apelo ao deixá-lo na roda: Lourival, nascido em 29 de abril de 1933, filho de Maria Victoria. Não é batizado. Pede-se a caridade de quando isto fizer, tomar conhecimento dos padrinhos[...]4.

Em outro caso, a genitora, além de justificar os motivos pelo qual estava expondo a filha e informar que a menina ainda não fora batizada, ainda deixa a sua escolha para os padrinhos:

Maria de Nazareth Santos nascida em 22 de julho de 1933, filha de Carolina Santos ainda não é batizada. A madrinha é N.S. da Conceição e o padrinho Pe. Rubem. Ponho na roda não por enjeitada, porque a pobre mãe dela vive empregada, é de fora e não tem a quem dar para tomar conta. Prometo visita-la regularmente e quando tiver idade retirá-la.

Pede à diretora para ter como uma de suas filhas. Carolina5.

Não sabemos se os pedidos de Maria Victoria e Carolina foram atendidos, pois não há menção alguma nos registros e ambas as crianças vieram a falecer precocemente, como ocorria em boa parte dos casos. Entretanto, a preocupação expressa nos bilhetes nos possibilita compreender melhor os anseios da população acerca do batismo de suas crianças.

Alguns expostos já chegavam ao Asilo bastante doentes ou até mesmo sem vida. Como nos sugere Renato Pinto Venâncio (Op. Cit., p. 105-107), a atitude de deixar crianças já mortas na Roda pode ser compreendida através dos aspectos culturais que cercavam a morte e a consequente necessidade que a população mais pobre possuía de dar um enterro digno aos seus anjinhos. Segundo o historiador, o aumento do número de crianças abandonadas depois de mortas pode ser diretamente relacionado à ocorrência de alguma crise ou carestia. Venâncio aponta, também, que não pode ser coincidência

(5)

que os números tenham saltado justamente no período em que a Santa Casa deixou de alugar a “esquife dos anjos”, que possuía preços muito mais acessíveis à população mais pobre.

Podemos pensar de forma semelhante em relação às crianças deixadas muito enfermas na roda. Na presunção de uma morte iminente, é possível que algumas mães tenham abandonado seus filhos em estado extremo de doença. Por suspeitarem que seria aquele o destino final da criança, as entregavam em busca de um possível socorro.Possivelmente, foi o caso do menininho preto de oito meses de vida deixado na roda em estado “muito mal, para morrer”. Batizado como Basílio, a criança veio, de fato, a falecer de nefrite dois dias depois do abandono6. Durante séculos, a única instituição responsável por prestar assistência médica e funerária aos escravizados, libertos e à população pobre livre foi a Santa Casa de Misericórdia. Dessa forma, é possível que muitas mães baianas, sabedoras da sua fama e prestígio, tenham recorrido à instituição na esperança de encontrar alguma assistência médica para seus filhos mediante a impossibilidade de pagar por um tratamento adequado ou, até mesmo, por um sepultamento digno.

Em maio de 1935, o jornal “O Imparcial” trazia em suas páginas uma matéria tecendo severas críticas a um decreto estadual publicado no mês anterior e que estipulava novas taxas para enterros e artigos mortuários, medidas que, segundo o periódico, faziam parte de uma tentativa, por parte do Estado, de reorganização do Serviço de Verificação de Óbitos. O referido decreto tabelava os preços cobrados por cada serviço funerário, dentre os quais constava o atestado de óbito em domicílio, que custaria 10$000, o aluguel de bondes ou carros funerários, que poderia variar de 5$000 a 25$000, a depender da categoria. Cobravam-se, também, impostos sobre os caixões e coroas mortuárias, de acordo com o valor gasto em cada artigo – objetos mais suntuosos pagavam taxas mais caras do que os mais simples. Por fim, a demanda previa a cobrança da exorbitante taxa de 500$000 sobre cada embalsamento. Estava previsto que, se fosse comprovado o estado de miserabilidade da família do morto, as taxas não seriam cobradas. Segundo o decreto:

Art. 2º - O enterramento de todas as pessoas reconhecidamente pobres será feito, mediante guia da autoridade policial, a expensas do Estado, pelo Serviço Médico Legal (Instituto Nina Rodrigues), que fornecerá

(6)

transporte mortuário, caixão e sepultura no Cemitério da Quinta dos Lázaros7.

Nesses casos, o enterro deveria ser feito a expensas do Estado, mediante guia da autoridade policial, para atestar, de fato, a condição de pobreza. Na prática, não sabemos até que ponto tais isenções de impostos foram concedidas às famílias pobres, já que os “atestados de miserabilidade” deveriam ser emitidos pelas autoridades policiais, o que criava certo entrave ao processo. Uma coisa é certa, todos esses custos somados poderiam se tornar um gasto bastante excessivo até mesmo para uma família “remediada”, e quando levamos em conta os altos índices de mortalidade infantil, podemos imaginar que os gastos poderiam se tornar corriqueiros em muitos lares.

Seriam, também, custeados pelo poder público, os transportes para enterramentos dos indigentes do Hospital Santa Izabel, São João de Deus, Isolamento, Asilo de Mendicidade e dos Expostos, dentre outras instituições assistenciais, sempre que requisitados pelos respectivos Diretórios, o que reforça a ideia de que deixar um bebê morto ou prestes a falecer na roda dos expostos poderia ser uma opção mais viável do que enfrentar toda a burocracia do sistema.

Até finais do século XIX, era bastante comum que os médicos atribuíssem os altos índices de falecimento dos pequenos abandonados às próprias condições de nascimento, uma vez que carregariam consigo toda a debilidade física e moral, decorrentes da sua condição de pobreza e de abandono. As mães e criadeiras também levavam uma parcela de culpa na fragilidade da vida dessas crianças. No discurso médico, era recorrente acusar os pais dos bebês abandonados – sobretudo as mães – pela degenerescência física e moral que acarretaria no “vício sifilítico” que matava muitas crianças (VITORIA, 2015, p.68). Quando as genitoras não levavam a culpa, esta recaía sobre as criadeiras. O discurso médico-higienista associado às teorias raciais no final do XIX culpabilizavam essas mulheres, em sua maioria negras e que recebiam um pagamento ínfimo para cuidar dos pequenos expostos.

A mortalidade dos Expostos no período de 1936/40

Nas primeiras décadas do século XX tiveram início uma série de debates dentre os médicos e juristas para regulamentar a extinção das rodas dos expostos em todo o país. O Código de Menores de 1927 foi o primeiro a enxergar a infância como atributo

(7)

do poder público, tornando-se um marco na assistência ao menor. De forma gradual, o Estado criava meios de assegurar a assistência à infância desvalida, conferindo um tratamento mais sistemático e humanizador à criança e ao adolescente, consolidando normas esparsas anteriores e prevendo, pela primeira vez, a intervenção estatal nesta questão. O código de 1927 trazia inovações, ao propor uma definição mais precisa para o temo “exposto” e lançava as primeiras prerrogativas legais para a supressão do sistema de rodas para o acolhimento de crianças enjeitadas. Segundo o documento:

Art. 14. São considerados expostos os infantes até sete anos de idade, encontrados em estado de abandono, onde quer que seja.

Art. 15. A admissão dos expostos à assistência se fará por consignação direta, excluído o sistema das rodas8.

Como fora dito anteriormente, somente na virada de 1934 para 1935, após muita resistência, que a Santa Casa da Bahia adotou o sistema de escritórios abertos, o que permitiu que a instituição entrasse em contato diretamente com os responsáveis pelos menores abandonados, possibilitando um maior acesso a dados como filiação e, em alguns casos, conhecer os motivos do abandono, sendo até possível dissuadi-los da entrega, oferecendo auxílios como doação de alimentos e/ou creche para as para as crianças. Tal fator, aliado às mudanças nas condições de higiene e assepsia na criação dos menores, ocasionou um impacto expressivo na diminuição da mortalidade infantil no interior do Asilo dos Expostos. A partir do ano de 1936, a Santa Casa passou a realizar um registro mais detalhado sobre o óbito dos acolhidos, em livro específico onde consta o quantitativo de mortes, a idade das crianças, a causa e o local de falecimento, bem como o médico responsável pelo plantão. Antes disso, somente a data e a causa do óbito poderiam ser encontradas no registro de entrada da criança, ou seja, essa nova forma de registro possibilitou um olhar mais aprofundado sobre a morte dos pequeninos, nos permitindo observar alguns aspectos, como veremos a seguir.

O primeiro deles, como podemos perceber na tabela abaixo, é que a grande maioria dos bebês, sobretudo os que já chegavam em avançado estado de doença, não chegava a completar um ano de vida. Até mesmo os que chegavam em bom estado de saúde, logo adoeciam e tinham a vida abreviada por alguma enfermidade.

Número de mortes por idade Idade Casos Percentual %

(8)

<1 ano 82 68,3 1 ano 17 14,2 2 anos 12 10,0 3 anos 5 4,2 5 anos 2 1,7 4 anos 1 0,8 8 anos 1 0,8 Total 120 100,0

Fonte: ASCMBA - Livro 1809 - Entradas e falecimentos de crianças do Asilo de expostos 1936-40. Ao analisar a obra “Mortalidade Infantil”, publicada em 1938, escrita pelo médico João de Barros Barreto, a historiadora Lidiane Monteiro Ribeiro aponta que, de acordo com o entendimento médico do período, existiam três classificações gerais para as doenças que ocasionavam a mortalidade infantil: as “causas médicas”, os “fatores econômico-sociais” e os “fatores psicológicos”. As causas médicas eram as doenças propriamente ditas, que, por sua vez, subdividiam-se em “perigo congênito”, “perigo infectuoso” e “perigo alimentar”. Segundo o referido médico, os índices de mortalidade de uma nação seriam medidos pela variação entre esses três “perigos”. O perigo congênito compreendia os problemas relacionados durante a vida intra-uterina, no parto e no pós-parto e geralmente provocavam a morte da criança na primeira semana de vida. O “perigo alimentar” reunia distúrbios digestivos e outros relacionados à nutrição, ocasionados pelo abandono da amamentação natural e pelos erros na alimentação artificial. Por último, porém não menos letal, o médico destaca o “perigo infectuoso”, que abrangia as doenças infecciosas e que, segundo ele, atingiam em maior escala as crianças a partir do segundo semestre de vida. Dentre as doenças que mais vitimavam as crianças brasileiras, de um modo geral, destacavam-se: o sarampo, a difteria, a coqueluche, a pneumonia, a tuberculose e a sífilis. Já no período, havia o entendimento de que a linha que separava esses três perigos poderia ser bastante tênue, uma vez que muitas moléstias digestivas tinham origem infecciosa e que alguns distúrbios da nutrição poderiam causar infecções fatais (RIBEIRO, 2011, p.37-41). Os fatores “econômico-sociais” e “psicológicos” deveriam ser considerados na medida em que interagiam diretamente com as causas médicas, podendo ser causadores ou agravantes de enfermidades pré-existentes.

(9)

Ao observar a ordem das doenças mais letais no Asilo dos Expostos de Salvador, no período de 1936-40, podemos perceber que as enfermidades que mais acometiam esses pequeninos diferiam um pouco do restante da população, conforme o quadro a seguir.

Causa da Morte dos Expostos 1936/1940

Doença Casos Percentual %

Broncopneumonia 23 19,2 Bronquite 21 17,5 Gastronterite/Enterite 21 17,5 Tuberculose Pulmonar 9 7,5 Septicemia 8 6,7 Decomposição 6 5,0 Sífilis 4 3,3 Pneumonia 4 3,3 Toxicose 3 2,5 Intoxicação Alimentar 3 2,5 Debilidade Congênita 3 2,5 Coqueluche 2 1,7 Pleurisia Purulenta 2 1,7 Atrepsia 2 1,7 Cardiopatia 1 0,8 Anemia Perniciosa 1 0,8 Nefrite Aguda 1 0,8 Tétano 1 0,8 Indeterminada 1 0,8 Não informada 4 3,3 Total 120 100,0

Fonte: ASCMBA - Livro 1809 - Entradas e falecimentos de crianças do Asilo de expostos 1936-40.

De acordo com os dados, o principal motivo de óbito dentre as crianças expostas no período são as doenças respiratórias. Se somarmos todas elas(bronquite, broncopneumonia, tuberculose, pneumonia e pleurisia pulmonar), teremos um total de 49,2%, ou seja, quase metade dasmortesno período. Em meados do século já eram constantes os alertas dos médicos em relação à situação precária de higiene em que se encontrava o Asilo e seus arredores.Instalações mal arejadas e pouco ventiladas propiciavam o surgimento dessas doenças.Segundo o Dr. Silva Araújo, médico dos expostos, a localidade estava acometida pelo problema da ausência de uma rede de esgotos, de forma que os dejetos oriundos das residências ficavam acumulados em meio

(10)

às ruas, sem meio de escoamento. De acordo com as informações fornecidas pelo higienista, para entrarem no Tororó, bairro vizinho ao Asilo, o único acesso era a rua onde está localizada a “sentina”, os moradores precisaram improvisar uma ponte utilizando pedras, por onde toda a população passava para entrar ou sair da rua. No interior da Casa dos Expostos havia, ainda, um fator agravante: a latrina do Asilo que ficava na parte inferior do estabelecimento, comunicava-se com a enfermaria por meio de uma escada, o que aumentava ainda mais o risco de contaminação a partir dos dejetos, principalmente, pelo fato de lá se encontrarem crianças já doentes (VITORIA, 2015, p.60-61).

A segunda principal causa de morte dos expostos eram os embaraços gástricos de diversos tipos, que também eram responsáveis por muitas mortes. Na maior parte das vezes, os problemas gástricos enfrentados pelos bebês eram decorrentes das condições precárias de alimentação às quais estavam submetidos. Durante alguns períodos, a Santa Casa optou por contratar amas internas, sob a justificativa de vigiar mais de perto os procedimentos realizados durante a criação dos expostos e, desta forma, diminuir os alarmantes índices de mortalidade dentre as crianças durante a primeira fase da vida. Entretanto, com a contratação dessas amas, o aleitamento artificial passou a ser o procedimento mais utilizado na amamentação dos expostos. Na inviabilidade de contratar uma ama interna por criança, cada ama cuidava de três ou quatro bebês. Por vezes, as tentativas de aleitamento artificial implementadas pela instituição ocasionavam verdadeiros desastres. Segundo Venâncio, a dieta recebida por essas crianças consistia em leite condensado diluído ou leite de vaca. Para que pudessem ingerir o alimento embebiam-se panos de linho, bonecas de algodão ou esponjas ou utilizavam-se mamadeiras de vidro ou pequenos bules com uma espécie de chupeta adaptada na ponta (VENÂNCIO, Op. Cit., p. 54). A falta de higiene e assepsia, como a não esterilização dos objetos bem como a não fervura do leite antes de ser ministrado aos bebês ocasionava uma série de infecções gastrointestinais, que levava muitos à morte. A partir do século XIX, quanto a morte precoce deixa de ser vista como natural, causava espanto nos médicos e na sociedade como um todo o fato de que, a instituição mais imbuída da caridade cristã era a que mais matava, chegando a receber a alcunha de uma “fábrica de anjinhos”(VENÂNCIO, Op. Cit.,p. 113). No ano de 1881, uma publicação no periódico “O Monitor” sugeria,ironicamente, que fosse afixada no muro

(11)

da Santa Casa uma placa com os dizeres: “Aqui matam-se meninos à custa do Estado” (VITORIA, Op. Cit., p.66).

Durante muito tempo, as moléstias gastrointestinais foram a principal causa de morte dos expostos, perdendo a primazia somente na terceira década do século XX, quando ocorreram severas transformações nos processos de aleitamento artificial. A principal mudança foi a entrada da Liga Baiana contra a Mortalidade Infantil, fundada pelo médico pediatra Martagão Gesteira, em 1923. Uma série de recomendações foram sugeridas pelo médico à provedoria do Asilo, dentre elas, contratação de nutrizes para amamentar naturalmente os bebês, a construção de uma cozinha, para atender às crianças que necessitassem de alimentação complementar, onde seriam preparados alimentos e feita a esterilização correta do leite. Gesteira recomendava, também, a aquisição de uma estufa para higienizar a roupa dos expostos, a instalação de telas nas portas e janelas para impedir a entrada de insetos, além da construção de uma ala de isolamento na enfermaria, para alocar as crianças com doenças infecciosas. A maior parte das recomendações foi atendida pela provedoria da Santa Casa, entretanto, a principal delas, de substituir o sistema de rodas para um escritório aberto, onde fosse possível dialogar com os responsáveis pelos menores e até mesmo dissuadi-los do abandono só foi atendida mais de uma década depois (RIBEIRO, Op. Cit., p. 87-89).

Considerações Finais

A partir das informações encontradas, podemos perceber que as mudanças nos modelos seculares de acolhimento da Santa Casa impactaram diretamente nos números registrados pela instituição. De fato, os índices de mortalidade dos expostos diminuíram bastante com as intervenções da Liga Baiana conta a Mortalidade infantil, como é possível observar na tabela abaixo.

Ano Entradas Óbitos Percentual%

1923 115 96 83,48

1937 67 21 31,34

Fonte: ASCMBA - Livro 1809 - Entradas e falecimentos de crianças do Asilo de expostos 1936-40; RIBEIRO, Op. Cit., p.90.

(12)

Em 1923, ano de fundação da Liga, 115 expostos deram entrada no Asilo pela roda e contabilizou-se 96 óbitos, o que equivalia a 83,48% do total. No ano de 1937, último em que Martagão Gesteira esteve à frente da LBCMI, após a instalação do escritório aberto e da construção da Pupileira Juracy Magalhães para a criação dos lactentes, tanto as entradas na instituição como os índices de mortalidade haviam diminuído significativamente. Das 67 crianças que ingressaram, 21 vieram a óbito, o que representa um percentual de 31,34%. Nesse sentido, podemos perceber que a Liga Baiana contra a Mortalidade Infantil teve um papel fundamental na diminuição da mortalidade das crianças expostas, inaugurando uma nova fase da assistência à infância na capital baiana.

Referências

ARIÈS, Philippe. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. DEL PRIORI, Mary (org.). História da Criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.

FARIA, Sheila de Castro. “A propósito das origens dos enjeitados no período escravista”. In: VENÂNCIO (org.).Uma história social do abandono de crianças: De Portugal ao Brasil:

séculos XVII-XX. São Paulo: Alameda/ Editora PUC Minas, 2010.

DILMANN, Mauro.Morte e práticas fúnebres na secularizada República: a Irmandade e o

Cemitério de São Miguel e Almas de Porto Alegre na primeira metade do século XX.

Tese(Doutorado em História) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo/RS, 2013, p.59.

FERREIRA FILHO. “Desafricanizar as ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popular em Salvador (1890-1937)”. Revista Afro-Ásia, Bahia, Ano 1998, nº 21

Quem pariu e bateu, que balance! Mundos femininos, maternidade e pobreza: Salvador, 1890-1940. Salvador: CEB,2003.

FREITAS, Marcos Cezar de (org.) História Social da Infância no Brasil. 8ª. Ed, São Paulo: Cortez, 2011.

LONDONO, Fernando Torres. “A Origem do Conceito Menor”. In: DEL PRIORE, Mary. (Org.)História da Criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.

MARCILIO, M. L. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec,1998. PANCINO, Claudia; SILVERIA, Lygia. “Pequeno demais, pouco demais”. A criança e a morte na Idade Moderna. Cad. hist. ciênc., São Paulo, v. 6, n. 1, jul. 2010.

RIBEIRO, Lidiane M. Filantropia e assistência à saúde da infância na Bahia: a Liga Baiana

contra a mortalidade infantil, 1923-1935. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da

Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro: s.n., 2011.

RODRIGUES, Andréia da Rocha. A infância esquecida: Salvador 1900-1940. Dissertação (mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1998.

VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas: Assistência à criança de camadas

(13)

(Org.) Uma história Social do abandono de crianças: de Portugal ao Brasil, séculos XVIII-XX. São Paulo: Alameda, 2010.

VITORIA, Maihara R. M. Os Filhos da Misericórdia: Cotidiano e vivências das crianças

expostas na Santa Casa de Misericórdia de Salvador (1870-1890).Dissertação (mestrado em

História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da

Bahia(PPGH/UFBA), professora da Rede Estadual de Ensino do Estado da Bahia e na Prefeitura Municipal de Candeias/Ba.

2ASCMBA, Livro da Roda nº5, Nº1775, 1871-1874, fl. 67. Ver: VITORIA,Maihara R. M. Os Filhos da

Misericórdia: Cotidiano e vivências das crianças expostas na Santa Casa de Misericórdia de Salvador (1870-1890).Dissertação (mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

3ASCMBA, Livro 1º de Termos de Saída de Expostos, Nº 1219, 1871-1893, fl. 30. 4ASCMBA, Livro da Roda nº28, Nº1798, 1933-1934, fls. 07v-8

5ASCMBA, Livro da Roda nº28, Nº1798, 1933-1934, fls. 57v-58. 6 ASCMBA, Livro da Roda nº28, Nº1798, 1933-1934, fls. 12v-13 7 “ O Imparcial”, Bahia, 11 de maio de 1935 – Hemeroteca Digital.

8Decreto Nº 17.943-A de 12/10/1927. Disponível em:

Referências

Documentos relacionados

Este capítulo tem uma abordagem mais prática, serão descritos alguns pontos necessários à instalação dos componentes vistos em teoria, ou seja, neste ponto

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem

dois gestores, pelo fato deles serem os mais indicados para avaliarem administrativamente a articulação entre o ensino médio e a educação profissional, bem como a estruturação

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Nesse sentido, Ridola (2014) afirma o Estado possui como dever, perante a sociedade, a criação de condições que permitam o devido exercício da dignidade.. Entretanto,

Declaro que fiz a correção linguística de Português da dissertação de Romualdo Portella Neto, intitulada A Percepção dos Gestores sobre a Gestão de Resíduos da Suinocultura:

Assim, cumpre referir que variáveis, como qualidade das reviews, confiança nos reviewers, facilidade de uso percebido das reviews, atitude em relação às reviews, utilidade

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das