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RAFAELLE SETÚBAL GOMES DE ABREU

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS

ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E

HUMANIDADES. PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO

SENSU EM HISTÓRIA

RAFAELLE SETÚBAL GOMES DE ABREU

EX-VOTOS DE TRINDADE:

PERFIS DE UM IMAGINÁRIO RELIGIOSO

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RAFAELLE SETÚBAL GOMES DE ABREU

EX-VOTOS DE TRINDADE

PERFIS DE UM IMAGINÁRIO RELIGIOSO

Dissertação apresentada ao Departamento do Mestrado em História (MHIST) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás como requisito à obtenção de Conclusão do Curso de Mestrado.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo José Reinato.

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Dados Internacionais de Catalogação da Publicação (CIP) (Sistema de Bibliotecas PUC Goiás)

Abreu, Rafaelle Setúbal Gomes de.

A162e Ex-votos de Trindade [manuscrito] : perfis de um imaginário religioso / Rafaelle Setúbal Gomes de Abreu – Goiânia, 2012.

103 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em História, 2012.

“Orientador: Prof. Dr. Eduardo José Reinato”. Bibliografia.

1. Ex-votos. 2. Religiosidade. 3. Cultura popular. I. Título.

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AGRADECIMENTOS

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“Os Ex-votos são o melhor testemunho da importância das peregrinações no âmbito das devoções individuais e coletivas”

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RESUMO

A presente dissertação procura desenvolver uma reflexão sobre os Ex-votos de Trindade-Goiás, em primeiro lugar como objeto e fonte de busca da história da devoção religiosa católica no início do século XXI, e em segundo lugar, buscando entender os ex votos como manifestação de uma devoção, de uma representação da vida e da sobrevivência cotidiana no contexto da Cultura Popular. A crença, suas manifestações, a devoção expressa nas retribuições ao Divino Pai Eterno ocorrem de diversas maneiras: mechas de cabelo, fotografias, peças de roupas... Sendo assim, o caminho para o historiador cultural é o de resgatar tais manifestações e devoções e alargar os domínios da pesquisa histórica, de forma a permitir que os objetos produzidos pelo homem/mulher (toda a sua vida material) fossem investigados e estudados. Os ex-votos como fonte, permitem um contato com alguns aspectos da religiosidade popular, sendo importante para o desenvolvimento também dos Estudos Culturais. No bojo dessa dissertação, procuramos desvelar o misto de crença, mistério e mística da expressão dos ex votos no contexto da saúde, da busca de prosperidade, da doença, da busca de um amparo, numa sociedade em que grande parcela se encontra desprovida de qualquer tipo de apoio para prover a saúde , a segurança , a prosperidade, tendo por outro lado, uma constante cobrança de tudo isso, por ser uma sociedade extremamente competitiva e desafiadora e propugnadora de um desamparo social e afetivo. O devoto assim, encontra nos santos de devoção ou em outras formas de devoção a possibilidade de retirar de seus ombros o peso da condução de uma vida ao desamparo.

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ABSTRACT

This dissertation tries to develop a reflection about Ex-vows of Trindade – Goiás, first of all, as an object and source searching the history of Catholic religious devotion at the beginning of the century XIX, and secondly, seeking to understand the vows as a manifestation of a devotion, as a representation of life and a survival day to day in the context of Popular Culture. The belief, their manifestations, the devotion expressed in the payoffs to Divino Pai Eterno happen in several ways: strands of hair, photographs, pieces of clothing ... So the way to cultural historian is to rescue these events and devotions and extend the areas of historical research in order to allow the objects produced by man / woman (his life material) were investigated and studied. The ex-vows a source, allow a contact with some aspects of popular religiosity, and also important to the development of cultural studies. At the core of this dissertation, we reveal the mixture of belief, mystery and mystique of the expression of ex votes in the health context for the search of prosperity, the disease, the search for a shelter, in a society where large proportion is devoid of any kind of support to provide the health, safety, prosperity, and on the other hand, a constant charge of all this, being a society extremely competitive and challenging and advocated a social and emotional distress. The devotee thus finds in the saints of devotion or in other forms of devotion to the possibility of withdrawing from their shoulders the burden of driving to the helplessness of a life time.

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LISTA DE FOTOS

FOTO 01: A FAMÍLIA TEIXEIRA - DONA DINÁ, SR. GERVALINO (DA ESQUERDA PARA DIREITA), MARIA LUIZA (A SEGUNDA DA DIREITA PARA A ESQUERDA),

FILHOS NETOS E BISNETOS. ... 31

FOTO 02: OS IRMÃOS JOVERSON E MARIA LUIZA CAMINHAM RUMO A TRINDADE. ... 33

FOTO 03: BISNETOS PARTICIPAM DO EX-VOTO DO CASAL TEIXEIRA. ... 34

FOTO 04: BISNETO DO CASAL OBSERVA A BANDEIRA DO DIVINO PAI ETERNO. ... 35

FOTO 05: CARRO DE APOIO PARA A FAMÍLIA TEIXEIRA. ... 36

FOTO 06: A FAMÍLIA TEIXEIRA EM PAUSA PARA O CAFÉ DA MANHA. ... 37

FOTO 07: ALMOÇO DOS TEIXEIRA. ... 38

FOTO 08: PAUSA PARA ALMOCO, TENDO AO FUNDO O RIO VERDAO... 39

FOTO 09: FAMÍLIA DESCANSA DURANTE A PAUSA PARA O ALMOÇO. ... 39

FOTO 10: JOVERSON SE PREPARA PARA O JANTAR... 40

FOTO 11: PÉS CASTIGADOS PELA VIAGEM. ... 41

FOTO 12: O CASAL, GERVALINO E DINÁ. ... 43

FOTO 13: VOTANTES CARREGAM CRUZES PARA O CUMPRIMENTO DE PROMESSAS, ASSIM COMO O CRISTO SOFREDOR. ROMEIROS CARREGAM O OBJETO ATÉ O SANTUÁRIO DO DIVINO PAI ETERNO EM TRINDADE – GO. .... 76

FOTO 14: PAIS AGRADECEM PELA VIDA DO FILHO. ... 78

FOTO 15: ROMEIRO CONSEGUE ENTRAR NOS ESTADOS UNIDOS ATRAVÉS DE MEIOS ILEGAIS E LEVA SUA FOTO ATÉ O SANTUÁRIO DO DIVINO PAI ETERNO. ... 79

FOTO 16: ROMEIRO AGRADECE AO PAI ETERNO PELA “FORÇA” EM CONSEGUIU DINHEIRO PARA VISITAR A FLÓRIDA NOS ESTADOS UNIDOS. .. 80

FOTO 17 DEVOTA PEDE RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS AMOROSOS. ... 81

FOTO 18: ROMEIROS AGRADECEM A CONCRETIZAÇÃO DO MATRIMÔNIO .... 82

FOTO 19: ROMEIRA AGRADECE AO SER TRANSCENDENTE O DIPLOMA ACADÊMICO ... 83

FOTO 20: ROMEIRO AGRADECE O PRÊMIO MILIONÁRIO DA LOTERIA. ... 84

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 13

2 ROMPEU A AURORA, RAIOU O DIA, VAMOS ROMEIROS COM DESTINO A ROMARIA. ... 26

3 O EX-VOTO PARA A SALVAÇÃO: O CÉU E A TERRA ANDAM JUNTOS PARA ABSOLVER AS AFLIÇÕES DO MUNDO TERRENO ... 44

4 A FÉ DO ROMEIRO: O AMIGO PAI ETERNO ALIVIA O SOFRIMENTO DOS FIÉIS ... 72

5 CONSIDERAÇOES FINAIS ... 101

6 REFERÊNCIAS ... 103

6.1 FONTES ... 103

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1 INTRODUÇÃO

As questões do Imaginário e do Religioso ganharam uma inegável importância na historiografia mundial nos últimos anos. Tentar buscar e compreender os nexos e as relações sociais e religiosas como forma de expressão humana em todas as suas possíveis manifestações, tem conduzido os historiadores a discutirem e investigarem esse tema.

Embora ainda esteja em vias de se tornar um objeto privilegiado na historiografia brasileira, Michel Vovelle em um breve artigo — Os ex-votos do território marselhêsi chama a atenção para a importância do ex-voto enquanto documento da história cultural. Trata-se de uma fonte capaz de revelar ao historiador aspectos da relação do homem com Deus; a presença do sagrado e do milagre na vida cotidiana, contribuindo para o estudo das atitudes religiosas populares. Além de Michel Vovelle, diversos estudos para a Europa já incorporaram o ex-voto enquanto sítio privilegiado da história das mentalidades. O mesmo se pode afirmar em relação

ao tratamento da questão em Portugal e aos estudos realizados no México sobre os ex-votos.

A grandiosa devoção dos romeiros, que se mobilizam de suas cidades e se dispõem a caminhar milhares de quilômetros, rumo ao Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, no município de Trindade, em Goiás, é a mais pura expressão de uma fé simples e popular. A fé no Divino Pai Eterno transformou-se em romaria. Ao longo dos anos, ganhou fama e trazia gente de todos os lugares. O refrão popular contava bem o espírito da romaria: "Coisa boa é bondade, festa boa é da Trindade".

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A devoção ao Pai Eterno atravessou os anos e passou a arrastar multidões para Trindade, cuja emancipação política foi conquistada em 1920. Os romeiros vinham a pé, a cavalo e em carros de boi, dias e dias na estrada, para rezarem diante da imagem e agradecerem as graças recebidas. Por isso, em 1943 o arcebispo de Goiânia, D. Emanuel Gomes, juntamente com os missionários redentoristas lançaram a pedra fundamental do novo santuário.

É um fenômeno que representa um profundo sentimento religioso, iniciado com a partida de Moises que, junto com seus seguidores, caminhou quarenta anos pelo deserto em busca de Canaã, a Terra prometida por Deus.

Dessa forma, o segundo maior Santuário do Brasil, a Basílica do Divino Pai Eterno, acolhe anualmente dois milhões de peregrinos que se diferem quanto à raça, cultura, condições sociais e econômicas, mas que se aproximam em relação ao credo em uma Entidade Divina Superior, para a qual eles declaram toda sua devoção, cumprindo uma promessa e levando um donativo.

O Ex voto é a maneira utilizada pelos fiéis para reconhecer e agradecer pela intervenção da Santidade frente a uma adversidade, como acidentes, problemas de saúde, problemas financeiros, pedidos de viagens, casa própria, formaturas, questões estéticas e outros. Quando o santo devotado propicia a aquisição da benção, há uma retribuição que se manifesta sob várias formas, como a oferta de fotografias, artefatos artesanais como partes do corpo, pedaços de cabelo, aparelhos ortopédicos, dentre vários outros, que são guardados na Sala dos Milagres, no interior da Basílica do Divino Pai Eterno.

Segundo Maria Amália Corrêa Giffoni, os ex-votos são associados às necessidades sociais da “gente do povo”, a cultura popular é sinônimo de exotismo, primarismo e espontaneidade.

Durante o século XVII e início do XIX, o povo se tornou um tema interessante

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que era natural, simples, instintivo e irracional, numa perspectiva romântica do século XIX.

Em artigo escrito com Michel de Certeau, e Dominique Julia, Jacques Revel comparou essa descoberta da cultura popular a uma criança espontânea e ingênua, o povo é uma vez mais a criança. Sendo assim, a cultura popular é era o início e a infância de uma cultura que o folclore teria a função de proteger.

O Historiador Arnold Hauser afirma que o “Romantismo ignorou as características concretas da arte folclórica e pelo fato de realçar o seu caráter supostamente universal e arquétipo, transformou-a num fenômeno de concepção vaga”. Hauser acaba com a idéia de que existe uma “alma do povo” e que se possa aplicar essa noção às manifestações da cultura folclórica e popular. Esse historiador da Arte afirma ainda que seja necessário considerar que as obras de arte não têm origem no ar rarefeito de um mundo do espírito; a produção artística é algo de dinâmico e dialético, um ato ligado ao todo da vida, uma atividade enraizada na prática.

Existe uma enorme dificuldade em se estudar e definir a Cultura Popular. Para Jean-Claude Schmitt o problema de definição do conceito da cultura popular, que pode assumir vários significados.

De acordo com Roger Chartier, a identificação da cultura popular deve ser buscada na apropriação que os grupos fazem dos objetos culturais, ou seja, nos significados que certos grupos atribuem a esses objetos. Já para Michel de Certeau, a cultura popular se apresenta diferentemente, ela se formula essencialmente em “artes de fazer” isto ou aquilo. As práticas revelam uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar.

Esses autores tentam demonstrar a importância de se refazer as relações entre a cultura popular e a cultura erudita. Os estudos culturais procuram romper

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O conceito de cultura popular fornece subsídios teóricos para uma compreenção do significado dos ex-votos. O ex-voto é compartilhado tanto pelos membros da camada da sociedade financeiramente abastecida, quanto pelos menos favorecidos. O ex-voto permite entrar em contato com uma cultura que possibilita novos significados à religião.

O ex-voto é uma fonte de investigação. As imagens e as legendas permitem um contato mais direto com alguns aspectos da religiosidade popular. Confessar um problema, doença, através do voto, revela aspectos importantes do cotidiano e da vivência religiosa. O ex-voto desvenda a relação entre a religião vivida e a exigida pela Instituição Religiosa.

Na história da religião e da medicina, encontramos dois modelos para entender a doença/pecado e a saúde/salvação. O primeiro vincula-se às categorias de puro/impuro, presentes em todas as religiões. É a idéia que elementos estranhos podem trazer sujeira ou contaminação em todas as dimensões da vida: corporal, psíquica, ritual, pessoal, moral, sacramental, social... no contexto desse simbolismo, cura e salvação assumem o caráter de purificação, por exemplo nas técnicas de assepsia e desinfecção ou nos rituais de exorcismo ou aspersão com água. Encontramos o segundo modelo na medicina antiga, que considerava a doença como uma perturbação da constituição harmoniosa do corpo, baseada no equilíbrio de forças ou “humores”. A arte de curar devia procurar restabelecer a harmonia do todo identificado com saúde e beleza, conforme o ditado Mens sana in corpore sano.

A Igreja e a Medicina sempre foram produtores de saberes sobre o corpo. Para o saber médico, durante muitos séculos as doenças foram encaradas como algo sobrenatural. A Bíblia refere à lepra como castigo divino, os epilépticos eram considerados possuídos por demônios e mesmo hoje em dia, muitas culturas consideram que a feitiçaria ou espíritos maléficos são a principal causa das

doenças.

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reza ao espírito responsável, um encantamento para proteger o doente da feitiçaria ou uma poção feita em uma parte sugestiva de um animal, e tudo isto para a mesma doença.

Mesmo na Idade Média, o sistema era semelhante. Não se recorria tanto a espíritos para explicar a doença, mas sangrava-se a torto e a direito, com cortes ou sanguessugas, para retirar os “humores” prejudiciais. Tudo isso porque séculos antes Hipócrates lembrou-se de escrever que todas as doenças são causadas por desequilíbrios entre os quatro fluídos que acreditava formar o corpo humano.

Só por volta do século XVII é que se começou a generalizar a idéia de testar hipóteses com experiências e observações, ou seja, inventar uma explicação era apenas o primeiro passo; a seguir era preciso ver se era de fato correta. Esta inovação metodológica marca o início da Ciência Moderna. O Genoma (a soma de genes que define como funciona um ser vivo.) que é transmitido, com variações individuais, de geração em geração e determina a espécie do ser vivo. Nele se encontram gravadas nossas características hereditárias encarregadas de dirigir o desenvolvimento biológico de cada indivíduo.

Para a Igreja, devido ao pecado original, o homem era visto como um ser miserável, condenado a suportar a dor e o sofrimento. A Igreja procurava enquadrar assim o corpo em um discurso religioso,reivindicando para si seu controle.Reduzindo as enfermidades a causas sobrenaturais, a Igreja criava também uma justificativa para elas. A doença tornava-se então uma espécie de purgadora dos pecados, necessária à salvação das almas. A relação entre o sofrimento físico e a salvação das almas ajuda a compreender melhor a perspectiva da cultura eclesiástica.

1, Para humilharmos-nos, 2, para desapegarmo-nos do mundo e de nós

mesmos, 3 para preparar-nos à morte 4 para punir-nos de nossos pecados; e dar-nos lugar de expia-los pela penitência, 5 para ensinar-dar-nos ser pacientes e

mortificados, e para purificar-nos com estes castigos corporais.

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Para aqueles que se deparavam com o mistério do sofrimento e da doença, a mensagem da Igreja era bastante clara: a doença é um castigo e uma advertência: castigo pelos pecados do homem e advertência para que pudessem se preparar para uma “boa morte”.

Diante da importância que adquiriu a questão da “boa morte”, existem consideráveis investimentos por parte da Igreja, que criou seminários e encomendou obras artísticas sobre o tema com fins pedagógicos, e das irmandades, que forneciam condições materiais para que os irmãos tivessem uma “boa morte”. Diversos foram os religiosos que deixaram mensagens específicas relativas ao “bem morrer”. De acordo com o padre Manoel Bernardes, “nossa salvação depende de termos uma boa morte”. Mas para morrer bem, o homem deve se abster dos apetites do corpo, das paixões e vaidades do mundo terreno. Para as determinações eclesiásticas, era necessário tratar primeiro cuidar da alma para depois cuidar do corpo.

Para a Igreja, a doença é portanto, um açoite da mão de Deus, muitas vezes necessário para a salvação. A proposta de resignação e sofrimento que a Igreja defende, espelha-se em grande parte, na vida dos santos: “sendo de carne e osso, como nós... sofreram com admirável paciência suas dores e aflições muito maiores que as nossas por amor de Cristo.” Além disso, o cristão também é convidado a se espelhar no sofrimento de Cristo. Isso representa a ênfase da Igreja na mortificação do corpo. É uma mudança sensível em relação à forma como a dor era percebida.

Ao mesmo tempo em que há uma identificação com as chagas de Cristo e dos Santos, acredita-se que estes podem se apiedar e curar suas enfermidades. Sendo assim, no imaginário popular, muitas vezes o Cristo vingativo e terrível cede à imagem de Cristo sofredor e misericordioso. Além dos devotos que veneram a imagem de Cristo sofredor, existem os que demonstram devoção a Cristo.

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Ao tomarmos os ex-votos de Trindade estamos definindo um universo de fontes para o trabalho histórico que são, na sua grande maioria, visuais. No entanto, os ex-votos não são unicamente uma fonte visual. Junto a uma foto, pode-se encontrar um texto descritivo, no mais das vezes manuscrito, da família ou do próprio “ miraculado”. Também quando analisamos Ex-votos feitos em pintura em tela e a óleo ou em retábulos de madeira, podemos encontrar junto a maioria dos quadros, descrições da cena pintada ou fatos referentes ao próprio milagre.

A príncípio, devemos ressaltar serem os Ex-votos uma fonte visual, o que permite uma reflexão: ao longo do tempo – como nos lembra Meneses, ao se aproximar do campo visual, o historiador reteve, quase sempre, exclusivamente a imagem – transformada em fonte de observação.ii

Outra forma de abordagem do campo visual caracterizado desde os anos 60, é a atitude de iluminar as fontes visuais com a informação histórica externa. Não se tem buscado, desde então, uma forma de produzir conhecimento histórico novo, a partir dessas mesmas fontes. Dessa maneira, a função da imagem tem se limitado ao seu uso como ilustração. Segundo Meneses:

“... a ilustração agia com direção fortemente ideológica, mas não é menos considerável seu peso negativo, quando o papel que ela desempenha é o de mera confirmação muda de conhecimento produzido a partir de outras fontes ou, o qual é pior, de simples indução estética em reforço ao texto, ambientando afetivamente aquilo que de fato contaria.iii

De maneira geral, os estudos mais recentes sobre cotidiano, vida privada, mentalidades e imaginário, são recheados desses exemplos de usos de

fontes visuais. Apenas como elemento ilustrativo, na sua grande maioria, a imagem torna-se silenciadora dos cotidianos e mentalidades, muito mais do que contribuinte

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em si, de toda forma a-historicizada, como acrescenta Meneses: que disto resulta um processo de dependência das técnicas de leitura derivada de uma submissão mecânica à iconografia/iconologia, ou até mesmo, de uma semiótica a-historicizada.

Tudo isso tem impedido que se estudem os enunciados próprios das imagens, ou suas trajetórias, limitando-se a uma abordagem ou das mentalidades, do imaginário e da ideologia.

As iniciativas em torno da história da fotografia, ou mesmo da relação entre fotografia e história, mostram-se com uma relativa consistência, visto ter sido esse o campo que melhor absorveu a problemática teórico-conceitual da imagem, ao emso tempo que gerou um desenvolvimento autônomo nos últimos anos.

Recentemente, tem sido organizados arquivos e bancos de dados em torno de coleções fotográficas, seja álbuns de família, e até mesmo arquivos específicos de fotos que mostram festas em cidades e mesmo da evolução das cidades observada através das imagens. Coleções de caricaturas, pnturas de viajantes, e mesmo a cartografia tem sido sistematicamente organizadas como fontes visuais, e não mais como complementos visuais para fontes escritas. No entanto, grande parte do restante da iconografia está ainda a descoberto.

O ex-voto como fonte utilizada, permite um contato mais direto com alguns aspectos da religiosidade popular. Mas isso só é possível quando ocorre um contato com as imagens e as legendas dos mesmos. Confessar uma doença, uma situação de aflição, ou até mesmo uma situação que para muitos seria banal, revela aspectos da vida cotidiana e da vivência religiosa. O Céu e a Terra andam de “mãos dadas” o tempo inteiro, e as imagens servem como o conhecimento da sensibilidade popular.

A base dessa pesquisa é constituída pelos ex-votos, e para compreender as

relações desses artefatos com a religiosidade popular, outras fontes como constituições eclesiásticas e obras teológicas que insistem na caracterização do

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importância para a fundamentação desse trabalho, uma vez que foram fundamentais para compreender os significados da prática votiva.

A nosso ver esse ainda é o caso das fontes visuais vinculadas á religiosidade popular, como é o caso dos ex-votos. No caso do interior do Brasil, e mais especificamente em Goiás, essas fontes não foram até então consideradas relevantes para os estudos históricos. Vinculadas à preocupação precípua de artistas e estudiosos de arte Naïf, são ainda documentos inéditos para boa parte dos historiadores.

Vale ressaltar e identificar ainda o núcleo histórico do qual lançamos mão. Assim, é imprescindível entender a origem e base de um surgiu a devoção ao Divino Pai Eterno. Todo o Sul de Goiás, do rio dos Bois à divisa de Minas Gerais constituía o território do antigo distrito de Santa Cruz, existente desde o século 18. No ano de 1833 esse território foi dividido em três partes, formando os municípios de Santa Cruz, Catalão e Bonfim (Silvânia).

O distrito de Santa Cruz, criado em 1776, tinha um imenso território que abrangia todo o Sul de Goiás. A Oeste, sua divisa era o rio dos Bois; a Sul e a Leste, o rio Paranaíba; a Nordeste fazia divisa com o município de Santa Luzia (Luziânia) e ao Norte, com o município de Meia Ponte.Em 1833 uma resolução provincial dividiu o distrito em dois, criando os municípios de Santa Cruz e Catalão. No mesmo ano, outra resolução criou o município de Bomfim, que incluía todo o território onde já existia o arraial das Campinas e onde alguns anos depois surgiria Trindade, e bem mais tarde, Santa Bárbara e Campestre.

A partir de 1833 o sudeste goiano começou a construir uma identidade. Além da constituição dos três municípios, Santa Cruz tornou-se sede da Comarca, teve juiz de direito nomeado e com a constituição da Assembléia Legislativa Provincial, a

região começou a ter representação política na capital.

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municípios. Catalão também se dividiu para formar Ipameri. Do município de Bomfim, surgiu, em 1880, o distrito de Suçuapara, que dezesseis anos depois se tornaria município de Bela Vista. Esse distrito tinha uma vasta área e integrava as pequenas localidades de Campinas e Barro Preto.

Suçuapara fazia divisas com Alemão (Palmeiras), Curralinho, Santana de Antas (Anápolis), Bomfim e Pouso Alto (Piracanjuba). Pela sua extensão, não demorou muito para que também começasse a ser dividido.

Foi no ano de 1810 que algumas famílias, lideradas por Joaquim Gomes da Silva Gerais, deixaram Meia Ponte e se estabeleceram onde hoje é Goiânia. Fundaram, então, o arraial de Campinas, que ficou subordinado a Santa Cruz. A formação do arraial propriamente dito começou com a criação do patrimônio de Nossa Senhora da Conceição e a construção da primeira capela, em data desconhecida, pelo alferes Joaquim segundo registros do Livro do Tombo da Freguesia(paróquia). No dia 13 de abril de 1839, faleceu o Sr. Joaquim Gomes, sendo sepultado no adro, em volta desta capela. Grande parte dos moradores tinham imigrado do Estado de Minas Gerais. De qualquer forma, desde 1836 a igrejinha já possuía Livro de Casamento, como “Capella Curada da Paróquia de Bonfim”, hoje Silvânia.

A Matriz de Campinas, recebeu esse nome exatamente da mesma forma que todas as suas irmãs do interior. Foi a primeira igreja construída em Campinas. Foi construída em 1844. Antigamente, a igreja se constituía como centro do povoado. Era o ponto de reunião das pessoas, que ficavam ali depois das celebrações. Durante a semana, o movimento era fraco a regular. O melhor ficava para Sábado e Domingo. Virava uma verdadeira festa. Nesses dias o pessoal da roça vinham para a cidade e os operários estavam de folga. Aí o movimento crescia. Todos vinham fazer sua compras na cidade.

A igreja, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, foi elevada à dignidade de

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A Imaculada Conceição foi proclamada Padroeira do Império Brasileiro por D. Pedro I e já no despontar do século XX, com o advento da República, o título cedeu lugar à Nossa Senhora Aparecida, que é uma antiga imagem da Imaculada Conceição encontrada nas águas do rio Paraíba do Sul, em Aparecida.

Os primeiros dados estatísticos sobre Campininhas foram fornecidos por Cunha Matos, em 1824:

“Fica aproximadamente 24 léguas ao sudeste da cidade de Goiás. Tem 11 casas e uma capela de Nossa Senhora da Conceição. O arraial é habitado por agricultores e criadores de gado para o fornecimento da cidade.”iv

A velha igreja matriz se localizava em ampla praça, onde até a década de 1920 pastavam tranqüilamente eqüínos, muares e bovinos. Impressionava os alemães que mal atravessavam as ruas e em especial o largo da matriz e observava que servia de pasto para a tropa e para o gado de particulares.

O município de Campinas foi criado por lei estadual em 1907, ao qual passaram a pertencer os arraiais de Barro Preto e São Sebastião do Ribeirão, além das nascentes povoações de Aparecida e São Geraldo.

Dois anos depois, a lei municipal n. 5, de 12 de março de 1909, criava o distrito do Barro Preto e alterava seu nome para Trindade, incluindo no seu território o arraial do Ribeirão. Cinco anos mais tarde, outra lei municipal estabelecia o distrito de São Sebastião do Ribeirão, que depois receberia o nome de Guapó.

Finalmente, a lei estadual n. 662, de 16 de julho de 1920, criou o município de Trindade, com território desmembrado de Campinas e a ele anexado o distrito de São Sebastião do Ribeirão. Sete anos depois, sua sede foi elevada à categoria de

cidade, através da lei estadual n. 825, de 20 de junho de 1927.

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estadual começou a trabalhar a transferência da capital, todas as localidades selecionadas estavam em municípios dessa região.

A escolha do sítio da nova capital no município de Campinas, de onde Trindade havia sido desmembrada e com o qual tinha a mais extensa divisa, conferiu a este município uma nova centralidade geopolítica no Estado.

Até então, Trindade era apenas lugar de passagem para a velha capital ou para a ferrovia. Com a nova capital, alteraram-se todas as correlações e o próprio papel da cidade e do município. Estabeleceu-se uma nova relação que trouxe grandes benefícios.

Segundo a tradição, o povoado de Barro Preto teria surgido por volta de 1840. Naquele ano, Constantino Rosa e Ana Xavier, ao roçarem um pasto ao lado do córrego Barro Preto, teriam encontrado um medalhão de barro. O medalhão representava a “Santíssima Trindade coroando a Virgem Maria”. Com a descoberta, Constantino e Ana reuniam a gente humilde da região sempre aos sábados para rezar o terço. Em pouco tempo, a casa já não conseguia acolher tanta gente para a oração diante do Pai Eterno.

A primeira capela, coberta de folhas de buriti, foi construída pelos habitantes em 1843. Os devotos vinham de todo lugar, trazendo presentes e ofertas. Logo se ergueu uma capela de alvenaria, coberta de telhas. Surgia o patrimônio da igreja, com doações de terras pelos fazendeiros do arraial.

Em 1850, Constantino, Valentim Romão e Luiz de Souza doaram o terreno ao Divino Pai Eterno, formando o patrimônio de onde viria a se desenvolver o povoado do Barro Preto. O nome foi adotado em razão da característica da terra local, marcada pela cor escura, além, é claro, da influência do córrego Barro Preto, assim

chamado porque suas margens tinham uma lama gosmenta e preta.

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peça. O historiador Miguel Arcângelo Nogueira dos Santos sustenta a tese de que, ao desejar construir uma capela em sua propriedade, Constantino teria antes perguntado a um padre qual o santo mais forte. Este teria respondido que força maior não havia do que a da Santíssima Trindade: Deus, seu filho Jesus e o Espírito Santo.

Os primeiros devotos e moradores do Arraial tornaram-se devotos da Trindade, de tal maneira que, em 1854, o próprio arraial já era conhecido pelo nome de Santíssima Trindade do Barro Preto.

Aos primeiros romeiros pouco importou o fato de o medalhão ter sido achado ou fabricado. A religiosidade se constituiu em torno não da Trindade, mas de um Deus uno e todo poderoso: o Pai Eterno. Constantino e os devotos resolveram retocar o medalhão sagrado, já gasto pelas romarias. Para tanto, a tarefa teria sido destinada a José Joaquim da Veiga Valle, da cidade de Pirenópolis.

Entretanto, o artista não retocou o medalhão e sim criou uma outra escultura representativa, feita em madeira, e ainda hoje venerada no Santuário de Trindade. O medalhão ficou desaparecido até ser reencontrado na década de 1990, quando um devoto o teria devolvido ao se confessar. Mesmo havendo dúvidas quanto à autoria da imagem, ela passou a cumprir a missão de referenciar a fé dos moradores e romeiros de Trindade.

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2 ROMPEU A AURORA, RAIOU O DIA, VAMOS ROMEIROS COM

DESTINO A ROMARIA.

A romaria, para os estudos históricos relacionados às devoções e religiosidades é a síntese da história da peregrinação do povo de Deus. Para os católicos teve início com a partida de Moises em busca da Terra prometida, passando 40 anos de caminhada pelo deserto. Dentro desta dinâmica, desde a referência a uma possível descoberta do medalhão há mais de 169 anos, os devotos do Divino Pai Eterno saem de vários lugares e um só destino, a hoje cidade de Trindade, e ao Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, um lugar de paz para onde eles vêm para alcançar suas graças e fazer seus louvores; enfim, chegar à Terra Prometida no coração do Pai.

No arraial de Barro Preto, hoje denominado simplesmente de Trindade, no interior do Estado de Goiás (não muito longe do local atualmente ocupado pela nova capital do país, Brasília), por volta de 1840, surgiu a romaria do divino Pai Eterno. A história fundadora da devoção inicia-se com um casal de camponeses (Constantino Xavier Maria e sua mulher Ana Rosa de Oliveira), que se reunia diariamente com vizinhos para rezar o terço diante de uma medalha de barro (de oito por dez centímetros), deu início à mais importante manifestação religiosa do Brasil central. No medalhão que, segundo a lenda, teria sido descoberto de modo milagroso no chão de um pasto , estava gravada a imagem da Santíssima Trindade coroando a Virgem Maria: uma “quaternidade” que não podia deixar de ser considerada como o

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imponente basílica recém-inaugurada. O pequeno povoado no meio do sertão tornou-se uma cidade, que responde agora pelo nome de Trindade. No dia da festa, ela recebe mais de oitocentas mil pessoas, vindas do Brasil inteiro ao termo de uma “caminhada para chegar mais perto de Deus”.

Ficou consagrado como o dia da grande festa o primeiro domingo do mês de julho de cada ano. Durante os nove dias, que antecedem o grande dia de festa, são celebradas missas, novenas, encontros com jovens, casais, carreiros do Divino Pai Eterno (procissão dos carros-de-boi), foliões, tropeiros, e muito mais. Também são atendidas milhares de confissões e realizados centenas de batizados neste tempo de intensa presença de Deus em Trindade. Mas a cidade tem todo um aparato montado para a realização da recepção dos romeiros, e como não deixa de ter todo um aparato muito mais profano, com barracas de vendas de comidas, bebidas, e todo tipo de diversão acaba também por ocorrer e mobilizar romeiros e moradores no dia da festa.

“O romeiro fazendo a caminhada por muitos e muitos quilômetros, entrando na igreja de joelhos ou soltando o foguete de sua promessa, encontra-se plenamente saciado de sua carência espiritual”. Entre as múltiplas formas de cumprir promessa (pelo traje vestido, pelas ofertas mais diversas, como leitões, bezerros, alimentos, café etc) a mais comum é vir a pé a Trindade. “A caminhada, como qualquer outra promessa, é ato transcendental de penitência e humildade. Esmaga-se o corpo no cansaço, liberta-se o espírito pela satisfação da graça recebida e da promessa cumprida”.1

A viagem para a festa é esperada e ritualizada, conforme notamos nos seguintes trechos:

“Maio e junho é tempo já de preparar a romaria. Os ovos são guardados na areia para melhor conservação. Ajeita-se o sabão

caseiro. Começa o preparo dos doces de figo, de laranja, de leite. E quitanda, muita quitanda: biscoito, bolos, broas e

pãezinhos especiais. Mata-se o capado e prepara-se as latadas

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de carne para a viagem e o tempo da festa. Cada detalhe é importante. Cada gesto tem já um sentido de fé: o Pai Eterno espera para a bênção de todo ano. No finalzinho de junho, os carros de bois são preparados para a grande viagem. Acomodam-se as latas de alimentos, sacos de roupas, colchões e tamboretes, lonas e madeira para a barraca. Manhãzinha chegada, uma oração para o Divino e começa a solene caminhada, em meio à cantoria dos carros2”

Depois de rezarem e deixarem votos, os festejos promovem a reunião dos carreiros e “conversê” (na linguagem caipira) com outros, o que não ocorre durante a missa, lugar do silêncio. No espaço considerado profano, o forró, as barracas que servem frango assado, entre outras iguarias, e bebidas, a prostituição, o parque de diversões e os jogos (bingo, roleta, “pescaria”, tiro ao alvo) aguardam todos para o ajuntamento. Confecções, utilidades domésticas e bugigangas demonstram o que é moda, sendo desejados e consumidos pelos participantes da festa. Tudo isso num só espaço de devoção à santidade; ou seja, a fé (sacralidade) e a farra (profanidade) são elementos que se atraem, divergem, mas não se excluem.

O relacionamento que os devotos mantém com o Divino Pai Eterno mostra que eles sentem – sem poder expressa-lo em palavras ou conceitos – que se trata de um encontro vital – que exige uma entrega total - com a fonte criadora e restauradora da vida individual, familiar e social enquanto unidade dinâmica. O beijo e o toque das mãos e do corpo dos enfermos significa o contato mais direto e íntimo possível. Eles não procuram apenas um favor ou uma proteção individual, mas querem se sentir membros da família e da sociedade de Deus, onde tudo circula e tudo é envolto num mesmo círculo de vida, de onde não há excluídos, marginalizados ou abandonados. Para que haja integração na sociedade, os três lados do econômico (fonte de vida), do político (estrutura vital) e do simbólico

(abertura à transcendência vital) devem viver em harmonia.

2

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Antes de mais nada, adota-se como pressuposto que a romaria não deve ser considerada apenas uma “sobrevivência” do catolicismo tradicional ou “rústico”. Não se observa, principalmente no Brasil, uma diminuição ou decadência destas festas e romarias populares. Pelo contrário, naquelas que acontecem em santuários e centros de devoção — Trindade (GO), Aparecida do Norte (SP), Nossa Senhora da Penha (RJ), Pirapora do Bom Jesus (SP), Senhor do Bomfim (BA) — o que se percebe é uma gigantesca congregação de fiéis. Miguel Santos (1975), em sua dissertação de mestrado sobre o santuário de Trindade, em Goiás, aponta para o crescimento das romarias particularmente para Trindade. Este crescimento, segundo o autor, acompanha o processo de urbanização: primeiramente quando a capital é transferida para Goiânia, em 1934 e, posteriormente, quando a sede federal transporta-se para Brasília, em 1956. Assim, considera-se nesse estudo, a romaria como uma prática que engloba a dinâmica do tradicional e do moderno, do religioso e do secular, sem perder a sua especificidade. A romaria não é apenas uma manifestação do catolicismo popular. Alguns aspectos ligados a um estilo de vida tradicional, que inclui o catolicismo rústico, persistem ao lado de outros novos, ligados a uma cultura das cidades, na qual se aproxima a dinâmica do santuário de Trindade especialmente durante a Festa. A romaria mantém elementos tradicionais dessa forma de devoção e, ao mesmo tempo, não está fechada nem vulnerável às transformações que provêm de um mundo urbanizado.

A Festa do Divino Pai Eterno, em Trindade, GO, é um exemplo da criação desse universo de relações. Ali se juntam vários sitiantes no santuário, principalmente os carreiros (dos carros de boi), que se confundem com romeiros de outras cidades, como Goiânia e outras. Nessa ocasião, após as rezas e os votos, os festejos forjam a reunião das pessoas para se comunicarem, o que não ocorre durante a missa, lugar do silêncio. No espaço considerado profano, o forró e as barracas que servem frango assado e bebidas, e que propiciam jogos (bingo, roleta, tiro ao alvo) aguardam os devotos para o ajuntamento. As confecções e utilidades

domésticas, por sua vez, fornecem produtos da moda para os participantes da festa. Tudo isso no espaço de devoção, ou seja, a fé (sacralidade) e a festa (profanidade),

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Na romaria, viajam aproximadamente quarenta famílias que vivem da pecuária leiteira em pequenas propriedades na zona rural. Mesmo aquelas que moram na cidade também trabalham nesta mesma atividade, seja em suas próprias terras seja seja em outras propriedades como diaristas[5]. Na verdade, grande parte da economia do município de Mossâmedes está baseada na agropecuária – cultura de arroz, milho e feijão, e pecuária leiteira e de corte.

Na romaria, entre as famílias, cria-se uma rede de sociabilidade que redimensiona as relações familiares e de vizinhança. Se por um lado, nos pousos, a família se une num mesmo espaço, na barraca, para passar a noite ao final de cada dia da viagem, também nos pousios, cada família abriga uma família extensa, composta de uma ou várias famílias nucleares , fazendo uma série de atividades como dormir e comer juntos na mesma barraca ou muitas vezes no mesmo espaço, ainda que esse não se defina como barraca. É uma situação peculiar em relação ao cotidiano, pois se na vida cotidiana, cada família nuclear possui a sua própria casa e, muitas vezes, a sua propriedade, a coletividade impera enquanto sociabilidade definitiva no processo de caminhada religiosa. Na romaria, as relações familiares intensificam-se e a convivência nas barracas permite uma aproximação espacial entre avós, pais, tios, filhos, primos, netos.

Fora das barracas, algumas mulheres organizam as rezas, que procuram reunir os romeiros depois do jantar para as orações. Essas rezas comunitárias existem há mais ou menos 10 anos, com incentivo da Diocese de Goiás para a criação de Comunidades Eclesiais de Base. Anteriormente, cada família fazia suas orações individualmente. Hoje, no entanto, alguns leigos incorporaram algumas características do movimento da Teologia da Libertação, estimulando os participantes da romaria a expressarem suas opiniões sobre essa experiência e sobre a leitura do Evangelho do dia. Todavia, o caráter político e militante originário do movimento perdeu-se, pelo menos é o que mostra a situação religiosa atual da

romaria. De qualquer forma, as rezas são um importante fator de sociabilidade nas quais os romeiros podem ampliar suas relações sociais para fora do âmbito da

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“Rompeu a aurora, raiou o dia, vamos romeiros com destino a romaria”.É com essa frase estampada nos carros de apoio que uma família de Jataí - GO caminha cerca de trezentos e trinta quilômetros de sua cidade natal até Trindade. São pessoas humildes, que seguem todo o percurso com fé e muita gratidão ao Padre Eterno, como prefere chamar o patriarca, Gervalino Teixeira.

Senhor Gervalino, de oitenta anos, faz esse trajeto há mais de trinta e garante não se sentir cansado ou desanimado durante a jornada. Para ele, o mais importante é o agradecimento pela vida da esposa, dona Diná Teixeira, e da filha mais velha do casal, Maria Luiza Teixeira, que sofreram um grave acidente há mais de três décadas, durante um trabalho na roça da família. A foto 01 retrata a família Teixeira.

Foto 01: A Família Teixeira - Dona Diná, Sr. Gervalino (da esquerda para direita), Maria Luiza (a segunda da direita para a esquerda), filhos netos e bisnetos.

Fonte: arquivo pessoal da família Teixeira, Trindade, 2009.

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o manuseio do equipamento, devido ao despreparo para o uso, a pá que recolhia aos grãos caiu sobre a cabeça da esposa e da filha, deixando o patriarca e o filho em completo desespero.

Gervalino não seguia nenhuma religião, mas respeitava e tinha muito carinho pela devoção que a esposa nutria pelo “Divino Pai Eterno”. Durante os momentos de angústia e aflição, Diná sempre pedia que o Ser Superior a ajudasse a superar suas tormentas. Como sempre era atendida, tentava fazer com que o marido também pedisse auxílio durante suas adversidades, mas sempre ouvia a seguinte afirmativa: “Diná, isso é ilusão, tudo na vida passa, as coisas boas e ruins sempre vão e vem, mas se te faz bem, acredite Nele”.

Naquele momento de imensa aflição, Gervalino e o filho não eram capazes de retirar o maquinário que estava sobre as mulheres e também não conseguiam sair para chamar por socorro. O patriarca, então, lembrou-se do jeito afetuoso que sua esposa chamava o Divino Pai Eterno e, desesperadamente, gritou pela intercessão do mesmo. O auxílio chegou ao mesmo instante através dos vizinhos, donos do equipamento, que vinham ajudar na colheita.

A chegada dos amigos, segundo a Senhora Diná, foi a “luz” Divina no caminho de seu marido, que até então era descrente em qualquer Ser Superior. Ele viu nesse acontecimento a real existência do Divino Pai Eterno e, desde então, não deixa de chamá-lo nos seus momentos de maior angústia.

Diná e Maria Luiza foram encaminhadas a um Hospital de Goiânia em estado gravíssimo e com baixas taxas de sobrevida, segundo as informações médicas. Entretanto, o chefe do lar creditava a vida delas ao Pai Eterno e tinha plena convicção de que ambas já estavam salvas.

O acidente foi o ponto de partida para que a família prometesse que, caso as duas sobrevivessem, mesmo com alguma sequela, iria sempre unida rumo a

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Divino Pai Eterno. A foto 02 retrata a fé dos irmãos Maria Luiza e Joverson a caminho de Trindade.

Foto 02: Os irmãos Joverson e Maria Luiza caminham rumo a Trindade. Fonte: Arquivo pessoal da Família Teixeira, Trindade, 2009.

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É interessante, pois Por outro lado, na estrada, a família que estava unida na mesma barraca, se separa: os homens têm que conduzir os carros de boi, exercendo o trabalho de carreiro, e as mulheres podem ficar ou dentro dos carros ou andando em grupos, na frente. Este é um caso interessante que merece ser descrito: as mulheres andam em grupos de 5 a 10 pessoas, em que a presença masculina é quase nula. As solteiras preferem se distanciar das casadas porque a viagem é um momento propício para paquerar e namorar os rapazes. No grupo das “moças” pode-se observar, vez ou outra, um rapaz a cavalo rondando-o, conversando, sorrindo, procurando talvez uma pretendente. As casadas, por sua vez, contam piadas e trocam fofocas entre as quais sempre existe uma história de adultério

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Foto 05: Carro de apoio para a Família Teixeira. Fonte: arquivo pessoal da Família Teixeira, Trindade, 2009.

Durante a jornada até Trindade, o grupo segue todo um ritual. Levantam-se às 6 horas da manhã, sendo o desjejum composto por bananas, para evitar possíveis cãibras, e chás, para mantê-los aquecidos enquanto não entram no ritmo da caminhada. Logo aos primeiros passos rezam dois terços, antes da primeira pausa para o segundo café da manhã do dia, foto 06, com duração de aproximadamente 30 minutos.

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Foto 06: A Família Teixeira em pausa para o café da manha. Fonte: arquivo pessoal da Família Teixeira, Trindade, 2009

Outro fator importante de sociabilidade é a alimentação. Alguns romeiros receiam quando suas mulheres não participam, pois como se diz normalmente “Vai faltar o arroz quentinho”. Ora, o que está por trás do seu discurso não é apenas a

valorização da família permanecer unida na romaria, mas também da importância comida. Na romaria, o momento da alimentação, portanto na hora do rancho, a

comida é compartilhada e celebrada. Durante a viagem, os romeiros oferecem-se mutuamente bolos, doces, guloseimas.

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leite, queijadinha, pé-de-moleque, paçoca de amendoim, doce de limão, etc. Na romaria, a comida é de festa.

Esta rede de sociabilidade que emerge no período da romaria também permite o surgimento de novas relações entre pessoas com atividades e modos de vida diferenciados no cotidiano, e, ao mesmo tempo, uma intensificação dos laços dentro das famílias. Na romaria, convivem lado a lado, o fazendeiro e o agregado, o patrão e o empregado, gente da roça e gente da cidade.

Foto 07: Almoço dos Teixeira.

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Foto 08: Pausa para almoco, tendo ao fundo o Rio Verdao. Fonte: arquivo pessoal da Família Teixeira, Trindade, 2009.

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A caminhada segue tarde afora, quando andam por cerca de três horas antes da parada para o lanche da tarde. Questionado sobre o possível cansaço, Senhor Gervalino responde: “Nada minha fia, tenho força pra andar até A Nossa Cidade Santa. Eu e Diná vamos até a última força que nois temos nas perna. Os peis acabam até lá, as unha ficam cheia de sangue, mas de longe quando a gente vê a Basílica, nossas força voltam, isso é milagre, milagre Santo do Pai Eterno”.

A reza sempre acompanha os Teixeira, mais um rosário é feito até a pausa

para o jantar, foto 10. Durante o trajeto, além dos carros de apoio, eles também contam com a ajuda de caminhoneiros, donos de postos de combustível e até mesmo pessoas que param seus veículos para conversar e apoiar a família. “Sempre passam buzinando, param pra tirar até foto. Uma veiz nois saiu no jornal, tenho ele guardado lá em casa”, diz o patriarca.

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Até cinco anos atrás, a família caminhava até a estrada ser iluminada apenas pelos faróis dos carros e caminhões que por ela transitavam. Devido aos riscos de acidente e desgaste dos mais velhos, atrasando a chegada, ficou decidido, desde então, que a caminhada seria finalizada ao entardecer.

Por doze dias a família segue esse ritmo. Enfrentam frio, calor, câimbras, dores musculares e muitas bolhas nos pés, representadas na foto 11, até chegarem a Trindade, onde alugam uma casa para passar a semana da festa. A primeira visita é ao Santuário do Divino, enfrentando uma gigantesca fila para beijar a fita com o nome do Pai Eterno. Depois assistem a uma missa e vão até a Sala dos Milagres, onde depositam a faixa que os acompanha durante toda a caminhada.

Foto 11: Pés castigados pela viagem.

Fonte: arquivo pessoal da Família Teixeira, Trindade, 2009.

Desde junho de mil novecentos e setenta e nove, “Seu Gervalino” percorre esse trajeto e, todo ano, encontra força e garra para chegar até Trindade, dizendo com todo orgulho.

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por socorro e ele veio. Aí penso: Tenho que cumpri meu voto, e assim chego na véia Trindade. Passei esse carim que eu aprendi a ter pelo Padre Eterno pros meus fi, netos e agora também pros filhos dos meus netos. Se depender da minha famia o Divino tem fiel sempre, e espero que eles consigam levar pros fios, netos, e bisnetos também. Enquanto eu e a minha muié tiver força, nois chegamo até o Pai.

Perguntado sobre a importância do cumprimento do ex-voto, ele logo responde que toda promessa feita “DEVE” ser cumprida. É um compromisso que o fiel faz com o Pai eterno, se não for cumprido, ele perde a confiança Dele. “É uma troca, Ele nos dá a graça e nossa obrigação é agradecer fazendo o sacrifício”, complementa o chefe da casa.

Durante a festa de Trindade de dois mil e dez, a matriarca da família não se sentiu bem. Encaminhada para o pronto socorro, foi constatado que o enfisema pulmonar, que já a acompanhava há anos, havia piorado. Os médicos disseram que as intempéries climáticas e o esforço feito por ela para chegar a Trindade agravaram o quadro da doença. Com muita fé e esperança no Divino Pai Eterno, a família fazia vigília na porta do Hospital das Clínicas, em Goiânia, para onde ela havia sido transferida. No dia quatro de julho do mesmo ano, a caminhada de Dona Diná até Trindade teve fim. Sua força de vontade e fé no Divino Pai Eterno para todo o sempre representarão a imagem do verdadeiro devoto, aquele capaz de superar toda e qualquer dificuldade para agradecer ao Ser Transcendente que o atende e o

conforta nos momentos de maiores adversidades.

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Foto 12: O Casal, Gervalino e Diná.

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3 O EX-VOTO PARA A SALVAÇÃO: O CÉU E A TERRA ANDAM

JUNTOS PARA ABSOLVER AS AFLIÇÕES DO MUNDO TERRENO

As ciências humanas resgataram e alargaram os seus domínios, permitindo que os objetos produzidos pelo homem/mulher (toda a sua vida material) fossem investigados e estudados, sendo importante para o desenvolvimento dos Estudos Culturais.

A experiência social condiciona o homem/mulher a sujeitos sociais e não apenas a indivíduos livres. Ocorre sempre uma experimentação das suas situações e de suas relações sociais como necessidades e interesses. A vivência material é um processo de reconhecimento, em que os diversos sujeitos reconhecem a si em um espaço e em um determinado tempo.

È nesse sentido que se objetiva o entendimento da cultura como memória,

trabalho, política, costumes, símbolos, valores e enfim como tudo que o homem cria e atribui significado, temos sido levados a pensar e trabalhar a memória em constante mudança, como um campo de luta, como alvo de disputas, de domínio e de afirmação social. Para além de pensar no seu ocultamento ou apagamento como instrumento de poder, ou, de construção de hegemonias, temos procurado recuperar as maneiras pelas quais a memória tem sido usada por sujeitos marginalizados, segregados, ou excluídos e como meio de se firmarem na realidade social.

E o que estamos entendendo por cultura trabalhada no âmbito da História cultural? Queremos compreender a cultura como a maneira, pela qual os homens desenvolvem suas práticas sociais, refletindo seus modos de viver, trabalhar, morar, lutar, morrer, divertir-se, etc.. Assim, a cultura é sempre tomada como expressão de todas as dimensões da vida, incluindo valores, sentimentos, emoções, hábitos, costumes, além da promoção e o desenvolvimento de instituições e iniciativas do cotidiano, com todas as suas formas de expressão, organização e luta no social.

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Raymond Williams (1977) atribui ao termo, ou seja, problema ou questão para orientar a pesquisa, categoria, portanto, sempre em construção e constitutiva do social: longe de se apresentar como solução ou explicação prévia, propõe-se como equação a ser decifrada. Assumindo que a dominação social cria antagonismos que serão sempre contraditórios e que portanto ensejam momentos de vitória e de derrotas de parte a parte, a cultura pode ser uma categoria importante para se examinar o campo de possibilidades colocado pelo jogo de forças do social, no qual o destino ou sina dos diferentes sujeitos históricos em confronto não estão dados de antemão.

Falar de cultura dessa forma nos leva a mais uma categoria importante na condução de nossas reflexões ¾ a de experiência social que nos conduziu a considerar que homens e mulheres devem retornar em nossa produção ou interpretação como sujeitos sociais e não apenas como indivíduos livres, no sentido liberal do termo, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações sociais como necessidades, interesses e com antagonismos. E que em seguida tratam essa experiência em sua consciência e sua cultura, com complexidade para, só então, agir sobre uma situação dada. E a experimentam não apenas como idéias no âmbito do pensamento, mas também como sentimentos, normas, valores, obrigações que se exprimem em ações e também como resistências.

As preocupações voltam-se também para os estudos sobre o patrimônio material e imaterial do trabalho que busca recompor as referências e inscrições históricas de cada labuta nos diferentes territórios. Adentrando o campo das relações entre trabalho e vida popular preocupa-se em problematizar hierarquias e disciplinas, investigar costumes, festas, mitos, rituais, tradições, cantorias, rezas, provérbios, diferentes linguagens e organizações familiares, assim como investigar religiosidades e técnicas, em suas relações com a natureza e com os cuidados do

corpo.

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entendidas como práticas sociais e um universo popular, assim como sobre modos de dialogar com elas.

Existe uma enorme dificuldade em se estudar e definir a Cultura Popular, o quer requer bastante cuidado ao atribuir sentidos para as coisas. Isso se confirma pelo uso de palavras de conceitos amplos, necessitando também o rompimento de algumas visões sobre práticas populares, sendo o folclore em especial. Jean-Claude Schmitt (1976, p.942) afirma que o problema de definição do conceito da cultura popular está no fato da mesma poder assumir vários significados.

Segundo Burke (1989), durante o século XVIII e início do século XIX, o povo tornou-se um tema interessante para os intelectuais. Seria uma “descoberta” da cultura popular, levando a uma identificação do povo com o que era simples, natural, instintivo, irracional. Uma parte de um movimento de primitivismo cultural onde tudo era igualado ao popular.

Conceberam-se o popular como o início e a infância de uma cultura que deveria ser protegida pelo folclore. Segundo o artigo de Jacques Revel, Michel de Certeau e Dominique Julia (1989), A Beleza do Morto: o conceito de cultura popular, “a Cultura Popular era espontânea ingênua, o povo é uma vez mais a criança”. Estudos tratam as formas religiosas populares como sendo superficiais. De acordo com eles, o povo é ingênuo, medíocre, incapaz de produzir arte, o que contrapõe a superioridade da cultura acadêmica, ou seja, acreditava-se, então, que a Cultura Popular era um plano inferior à cultura elaborada pelas elites intelectuais.

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espírito; segundo ele, a produção artística é algo de dinâmico e dialético, um ato ligado ao todo da vida, uma atividade enraizada na prática.

De acordo com Roger Chartier, (1995) a identificação da cultura popular deve ser buscada na apropriação que os grupos fazem dos objetos culturais, ou seja, nos significados que certos grupos atribuem a esses objetos. Já para Michel de Certeau (1994), a cultura popular se apresenta diferentemente, ela se formula essencialmente em “artes de fazer” isto ou aquilo. Certeau (1994) afirma que as práticas revelam uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar. Esses autores tentam demonstrar a importância de se refazer as relações entre a cultura popular e a cultura erudita. Os estudos culturais procuram romper com a visão de que a cultura do povo está oposta a cultura da elite.

Durante pesquisas sobre História Cultural, os historiadores brasileiros do século XX, explorando aspectos de manifestações religiosas, tornaram possível o estudo das religiões e das religiosidades como um domínio na história brasileira. Para algumas interpretações teóricas, o domínio do imaginário consiste no conjunto de representações. Nesse sentido, Le Goff (1994, p.127) destaca que “o imaginário passou a se constituir um novo domínio da História, sendo inclusive uma história que flui naturalmente”.

Por outro lado, a preocupação com a busca do contraditório e do conflituoso nas relações humanas levou-nos, docentes e discentes do Núcleo, a envidar esforços para não limitar a escrita da história a uma suposta univocidade dos modos de vida dentro de um mesmo grupo ou classe social. A busca constante pela pluralidade de maneiras de construir o cotidiano de cada indivíduo e por historicizar diferentes experiências sociais sem nos restringir às oposições rígidas e estáticas, impõe-nos o cuidado redobrado com a construção de categorias analíticas. Não se

trata aqui de negar a força de tais dicotomias, especialmente quando elas são impostas e interpretadas como se fossem tendências naturais e, portanto,

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Essa peculiaridade tem nos levado a refletir sobre o significado da oralidade e das linguagens visuais entendidas como práticas sociais num universo popular, assim como, sobre modos como dialogar com elas.

Ao tomarmos a idéia de ex-votos percebemos a existência de uma vinculação dessas manifestações de cunho religioso, com as imagens que são encomendadas

por pessoas salvas de doenças ou em situação de perigo iminente. Essas imagens na sua maioria acompanhadas por textos explicativos são oferecidas aos santos de devoção ou divindades, em geral. Normalmente, esses oferecimentos se realizam como forma de agradecimento da graça obtida, ou como forma de pagamento de promessa. (Resta saber se em algumas vezes não funciona como perspectiva de recebimento da graça também).

Já na bíblia vemos referências a promessas e formas de pagamento dessas promessas. É interessante destacar algumas passagens para depois observarmos detalhes profundos da relação de troca que pode ser estabelecida do universo terreno com o universo transcendental. Tomemos aqui alguns exemplos bíblicos. Já no livro do Gênesis encontramos Jacó fazendo uma promessa a Deus, dedicando-lhe a coluna de Betel como promessa pelo acompanhamento em sua jornada. Assim encontramos descrito no gênesis:

18

Tendo-se levantado Jacó, cedo, de madrugada, tomou a pedra que havia posto por travesseiro, e a erigiu em coluna, sobre cujo tupo entornou azeite.(...)

20

fez também Jacó um voto, cizendo: se Deus for comigo, e me guardar nesta jornada que emprrendo, e me der pão para comer e roupa que me vista

21

de aneira que eu volte em paz para a casa de meu pai, então senhor será o meu Deus;

22

e a pedra, que erigi por coluna, ser a casa de Deus; e de tudo quanto me concederes, certamente eu te darei o dízimo. (Gênesis 28: 18-22) (BIBLIA, , 1969,

p.29)

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encontramos o povo de Israel devotando a Deus, prometendo, se a graça fosse alcançada, a destruição das cidades. Acompanhemos o voto de Israel em loco:

2

então Israel fez voto ao SENHOR, dizendo: se de fato entregares este povo na minha mão, destruirie totalmente as suas cidades” ( BIBLIA, 1969, P.171).

É interessante que o grau de negociação implícita nesses versículos aludem diretamente uma perspectiva de troca entre os homens e a divinidade. Da mesma forma, é interessante observarmos que a prática do voto aqui se estabelece numa relação de destruição, imposta às cidades.

No livro dos Juízes, fica expressa a relação entre o voto e o sacrifício. No capítulo 12, versículo 30 encontramos Jefé fazendo um voto ao senhor em troca dos filhos de Amon. Dessa forma se Deus lhe entregasse os filhos em suas mãos, ele sacrificaria o primeiro que, em sua volta o encontrasse à porta de sua casa. Vencendo os filhos de Amon, voltando a Mispa, a primeira essoa que lhe veio ao encontro foi sua filha. Não a matou de imediato, mas o fez dois meses depois. ( ver JZ 12, 29 a 40)

No livro de Samuel, no primeiro capítulo e no versículo 11, Ana faz um voto que passamos a transcrever:

11

e fez um voto dizendo: senhor dos exércitos, se benignamente atentares para a aflição da tua serva, e de mim te lembrares, e da tua serva te não esqueceres, e lhe deres um filho varão, ao Senhor o darei por todos os dias da sua vida, e sobre a sua cabeça não passará navalha”

Ana assim o fez. Entregou seu próprio filho aos cuidados de Eli. De certa maneira, a prática votiva implicava muitas vezes “cortar a própria carne” , para usarmos uma expressão mais forte, no entanto, bem popular.

Com o passar do tempo, a perspectiva do voto parece que sofreu um

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aAto dos Apóstolos, relativo ao voto feito por Paulo. No capítulo 18, versículo 18, aparece o voto de raspar a cabeça.

Ex-voto é um termo de origem latina, que referencia a promessa ou desejo. Como nos informa Elder Rocha Lima, em seu estudo sobre os ex-votos de Trindade,

“Ex-voto, em latim, seria consoante uma promessa ou extraído de uma promessa ele representa uma retribuição às intervenções miraculosas buscadas pelos crentes em estado de aflição em face de doenças, acidentes e outros acontecimentos que perturbam a vida dessas pessoas” ( LIMA, 1998, p.11).

Assim, o ex-voto distingue-se pelo detalhe de tentar reproduzir de forma mais singular e realista possível a natureza do evento que acometeu determinada pessoa.

O ex-voto é a representação do órgão ou da parte do corpo humano, feito de cera,

de madeira, de marfim, de prata e até mesmo de ouro e que é colocado na casa dos milagres das igrejas do interior. Quando uma pessoa está doente do pé, por exemplo, faz uma promessa ao santo de sua devoção de, se ficar bom do mal, oferecer um pé de cera, de madeira ou de qualquer outro material, de acordo com suas posses. Dizem os entendidos que, o milagre ou ex-voto tem muito mais valor quando é feito pela própria pessoa; tem mais mérito.(* http://www.soutomaior.eti.br/mario/paginas/dic_m.htm)

No dicionário Houaiss encontramos a seguinte definição etimológica:

substantivo masculino quadro, pintura ou objeto a que se conferiu uma intenção votiva; quadro, placa com inscrições, figura esculpida em madeira ou cera (representando partes do corpo) etc., que se colocam numa igreja ou capela, para pagamento de promessa ou em agradecimento a uma graça alcançada

loc.lat. ex voto, prep. ex de abl. 'por causa de, em virtude de' e voto

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vot-Segundo Lélia Coelho Frota, os “ ex-votos, além de representarem a obtenção de graças, também indicam a obtenção de uma estabilidade material mínima, como a da casa própria, animais domésticos necessários à subsistência, a obtenção de um diploma ou de u emprego etc.”(Lélia Coelho Frota, http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/temas_agenda/cultura/ex.asp coletado dia 06 de outubro de 2004.) de certa maneira, o ex-voto demonstra a fragibilidade da condição humana, incapaz de vencer com seus recursos próprios, recorendo então aos poderes mais elevados, designados na figura de uma entidade superior, divinizada, santificada ou muitas vezes mitificada.

Para Vovelle, o Ex-voto testemunha a piedade individual, bem como a devoção. Como documento cultural, diz Vovelle, “ o ex-voto é uma mensagem codificada, desenhada e pintada, transmitida por pessoas que em sua maioria não dispunham de outros meios de expressão para testemunhar suas crenças, receios e esperanças” (Vovellle, 1997, p. 113). Citando ainda Vovelle, o Ex-voto nos coloca em contato com uma aventura individual, de modo geral apresentada de forma extraordinária.

Dessa forma, o ex-voto permite observar o sistema de atitudes, conscientes ou até mesmo inconscientes, diante do perigo, da doença e da morte. Em alguns casos, acrescente-se, demonstra o comportamento diante das dificulades da vida, revelando as vezes o universo onírico ou utópico em relação às condições de vida desejáveis pelos homens.

Marcelo João Soares de Oliveira em seu texto na Revista Eletrônica Rever, disserta sobre “O Símbolo e o Ex-voto em Canindé”, chama-nos a atenção para que os Ex-votos reproduzem a “ face do sagrado”. Assim, “ os ex-votos significam a imagem revelada do Santo vivo, isto é, a fotografia dele (...) eles expõem a fotografia do Santo vivo no intuito de que todos os devotos possam conhecê-lo, mostrando

como Ele dá sentido ao seu cotidiano fragmentado” ( Oliveira, http://www.pucsp.br/rever, s/d)

Referências

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