Maria Helena Trindade
Lopes
Durante muito tempo
interroguei-me
por que razo a
civilizao
egpcia
era, simultaneamente, tosimples
e to atraen te para ascrianas.
H anos
atrs,
quando
ouvi ArthurRubinstein falar de Mozart dizendo que ele era demasiado fcil para as
crianas
eexcessivamente difcil para os adultos,
jul
guei
encontar, finalmente, a resposta para a minhaquesto.
Para uma
criana,
em Mozart, como noEgipto,
oapelo
o dasimplicidade,
danaturalidade,
do sensvel, da "melodiosa cor". Mas o adulto descobre-lhes as diferentes camadas de sentido e
mergulha
numacomplexidade
que parece desvane cer o encantooriginal.
Que
meperdoe
Mozart a quem continuadamente chamo para o horizonte
egp
cio,
mas assim como ele "acordou" os homens e os deuses com a suamsica,
"pequenos
desenhosanimados"
que tocam mundo e os homens doEgipto antigo
.Figura Thot, o deus lunar com cabea de ibis, patrono da
escrita e dos escribas, proce dendo contagem dos anos
num ramo de palmeira (relevo
do reinado de Hatchepsut, XVIII dinastia).
tambm os
hierglifos,
os ascrianas, despertaram
oRevista da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, n." 10, Lisboa, Edies
A
grande originalidade
destacivilizao
residiu na sua mensagem de eternidade
(nM).Uma
eternidade vivida econquistada pela
palavra,
que era "verbo criador"1 epela imagem,
animadora,
fonte defludo vital e
mgico2.
Mas a maior de todas assingulariedades
reside no facto dessa mensagem estar condensada na escrita.A escrita
hierglifica3,
uma dascriaes
mais notveis daantiga
civilizao
egpcia,
apresenta dois nveis derepresentao.
Num
primeiro
nvel, ohierglifo
apresenta-se
comosigno
daescrita.
Enquanto signo
da escrita elepode
expressar-se foneticamenteou
ideograficamente.
Mas como a escritahierglifica
uma escritaessencialmente
fontica,
nsdeparamos
com umagrande
variedade designos
quedesignamos
porfonogramas.
Estespodem corresponder
aum4,
dois5 ou a trs6 fonemas.Vejamos alguns exemplos:
1 Kc/.J.P. Allen, Gnesis in
Egypt, New Haven, Yale University, 1988, pp. 38 ss. e
M. HelenaT. Lopes, O Homem Egpcio e a sua integraono Cosmos, Lisboa, Ed. Teorema, 1989, pp. 19 ss. e76 ss.
2 Vd.
E.Brunner-Traut, 'Anonymitt (der Gotter)" in L I, Wiesbaden, Otto
Harrassowitz, 1972, Col 281 e M.J.Raven, "Magicai and Symbolic Aspects of
certainmateriais inAncient Egypt", in VA 4.3, (1988), pp. 237-42.
3 A escrita
hierglifica surgiu em 2950 a.C, data da unificao do territrio e da
emergncia da realeza sagrada, com Narmer, primeiro rei da I dinastia. A ltima inscrio hierglifica conhecida foi gravada na ilha de Fil e data de 394 d.C.
VV/.H.G. Fischer, "The origins of Egyptian Hieroglyphs", in The Origins of Writing, Lincoln University of Nebraska Press, 1990, pp. 59-71; J.D.Ray, "The
emergenceofwriting in Egypt" in WorldArchaeology, 17/3 (1986). pp. 307-316 e numa perspectiva mais ampla, P. Vernus, "Les espaces de 1'crit dans
1'gypte
Pharaonique" in BSFE119, (1990), pp. 35-56. 4 Os
fonogramas que correspondem a um fonema designam-se por unilteros e, nos
meios egiptolgios, como o "alfabeto". Vd. A Gardiner, Egyptian Grammar being
an introduction to the study of hieroglyphs, Oxford, University Press, 1982,
pp. 25-26.
5 Os
fonogramas que correspondem a dois fonemas designam-se por bilteros e
constituem ogrupo maisnumeroso.
6 Os
fonogramas que correspondem a trs fonemas designam-se por trilteros.
Existem ainda alguns fonogramas com quatro consoantes mas so usados muito
f
(s)
umfonograma
uniltero +"**(mn)
umfonograma
bilteroT
( nh)
umfonograma
trilteroMas, para alm desta
expresso
fontica,
a escritahierglifica
apresenta tambm,
como referimosanteriormente,
uma dimensoideogrfica
que se manifesta em doistipos
distintos designos:
osideogramas7
e os determinativos8.Os
ideogramas,
querepresentam
apenas uma pequena parte dosistema
hieroglfico, exprimem,
pordefinio, aquilo
que representam: um
objecto,
um elemento ou umaaco.
(mw) gua
vir
*VW**
(W
&\
(ssn)
flor de ltusQuanto
aosdeterminativos,
eles nocorrespondem
a nenhumsegmento
especfico
da "substnciafnica", indicando,
simplesmente,
a classe semntica a que
pertence
apalavra:
Ur
homemG
sol_A
andar,
avanar, correrVerificamos,
assim,
que a escritahierglifica
desempenha,
ple
namente, o seu
papel
decdigo
quefixa,
visualmente e de uma formairreversvel,
os enunciadoslingusticos9.
Mas, por outrolado,
elacumpre e nunca
perdeu
a sua dimensopictna,
ouseja,
o seusegundo
nvel derepresentao.
7 Vd. A.Gardiner, o.c, pp. 30-31. 8 Ibidem, pp. 31-33.
9 Vd. A. Loprieno, Anctent Egyptian- a linguistic introduction, Cambridge,
O
hierglifo
.tambm,
umaimagem
e na sua dimenso de imagem assume, por um lado, uma
funo
artstica10 e, por outro, umafuno mgica1
'.Figura 2- Detalhedaestela da
Esfinge de TtmsisIV (XVIII dinastia, Guiza)
Numa
pintura
ou baixo-relevo, os"pequenos
desenhos animados",
representando
elementos do universo, do meio-ambiente e daactividade humana, cumprem uma
funo
decorativa,preenchendo
osespaos vazios e
adaptando-se
harmoniosa eproprocionalmente
aosobjectos
ou seres que, de certomodo,
legendam12.
Esta
adaptao
,
ainda, subordinada ao honor vacum e conse quente necessidade de densidade naocupao
do espao. Para obter essa densidade, que ainda acentuadapela
continuidade absoluta dossignos,
dado que no existe nenhumtipo
depontuao
ouseparao
10 A
propsito do carcter artstico dos hierglifos, Vd. H.G. Fischer, E criture et
1'art de /' Egypte ancienne, Paris, PUF, 1986, p. 25 e ainda R.Tefnin, "lments pourune smiologiede 1'image gyptienne" in CdELXVl, (1991), pp. 60-88.
11 Vd. R.H. Wilkinson, Symbol &
Magic in Egyptian Art, Londres, Thames and
Hudson, 1994, pp. 148-169.
A funo artsticae a funo mgica noesto, necessariamente, separadas.
12 Os
hierglifos podem aumentar ou diminuir de tamanho desde que garantam as
entre as diferentes
palavras,
oshierglifos
soagrupados
numa unidade de espao
imaginria,
oquadrado13.
Figura3 - A
"arrumao" num quadrado imaginrio
A sua mobilidade
,
tambm,
notvel. Podem escrever-se emcolunas verticais ou
horizontais,
daesquerda
para a direita ou da
direita para a
esquerda14,
mas o seu sentido deorientao depende
sempre da
direco
do olhar dosprincipais
intervenientes na cena quepreenchem15.
Se,
por acaso, nessa cena se verifica umaconfrontao
de personagens, esta sempre
acompanhada
por umaconfrontao
dehierglifos
que, de certomodo,
seguem oulegendam
cada uma daspersonagens
representadas16.
6 7 8 U OlUl?"ml^M:
JSJlf
3D
a 16ffT20M^ff
t
li
a111
i
-4
ML
E=,.rrr
Figura4- Osquatro sentidos de orientao da escrita
13 Vd. H.Sottas, E.Drioton, Introduction 1'tude des hieroglyphs, Paris, Geuthner, 1989, pp. 58-59.
14
Vd. H.G.Fischer, "The orientation of hieroglyphs" in Egyptian Studies II, Nova Iorque, Metropolitan Museum ofArt, 1977
15 Os
signos no simtricos esto sujeitos a uma regra bem precisa: numa mesma
inscrio todos os signos obedecem mesma orientao.
Figura5-Reproduodeum baixo-relevocom ofara RamssIII venerandoa
deusa Sekhmet(XX dinastia).
Verificamos,
assim,
existir uma concordncia e uma confrontao
entre a escrita(que
tambmarte)
e a artepropriamente
dita17. Mas, para alm desta suafuno
artstica,
ohierglifo
desempenha
tambm umafuno mgica.
Os"pequenos
desenhos animados" ao
preencherem
os espaosvazios,
numapintura
ou num-relevo,
cobrem-os de um colorido"mgico"1*
que opera, simultaneamente, atravs do simbolismo inerente cor19 e
imagem.
E se a cordetermina o "carcter" ou "natureza" do
hierglifo,
aimagem
dota-o de vidaprpria,
permitindo-lhe
umaaco positiva
ounegativa,
benfica ou
perigosa.
f
Ankh ( n/i) Kr Uadj (w3d) njed(dcf)a
Khepri ihpr) Figura 6-alguns dos mais importantesamuletos egpcios
Assim,
determinadossignos
transformam-se em amuletos protectores e
profilticos20,
enqunto outros(animais
ferozes ou homensarmados por
exemplo)
so martelados, mutilados ou substitudos,pelos
escribas,
naspinturas
e baixo-relevos,pois podem agir negati
vamente sobre o homem21. 0 mesmo homem que pensara e criara este modelo
perfeito
decomunicao.
18 V.d. R.H. Wilkinsomo.c,
pp. 104 ss
]9V.d. a ttulo de exemplo, M.Dolinska " Red and blue figures of Amun" in VA 6:1-2
(1990), pp. 3-7 e ainda Jean-Philippe Lauer, "Sur 1'emploi et le role de la couleur
auxmonumentsducomplexefunraire du roi Djoser",inRdE44, (1993), pp. 75-80
20 V.d. R.T.R.Clark, Myth and Symbol in Ancient Egypt, Londres. Thames and
Hudson, 1978, pp. 218-256 e, numa aplicao prtica, H.G. Fischer, "An elevenlh
dynasty couple holding the sign of life" in ZS 100, ( 1974), pp. 1 6-28 21
H.G. Fischer.o.c, pp. 130-131 e R. Caminos, H.G. Fischer, Ancient Egyptian