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Posseiros e Padres do Araguaia / Araguaia's pressors and Priests

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761

Posseiros e Padres do Araguaia

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Araguaia's pressors and Priests

DOI:10.34117/bjdv6n7-179

Recebimento dos originais: 03/06/2020 Aceitação para publicação: 09/07/2020

Alex Costa Lima

Mestrando em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA) Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa)

Endereço: Rua JK, 522. São Geraldo do Araguaia-PA, Brasil. CEP: 68570-000. E-mail: alexrafeli@hotmail.com

Airton dos Reis Pereira

Doutor em História (UFPE)

Professor Adjunto da Universidade do Estado do Pará (UEPA) Endereço: Av. Hiléia s/nº, Amapá – Marabá-PA – Brasil

E-mail: airtonper@yahoo.com.br

RESUMO

A partir de análises de fontes orais, escritas e audiovisuais, este texto procura analisar a participação da Igreja Católica nos conflitos pela posse da terra, em São Geraldo do Araguaia, no sudeste do Pará, nas décadas de 70 e 80, do século XX. Nessas duas décadas, devido a atuação de agentes de pastorais, padres e freiras cada vez mais próximos da realidade das comunidades rurais, sobretudo aquelas formadas por posseiros, a hierarquia da Igreja Católica ao se posicionar do lado dos trabalhadores rurais e de seu clero, entrou em choque não só com os grandes proprietários e empresas rurais, mas com o Estado que, na época, defendia o desenvolvimento da Amazônia pautado na grande propriedade da terra, principalmente para criação de gado bovino. Foram nessas circunstâncias que os membros da Igreja Católica, principalmente devido a sua reação à violência dos latifundiários e do regime totalitário da época, passaram a viver e trabalhar mais intensamente junto aos trabalhadores rurais e a falar em políticas de libertação.

Palavras-chave: Igreja Católica, Posseiros, Violência no campo. ABSTRACT

Based on analyzes of oral, written and audiovisual sources, this text seeks to analyze the participation of the Catholic Church in land tenure conflicts in São Geraldo do Araguaia, in southeastern Pará, in the 1970s and 1980s. In these two decades, due to the work of pastoral agents, priests and nuns who are increasingly close to the reality of rural communities, especially those formed by squatters, the Catholic Church's hierarchy, by positioning itself with rural workers and their clergy, has entered not only with big landowners and rural companies, but with the state that, at the time, defended the development of the Amazon based on large land ownership, mainly for cattle breeding. It was under these circumstances that members of the Catholic Church, mainly because of their reaction to the

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Este texto faz parte dos estudos que estamos desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA), da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), para elaboração da dissertação de mestrado.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 violence of the landlords and the totalitarian regime of the time, came to live and work more intensely with the rural workers and to speak of liberation policies.

Keywords: Catholic church, Squatters, Violence in the field.

1 INTRODUÇÃO

A região amazônica passou por intensos processos de ocupação, mas foi a partir da segunda metade do século XX, em razão da abertura de rodovias como a Belém-Brasília, a Cuiabá-Santarém, a Transamazônica, entre outras, e a concessão de incentivos fiscais por meio da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) que essa área geográfica se tornou palcos de muitos e intensos conflitos pela posse da terra (HÉBETTE, 2004, vol. II).

No sudeste paraense, a abertura das rodovias Transamazônica e PA-150, bem como a implantação de grandes fazendas para a criação de gado bovino, com recursos dos incentivos fiscais, fizeram surgir e intensificar diversos conflitos por terras envolvendo latifundiários, posseiros, membros da Igreja Católica e agentes dos aparelhos do Estado.

É nesse contexto que a Igreja Católica se envolveu na questão agrária em São Geraldo do Araguaia, depois que os padres franceses Miguel Le Moal e Aristides Camio chegaram à Prelazia de Conceição do Araguaia, vindo do Laos, de onde foram expulsos pelo governo daquele país. Tão logo foram designados pelo então bispo Dom Estevão Cardoso de Avelar para desenvolver trabalhos pastorais em diversas localidades em São Geraldo do Araguaia. À medida que passaram a se envolver na realidade das comunidades de posseiros, muitas delas ameaçadas de expulsão, eles e a alta hierarquia da Prelazia entraram em confronto com diversos proprietários de terras e com o Estado.

Para as análises deste texto, além das fontes bibliográficas e audiovisuais, foram de grande relevância a utilização de fontes orais por meio da metodologia da história oral. Para tanto, trabalhamos especificamente com duas entrevistas, uma realizada em março de 2008 e outra realizada em março de 2018 as quais possibilitaram entender a problemática em torno da atuação da Igreja Católica nos conflitos de terra, em São Geraldo do Araguaia, no sudeste do Pará, nas décadas de 70 e 80, do século XX.

2 NÃO SE CERCAVA A TERRA: SÃO GERALDO DO ARAGUAIA ENTRE OS ANOS DE 1960 E 1970

São Geraldo do Araguaia, no início da década de 1960, não passava de um pequeno distrito de Conceição do Araguaia, localizado às margens do rio Araguaia, com poucas casas e uma população vivendo da lavoura de subsistência, da caça, da pesca e da coleta de frutos da floresta. Grande parte das vilas e de outros aglomerados populacionais que tinham relações direta com o

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 distrito ficavam também às margens do rio Araguaia, como Santa Cruz, Santa Isabel, Itaipavas, entre outros (IANNI, 1978).

Mas aos poucos, São Geraldo do Araguaia passou a receber migrantes de diversas regiões do Brasil. Eram principalmente trabalhadores rurais, garimpeiros e vaqueiros, provenientes do norte de Goiás (hoje estado do Tocantins) e dos estados do Maranhão e Piauí. Chegaram atraídos pela qualidade da terra e pela existência de abundantes florestas. Ali constituíram, embora que dispersos, roças e sítios, formando pequenos aglomerados de posseiros ocupantes de terras devolutas às margens do rio Araguaia. Uns, mais abastados, formaram “fazendas” visando a exploração da madeira como mogno, ipês, etc., mas se predominou sítios sem demarcações e sem cercas. Segundo Pereira (2015), “não se cercava a terra, mas a roça. A cerca era feita de madeira para impedir que alguns animais (cavalo, jumento, vacas) entrassem. Praticamente não existiam ‘donos de terra’” (p. 68). A terra era demarcada pela prática do cultivo da roça para sobrevivência da família. Segundo Ianni (1978), no vasto município de Conceição do Araguaia, as famílias trabalhavam a “terra sem qualquer título de posse legal. Tanto assim que ainda em 1960, entre os 982 estabelecimentos rurais registrados pelo recenseamento, 968 estabelecimentos estavam sobre responsabilidades de ocupantes, isto é posseiros” (1978, p.75).

O rio era fonte de sustento de muitas famílias e o principal meio de comunicação entre o povoado de São Geraldo do Araguaia e as cidades de Xambioá, Conceição do Araguaia e Belém. A vida seguia o ritmo das águas e da floresta até que os governos Federal e Estadual passassem a vender, a preços baixos, terras e títulos à iniciativa privada, sobretudo proprietários e empresas do Centro-Sul do país. Segundo Pere Petit (2003), o governo do Pará, entre 1924 e 1976, vendeu à iniciativa privada quase 7 milhões de hectares de terras. Ou seja, aos poucos São Geraldo do Araguaia deixou de ser um território onde homens e mulheres tinham uma simples relação com a natureza (matas, águas, frutos, etc.) para se transformar num espaço marcado pela apropriação da terra e por intensas e violentas disputas por terra.

Onde até então predominava o valor de uso da terra ou da produção para o autoconsumo, para sobrevivência das famílias, passou a prevalecer o valor de troca, sobretudo a terra que acabou se tornando uma mercadoria. Os recém-chegados, com dinheiro no bolso, compravam glebas de terras às vezes a preços insignificantes. Aqueles que resistissem a negociar poderiam receber visitas de pistoleiros ou tinham as suas posses incluídas nos limites dos títulos definitivos adquiridos da Secretaria de Obras, Terras e Viação do Pará ou fabricados nas dependências de órgãos de administração pública. Não são poucos os casos de posseiros antigos que receberam ordens de despejos expedidas por juízes da Comarca de Conceição do Araguaia, por exemplo (FIGUEIRA, 1986). Operadores do direito não fundamentavam as suas decisões a partir do direito gerado pelo

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 trabalho, mas num suposto direito de propriedade plasmado em folhas de papéis, documentos às vezes produzidos de forma duvidosa.

Mas, paralelamente, ou antes, outras formas de pressão poderiam ocorrer, como o embargo do serviço do posseiro, a obstrução das vias de acesso ou semeadura de capim nas roças. Na maioria dos casos, as expulsões de posseiros aconteciam pela ação direta de pistoleiros dos pretensos donos das fazendas; em outros, a polícia, no cumprimento da ordem judicial, era auxiliada por pistoleiros, culminando, quase sempre, na destruição de casas e plantações, na prisão, tortura e até assassinatos. Afirma Martins (1980), que

não é raro que a invasão da terra do posseiro por jagunços armados seja secundada por policiais das milícias estaduais, apoiada por decisões judiciais e dirigida por oficiais de justiça. Nas regiões pioneiras do país, as instituições da ordem pública, como a Justiça e a Polícia, estão com grande freqüência subordinadas à ordem privada. Estamos, na verdade, diante de um coronelismo transfigurado, em que o poder de coerção e corrupção do particular foi imensamente multiplicado pelo poder econômico das grandes empresas subsidiadas e pela privatização de imensas extensões territoriais (p. 98).

Para explicar esse movimento de violência no campo, segundo Martins (1980), existem dois diferentes tipos de ocupação territorial na Amazônia brasileira: o primeiro, proveniente do deslocamento de posseiros sobre as populações tribais, na qual a sociedade branca expande seus territórios, o que o autor denomina de frente de expansão. Já o segundo tipo de ocupação territorial é a frente pioneira, movimento constituído pela forma capitalista de ocupação de território: a grande fazenda, o banco, a casa de comércio, a ferrovia, o juiz, o cartório, o Estado, que superpõe às posses há muito tempo constituídas. É nessa “frente” que se encontra as formas sociais e econômicas de exploração e de dominação vinculadas às classes enriquecidas e ao estado. É no movimento da superposição da frente pioneira sobre a frente de expansão que está, segundo Martins, a origem dos conflitos de terra na Amazônia. Afirma ele: “Basicamente, nessas áreas de superposição, os regimes de propriedades, distintos entre si entram em conflito: A posse de um lado, e a propriedade privada, mais especificamente a propriedade capitalista do outro” (MARTINS, 1980, p. 75).

Essa forma conflituosa de ocupação territorial constituiu num grave problema para os trabalhadores rurais: os posseiros. A sua expulsão e expropriação foram requisitos essenciais nesse processo de expansão do capital na Amazônia. Os posseiros eram expropriados de seu principal meio de produção – a terra, e dos produtos de seu trabalho – a moradia, as criações, a roça, etc.

Em síntese, os trabalhadores rurais que se constituíram como posseiros de terras devolutas em São Geraldo do Araguaia reivindicavam a terra de trabalho, e assim fazendo defendiam a sua condição de sobrevivência, de autonomia e de liberdade, em face da exploração dos grandes proprietários rurais. Eles, de certa forma, reivindicavam o direito à locomoção e a desenvolver uma

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 economia de base familiar e de relação direta com a floresta, onde retirava parte de sua alimentação. Desse modo, a expulsão e expropriação do posseiro, nessa área do território amazônico, que foi quase sempre de forma muito violenta, tratou-se de privá-lo não somente a sua permanência na terra, mas sua faculdade de decidir e de agir segundo as suas próprias determinações (PEREIRA, 2015).

3 PADRE ESTRANGEIRO NÃO É PADRE! UMA NOVA IGREJA CHEGA À SÃO GERALDO DO ARAGUAIA

Em meio ao contexto dos conflitos agrários é que chegam à Prelazia de Conceição do Araguaia, em 1978, quatro padres franceses - o Aristides Camio, Alain Le Moal (Miguel), François Gouriou (Chico) e Clément Montagne, todos expulsos do Laos – pertencentes às Missões Estrangeiras de Paris (La Société des Missions Étrangères) para desenvolver trabalhos pastorais juntos as comunidades da Prelazia. Para São Geraldo do Araguaia foram enviados os padres Aristides Camio e Miguel Le Moal enquanto que Chico Gouriou e Clément Montaigne foram para Xinguara (FIGUERA, 1986).

Miguel Le Moal nos conta como foi sua chegada ao Pará em entrevista, para fins desse trabalho, em 25 de março de 2008:

Cheguei com Aristides, François Gouriou e Clément Montagne em 1978 na diocese de Conceição do Araguaia, após ter passado quatro meses no CENFI (Centro de Formação Intercultural) no Rio de Janeiro. Tínhamos feito a escolha dessa diocese por causa das linhas de trabalho e do bom entendimento nas equipes pastorais. Foi após um voto do Conselho Pastoral (composto de 9 padres, leigos e irmãs) que o bispo Dom Estevão Cardoso de Avelar nos convidou. O dinamismo de muitos jovens agentes de pastorais (homens e mulheres) me impressionou. Os membros do MEB (Movimento de Educação de Base) eram profundamente engajados na alfabetização dos adultos e nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). A proposta de Dom Estevão para assumirmos duas paróquias: Xinguara e São Geraldo. Aristides e eu decidimos ir trabalhar em São Geraldo, Inês que trabalhava no MEB se juntou a nossa equipe.

A recepção em São Geraldo do Araguaia foi um pouco fria, pois o exército propagandeava que padres estrangeiros não eram padres. Os paroquianos viviam apavorados em razão da repressão militar durante o movimento que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia na região. Não só os jovens militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), que enfrentaram sob armas o Exército, foram aniquilados, mas muitos trabalhadores rurais foram presos, torturados e assassinados pelas forças de repressão. Mais a oeste, poucos quilômetros de São Geraldo, no município de São João do Araguaia, os padres franceses Roberto de Valicourt e Humberto Rialland, da Congregação dos Missionários Oblatos de Maria Imaculada e a freira Maria das Graças, Dominicana de Monteil, foram presos e torturados pelos Exército acusados de ligação com os guerrilheiros do Araguaia (PEREIRA, 2015).

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 Em 1978, o povo ainda aterrorizado pelos desdobramentos da Guerrilha do Araguaia e da permanência do Exército na cidade, tinha medo de aproximar dos padres franceses que falavam mal a língua portuguesa. Foi uma aproximação lenta e cheia de suspeitas, porque quem estavam ali eram pessoas marcadas pelos conflitos de terras e pela repressão violenta das Forças Armadas.

Naquele mês de fevereiro de 1978, quando o bispo Dom Estevão Cardoso de Avelar os apresentou à população na Igreja local, “o clima era no entanto pesado”, conta Miguel Le Moal. O último padre que tinha passado por São Geraldo do Araguaia era o italiano Florentino Maboni que tinha ido, em 1976, à área de Perdidos, enviado pelo Dom Estevão Cardoso de Avelar, para ser solidário e apoiar os posseiros que tinham entrado em confronto com a Polícia Militar quando técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) tentaram demarcar as terras da Indústria Madeireira Paraense e Agropecuária do Pará Ltda (IMPAR), do grupo Indústria Óleo Pacaembu. Nesse confronto armado, dois policiais foram mortos e dois saíram feridos (FIGUEIRA, 1986; PEREIRA, 2015). O Exército interveio. Florentino Maboni e o seminarista Hilário Lopes, que o acompanhava, foram presos e torturados. Segundo Pereira (2015), “50 policiais entraram na área, queimaram diversas casas, prenderam e torturaram cerca de cem pessoas. Trinta dos posseiros presos foram levados para Belém e enquadrados na Lei de Segurança Nacional” (p.120).

Hilário foi liberado algum tempo depois, mas Maboni foi levado preso para Belém. Torturado, Maboni denunciou Dom Estevão às Forças Armadas e à imprensa. Segundo Miguel Le Moal,

(...) no início as pessoas na rua pareciam desconfiadas em relação a gente. Nós pensávamos que a razão era o fato de sermos estrangeiros, falando mal o português. Alguém logo nos informou que no INCRA tinha pessoas ligadas ao exército. Sabíamos que éramos observados com todos os nossos gestos e palavras. A polícia militar tinha péssima reputação. O povo a temia por causa de inúmeras exações no passado. Foi gradativamente que descobrimos que a repressão contra a guerrilha do Araguaia foi bem pesada. Ninguém queria falar disso. A memória dos acontecimentos de 1976 estava também presente em muitas mentes. Se tratava de algo muito doloroso (Entrevista concedida em 25/03/2008).

Quer dizer, dois grandes episódios que desdobraram com muita repressão e violência tinham marcado a vida do povoado São Geraldo do Araguaia. Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, do Centro de Informações do Exército (CIE), que coordenou a repressão aos guerrilheiros do Araguaia, junco com outros oficiais do Exército, acreditava que o PC do B não tinha deixado morrer a ideia de continuar a luta armada no Araguaia e afirmava que as “incitações à ocupação de terras” que existiam na região eram apoiadas pelo “clero progressista”. Pela experiência passada, homens e mulheres desconfiavam que a aproximação com os padres poderia lhes render muita violência.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 As missas e orações no templo da Igreja eram poucas frequentadas devido à presença de pessoas que funcionavam como olhos e ouvidos das forças de repressão. Muitas eram aquelas pessoas que sabiam da aversão do Exército em relação aos religiosos recém-chegados. A sensação de insegurança se fazia no dia-a-dia. O povo estava com medo. A rotina dos padres passou a ser vigiada de perto pelo serviço de inteligência do Exército.

Em virtude desses fatos, os religiosos iniciaram os seus trabalhos pela aproximação com os posseiros. Segundo Figueira (1986), os padres resolveram começar as viagens pelo interior, por Itaipavas, onde haviam sido despejadas cerca de 42 famílias, em 1976, pelo fazendeiro Geraldo Bernardo. Na vila Boa Vista, antigo Caianos, homens do lado de fora da capela onde os padres rezavam missas comentavam que os padres eram terroristas. Na localidade conhecida como Sobra de Terras2 os padres distribuíram folhetos que orientavam sobre os direitos dos posseiros. Pouco tempo depois exemplares desse folheto já se encontravam na 8ª Região Militar de Marabá (hoje o 52º Batalhão da Infantaria do Exército).

Nesse contexto político da ditadura civil-militar, a Igreja Católica acabou despontando como a única instituição da sociedade civil, naquele momento, com projeção política nacional, envolvida nas questões de terra capaz de acolher e dialogar com posseiros, vítimas diretas da repressão da polícia, do Exército e dos grandes proprietários de terras (PEREIRA, 2015). Segundo Maria Oneide Costa Lima, ex-agente de pastoral,

(...) os posseiros não tinham a quem procurar, pois os grandes empresários chegavam e se instalavam nas terras devolutas que tinham aqui. As autoridades sempre ficavam do lado dos grandes, então a Igreja Católica era a única instituição que estava do lado dos mais fracos. Então a Igreja atuava dando apoio com advogados, com orientações conforme o Estatuto da Terra (Entrevista concedida em 16/03/2018).

Por meio desse fragmento de relato de dona Maria Oneide, é possível entender que a atuação da Igreja Católica junto às comunidades de posseiros em São Geraldo do Araguaia ia para além dos sacramentos como batizados, casamentos, crisma, entre outros. A prática político-pedagógica dos padres e dos agentes de pastorais envolvia o processo de formação e organização dos trabalhadores rurais. Foram práticas que contribuíram, efetivamente, para que ficassem firmes na terra e lutassem pelos seus direitos. Por essa razão não é difícil encontrar nas falas de trabalhadores da região afirmação de que os padres, além das missas e dos ministérios dos sacramentos, davam cursos sobre a educação sindical, saúde popular e direitos dos trabalhadores contidos no Código Processo Civil e no Estatuto da Terra, entre outros.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 Segundo Martins (1989), na Amazônia, os trabalhos pastorais realizados por padres, freiras e seminaristas influenciados pelas resoluções do Concílio Vaticano II (1962-1965) fizeram da Igreja o refúgio dos aflitos. “Tínhamos que tomar posição no campo social, nos colocamos claramente a favor de posseiros”, conta Miguel Le Moal (Entrevista concedida em 25/03/2008). Tudo isso demonstram o posicionamento da Igreja naquele momento em São Geraldo do Araguaia. E à medida que essa instituição apoiava e orientava os trabalhadores rurais “confrontava-se com uma poderosa coalizão de interesses que tanto abrangia os detentores do poder local, quanto das empresas privadas do Centro-Sul do País na região” (PEREIRA, 2008, p.110).

Quer dizer, quanto mais a Igreja passava a ter conhecimentos localizados das problemáticas que envolviam os posseiros, mais ela se “convertida” à causa desses trabalhadores e, cada vez mais, se confrontava com os grandes proprietários, empresas rurais e com o Estado que, na época, defendia o desenvolvimento da Amazônia pautado na grande propriedade da terra, principalmente para criação de gado bovino

Por outro lado, o clero local à medida que eram ameaçados ou difamados, mais a hierarquia eclesiástica entrava em coalização com o alto escalão das instituições do Estado. Ou seja, o posicionamento político da estrutura hierárquica da Igreja, naquele momento, foi em razão do trabalho e do engajamento dos padres, das freiras e dos agentes de pastorais envolvidos nos “trabalhos de base” a partir de suas paróquias. Segundo Almeida (1993, p.58): “A estrutura hierárquica começa a ser pressionada de baixo para cima, das paróquias que compõem as prelazias e dioceses para os centros de decisão, do localizado para o mais abrangente e superior circuito de poder eclesiástico”.

Foi a partir do “trabalho de base” com reflexões sobre os problemas locais que muitos posseiros passaram a criar em suas localidades, muitas delas em litígios, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Em pouco tempo palavras como “mutirão”, “conscientização” e “libertação” passaram a fazer parte do cotidiano dos trabalhadores. Segundo Frei Betto (1985), a palavra “libertação” passou a sobressair no vocabulário das CEBs.

Ela ajuda a comunidade a passar de uma consciência social reformista para uma consciência de transformação social, da modificação do modo de produção capitalista.

Não se trata de uma libertação meramente subjetivista. Nem de medidas paliativas para questões sociais. Sob um regime ditatorial, fundado na exclusão política e econômica do povo, não é difícil chegar à raiz dos males sociais – a contradição entre o capital e o trabalho (BETTO, 1985, p. 25).

Foi justamente na zona rural de São Geraldo do Araguaia, onde morava mais de 80% da população, que a Igreja ganhou força. Como a Prelazia de Conceição do Araguaia, sob a coordenação de Dom Estevão Cardoso de Avelar e depois sob a coordenação de Dom Patrick Joseph Hanrahan (a

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 partir de abril de 1979)3, tinha metas claras de vínculo permanente entre o trabalho pastoral e o engajamento social, inspiradas no Concílio Vaticano II e nas Conferências do Episcopado Latino-Americano de Medellín, na Colômbia (1968), e de Puebla, no México (1979), a opção preferencial pelos pobres fazia parte da pauta de todo o dia.

Mas quem eram os pobres dessa Igreja do Araguaia? A opção preferencial pelos pobres tinha ressonância especial nos graves problemas fundiários, por isso não é de estranhar o apoio e a defesa dos trabalhadores rurais. As assembleias diocesanas, quase sempre com expressiva participação de lideranças camponesas, davam respaldo às decisões do bispo e dos clérigos. Estes, com sandálias nos pés, mochilas nas costas e com muita disposição, percorriam longínquas comunidades animando o povo na fé e na luta sem se importar com posições fechadas e longe do sofrimento do povo que a Santa Sé muitas vezes tinha. Segundo Miguel Le Moal,

(...) nas comunidades, as pessoas relatavam histórias de peregrinação. Elas vinham de Estados bem diferentes: Maranhão, Espírito Santo etc. Muita coragem, muita fé, enorme vontade de trabalhar, de conseguir um pedaço de chão para cuidar da família. Muitas lições de coragem e de humanidade. Foi o período da minha vida que eu fiz mais casamentos e batizados. Numa carta escrita em 29/5/78, mencionava mais de 100 batizados em dois meses. No Laos em 3 anos tinha feito apenas 15 batizados. A riqueza da diversidade humana aparecia em cada visita. Se tivéssemos que seguir na letra o direito canônico da Igreja era melhor se arrancar para outro lugar. Para nós, o importante era cura animarum suprema lex, ou seja, “o amor pastoral é a lei máxima”. O importante era entender as pessoas, fazer confiança e ajudar o povo a se organizar em comunidades (Entrevista concedida em 25/03/2008).

Em razão dessa atuação junto aos posseiros, os padres foram vigiados e perseguidos. Dentre os vários episódios violentos, envolvendo a Igreja na região de São Geraldo do Araguaia e os agentes de repressão do Estado, podemos destacar o conflito de Cajueiro quando treze posseiros e dois padres foram presos e levados a julgamento, enquadrados pela Lei de Segurança Nacional em vigor na época. Foi um período em que os oficiais militares estavam incomodados com os conflitos de terra e com a presença de alguns padres, principalmente estrangeiros, na confluência dos rios Araguaia e Tocantins nos anos que sucederam a 1975. Eles acreditavam que o clero estava incentivando e apoiando a luta dos trabalhadores rurais pela posse da terra. Foi nesse contexto que Aristides Camio e o Chico Gouriou foram presos. O posseiro João Matias, de Cajueiro, pediu ao padre Aristides que celebrasse uma missa em sua casa. A missa foi então marcada para dia 8 de agosto de 1981. Antes de viajar, Aristides foi procurado pelo executor do GETAT, de São Geraldo do Araguaia. Ele pediu ao padre para não ir à região do Cajueiro porque a Polícia Federal estaria por lá. Aristides manteve a programação afirmando que o compromisso da Igreja era com o povo e não com a polícia. Lá fez

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Em outubro de 1979, por meio da bula papal Cum Praelatura, do Papa João Paulo II, as prelazias de Conceição do Araguaia e Marabá foram elevadas a dioceses.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 referência à organização dos trabalhadores, pediu que os posseiros mantivessem unidos. Segundo Maria Oneide Costa Lima “Aristides fez a celebração no Cajueiro. Ele me falou que lá tinha muita gente e que teria dito aos agricultores que “uma abelha sozinha quando recebe um tapa, morre, mas quando vem um enxame todos correm” (Entrevista concedida em 16/03/2018).

Pouco depois, em 13 de agosto, uma comitiva formada por Alan Kardec (delegado da Polícia Federal), os agentes federais Osias Mendonça, Lumar de Oliveira, Aquiles Pinto Filho, um funcionário do GETAT, Benício Duarte, e Luiz Antônio dos Santos, um pistoleiro do fazendeiro e deputado Juraci Teixeira, entraram na comunidade para despejar as famílias. Os posseiros não aceitaram pacificamente, ocorreu então o confronto armado com a comitiva. O pistoleiro do fazendeiro Juraci Teixeira morreu e alguns agentes saíram feridos.

Tão logo uma ação conjunta do Exército, Polícia Federal e GETAT resultou em perseguições e prisão de 13 posseiros. Vinte dias depois prenderam Aristides Camio e Chico Gouriou. “(...) prenderam o Aristides e o Chico no dia de São Raimundo. Os policiais entraram na Casa Paroquial pulando pelas janelas, com ódio no rosto. Levaram eles para a sede do GETAT. Eu fiquei em prisão domiciliar, sem poder sair de casa. Depois ficamos sabendo que eles não tinham mandato de prisão”, conta Maria Oneite (Entrevista concedida em 16/03/2018).

Chico Gouriou era pároco de Xinguara e tinha ido visitar o padre Aristides. Lá foi preso. Aristides Camio foi condenado a 15 anos de reclusão; Francisco Gouriou, a 10 anos; o posseiro João Matias, a 9 anos e os outros doze posseiros a 8 anos cada. Dom José Patrick Hanrahan, bispo da Diocese de Conceição do Araguaia, foi interrogado e vítima de uma campanha de difamação na imprensa.

A Igreja buscou solidariedade nacional e internacional pela libertação dos presos e junto com diversas entidades de direitos humanos denunciou a violência dos órgãos do Estado. No dia 17 de dezembro de 1983, às vésperas da inauguração da nova Igreja em São Geraldo do Araguaia, quando boa parte dos peregrinos já estava na cidade, veio a notícia da libertação dos presos. Houve passeatas, fogos, cânticos e danças. “Esse dia foi de muita alegria, toda a comunidade foi esperar os padres e os posseiros libertados na beira do rio. Inauguramos a igreja Cristo Libertador com eles livre”, conta Maria Oneide ao rememorar o episódio.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos demonstrar ao longo deste texto que a atuação da Igreja Católica em São Geraldo do Araguaia junto aos posseiros acabou confrontando com a presença de algumas instituições do Estado que não só defendiam grileiros e grandes proprietários de terras, mas via na ação pastoral um trabalho de subversão e incitação à luta de classe. Ou seja, quase sempre fazendeiros e agentes

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 dos aparelhos do Estado procuravam associar o trabalho pastoral da Igreja Católica e a atuação dos posseiros com a guerrilha ou com a subversão no campo.

À medida que os padres passaram a desenvolver os seus trabalhos mais próximos da realidade das comunidades rurais, foram perseguidos e até mesmo presos e condenados, como foi o caso de Aristides e Chico Gouriou. Nisso a hierarquia da Igreja Católica ao se posicionar do lado dos trabalhadores rurais e de seu clero, entrou em choque não só com os grandes proprietários, mas com o alto escalão dos aparelhos de repressão do Estado que, na época, defendia o desenvolvimento da Amazônia pautado na grande propriedade da terra, principalmente para criação de gado bovino.

Foram nessas circunstâncias que os membros da Igreja Católica, principalmente devido a sua reação à violência dos latifundiários e do regime totalitário da época, passaram a conviver e trabalhar mais intensamente junto aos trabalhadores rurais e atuar na organização política desses trabalhadores rurais.

REFERENCIAS Livros, Teses e Dissertações

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BETTO, Frei. O que é comunidade eclesial de base. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Coleção primeiros passos).

CHINEM, Rivaldo. Sentença: padres e posseiros do Araguaia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. FIGUEIRA, Ricardo Resende. A justiça do lobo: posseiros e padres do Araguaia. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p.44586-44597 jul. 2020. ISSN 2525-8761 PETIT, Pere. Chão de Promessas: Elites Políticas e Transformações Econômicas no Estado do Pará pós-64. Belém: Editora Paka-Tatu, 2003.

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PEREIRA, Airton dos Reis. O papel dos Mediadores nos conflitos pela posse da terra na região

do Araguaia Paraense: O caso da fazenda Bela Vista, MG. 2004. Dissertação (Mestrado em

Extensão Rural), Viçosa (MG): Universidade Federal de Viçosa/Departamento de Economia Rural, 2004.

Fontes Orais

Maria Oneide Costa Lima, ex-agente da CPT da Diocese de Conceição do Araguaia. Entrevista concedida em 16/03/2018, São Geraldo do Araguaia (PA).

Referências

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