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Violência de gênero e assédio sexual em uma Universidade Piauiense: aproximações ao campo de estudo / Gender violence and sexual harassment in a Piauiense University: approaches to the field of study

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Academic year: 2020

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Violência de gênero e assédio sexual em uma Universidade Piauiense:

aproximações ao campo de estudo

Gender violence and sexual harassment in a Piauiense University: approaches to

the field of study

DOI:10.34117/bjdv6n5-213

Recebimento dos originais: 13/04/2020 Aceitação para publicação: 12/05/2020

Rebeca Hennemann Vergara de Souza

Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituição: Universidade Estadual do Piauí – Campus Heróis do Jenipapo

Endereço: Avenida Santo Antônio, S/N – Bairro São Luiz, Campo Maior – PI, Brasileiro E-mail: rebeca@cpm.uespi.br

Maria Paula da Silva França

Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Piauí

Instituição: Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Endereço: Rua São Miguel dos Milagres, 25, Bairro Neópolis, Natal – RN, Brasil. E-mail: paulamaria.fs@outlook.com

Camila Macêdo Pereira

Licenciada em História pela Universidade Estadual do Piauí Instituição: sem instituição

Endereço: Rua Leônidas Melo, 3011, Centro, Barras – PI, Brasil E-mail: camilamacedo9@gmail.com

RESUMO

Este trabalho pretende discutir uma manifestação específica da violência de gênero, o assédio sexual, especialmente aquele praticado na universidade, a partir de dados de duas pesquisas realizadas em uma instituição pública de ensino superior no Piauí. Os resultados apontam que o assédio sexual faz parte da vivência universitária das mulheres, embora, dada a estrutura das relações de poder entre os gêneros, identifique-se certa dificuldade em nomear e identificar prontamente a violência, muitas vezes tida como brincadeira ou piada de caráter sexual. Ainda assim, as mulheres relatam constrangimento e repulsa diante das situações de assédio. As mulheres também demonstram receio em falar sobre o assunto e, especialmente em uma das pesquisas, oferecem respostas informais distintas das que apontaram no questionário. O assédio sexual se objetiva no dia a dia, na sala de aula ou nos corredores, e através de mediação tecnológica e produz efeitos no desempenho e nas oportunidades escolares das discentes. Lidos à luz das estatísticas nacionais sobre violência de gênero, os dados nos indicam a necessidade não apenas de estudos aprofundados sobre o tema, como também de políticas institucionais de acolhimento e enfrentamento.

Palavras-chave: Assédio sexual. Universidade. Relações de poder. Violência de Gênero.

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This paper aims to discuss a specific manifestation of gender violence, sexual harassment, especially that practiced at the university, based on data from two surveys carried out at a public higher education institution in Piauí. The results show that sexual harassment is part of the university experience of women, although, given the structure of power relations between genders, some difficulty is identified in naming and promptly identifying violence, often considered a joke or a joke of character. sexual. Still, women report embarrassment and disgust at harassment situations. Women are also afraid to talk about the subject and, especially in one of the surveys, offer informal answers different from those mentioned in the questionnaire. Sexual harassment is aimed at everyday life, in the classroom or in the corridors, and through technological mediation and produces effects on students' performance and school opportunities. Read in the light of national statistics on gender violence, the data indicate the need not only for in-depth studies on the topic, but also for institutional policies for welcoming and coping.

Keywords: Sexual harassment. University. Power relations. Gender Violence.

1 INTRODUÇÃO

Do rapto das sabinas ao cadinho brasileiro, a história ocidental é repleta de mitos fundadores assentados na violência contra a mulher, especialmente na violência sexual como mecanismo de poder e assujeitamento. Sem autoridade sobre si mesma, o corpo das mulheres é representado como um objeto a ser explorado e dominado pelos homens no exercício da conquista (da terra, dos grupos, das próprias mulheres). A cultura brasileira é repleta de referências desta natureza expressas em ditos populares como mulher de malandro gosta de apanhar e quando fez, não reclamou.

Ao contrário do que o senso comum afirma como verdade, não é possível falar da passividade e resignação absoluta das mulheres diante deste cenário. Direta ou indiretamente, as mulheres produziram estratégias de resistência e contraposição às violências, mesmo quando, paradoxalmente, as legitimam como naturais e inerentes à condição masculina. Além das microestratégias, cotidianas de enfrentamento, organizações de mulheres e iniciativas legislativas exemplificam a luta das mulheres por direitos e pela dignidade humana.

A despeito destas lutas centenárias e dos avanços, as mulheres ainda sofrem uma série de violências relacionadas a seus atributos sociais como mulheres, bem como à posição mais geral da mulher na sociedade. O Atlas da Violência 2019 (IPEA; FBSP, 2019), por exemplo, aponta que entre 2007 e 2017, o número de homicídios de mulheres cresceu 30,7% no Brasil, com maior crescimento entre as mulheres negras (29,9%).

Para Heleieth Saffioti (2015, p.18), a violência é uma “ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade moral”, mesmo quando situa-se fora do diretamente observável, e produz efeitos físicos, psíquicos e sociais. A violência é fenômeno multivariado, mas, no caso das mulheres, há uma causa relacionada ao gênero que atravessa os diferentes fatores, independente de como este seja compreendido e ainda que se

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considere que este conceito não explicita necessariamente uma desigualdade. Muitas violências que praticadas com outros seres humanos seriam consideradas imediatamente reconhecidas como tais, quando praticadas contra mulheres são naturalizadas (BUNCH, 1995; BARSTED, 2016), indicando que os direitos humanos, em sentido amplo, não têm sido compreendidos como direitos das mulheres e que estas seguem sendo reconhecidas como portadoras de uma espécie de subcidadania.

Desde as últimas décadas do século XX, o termo violência de gênero tem sido utilizado para identificar e descrever um amplo rol de ações praticadas contra as mulheres em função de sua condição de mulheres. Embora a noção de violência de gênero, teoricamente, englobe a relacionalidade inerente ao gênero, podendo ser mobilizada para descrever violências praticadas por mulheres contra homens em função da condição masculina, a noção confunde-se muitas vezes com a própria noção de patriarcado, entendido como o “regime de dominação-exploração das mulheres pelos homens” (SAFFIOTI, 2015, p. 47; PATEMAN, 1993), por serem elas majoritariamente as vítimas por sua condição feminina.

Neste trabalho, pretendemos discutir uma manifestação específica de tais violências, o assédio sexual, especialmente aquele praticado dentro da universidade, no contexto da relação professor aluna. Como violência de gênero, o assédio sexual expressa as relações de poder entre homens e mulheres no meio acadêmico.

A literatura registra poucos casos de mulheres nas universidades entre o final do século XX e as primeiras décadas do século XX (BLAY; CONCEIÇÃO, 1991). Somente nos anos 70, após a reforma universitária e com as transformações sociais e econômicas mais amplas da sociedade brasileira, é que se dá a ampliação do ingresso feminino. Segundo Carmem Barroso e Guiomar Mello (1975), já em 1971 as mulheres correspondiam a 40% das vagas ocupadas no ensino superior, ainda que a ocupação fosse fortemente marcada por estereótipos de gênero, com a concentração desta população em áreas consideradas femininas, como educação e humanidades. O ingresso das mulheres no ensino superior se ampliou progressivamente até o presente, quando o total de matrículas de mulheres é superior ao de homens (IBGE, 2010; INEP, 2017).

Embora sejam maioria nos cursos superiores, as mulheres não estão mais próximas da igualdade de gênero, pois muitas sofrem com as relações assimétricas, sendo o assédio sexual uma de suas expressões. A experiência direta ou indireta com o assédio sexual faz parte da experiência universitária de muitas mulheres, geralmente compreendida como uma experiência negativa e até mesmo traumática.

As diferentes manifestações de assédio sexual são tema de conversas informais entre as alunas e, nos últimos anos, têm se constituído como uma pauta relativamente pública, guardadas as barreiras para se discutir direitos das mulheres no atual contexto político. Em 2016, por exemplo,

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uma página na rede social Facebook intitulada Meu professor abusador publicou 640 denúncias de assédio sexual e moral contra professores universitários, além daquelas narradas em comentários aos posts, indicando a dimensão do problema e a necessidade de políticas institucionais de enfrentamento.

As denúncias das mulheres também parecem indicar a presença do assédio na vida universitária dos homens como experiência socializadora e de exercício da masculinidade. Segundo Lourdes Bandeira (2008, p.9), “diferenças culturais e históricas criadas e prescritas para homens e mulheres […] mascaram e disfarçam o uso de práticas violentas e misóginas […], legitimando-as como sendo um direito masculino” e expressão de virilidade.

Neste sentido, torna-se urgente um olhar voltado para universidade e suas práticas, problematizando o mito do senso comum acadêmico que afirma que a universidade, pelo alto nível do conhecimento que produz, estaria imune à reprodução social de práticas consideradas conservadoras e arcaicas, como as representações patriarcais sobre a mulher. Assim como ocorre com companheiros agressores domésticos (SAFFIOTI, 2015), os professores e servidores que praticam atos de violência são poupados na universidade e em outros ambientes sociais pela não visibilidade dos casos e pela conivência social. Como em outras formas de violência contra a mulher (BUNCH, 1995; BLAY, 2008; SAFFIOTI, 2015), o interesse volta-se para as ações e comportamentos da vítima que poderiam justificar a violência.

Como apontam Charlote Bunch (1995) e Eva Blay (2008), a ausência de dados estatísticos sobre as questões que envolvem as mulheres é um poderoso indicativo de sua posição subalterna na sociedade e da invisibilidade das violências que as afligem. Ainda que haja recente publicidade relativa dos casos de assédio nas universidades e que eles não sejam incomuns nas narrativas informais das trajetórias acadêmicas de mulheres, não existem estudos institucionais aprofundados que procurem conhecer a dimensão do problema.

O presente trabalho discute os dados de duas pesquisas realizadas em uma mesma universidade pública estadual, no estado do Piauí, em campi distintos, sobre assédio sexual. A primeira pesquisa tinha por objetivo realizar um diagnóstico das condições de vida das mulheres trabalhadoras e estudantes e foi realizada entre os anos de 2016 e 2017, em um campus do interior do Estado. A segunda pesquisa, realizada em 2018, resultou em um trabalho de conclusão de curso em Ciências Sociais e objetivou investigar as práticas de assédio sexual como parte das relações de poder estabelecidas entre professores e alunas de uma universidade pública na cidade de Teresina – Piauí.

As condições de vida das mulheres foram analisadas em três eixos: o primeiro tratou das questões relativas à função reprodutiva da mulher na sociedade, envolvendo a divisão sexual do

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trabalho doméstico; o segundo eixo abordou as condições econômicas e sociais das mulheres, como renda e trabalho remunerado e acesso à educação; e o terceiro, questões sobre segurança, integridade e bem-estar das mulheres, focando nas situações de violência relacionadas direta ou indiretamente à vida acadêmica. A pesquisa foi realizada através da aplicação de um questionário semiestruturado a 139 mulheres que trabalham ou estudam em um campus do interior do estado do Piauí (professoras, técnicas, funcionárias terceirizadas, trabalhadoras autônomas e estudantes).

Já a segunda pesquisa foi realizada em um campus em Teresina através de entrevista em profundidade com seis mulheres, quatro das quais se apresentaram espontaneamente para participação na pesquisa e outras duas selecionadas aleatoriamente. A entrevista abordou sua percepção geral sobre a vida acadêmica e as narrativas de assédio.

1.1 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E ASSÉDIO SEXUAL

Enquanto um sistema de relações de poder e gênero, o machismo pode ser concebido como um sistema de representação/dominação que reduz mulheres (e homens) a hierarquias sexuais, objetificando-as (DRUMONT, 1980). Fatores étnico-raciais (DAVIS, 2016; CARNEIRO, 2018) e de classe (SAFFIOTI, 1987; 2015) podem se sobrepor de forma a profundar o exercício do poder dos homens sobre as mulheres, constituindo o que Sueli Carneiro (2018) chama de uma condição de asfixia social ou o que Saffioti (2015) chama de nó entre gênero, classe e raça.

Para Pierre Bourdieu (2012), a escola é uma das instâncias principais de elaboração e imposição dos princípios da dominação masculina. Enquanto espaço escolarizado, no sentido mais amplo de escola, a universidade é um lugar de produção ativa da dominação masculina. A elaboração e imposição de princípios é também exercício de poder. Como Michel Foucault (1979) argumenta, o poder penetra sutilmente na trama da sociedade de forma que, pensar as relações de poder em uma esfera mais ampla que a da representação política implica

saber até onde se exerce o poder, através de que revezamentos e até que instâncias, frequentemente ínfimas, de controle, de vigilância de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce em determinada direção, com uns de lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. (FOUCAULT, 1979, p.75).

O poder pode-se apresentar então como machismo, ou “poder do macho” (SAFFIOTI, 1987), aquilo que os portadores do phallus detêm, conceituado por Drumont (1982, p.82) como um

sistema de representações-dominação que utiliza o argumento do sexo, mistificando assim as relações entre os homens e as mulheres, reduzindo-os a sexos hierarquizados, divididos em polo dominante e polo dominado que se confirmam mutuamente numa situação de objetos.

O machismo representa e apresenta relações reais e imaginárias entre homens e mulheres, estabelecendo uma forma de dominação do homem sobre a mulher na sociedade (DUMONT, 1980,

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p.82). Para Saffioti (2015), trata-se de uma estrutura de poder que o distribuiu desigualmente entre homens e mulheres. A (re)produção do poder masculino em detrimento do feminino é preservada e reafirmada pela sociedade, naturalizando-se na construção discursiva das desigualdades biológicas e normalizando-se pela recorrência e aceitação social.

O ambiente universitário, como um espaço social, também é estruturado por e estruturante de relações de poder. Foucault (1979) mostrou como as instituições escolares produzem uma série de controles e regulações dos estudantes que visam sua sujeição. As relações entre homens e mulheres (sejam estes homens professores, funcionários ou alunos e estas mulheres professoras, funcionárias ou alunas) podem ser compreendidas como relações desta natureza na medida em que é possível identificar uma série de mecanismos disciplinares que atuam na produção de certos efeitos sociais sobre os corpos individuais e coletivo, regulando a própria relação de ensino aprendizagem e não apenas aprofundando as assimetrias de gênero, como também criando um olhar vigilante sobre as alunas, professoras e funcionárias.

As relações de poder que regulam os gêneros podem exercer-se através de diferentes dispositivos, dentre eles, as práticas masculinas de natureza sexual dirigidas às mulheres em um contexto de hierarquia institucional (PAMPLONA FILHO, 2001), nomeadas genericamente de assédio sexual. Para o autor, o assédio é “toda conduta de natureza sexual não desejada, que embora repelida pelo destinatário, é continuadamente reiterada, cercando-lhe a liberdade”. (PAMPLONA FILHO, 2001, p.4). Essa concepção ampliada de assédio é adotada por Daniele Janssen (2013) para propor uma interpretação do assédio sexual na relação entre professor e aluna, na qual, no lugar da ameça ao vínculo empregatício, as ameaças são feitas em relação ao desempenho escolar.

Como problema de gênero (FUKUDA, 2012), o assédio sexual é revelador das relações de poder entre os homens e mulheres envolvidos, notadamente as hierarquias e constrangimentos socialmente legitimadas, cujas formas e abordagens são variáveis. Na maioria dos casos, o sujeito ativo do comportamento configurador do assédio sexual é o homem, e são afetadas, predominantemente, as mulheres, embora possa ser o contrário, mas em proporção muito menor (PAMPLONA FILHO, 2005).

Para Fukuda (2012), a dificuldade em caracterizar o assédio sexual está relacionada ao funcionamento das instituições sociais, as quais legitimam comportamentos misóginos e sexistas por parte do homem, tratando a assédio como um problema de relações de trabalho e não como violência contra mulher. A não percepção da violência contra as mulheres é parte integrante da própria violência por negar às mulheres a condição de sujeitos de direitos (BRUNCH, 1995; BARSTED, 2016). Além disso, é preciso considerar a normalização de comportamentos agressivos

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como inerentes ao homem e à própria dinâmica das relações de gênero (BLAY, 2008; SAFFIOTI, 2015).

O assédio sexual pode ser caracterizado através de diversos atos, desde insinuações de caráter sexual mais ou menos explícito até ameaças físicas ou verbais a fim de obter favores sexuais (PAMPLONA FILHO, 2001; JANSSEN, 2013). Dentre estes atos, estão inclusas piadas e comentários, convites insistentes, contato físico, etc, que importunem ou causem constrangimento à vítima. A amplitude dos atos de assédio sexual está relacionada à própria concepção de natureza da sexualidade feminina. Segundo Saffioti (2015), como as mulheres não têm phallus (poder, representado pelo pênis), sua sexualidade é difusa e qualquer área do corpo ou do comportamento pode ser erotizada. Por outro lado, há áreas e comportamentos que são mais facilmente identificados como erotizáveis, sendo portanto mais facilmente reconhecidos como objetos de assédio, enquanto outros integram a grande área cinzenta da interpretação.

Um dos efeitos das relações de poder nas instituições é a produção de assimetrias entre docentes e discentes, objetivados em um conjunto de práticas e representações, como o controle das avaliações. Uma das características centrais do assédio é acontecer no contexto de uma relação de poder hierárquica, ou seja, as práticas assediadoras não são cometidas por um homem em uma posição estruturalmente isonômica à mulher, mas, pelo contrário, envolvem um homem em uma posição hierarquicamente superior, neste caso, o professor, e uma mulher hierarquicamente inferior, a aluna (RAMPAZO; TEIXEIRA, 2017). O assédio aprofunda essas hierarquias em assimetrias claras de exercício de poder. De um lado, o gênero do professor se sobrepõe a sua posição para potencializar o exercício do poder do macho-professor. De outro, o gênero da aluna se sobrepõe a sua posição de poder para duplicar sua condição de inferiorização e objeto do poder. Classe e identificação étnico-racial engrossam essa sobreposição de forma a aprofundar o exercício possível. O assédio sexual por chantagem, por exemplo, engloba diretamente a relação professor aluna, uma vez que seu desempenho escolar ou possibilidade de reprovação podem ser utilizadas para constranger a aluna a aceitar convites, toques ou atos verbais.

Em uma pesquisa sobre assédio realizada em uma universidade estadual no Paraná, Sá, Folriani e Rampazo (2017), apontaram que a hierarquização de posições na universidade se soma à hierarquização de gênero, tornando mais difícil para as discentes reagirem ao assédio. Esta sobreposição também foi notada por Efraim e Freitas (2017) em pesquisa realizada para o jornal Estadão em universidades paulistas.

Independente da forma da violência, os estudos sobre gênero e violência demonstram que, pelas questões sociais, culturais e políticas envolvidas no patriarcado, quando denunciada a violência, a atenção desloca-se do agressor para a vítima (BRUNCH, 1995; BLAY, 2008;

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SAFFIOTI, 2015) na procura dos comportamentos que justificariam o ato agressivo como parte do processo de conquista-caçada inerente às relações heterossexuais. A culpabilização da vítima e sua exposição é importante mecanismo de desmobilização da denúncia (SÁ; FOLRIANI; RAMPAZO, 2017) ao lado das relações de hierarquia institucional (EFRAIM; TEIXEIRA, 2017).

1.2 RELAÇÕES DE GÊNERO E ASSÉDIO SEXUAL NA UNIVERSIDADE

Para compreender a complexidade da dinâmica do assédio é preciso também um olhar para a metodologia de pesquisa adotada e para aquilo que os instrumentos escolhidos podem ou não captar. Como o objetivo do primeiro estudo era realizar um diagnóstico das condições de vida de mulheres, optou-se por utilizar um questionário semiestruturado. O instrumento revelou-se adequado para a coleta de dados acerca da divisão sexual do trabalho doméstico e das condições econômicas e sociais das mulheres. Entretanto, se mostrou insuficiente para a coleta de dados sobre segurança, integridade e bem-estar das mulheres, especialmente quando se referiam à experiência vivida.

Cerca de 50% das entrevistadas manifestaram explicitamente que forneceriam uma resposta suavizada ou negativa por medo de serem identificadas e retaliadas pelos agressores: “acontece, mas coloca ai que não”. De um lado, compreende-se que as garantias de sigilo dos dados são limitadas em uma comunidade que, tomando de empréstimo o termo proposto por Mendras (1976) para caracterizar as comunidades camponesas, caracteriza-se pelo interconhecimento, os riscos de identificação e mesmo de saber-se que falou-se sobre o assunto são grandes. De outro lado, como já discutido, a própria dinâmica da violência contra a mulher dificulta sua identificação e qualificação como tal. Nesse sentido, os dados numéricos sobre violência aqui apresentados necessitam ser relativizados e lidos de forma qualitativa.

Estas questões também emergiram no segundo estudo. Entretanto, a entrevista em profundidade, ao criar um clima mais próximo entre a entrevistadora e a entrevistada, bem como o fato de que quatro delas se voluntariam para a pesquisa, favoreceu a reflexividade sobre a experiência de assédio, assim como estabeleceu uma relação de maior confiança para o desenvolvimento da pesquisa.

A pesquisa realizada em Campo Maior entrevistou 139 mulheres, entre 21 e 67 anos que trabalhavam ou estudavam no Campus. O perfil predominante das participantes foi composto por mulheres solteiras (70%), heterossexuais (95,7%), sem filhos (70%), autoidentificadas como pardas (63,2%) ou negras (19,7%) e católicas (71,9%) e com idade média de 27 anos. Este perfil deve, contudo ser relativizado quando se considera a composição das entrevistadas quanto ao seu vínculo com o Campus: 80,3% são alunas, as funcionárias correspondem a 13,7% de total de respondentes e

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as professoras, a 6%. A maioria das entrevistadas (72%) exercem algum tipo atividade remunerada ou recebem algum tipo de auxílio, inclusive auxílios de assistência estudantil ofertados pela universidade; 18% dependem da renda de outras pessoas ou 10% não responderam.

O segundo estudo foi realizado com seis mulheres, identificadas nesta pesquisa com nomes fictícios, escolhidos por elas: Amanda, Catarine, Clara, Dama da Noite, Maria e Violeta. São mulheres jovens, entre 22 e 35 anos, estudantes de curso de graduação, todas autoidentificadas como heterossexuais e solteiras. Em relação à identificação étnico-racial, quatro mulheres se autodeclararam negras ou pardas; uma se percebe como branca e a outra não soube responder. Das seis, três trabalham em atividades informais e as outras três não possuem atividades remuneradas. Quanto à naturalidade, três mulheres não são naturais de Teresina, ou seja, vieram para a cidade com o intuito de estudar e outras três nasceram na cidade. Duas entrevistadas já participaram de programas de assistência social ou de iniciação científica na universidade e as outras quatro, não.

O campus do interior é uma unidade pequena, composta por um bloco único para salas de aula, laboratório e setor administrativo para o período regular e por um número reduzido de alunos e professores quando comparado a outras unidades da mesma instituição. Este cenário de interconhecimento produz uma relativa sensação de segurança entre as mulheres que estudam e trabalham no campus. Entretanto, três em cada dez mulheres sentem-se inseguras no campus, especialmente funcionárias e alunas. Entre os fatores elencados para a insegurança e medo estão a vulnerabilidade da segurança (39%); fatores ligados à estrutura do campus, como o isolamento e baixa iluminação (23%); o sentimento de insegurança generalizada (16%); o assédio sexual (10%); e a violência já presenciada dentro do campus (6%). Outras 6% não justificaram a razão de sua insegurança.

Embora a maioria absoluta tenha declarado nunca ter sofrido ou presenciado qualquer tipo de agressão física dentro da universidade, muitas entrevistadas demostraram explicitamente medo em responder positivamente às questões, afirmando que responderiam negativamente ao questionário. Entretanto, afirmaram fora da resposta que já haviam sofrido e, principalmente, presenciado cenas de agressão física e moral, especialmente praticadas por companheiros de alunas e por chefias. Cabe aqui ressaltar que a maioria das testemunhas são funcionárias que possuem um vínculo empregatício precarizado e temem a perda do emprego.

Quando questionadas sobre o assédio sexual, a maioria (93%) disse nunca ter presenciado casos dentro do espaço acadêmico. Das 7% que presenciaram situações de assédio, 50% citaram comentários e cantadas ofensivas de cunho sexual; 37,5% a abordagem de natureza sexual não desejada ou insistência inoportuna por parte de colegas de sala ou de trabalho; e 12,5%, a invenção de boatos envolvendo sua sexualidade.

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Entretanto, quando questionadas sobre a vivência, dentro da universidade, de situações específicas, as quais caracterizam o assédio, 97% das entrevistadas já foram importunadas, sendo que destas 59,8% destacaram olhares que as incomodaram e 23% comentários e piadinhas sobre seu corpo. Foi identificado um caso de uma entrevistada que declarou já ter recebido propostas para trocar favores sexuais por algum beneficio acadêmico.

A dificuldade em identificar e nomear como violência práticas de assédio sexual também foi relevada entre as seis entrevistadas. Embora no planejamento da pesquisa, tenhamos optado por trabalhar com a categoria assédio sexual, em sentido amplo, as entrevistadas recorreram a outras duas categorias, constrangimento e abuso. Neste sentido, procuramos compreender o sentido que as entrevistadas conferem às situações de violência que sofreram, independente da tipificação legal. De forma geral, percebe-se que há certa dificuldade em nomear os acontecimentos e esta oscilação semântica vai ao encontro da dificuldade em caracterizar o assédio sexual diante da legitimação social dos comportamentos nos quais ele se objetifica (FUKUDA, 2012). Parece haver, hipótese a ser investigada de forma mais aprofundada em estudos posteriores, um continnum que estabelece gradações na violência, do constrangimento ao assédio, passando pelo abuso.

Nas duas pesquisas, prevalecem as piadas de conteúdo sexual, olhares constrangedores, comentários sobre o corpo ou roupa, perguntas íntimas e pessoais e convites para atividades fora da universidade, constituindo o que Pamplona Filho (2001) designa como condutas não desejadas e desagradáveis para a receptora, as quais são umas das características do assédio sexual.

“[…] ele meio que ficava insinuando coisas, meio que dando em cima, assim, pegando no meu cabelo, passando assim a mão no ombro, eu não gostava, eu sempre revidei isso né e as brincadeiras assim, sempre ele tinha umas brincadeiras assim em sala de aula, é tipo, meio que dando em cima mesmo [..]”. (Amanda)

“‘[...] Você é muito linda’. E começou a me elogiar de uma forma que eu fiquei meio constrangida, entendeu? E teve uma ocasião, no primeiro bloco, mas eu já pensei que não fosse uma coisa tão grave assim, eu pensei que fosse uma brincadeira dele, porque querendo ou não, às vezes a gente confunde com uma brincadeira, mas isso não é uma brincadeira, e é isso.”. (Dama da Noite)

A dificuldade de identificar e nomear a violência também se traduz na percepção, pelo menos inicial, das práticas como brincadeiras, como verificamos nos extratos de entrevista acima. Sá, Folriani e Rampazo (2017) também identificaram que brincadeiras e piadas são formas comuns de assédio no ambiente universitário, as quais dificultam a nomeação das experiências constrangedoras como assédio.

A designação do assédio como brincadeira, entretanto, deve ser compreendida não do ponto de vista exclusivo das mulheres vítimas destas formas de violência, mas da sutileza e da conivência social com certos comportamentos de natureza machista. A dificuldade das entrevistadas em

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chamar de assédio sexual ou outra nomenclatura que explicite o caráter violento é menos uma não percepção da violência e mais um reflexo da própria natureza do assédio. O fato do assédio, por vezes, ser praticado tom de brincadeira, faz com que as mulheres sintam dificuldades em relatá-lo como tal. Frases como “meio assim”, “conversa”, “brincadeira” demonstram a hesitação em utilizar a palavra assédio para denominar o ocorrido. Essa hesitação pode acentuar-se quando o assédio acontece em sala de aula, com testemunhas.

Na pesquisa sobre condições de vida de mulheres, verificou-se que há casos de mulheres testemunhas, especialmente nos casos de violência física, não sendo identificadas testemunhas de assédio sexual. Já na segunda pesquisa, Amanda, Dama da Noite e Violeta relataram situações em que o assédio ocorreu na presença de outras testemunhas, especificamente outros homens. No caso de Amanda, relatado acima, eram outros professores, no de Violenta, colegas de classe.

“[…] eu estava com uma determinada roupa e tinha três alunos em sala de aula e o professor, quando de repente o aluno fez um comentário sobre a minha saia, indevido, e o professor apenas riu e ficou falando: “Ah, se ela veio de sainha né, rodadinha ainda”. O professor deu esse comentário, eu senti constrangida, deixei minhas coisas e apenas saí, só voltei quando chegou mais três meninas da sala, aí que eu entrei.” (Violeta)

Sá, Floriani e Rampazo (2017, p.25-26) também identificaram a presença e co participação de testemunhas nos atos de assédio. Segundo os autores, “piadas, brincadeiras e cantadas de cunho sexual são comumente ouvidas nos corredores das universidades […] na maioria das vezes de forma descontraída, em que todos ao redor se divertem e acham normal a situação”. A presença de testemunhas parece ser essencial para a normalização do assédio como brincadeira, dificultando sua classificação como ato violento.

A segunda pesquisa também identificou contato físico não consentido entre professores e alunas, como pegar no cabelo, abraços, beijos, toque em diferentes partes do corpo. Quando o assédio é realizado através de situações que envolvem contato físico direto, as entrevistadas demonstram maior facilidade em identificá-las como violência, independente da sua posição no espectro.

Reiteradamente, as entrevistadas reafirmam sua não concordância com as situações vividas, dizem que nunca gostaram, que disseram não, revidaram, se afastaram, repudiaram. Na primeira pesquisa, 32% já se retiraram de um local pela presença de um homem a fim de evitar a situação de assédio. Na segunda pesquisa, as discentes relatam que revidaram, não responderam e, no limite, abandonaram projetos e atividades para não encontrar o assediador.

Informalmente, as entrevistadas citaram casos de seu conhecimento envolvendo professores e alunas, funcionários e alunas e funcionários e alunas. A segunda pesquisa focou na relação professor-aluna e por isso casos envolvendo funcionários não foram investigados. Nesta pesquisa,

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seis mulheres vítimas de assédio por parte de professores foram entrevistadas e todas possuíam uma história estruturalmente semelhante quanto ao tempo, local do assédio e forma do assédio.

Na segunda pesquisa, as situações de assédio e abuso sexual, em sua maioria, ocorreram nos dois anos iniciais dos cursos, indicando a existência de um padrão de ação dos docentes e uma preferência por abordar as mulheres no início da sua vida acadêmica quando há uma maior vulnerabilidade na rede de apoio local, pois os laços estão em construção e a universidade é um espaço social novo. As entrevistadas relatam a surpresa e a quebra das expectativas ao ingressar na universidade e se deparar diretamente com o assédio, por não esperarem atitudes desta natureza dos professores, em um lugar social que guarda a expectativa de segurança.

Alguns casos relatados duraram um período relativamente curto de tempo, como alguns dias ou semanas. Outros, entretanto, perduraram por um ou mais semestres, pois muitos professores retornavam às salas de aulas com outras disciplinas, dando continuidade aos assédios. Maria, Clara e Amanda vivenciaram situações de assédio por vários meses, sendo que a última, até o dia da entrevista, confirmou que as situações ainda aconteciam.

O assédio pode ser praticado através de diferentes meios, seja no mesmo período de tempo, seja em momentos distintos, descontinuados, indicando a plasticidade do exercício do poder. Por exemplo, comentários desagradáveis podem evoluir para contatos físicos não autorizados; contatos ocasionais na universidade, para convites para sair e contatos através de redes sociais, fora do contexto acadêmico; contatos físicos esporádicos e sutis, para atitudes de perseguição online e insistência para encontros.

“[…] ficava ligando pra mim, dizendo que queria me ver, que tava indo viajar, mas queria me ver antes, assistir um filme, só como amigos; só que eu sabia que pra ele aquilo não seria só como amigo e ele continuava insistindo, mandava mensagem, dizendo o quanto gostava de mim e se declarando [...] ele tinha um site, né, de poesia e ele escrevia poesias, e ele mandava essas poesias pra mim; um tanto quanto com teor erótico e eu fiquei sentindo nojo daquilo, né, da forma que ele colocava e que ele falava: ‘essa poesia eu fiz pra você’.”. (Clara)

“[…] antes de começar as aulas, a primeira aula, ele mandou uma mensagem via whatsapp, chamando pra tomar uma cerveja. Chegando na sala de aula, eu ignorei a mensagem, nem respondi, chegando na sala de aula, no primeiro dia de aula, ele perguntou o nome de todos os alunos, aí eu falei o meu nome, aí ele: “Ah, então quer dizer que você é que é a carioca, nem respondeu se queria tomar cerveja comigo”. Aí eu fiquei olhando pra cara dele assim tipo: Como assim? Aí fiquei constrangida na frente de todo mundo, todo mundo olhou pra minha cara.”. (Catarina)

Embora a pesquisa não tenha focado nas práticas de perseguição virtual ou eletrônica, há indícios de sua forte presença nas situações vividas pelas universitárias. Para Burmester, Henry e Kermes (2005), a perseguição virtual ou eletrônica se configura pela intrusão, assédio persistente e perseguição através do uso de tais tecnologias, podendo ou não ocorrer simultaneamente ao assédio

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fora das redes. Nas entrevistas, as jovens relatam que as redes sociais, como WhatsApp, e as mensagens de texto foram utilizadas como forma de prolongar o assédio no tempo e no espaço, para fora da sala de aula e dos corredores da universidade.

Outro elemento característico do assédio sexual no ambiente acadêmico refere-se ao fato do agressor valer-se de sua condição de ascendência, baseada em uma relação de domínio, influência e respeito (JANSSEN, 2013), para afetar ou ameaçar afetar negativamente o desenvolvimento acadêmico da aluna.

“[…] só ficou eu de prova final, somente eu e eu fiquei lá, numa sala dele, na sala pequena que ele tem, na sala dos professores, só eu e ele, pra eu fazer a prova e ele simplesmente saiu na hora da prova. Ele simplesmente saiu e eu fiz minha prova, entreguei pra ele e ele só colocou a nota oito, sem mal ler. Então eu achei muito estranho, eu me senti meio que prejudicada com isso, qual o sentido dele me deixar de prova final só pra eu ficar dentro de uma sala com ele?”. (Amanda)

“[…] depois do acontecido, eu não fiz mais a prova de monitoria. Então, eu nunca tive trabalho com ele, eu nunca tive uma oportunidade de entrar no núcleo de pesquisa, porque o núcleo de pesquisa é dele e eu me sinto numa relação totalmente de poder. […].” (Dama da Noite)

“[…] olhei meu histórico acadêmico. Ele colocou como reprovada por nota pra constar no meu histórico. O histórico acadêmico do quarto bloco, que foi o bloco que eu perdi né, em nenhuma matéria consta, porque quando é reprovado por falta não consta no histórico, né, porque eu simplesmente abandonei, deixei o período. Mas na matéria do cidadão lá, ele foi tão filha da p... que ele botou reprovada por nota.”. (Catarine).

O abuso da autoridade docente, no contexto mais amplo de situações de assédio sexual, caracterizam uma tentativa de chantagem (PAMPLONA FILHO, 2001), na qual o professor utilizada de sua posição de ascendência seja para produzir, simultaneamente, uma espécie de punição por não ter obtido o resultado esperado com as investidas anteriores e produzir uma tensão subjetiva, procurando construir uma situação da qual não há escapatória do exercício do poder masculino, seja cedendo às investidas, seja sendo prejudicada. Nesse sentido, situações corriqueiras da vida acadêmica são transformadas em oportunidades para prolongar o assédio sexual, agora convertido em assédio moral que atua diretamente sobre o desempenho das estudantes.

Diante do sentimento de perseguição e constrangimento, as entrevistadas adotaram medidas individuais diante do assédio sexual, como abandonar disciplinas ministradas pelo professor e não frequentar os mesmos espaços. Na primeira pesquisa, embora a maioria das participantes (77%) tenha declarado confiar na universidade para denunciar algum caso de violência, incluindo assédio sexual, que sofresse ou testemunhasse na instituição, apenas uma pessoa, informalmente, relatou ter levado o caso à administração do campus e não obteve solução para o caso, pelo contrário, sua percepção é de que o agressor foi protegido.

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Outras 23% das entrevistadas declararam não confiar na instituição para apresentar denúncia, o mesmo ocorrendo com as seis entrevistadas na segunda pesquisa, cujos casos não chegaram a nenhuma instância institucional.

“[…] não adianta tu fazer nada porque ele é, sempre vai sair ganhando, né, é superior [...]”. (Amanda)

“[…] eu percebi que os professores, eles são bem unidos e acaba acontecendo essa questão do corporativismo mesmo, entendeu? Então não adianta, não adianta você reclamar.”. (Dama da Noite)

“Não, até porque eu achava, e ainda acho, que não ia pra lugar algum, que eu é que ia ser é, como é que eu posso dizer, eu que seria prejudicada e não o professor.”. (Maria)

Para compreender a ausência de denúncias e o desinteresse institucional por (re)conhecer esta realidade, é necessário discutir como a naturalização dos processos socioculturais de discriminação contra a mulher legitima a “superioridade” dos homens (SAFIOTTI, 1987, p.11). A ausência de denúncias é reveladora da existência de desconfiança quanto à capacidade institucional de resposta aos casos de assédio e violência. A dificuldade em reconhecer a conduta sendo agressiva e até se perceber como vítima, faz com que muitas mulheres não queiram denunciar os casos de assédio sexual. Além disso, como afirma Fukuda (2012), especialmente em casos de crimes sexuais, a conduta do agressor é minimizada em detrimento das vítimas, cujas atitudes são colocadas sob suspeição e julgamento. Percebe-se, dessa forma que, mesmo quando há um interesse em denunciar, a vítima é desencorajada por acreditar que as denúncias não terão nenhum efeito prático e que, ademais, poderia ter seu caráter e atitudes questionados.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, discutimos o assédio sexual praticado contra mulheres, na universidade, como uma forma de violência de gênero que expressa relações de poder e é parte da vivência das mulheres na universidade, sejam elas funcionárias ou estudantes.

A despeito de certa dificuldade em identificar e nomear a violência, as mulheres qualificam as situações vividas como constrangedoras e indevidas, manifestando sentirem-se inclusive perseguidas. Dentre tais situações, encontramos formas verbais de assédio, como piadas e comentários de natureza sexual e íntima, abuso de autoridade e contato físico não autorizado.

A pesquisa de natureza qualitativa revelou-se mais adequada para apreensão da dinâmica do assédio, entretanto, em ambos os casos, o medo e a insegurança, explicados pela própria estrutura de poder e dominação entre os gêneros, se mostraram fatores limitantes para a coleta de dados e para o próprio encaminhamento de denúncia. Como dissemos, na aplicação dos questionários, foi

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comum as mulheres oferecerem dupla resposta, uma ao instrumento, oficial, e outra informal, registrada como parte do processo de coleta, indicando a necessidade de uma leitura para além dos dados coletados através do instrumento. Neste sentido, avaliamos que a confrontação dos dados coletados de diferentes formas nos permitiu ampliar o conhecimento sobre o tema e melhor conhecer esta realidade.

Há uma experiência histórica acumulada pelas mulheres que se traduz em um senso prático sobre a ineficácia das denúncias, as quais geralmente produzem mais sofrimento para elas que ações contra o agressor, e em certa desconfiança institucional. Lidos à luz das estatísticas nacionais sobre violência de gênero, estes dados nos indicam a necessidade não apenas de estudos aprofundados sobre o tema, como também de políticas institucionais de acolhimento e enfrentamento. Como expressão da violência de gênero, assédio sexual nos alerta para a relação entre gênero e permanência, bem como para a experiência mais geral, generificada, na universidade. A naturalização e a negação da existência de violências de gênero na universidade não apenas as reproduz e as incentiva, como também constitui um fator ainda não investigado de mal estar.

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