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Relações de gênero, formação e dissolução das uniões nos países em desenvolvimento

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Introdução

Nos países em desenvolvimento, mesmo com a emergência de aspirações a novas relações entre homens e mulheres, a maioria das sociedades tem um passado fortemente patriarcal, de que um dos pilares é a subordinação das mulheres e o domínio da sua capacidade de dar a vida. Ser homem e ser mulher é antes de tudo ser marido e pai, esposa e mãe. Os status e papéis na produção são fortemente articulados com a esfera da reprodução. A família ainda é um lugar primordial na definição das relações entre os sexos.

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A observação das modalidades do casamento, o estudo estatístico da nupcialidade, a análise dos arranjos residenciais das famílias são assim reveladores poderosos das relações de gênero privilegiadas por determinada sociedade. Nos ritos e nas festividades do casamento como nas estatísticas que ilustram seus efeitos no âmbito de uma comunidade (idade do casamento, repartição de uma população por estado matrimonial, intensidade do celibato definitivo), as relações socialmente instituídas entre homens e mulheres se manifestam com particular evidência. Ao longo da vida dos indivíduos, a dinâmica das famílias, a formação e a dissolução de uniões e as modalidades de residência irão “encenar” relações de gênero, seja pela aprovação das normas sociais, seja, mais raramente, por sua contestação.

No decorrer da sua história, cada sociedade elabora o que podemos chamar de um “sistema de gênero” (Mason-Oppenheim, 1995). Portanto, é impossível fazer um exame exaustivo, para todos os países em desenvolvimento, dos laços existentes entre os sistemas de gênero e as dinâmicas familiares. Este capítulo visa explicitar algumas das inter-relações mais manifestas. A formação das uniões ocupará nele um lugar preponderante. Para fazê-lo, nos apoiaremos ao mesmo tempo em dados estatísticos reveladores das situações matrimoniais, na África, na Ásia e na Américas Latina, e em exemplos que reflitam as relações de gênero instituídas em tal ou qual área cultural através das modalidades de união. Também examinaremos os modos de vida familiares e o fim das uniões (divórcios e viuvezes), para evidenciar o que refletem dos sistemas de gênero. 1. Formação das uniões e instituições matrimoniais

1. Formação das uniões e teoria da família

Muitas abordagens consideram que as características individuais são as causas principais das diferenças entre homens e mulheres nas sociedades e ignoram o contexto mais amplo das desigualdades entre os sexos nas instituições e processos sociais. A formação de uniões é o exemplo mesmo deste encerramento dos indivíduos nas normas que definem, amiúde muito estritamente, o que deverão ser e fazer como homem e como mulher. A regras de aliança e filiação, estes dois pilares do parentesco, vão determinar a natureza das relações entre esposos, entre pais e filhos e, mais amplamente, entre cada indivíduo, sua família de origem

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e sua família de aliança (Locoh, 1996a). Estas regras, imperativos e interdições, que as sociedades, explícita ou implicitamente, estabelecem para seus membros no domínio matrimonial, estão na base dos sistemas de gênero.

Efeito dos sistemas familiares e dos arranjos matrimoniais sobre o status das mulheres e as relações entre esposos: Índia Setentrional e Índia Meridional

Na Índia, num contexto de casamento precoce das mulheres em que as famílias desempenham um papel preponderante na escolha do cônjuge, observam-se diferenças importantes entre os estados do norte e do sul. A idade do casamento é particularmente baixa nos estados do norte. Mas esta não é a única diferença. E a comparação dos dois sistemas matrimoniais ilustra bem como as diferentes modalidades do casamento impactam a autonomia da esposa e, portanto, as trocas com seu cônjuge e eventualmente as decisões relativas à sua descendência.

Há três princípios fundadores do parentesco na Índia Setentrional. Primeiramente, o casamento é estritamente exogâmico. Em segundo lugar, os homens permutam prestações, apoiando-se na cooperação da sua parentela, particularmente seus irmãos. Em terceiro, as mulheres não têm acesso à herança nem transmitem direitos de propriedade. O casamento é dominado pela busca de alianças entre grupos nos quais a mulher não têm autoridade ou crédito para tomar parte da deliberação. Os que “cedem a mulher” são socialmente inferiores aos que “tomam a mulher” (Dyson e Moore, 1983: 43). Eles devem, ainda, oferecer um dote muito importante à família do esposo.

O fato de que a mulher venha de outro grupo constitui um risco para a família que a acolhe. Ela tem de ser “ressocializada” para integrar a família do marido e sustentar seus interesses. Além disso, como as moças se casam fora do seu grupo de origem e às vezes à distância, geograficamente falando, seus parentes não podem esperar receber ajuda após o casamento. Enfim, a castidade das moças antes do casamento é a honra da família. Para garanti-la, recorre-se à prática do purdah, a reclusão das moças para fins de “proteção”. Assim, a segregação dos sexos é regra, inclusive para as atividades produtivas nas quais as mulheres eventualmente participem.

O sistema matrimonial que prevalece no sul da Índia é bastante diferente. Existem formas de casamento preferencial, freqüentemente entre primos cruzados. Espera-se que os homens cooperem tanto com sua família de origem como com a sua família de aliança. As mulheres às vezes podem transferir direitos de propriedade aos seus descendentes. Neste sistema, as mulheres podem casar-se dentro de famílias próximas. Há uma relativa eqüidade de status entre seu grupo familiar de origem e o grupo familiar que elas passam a integrar pelo casamento. As mulheres são menos controladas, conservando relações com sua família de origem mais regularmente do que as mulheres da Índia Setentrional. Como os rapazes, as moças prestam serviço a seus parentes idosos. Há menos separação entre os sexos nas redes de conhecimento e de trabalho. Enfim, no sul, os casais formam mais freqüentemente casais nucleares, separados dos parentes do marido.

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Esses diferentes modelos se traduzem no plano demográfico e socioeconômico: no sul, as mulheres se casam mais tarde, têm descendência um pouco menos numerosa, um melhor nível de escolarização e taxas de atividade mais elevadas. A mortalidade infantil também é mais baixa nas regiões do sul da Índia.

Este exemplo mostra bem a que ponto as normas que governam a escolha dos cônjuges, a intervenção das famílias e as relações entre os grupos familiares aliados determinam as posições respectivas de homens e mulheres, influenciando, por isto, não apenas as suas decisões, mas toda a sua vida familiar e grande parte da sua vida social.

A formação dos casais sempre esteve sob estreito controle social. Em muitas sociedades, ela depende muito pouco de decisões individuais, a atração sexual e afetiva que impele os jovens na direção um do outro é pesadamente regulamentada, controlada e às vezes contrariada por aqueles que detêm o poder na sociedade. O casamento nunca é um “pacto sexual” puro e simples, mas inclui dimensões mais amplas da realidade social, notadamente econômicas e religiosas. Ele é um “fato social total”. E também um componente essencial da integração do indivíduo no grupo.

Os trabalhos de antropólogos da família conduziram a diferentes teorias, as quais não seria inútil mencionar aqui, já que orientam diferentes interpretações das relações de gênero nos contextos familiares. A. R. Radcliffe-Brown e D. Forde (1950) insistiram sobre a reprodução das estruturas familiares respondendo a regras específicas de filiação (ver quadro abaixo). O casamento cria novas unidades elementares que legitimam os filhos ao designar sua filiação e, portanto, lhes “atribuir” a um grupo familiar. Trata-se às vezes de uma filiação social, que é descrita em numerosas sociedades. Odile Journet (1985) cita os joolas do Senegal, entre os quais os filhos pertencem ao esposo da mãe, qualquer que seja o seu genitor.

Sistemas de filiação e relações de gênero

Os sistemas de filiação definem diferentes modos de atribuição da descendência, os quais, por sua vez, contribuem para a definição dos status respectivos de homens e mulheres.

Os sistema patrilineares organizam de modo muito coerente a regra de filiação agnatícia, a residência patrilocal e o princípio da autoridade masculina. É importante ter filhos homens, e há pouca preocupação com a sorte das filhas mulheres, exceto quanto a casá-las fora do grupo e obter em troca esposas para os homens da linhagem. A China, quase todo o mundo árabe e numerosas sociedades africanas praticam linhagens patrilineares.

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Mais raros, os sistemas matrilineares que ainda existem em certas sociedades da África e da Ásia do Sudeste são às vezes considerados mais favoráveis a uma posição elevada das mulheres. Não é sempre assim, pois se a filiação se transmite em linha materna, os filhos herdando do seu tio materno e não do seu pai, as mulheres restam sob a autoridade do irmão, o marido desempenhando apenas um papel secundário na estrutura das famílias. São sempre os homens que permutam mulheres e detêm a autoridade.

Os sistemas bilineares admitem a transmissão dupla, em linha materna e em linha paterna, da filiação.

Com sua análise da proibição do incesto, Claude Levi-Strauss (1958) esclareceu plenamente o papel do casamento como princípio de aliança e de permuta entre grupos. As uniões, independentemente da forma sob a qual sejam favorecidas, não são guiadas apenas pela preocupação de garantir a reprodução demográfica, mas também pelo cuidado de garantir possibilidades de expansão do grupo pela conclusão de alianças com outros grupos, através da permuta de mulheres. No princípio de toda vida social está a proibição do incesto. Ela exprime a passagem do fato natural da consangüinidade ao fato cultural da aliança... “A proibição do incesto é menos uma regra que proíbe casar com a mãe, a irmã ou a filha do que uma regra que obriga a ceder a mãe, a irmã ou a filha a outrem”. Ela é apenas o outro lado da obrigação de permuta. Nas sociedades em que a moralidade é muito elevada, de que hoje são herdeiras as sociedades dos países em desenvolvimento, a reprodução da família, a sobrevivência e se possível a expansão do grupo, da linhagem, são uma preocupação constante. As alianças são também um meio de buscar segurança e mesmo a prosperidade do grupo. Elas fazem parte de estratégias familiares que excedem em muito o acordo entre indivíduos.

Numa abordagem diferente, qualificada de neomarxista, Claude Meillassoux (1982) insistiu no papel do casamento na reprodução das estruturas de exploração e das relações de poder entre homens e mulheres, assim como entre caçulas e primogênitos. Na maioria das sociedades dos países em desenvolvimento, o controle da força de trabalho e de sua reprodução é uma questão primordial. As modalidades de acesso ao casamento participam deste controle. A regra patriarcal mantém o domínio dos velhos sobre os jovens e dos homens sobre as mulheres. Os que se casam, passo decisivo para a vida adulta, se vêem, em muitos aspectos, sob a dependência dos mais idosos da família.

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Isto é particularmente verdadeiro para as mulheres jovens, que têm de se submeter duplamente à regra patriarcal, e um pouco menos para os rapazes, que, se de fato adquirem “poder” sobre sua jovem esposa, devem eles próprios se submeter aos anciãos da família. Mas os homens aumentarão seu poder dentro da família ao longo das suas vidas, ao passo que as mulheres, com raras exceções, permanecerão caçulas sociais.

O patriarcado, um sistema social que institui a dominação masculina. O exemplo do Bangladesh.

O patriarcado é um sistema que institui a dominação dos homens sobre as mulheres em todos os níveis da organização social: controle de recursos, organização familiar, sistema político, religião, etc.

Ele apresenta uma forma particularmente acabada no Bangladesh (Caïn et al., 1979):

• As práticas matrimoniais (particularmente a exogamia de linhagem e de aldeia) e as regras de residência patrilocais limitam os laços que a mulher mantém com sua família e o apoio que ela pode esperar. No mais das vezes, ela não terá condições de fazer valer seus direitos à herança e, não sendo praticado o dote, ela não dispõe de nenhuma base financeira da sua família. Unindo-se com um homem muito mais idoso, conseqüência de um casamento arranjado, ela começa a sua vida conjugal em situação de subordinação e de dependência. • Do ponto de vista político, todas as instâncias estão nas mãos dos homens, e as mulheres têm pouca chance de verem seus direitos reconhecidos se não forem representadas e defendidas por um homem.

• Do ponto de vista religioso, o patriarcado é legitimado pelo Islã, que afirma que a mulher é serva do homem e que os domínios de atividade devem ser separados. A inferioridade e a dependência da mulher são confirmadas pelas regras de herança (a parte dos filhos homens sendo duas vezes maior do que a parte das filhas mulheres) e pelo costume do purdah (reclusão das mulheres). • Do ponto de vista econômico, a mulheres estão em posição de dependência e de grande vulnerabilidade. Dispondo apenas de uma liberdade muito limitada de deslocamento e de pouco acesso aos recursos, elas esbarram, ainda por cima, num mercado de trabalho muito desfavorável (oferta e tipo de atividade, remuneração, etc). Assim, as mulheres estão expostas ao risco de uma brutal degradação econômica se os homens (esposo, família do esposo, filho, etc.) não garantirem ou não poderem mais garantir o seu sustento.

Enfim, de natureza um pouco diferente, a teoria da “modernização”, notadamente depois dos trabalhos de Talcott Parsons (1969), inspirou um grande número de trabalhos sobre as famílias nos países em desenvolvimento e supõe,

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sobre estas sociedades, que vão convergir para um modelo nuclear de família, marcado por relações mais igualitárias entre homens e mulheres, sob o efeito de mudanças socioeconômicas e culturais. A evolução do status das mulheres faz parte dos critérios de “modernização” estudados. Um conhecimento mais aprofundado das estruturas familiares das sociedades “não ocidentais” mostra que a convergência para um modelo nuclear é simplificadora, e que, se a melhoria do status jurídico das mulheres é desejável em toda parte, realizar-se-á sem dúvida sob formas familiares diversificadas, que ainda restam a analisar.

2. Normas e poderes de decisão: Os indivíduos, as famílias, os Estados.

O acesso ao casamento, as regras de aliança, as modalidades de presentes e contrapresentes que as acompanham, os ritos e cerimônias que oficializam as uniões ocupam um lugar central em todas as sociedades. A educação dos jovens para os papéis que deverão desempenhar dentro do grupo segundo a idade, grupo de pertença e sexo são, assim, objeto de condicionamentos desde a infância, pela gestualidade e a repartição das tarefas cotidianas, bem como pelos preceitos religiosos e as narrativas míticas transmitidas. Nas sociedades fortemente patriarcais que ainda existem em numerosos países da África ou da Ásia, o consentimento pessoal dos indivíduos para sua união nem sempre é necessário. Sua educação os condiciona a aceitar este estado de coisas. Nas sociedades endogâmicas em que privilegia-se o casamento preferencial com uma prima, o cônjuge pode ser precisamente designado desde a infância. Isto quer dizer que particularmente as mulheres se vêem casadas sem direito a opinião, e segundo critérios que freqüentemente deixam pouco espaço para garantias de desenvolvimento e de satisfação pessoais.

Seja em sociedades exogâmicas ou endogâmicas, é evidente que os casamentos prescritos são fonte de relações de gênero mais diretamente “deterministas” do que os casamentos que deixam espaço à livre escolha dos indivíduos. São sobretudo as moças, casadas muito jovens, que devem se submeter às escolhas matrimoniais feitas por sua família. Os rapazes têm em geral uma margem maior de negociação para discutir as escolhas que lhes são propostas, embora, nas sociedades em que os anciãos detêm o poder, eles também terão suas escolhas ditadas. As relações que então se instauram entre esposos são

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fortemente marcadas pelas expectativas da família e do meio social, e a “dominação masculina” (Bourdieu, 1998), valorizada em toda parte, encontrará um terreno tão mais favorável quanto mais o casal não estiver fundado num projeto construído e partilhado pelos dois interessados.

Endogamia, exogamia

Certas sociedades prescrevem casamentos endogâmicos, outras, ao contrário, uma estrita exogamia. Os casamentos preferenciais entre primos ainda são prática corrente na África e nos países Árabes. Se fizermos referência ao atlas etnológico de Murdock (1969), pouco mais de um terço das sociedades estudadas praticam o casamento preferencial entre primos, 34% o proíbem somente entre primos coirmãos e 28% o proíbem estritamente. Na África, mesmo sem haver regras estritas de endogamia ou exogamia, as alianças respondem em geral a um jogo complexo de presentes e contrapresentes, e são os anciãos das linhagens que sabem quais são as famílias suscetíveis de ceder uma de suas filhas, a quem pode-se encaminhar um pedido neste sentido.

E endogamia pode ser de linhagem, étnica, familiar (casamento entre primos cruzados ou paralelos, segundo o caso). Tal é o caso notadamente na África do Norte e no Oriente Médio (Lacoste-Dujardin, 1985). As práticas de endogamia respondem à preocupação de conservar os bens e sobretudo as terras dentro do grupo. Elas não existem nas sociedades me que as mulheres não têm nenhum acesso à herança. Outras sociedades, como as da Índia Setentrional, privilegiam as regras da exogamia estrita.

Exogamia e endogamia acarretam status diferentes para as mulheres na sua família de aliança. Em caso de casamento endogâmico, a mulher permanece em seu grupo, em terreno conhecido, o que é fonte de segurança para ela, mas também de um enquadramento estrito do novo casal, o controle das duas famílias reforçando-se reciprocamente. Em caso de casamento exogâmico, a mulher se vê separada, às vezes muito jovem, da sua família de origem. Com isso, ela pode ganhar em autonomia em relação aos seus parentes, mas também perde em “proteção” em caso de dificuldades e de conflito com a família de aliança e o marido.

As escolhas matrimoniais serão tão mais imperativamente impostas ao rapaz e ainda mais a uma moça quanto mais as suas posições pessoais forem fracas e quanto mais o meio que as impõe (ou “propõe”) for coerente. Quanto mais os jovens são “independentes” (pela escola, pelo trabalho), mais estarão em contato com modelos culturais diversos (pela heterogeneidade cultural do meio de residência, na cidade, por exemplo), mais terão tendência a querer participar nas decisões lhes concernindo, o casamento em primeiro lugar.

A natureza da participação da mulher na conclusão da sua união é um fator importante da definição do seu status tanto em relação ao esposo como à

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família de aliança. Casada num quadro de permutas tradicionais entre duas famílias, ela só disporá de uma débil autonomia na sua vida matrimonial, pois esta é parte integrante de um vasto sistema de permutas. Se quiser romper a união, por exemplo, ela estará contrariando o equilíbrio do sistema, e estratégias de compensação terão de intervir, as quais penalizarão a sua família de origem (Pilon, 1994).

Concluir uma união supõe, em todas as sociedades, a presença de representantes autorizados, iniciadores da união ou testemunhas do compromisso. Em certos casos, tratar-se-á simplesmente de uma permuta entre famílias sob o auspício de anciãos e de testemunhas do povoado (na África Subsaariana mas também na China antiga). Na maioria das sociedades, é uma autoridade religiosa que preside a cerimônia.

Com a estruturação paulatina de Estados modernos, estabeleceram-se legislações para definir as regras que devem presidir o casamento. A autoridade civil é parte interessada na conclusão da união. Exige-se o consentimento de cada um dos esposos. Os casamentos demasiado precoces são proibidos. Ao promulgar tais regras, o Estado protege os indivíduos, e muito particularmente as mulheres jovens, contra atentados aos seus direitos, tendendo em princípio a uma maior igualdade; porém, muito ainda resta a fazer, na maioria dos casos, para que esta igualdade passe realmente aos fatos. Por exemplo, as jovens terão boas razões para recorrer à proteção das leis se quiserem lhes impingir um casamento sob coação, mas na verdade dos fatos, somente as que dispõem de um status favorável (escolarizadas, habitantes de cidades, conscientes dos seus direitos) serão suscetíveis de fazer prevalecer os direitos conferidos pela legislação. Mesmo existente, o direito moderno não é posto em prática em toda parte. Na África, notadamente, exceto nas cidades, é o direito costumeiro que continua a ser mais freqüentemente aplicado, segundo princípios que geralmente remetem a uma organização patriarcal da sociedade (Pitshandenge, 1994).

3. Dote e compensação matrimonial

Na maioria das sociedades da África e da Ásia, as permutas de prestações entre famílias têm uma importância que situa a união bem além de um acordo entre os dois protagonistas, definindo, para cada um, de maneira simbólica ou material, o seu status, tanto nos casais que se constituem como dentro das famílias

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que os acolhem e do grupo social que ratifica a união. Nas sociedades em que pratica-se o dote, a família da jovem terá que acumular o montante necessário para casá-la. No caso oposto, é a família do cônjuge que fornece uma compensação material.

Em certas sociedade, o dote é constituído pela família da jovem casada com fim de contribuir para os encargos do casal, mas também para compensar minimamente o fato de a filha não herdar bens da sua família, os quais serão transmitidos somente aos seus irmãos, para preservar o patrimônio. Em alguns países (Índia Setentrional, por exemplo, ver acima), o dote é muito pesado para as famílias das moças, o que contribui para uma forte preferência das famílias por menino. Esta é uma das causas da negligência com que as meninas são tratadas na Índia... (Das Gupta, 1987). Em certos meios desfavorecidos da Ásia do Sul, o peso dos dotes a serem constituídos ao casar uma menina pode levar até a infanticídios femininos (Murthy, 1996), alimentando a forte preferência por meninos, já que as meninas são um fardo sem contrapartida para as suas famílias, pois inexiste a expectativa de que possam ajudar seus pais ao deixarem a própria família por aquela do marido. É também esta forte preferência, reforçada pela exigência do dote, que conduz, na Índia, à seleção de fetos femininos, para fins de aborto, justamente denunciada pelos movimentos feministas.

Na maior parte dos países do Terceiro Mundo, a regra é a da compensação matrimonial. Na África, espera-se freqüentemente do rapaz prestações em espécie nos campos da família da noiva, e que pague uma compensação matrimonial constituída em parte de presentes em espécie e em parte de uma soma em dinheiro, contribuindo assim, presumivelmente, para a estabilidade conjugal (Isiugo Abanihe, 1994, 1995; Hertrich, 1996, 1997; Nagashima, 1987). Esta prática já foi considerada como uma “compra” de moças, mas esta concepção está errada e é preciso ver, em vez disso, uma compensação para a família que “perde” uma moça, um modo de transmissão de certos direitos sobre a mulher e, acima de tudo, sobre a sua capacidade reprodutiva. Não procede ver nisto sempre uma prática degradante, pois trata-se também de um reconhecimento da “riqueza” constituída pela chegada de uma esposa em determinada família. Mas também é preciso reconhecer que se trata de um constrangimento que pesa sobre a mulher, pois se ela tomar a

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iniciativa de uma separação, sua família pode ser intimada a devolver a compensação matrimonial e, assim, fazer pressão para que volte ao marido que já não conta mais com os seus favores.

Na África contemporânea, inclusive a África das cidades, a compensação matrimonial está longe de ter caído em desuso, apesar das legislações que a questionam (ver abaixo). Ela continua a ser uma prática corrente nos meios os mais evoluídos, permitindo ao esposo mostrar seu poder financeiro e, à esposa, conquistar prestígio com a compensação matrimonial que sua família e ela própria receberam. Pois cada vez mais a futura esposa recebe uma parte da soma paga ao esposo ou à sua família.

No âmbito coletivo, a compensação matrimonial faz parte de um vasto sistema de permutas ainda freqüentemente regulado pelos anciãos, e permitindo o controle do acesso dos homens jovens às mulheres. Quando a prática é importante, representa uma forte coação em vista de adiar a idade do primeiro casamento dos homens, uma das condições demográficas necessárias à prática da poligamia, já que o número de homens é semelhante ao de mulheres a cada geração (Pison, 1982, 1986).

Na China, se o casamento é ocasião de importantes permutas monetárias, é porque o trabalho das mulheres é cada vez mais valorizado. “Existe um verdadeiro mercado de esposas, em que as mulheres, como animais, são avaliadas à luz de critérios objetivos e precisos: aparência física, saúde e nível educacional, por exemplo. Intermediárias especializaram-se em promover a negociação entre as famílias... Assistem-se a verdadeiras negociações diplomáticas em que cada uma das partes procura maximizar a sua vantagem... O que faz o preço da jovem é a sua força de trabalho doméstica e agrícola. Até o casamento, a jovem servia aos seus pais e parentes, doravante irá tomar conta da sua nova família, não apenas do marido e dos filhos que engendrar, mas também de toda a parentela morando sob seu teto... Além disso, se o casamento rural é hoje muito mais do que antes a compra de uma mulher, isto se deve ao fato de o trabalho feminino ter adquirido valor sob o governo comunista.” (Domenach e Chang-Ming, 1987: 132)

4. Cerimônias e ritos em torno do casamento: Uma encenação das relações de gênero

A conclusão de uma união resulta freqüentemente de longos processos de negociação em que as famílias se julgam, avaliam, definindo as bases das suas

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relações futuras. Iniciativas preliminares, visitas renovadas a representantes da família da jovem, discussões sobre a contribuição de um para a nova célula conjugal, eis as tantas etapas que também definirão em parte o status dos cônjuges um em relação ao outro (Mair, 1974; Radcliffe-Brown e Forde, 1950; van de Walle e Meekers, 1994).

Do mesmo modo, as cerimônias e ritos que sancionam o estabelecimento de um acordo serão expressão de relações de gênero. Por exemplo, nem sempre os esposos estão presentes nas cerimônias que lhes dizem respeito. Assim, no casamento muçulmano concluído perante o imame, apenas o rapaz está presente. Na África do Norte, as festas dadas a convidados na ocasião do casamento transcorrem separadamente para as mulheres e para os homens, e a jovem casada permanece enclausurada numa peça durante o desenrolar dos festejos (Lacoste-Dujardin, 1995).

As cerimônias que preparam e depois sancionam os casamentos implicam geralmente autoridades religiosas ou civis (chefe do povoado, chefe do bairro ou quarteirão...), mas também traduzem a importância da implicação das famílias. Na África do Norte, como na África Subsaariana, as mulheres idosas são freqüentemente mensageiras da família do pretendente. As mães e as tias paternas são muito implicadas nas tradições matrimoniais. Ao envelhecer, as mulheres ganham em autoridade: tanto quanto estão ausentes das decisões concernentes à sua própria união quando são moças, tanto elas investem nas negociações concernentes ao casamento dos seus filhos, sobrinhos e parentes por afinidade do sexo masculino. Os ritos de casamento dizem respeito, em grande parte, à mudança de residência da mulher e ao enfraquecimento e ruptura parcial dos seus laços com sua família.... Os ritos indicam, de todas as maneiras possíveis, que a esposa deixa a sua família a contragosto e que seus parentes a vêem partir com apreensão (No meio berbere, é de bom tom a moça afirmar aos prantos a sua ligação com a família de origem...).

Para uma jovem, o casamento é freqüentemente uma ocasião de ruptura brutal na vida cotidiana. Para ela, bem mais do que para seu parceiro, o casamento vai acarretar uma mudança de direitos e obrigações em relação à família de origem, uma redefinição do seu status social e uma mudança do modo de residência. As canções de casamento (ver quadro abaixo) evocam amiúde a nostalgia da nova esposa.

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Deixar sua família para reunir-se àquela do esposo: Uma apreensão que se reflete na cultura oral

Quando a patrilocalidade e a virilocalidade são de regra, a jovem deixa sues pais e parentes para instalar-se na casa do marido, num meio que freqüentemente ela desconhece, onde será tratada, pelo menos durante um certo tempo, como estranha. A dor e a apreensão da separação, significadas através de diferentes ritos, também são expressas em diferentes parlendas, cantadas no momento da separação ou desde a infância, a fim de preparar as meninas para esta provação. Os meninos, ao contrário, crescem com a segurança de serem os pilares da família.

Canção entoada no momento da separação na Índia (Dube, 1997)*

Oh pai, criastes meu irmão para ser feliz. A mim criastes para derramar lágrimas.

Oh pai, criastes meu irmão para lhe dar a vossa casa, E para mim deixastes uma prisão.

Canção de ninar do Bengala (Dube, 1997) **

O filho de um estranho veio me buscar.

Venham, companheiras de folguedo, venham com nossos brinquedos. Vamos brincar, pois na casa do estranho eu nunca mais vou brincar.

Entre os ritos a que numerosas sociedades estão ligadas (Índia Setentrional, Paquistão, Bangladesh, países do Oriente Médio), figura a prova da virgindade da moça por ocasião do casamento. Esta valorização pode assumir formas paroxísticas. A virgindade de uma jovem casada implica a honra de todos os homens de uma família, e por isto justifica-se a separação entre os mundos feminino e masculino e o casamento das jovens desde a puberdade (Lacoste-Dujardin, 1995). O apego a estes valores tem conseqüências graves para as adolescentes, pois justifica-se assim sua reclusão quase total ou pelo menos a restrição das suas saídas, condicionadas ao porte do véu, a partir da sua puberdade, comprometendo com isto seu acesso à escola e à vida profissional.

Entre os numerosos costumes que acompanham o casamento, nós citaremos dois que são particularmente simbólicos: o período de isolamento e o rapto. * Em inglês no original: O father, you brought up my brother to be happy. / You brought me up to shed tears. / O father, you have brought up your son to give him your house, / And you have left a cage for me. (NT)

** Em inglês no original: A stranger’s son has come to fetch me. / Come, my playmates, come with our toys. / Let us play, for I shall never play in the stranger’s house. (NT)

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Um período de “retiro” e de isolamento, equivalente a um ritual de passagem, é freqüentemente imposto às jovens antes do seu casamento para significar que estão passando de um estado a outro. Quando as cerimônias da puberdade e do casamento têm lugar simultaneamente, como é o caso em diferentes populações da Zâmbia, o período de separação compreende uma série de ritos complicados, levados a cabo por mulheres, aos quais os homens e crianças não iniciados não têm acesso (Mair, 1974, p. 113).

Os rituais de rapto fazem parte de muitas cerimônias de casamento. Eles lembram que as mulheres são “arrancadas” das suas famílias de origem. Mas se o rapto é geralmente experimentado num modo simbólico, pode igualmente constituir, nas sociedades em que as regras de casamento ainda são muito rígidas, uma das modalidades do casamento, representando, para os esposos, uma maneira de fazer ouvir sua vontade, contra aquela das suas famílias. As mulheres “raptadas” sempre consentem, e esta prática corresponde, portanto, a uma união consensual. Marc Pilon (1994) relata, por exemplo, que por volta de 1980 na região de Moba, no norte do Togo, 22% das mulheres em primeira união tinham se casado por “rapto”

Nas sociedades do Terceiro Mundo, em razão das lógicas patriarcais e da predominância da residência virilocal ou patrilocal, o casamento é um momento de ruptura com a família mais traumático para as mulheres do que para os homens. Além disso, freqüentemente elas se vêm comprometidas enquanto ainda não passam de adolescentes. Esta entrada repentina na vida adulta, com as responsabilidades maternas que rapidamente vão lhes caber, as coloca imediatamente em posição de desigualdade em relação aos seus contemporâneos, maridos, irmãos e outros parentes.

2. A entrada em união

1. Idade ao casamento dos homens, idade ao casamento das mulheres

O casamento (oficializado ou não) é o quadro da procriação reconhecido pela totalidade (ou quase...) das sociedades humanas e, em toda parte, a grande maioria dos indivíduos subscreve ao casamento (anexo, Nações Unidas, 1988, 1990). Seu caráter universal é manifesto nos países

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da Ásia e da África, em que o celibato definitivo raramente1 concerne mais

do que 5% dos homens e das mulheres, os que são portadores de alguma deficiência grave ou cujos encargos religiosos afastam da vida conjugal. Menos sistemático nos países da América Latina e no Caribe, o casamento nessas áreas concerne de 8 a 9 indivíduos em 10, senão mais (considerada a subestimação das uniões de fato, notadamente as uniões sem co-residência dos cônjuges).

Componente quase incontornável da passagem à idade adulta para os dois sexos, não obstante a entrada em união não é vivida ao mesmo momento entre os homens e entre as mulheres. Em todos os lugares do mundo, os homens se casam em média mais tarde do que as mulheres (anexo)2. É na

África Subsaariana que os calendários de entrada em união dos homens e das mulheres são tradicionalmente os mais distanciados entre si. Nos anos 1960, na maioria dos casos a idade média ao primeiro casamento das mulheres era da ordem de 18 anos, ao passo que a dos homens raramente situava-se abaixo dos 25 anos, donde os diferenciais de idades médias geralmente superiores a 6 anos, podendo chegar aos 10 anos em certos países da África Ocidental, como o Mali e o Senegal. A entrada em união das moças era igualmente precoce na Ásia do Sul e nos países islamizados da Ásia Ocidental (da ordem de 16 a 18 anos em média na década de 1960), mas com a idade dos homens ao primeiro casamento em torno de 22-23 anos, o diferencial entre sexos das idades ao casamento na região era um pouco menos marcado do que na África. Em contrapartida, a diferença de idade ao casamento é muito menor na Ásia do Sudeste e na América Latina (de 3 a 5 anos): nestes países, as mulheres permanecem solteiras em média até os 20-23 anos, e os homens até os 24 ou 26 anos.

O diferencial de idades entre sexos está estreitamente ligado à idade do casamento da mulher: na Ásia como na África, os países em que as mulheres se casam jovens são também aqueles em que as diferenças entre os sexos são as mais marcadas (gráfico 1a). Esta correlação também existia na América Latina, segundo os dados de 1960-1975, mas não aparece mais nos dias de hoje. Nos três continentes, não aparece relação entre a idade do casamento do homem e o diferencial de idades (gráfico 1b).

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Gráfico 1

Diferencial de idade média ao primeiro casamento dos homens e das mulheres segundo a idade média ao primeiro casamento dos dois sexos numa seleção de

países da África, Ásia e América Latina. 1975-1995. (dados no anexo)

a) Segundo a idade média ao primeiro casamento das mulheres

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Casamento precoce das jovens e a manutenção do diferencial de idades entre os dois cônjuges são duas facetas dos sistemas institucionais que se fundam no poder dos homens e privilegiam a família estendida comparativamente à célula conjugal. Com efeito, o diferencial de idade institui, desde o começo da vida familiar, uma desigualdade estrutural no seio do casal, as esposas sendo duplamente sujeitadas a seus maridos, como mulheres e como caçulas. Esta dependência é ainda mais forte quando a mulher inicia sua vida de esposa junto a um homem já casado, situação que não é excepcional na África Subsaariana. Aliás, diferenciais de idade importantes habitualmente vão de par com diversas outras práticas que concorrem para instaurar uma distância entre os cônjuges, mas também um controle familiar importante. Assim, a diferença entre as entradas em união dos homens e das mulheres é o principal determinante da poligamia: ao mesmo tempo que há tantos homens quanto mulheres numa mesma geração, tal diferença instaura um excedente numérico de esposas comparativamente aos homens casados, permitindo a uma parcela entre eles (geralmente os mais velhos) ter simultaneamente várias esposas. No mais das vezes, a grande diferença de idade à primeira união também se associa à existência de procedimentos matrimoniais complexos, combinando meios materiais e simbólicos importantes, que os interessados não podem assumir pessoalmente, pois também dependem dos responsáveis familiares, que em última análise decidem a escolha dos cônjuges respectivos e assumem, pelo menos em parte, o custo financeiro e social do casamento. O casamento sistemático de viúvas e divorciadas e a predominância de unidades familiares estendidas são outros elementos que bastante freqüentemente convivem com estas práticas.

Neste contexto, são com certeza as moças que sofrem esta tutela mais intensamente: jovens casadas, elas começam a vida adulta sem ter tido tempo de usufruir de um período de maturação pessoal e sem ter podido ou poder se exprimir sobre a escolha dos seus respectivos cônjuges. Os homens têm mais tempo para se desenvolver e aproveitar a juventude, mas dependem de seus primogênitos para terem acesso a esposas e serem reconhecidos como adultos integrais. Portanto, as mulheres não são as únicas a sofrerem a dominação dos detentores do poder, os caçulas masculinos estando igualmente presentes nesta estrutura de dominação (Meillassoux, 1982).

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Desenvolvimentos recentes poderiam traduzir uma evolução dos sistemas de gênero

Mudanças muito definidas, que também deveriam traduzir-se por uma evolução nas relações de gênero, ocorreram no seio dos sistemas de nupcialidade ao longo dos últimos trinta anos, particularmente em relação à idade ao casamento das mulheres e nos países em que esta era baixa (gráfico 2).

Gráfico 2

Evolução da idade média ao primeiro casamento das mulheres (método de Hajnal) numa seleção de países da Ásia, América Latina e África.

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Na África como na Ásia, o recuo da entrada em união das mulheres é generalizado. Ele é espetacular na África do Norte, como no Marrocos, onde a idade média ao primeiro casamento passou de 17 anos em 1960 para 26 anos em 1995, ou seja, uma alta de mais de dois anos por decênio! A duração média do celibato feminino ultrapassa doravante os 19 anos na maioria dos países da África, e os 20 na Ásia. Na América Latina, onde ela já era elevada, a idade ao primeiro casamento permanece relativamente estável. Assim, as populações dos diferentes continentes convergem ao reconhecimento, para as mulheres, de uma duração apreciável da vida pré-conjugal.

Ao mesmo tempo, produziu-se uma evolução favorável na direção de uma situação mais igualitária entre os sexos: o diferencial de idades ao casamento entre homens e mulheres se estreitou (anexo). Com efeito, a idade ao primeiro casamento dos homens diminuiu (notadamente na América Latina), e nos países onde ela aumentou (na Ásia e na África), sua evolução foi muito mais lenta do que para as mulheres. Nos anos 1990, os diferenciais de idade médias são de ordem de 2 ou 3 anos na América Latina, de 3 a 5 anos na Ásia e de 4 a 8 anos na África.

2. A escolarização de meninas e jovens mulheres, alavanca essencial para a mudança nas relações entre homens e mulheres

Todas as análises estatísticas convergem para fazer da instrução feminina o principal fator da idade ao casamento da mulheres (gráfico 3). Segundo os trabalhos comparativos muito minuciosos desenvolvidos por Lesthaeghe et al.

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(1989) sobre 170 grupos étnicos da África Subsaariana, a escolarização das moças é a variável que mais pesa nas diferenças de idade ao casamento entre as populações, muito mais do que qualquer outra variável socioeconômica ou cultural (modo de produção, organização da linhagem, sistema de herança, estratificação sociopolítica). O mesmo acontece no interior de alguns países, a idade ao casamento aumenta com o nível de instrução das mulheres. Por exemplo, no Quênia, segundo a pesquisa DHS de 1993 [Programa Mundial de Pesquisas sobre Demografia e Saúde], desde os 17 anos metade da moças não escolarizadas são casadas, ao passo que é preciso chegar os 21,5 anos para que metade das mulheres que tenham alcançado o nível secundário sejam concernidas. Consideremos um país em que a entrada em união é precoce, como a Índia, ou em vez disso tardia, como o Brasil, o diferencial é considerável entre as mulheres não escolarizadas e aquelas que tenham alcançado um nível educacional elevado: da ordem de 4 anos no Brasil e de 6 anos na Índia, entre as idades médias (gráfico 4).

Gráfico 3

Idade média ao primeiro casamento e número médio de anos de escolaridade das mulheres

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No mais das vezes, o efeito da escolarização sobre a idade ao casamento não é direto: a maioria das moças deixa a escola antes de chegar à idade do casamento. A instrução influencia a prática matrimonial das mulheres, dando-lhes mais meios para desenvolver um projeto pessoal e para defendê-lo. As mulheres intervêm mais na escolha do cônjuge, exprimindo mais firmemente sua oposição face um casamento arranjado e fazendo valer sua escolha pessoal.

Gráfico 4

Nível de escolaridade, idade média ao primeiro casamento e idade média às primeiras relações sexuais das mulheres. Brasil (DHS, 1996), Quênia (DHS, 1993),

Indonésia (DHS, 1991) e Índia (DHS, 1992-3).

Fontes: Relatórios nacionais de DHS.

A escolaridade também facilita o emprego fora da família e, assim, o acesso a uma fonte de renda pessoal, o que permite adiar o começo da vida conjugal. As mulheres adquirem deste modo uma identidade e um reconhecimento sociais fora da maternidade e da conjugalidade, e esta valorização pessoal as permite entrar em relação com os homens num modo mais igualitário, seja na sexualidade, no campo de negociar o momento do casamento ou, mais tarde, de defender suas opiniões perante o marido ou de participar nas decisões

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dentro de casa (Samuel, 1997). Observemos que o desenvolvimento da escolaridade das moças, além do enriquecimento pessoal daquelas que dele se beneficiam, é em si mesmo revelador de uma melhoria do status das mulheres no seio das famílias e da sociedade: no âmbito de uma família, criar os meios de enviar uma moça à escola já significa reconhecer-lhe direitos e um modo de expressão autônomo, fora do quadro familiar. No âmbito coletivo, abrir espaço para moças nas escolas representa um primeiro passo na direção do reconhecimento do seu direito ao desenvolvimento das suas qualidades.

Existe portanto uma relação recíproca entre idade ao casamento e status das mulheres: um status mais favorável acarreta uma idade mais elevada ao casamento, sendo uma garantia de relações menos desiguais entre os esposos.

O progresso da escolarização e o aumento da idade ao casamento das mulheres também favoreceriam um questionamento das regras tradicionais de constituição conjugal. Com efeito, quando as características das mulheres se aproximam daquela dos homens, torna-se cada vez mais difícil formar casais segundo o modelo desigual habitual, em que a mulher fica numa posição inferior (do ponto de vista escolar, de idade, do emprego, etc.) em relação ao marido. A probabilidade de permanecer solteiro ou solteira depende de fatores culturais: pressão social em favor do casamento, valorizações respectivas do estado de solteiro ou casado, exigências financeiras concernentes aos futuros casados, mas também fatores demográficos que determinam os efetivos masculinos e femininos em presença. No plano individual, as pressões do mercado matrimonial tornam-se cada vez mais fortes à medida em que a idade da mulher aumenta, podendo chegar a verdadeiros impasses. Assim, vêem-se mulheres por volta dos trinta anos de idade, muito educadas, resignarem-se a casar com um polígamo, na falta de encontrar um parceiro solteiro possuidor de qualificações ao menos comparáveis com as suas (Antoine e Nanitelamio, 1995; Wa Karanja, 1994). Na África do Norte e na Ásia Oriental e do Sudeste, onde a escolarização secundária das moças conheceu um importante impulso, as esperas conjugais das mulheres (que desejam um cônjuge bem aquinhoado pela sorte e mais instruído do que elas) e dos homens (que não reclamam de se casarem com mulheres menos educadas) entram em conflito ainda mais intensamente com as pressões do mercado matrimonial, e é provável que um nível não negligenciável de celibato definitivo esteja se instaurando nestes países

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(Jones, 1997; Leete, 1994). Em Bangkok, 43% das mulheres de 30-34 anos com educação superior e 36% das mulheres de nível secundário continuavam solteiras; sendo estes indicadores de respectivamente de 37 e 28% para os homens jovens.

O avanço da escolarização coloca assim rudemente em questão as antigas lógicas matrimoniais e as relações de gênero por elas valorizadas. Por outro lado, o fato de que uma parte crescente da população escape do casamento por durações cada vez mais longas não poderia deixar de inquietar os meios tradicionais. E foi assim que na Malásia, em 1991, uma autoridade muçulmana exortava as mulheres a autorizarem seus maridos a tomarem novas esposas, afim de enfrentar o problema e evitar o desenvolvimento da sexualidade extra-conjugal, ao mesmo tempo que desenvolviam-se escritórios de encontro sob diversos auspícios religiosos (Jones, 1997). Em Singapura, em 1984, criou-se um novo serviço ministerial, cuja primeira missão era organizar locais de encontro (chás dançantes, excursões, reuniões festivas, etc.) para solteiros instruídos, com a idéia de compensar, através de ações públicas, o fracasso dos pais na organização do casamento dos seus próprios filhos (Jones, 1997).

3. Vida pré-conjugal e sexualidade

Através do casamento, as sociedades gerem a reprodução dos seus membros, decidindo a atribuição da sua descendência e assinalando o quadro reconhecido da sua sexualidade. Entre a puberdade e o casamento, existe todavia uma parcela da vida fecunda das mulheres que escapa a este enquadramento. Relativamente curta quando a regra é o casamento precoce, sempre mais curta (em média) que a dos homens, esta vida pré-conjugal tende contudo a estender-se com o recuo da idade ao casamento da mulheres. As questões da estender-sexualidade pré-conjugal e da fecundidade ganham assim uma importância acrescida. Segundo as sociedades, as respostas são muito variadas, indo da proibição absoluta à valorização. Mas de maneira geral, a atitude é muito mais tolerante, senão relaxada em relação à sexualidade masculina do que em relação à vida pré-conjugal das mulheres.

Na Ásia e nos países árabes, a sexualidade pré-conjugal é claramente reprimida. Castidade e virgindade são valores de primeira importância, que colocam em jogo não apenas a honra da moça, mas também da sua família.

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Para preservá-la, são numerosas as coerções sobre a liberdade de movimento das moças: na Ásia do Sul, a moças se fazem escoltar em seus deslocamentos, devem manter os olhos abaixados e dar mostras de grande reserva e discrição (Dube, 1997). As medidas de represália exercem por sua vez um poder de dissuasão que não deve ser subestimado. No mundo árabe, os homens ainda recorrem, com a absolvição benevolente da lei, ao crime de honra para limpar as relações sexuais pré-conjugais de suas filhas ou de suas irmãs (Fargues, 1986). Na Índia Setentrional e no Bangladesh, nada há de extraordinário no fato de que moças suspeitas de terem tido relações sexuais com homens de outra casta ou de outra religião sejam espancadas, senão mortas, por seus irmãos. Os nascimentos pré-conjugais são completamente rejeitados e os filhos são enviados para orfanatos. A sexualidade fora do casamento, mesmo que tenha sido imposta, estigmatiza as mulheres que a vivenciaram: as moças violadas têm dificuldade para se fazerem aceitar, inclusive por sua família, e a prostituição é freqüentemente a única saída. (Dube, 1997; Adnan, 1993). As populações da Ásia do Sudeste valorizam igualmente a castidade e a virgindade das moças, mas manifestam todavia uma certa tolerância em caso de sexualidade ou de gravidez pré-conjugais. As diferentes formas de casamento precoce, como os casamentos de crianças ou as entradas em união imediatamente consecutivas à puberdade, são soluções adotadas por numerosas sociedades árabes e asiáticas em vista de reduzir ao mínimo, senão eliminar, o risco de “manchas” associado à sexualidade pré-conjugal, e de garantir a realização da descendência das mulheres no seio do grupo social, com o cônjuge que lhe for designado. Com o recuo da idade do casamento das mulheres e o desenvolvimento da escolarização, é provável que seja mais difícil exercer os controles sobre a vida pré-conjugal das mulheres. A sexualidade pré-conjugal3 resta, contudo, pouco

freqüente, se acreditarmos nas informações coletadas na Indonésia e nas Filipinas, onde respectivamente 4 e 8% das mulheres casadas declararam ter tido relações sexuais antes do seu primeiro casamento (quadro 1). Sinal, sem dúvida, da inaceitabilidade de uma tal hipótese, não são feitas perguntas sobre as primeiras relações sexuais nas demais pesquisas demográficas e de saúde realizadas na Ásia e nos países árabes.

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Quadro 1

Sexualidade e fecundidade pré-conjugal. Pesquisas DHS 1990-1994

(a) Os dados fornecidos só dizem respeito a mulheres casadasnd : a informação não está disponível Fonte: Kishor e Neitzel, 1996.

A maioria das populações da África e da América Latina é bem menos severas a respeito da sexualidade e da fecundidade pré-conjugais. Algumas sociedades africanas consideram favoravelmente as gravidezes pré-conjugais: elas são uma confirmação da fertilidade da mulher jovem. Contudo, tanto quanto possível o filho que vai nascer tem de ser reconhecido por uma linhagem, para ter seu lugar na sociedade e beneficiar-se dos direitos e deveres a ele associados. Por isto, o casamento apressado de moças grávidas é amiúde incentivado, mas não é preciso que se conclua com o genitor da criança; a paternidade biológica geralmente conta pouco em comparação com a paternidade social. São mais numerosas as sociedades que reprovam a procriação pré-conjugal mas toleram relações amorosas antes do casamento (Tabet, 1985; Mair, 1974). Elas reconhecem

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um tempo de “juventude”, um período de experimentação e de jogo em que exprimem-se trocas afetivas, relações igualitárias e livremente escolhidas entre os jovens dos dois sexos. O casamento marca então o começo de uma nova idade da vida, cujos atributos são opostos em todos os pontos àqueles da vida pré-conjugal: o casamento se conclui com um parceiro único, escolhido pela autoridade familiar, e instaura uma relação de submissão da esposa ao seu marido. A partir do casamento, a sexualidade da mulher se inscreve no quadro conjugal e de objetivo reprodutivo. Ao contrário, a procriação é geralmente proibida durante o período juvenil: a penetração é freqüentemente excluída das trocas sexuais e a gravidez fora do casamento é anulada, seja através do aborto ou do infanticídio, seja através da legitimação do nascimento pelo casamento apressado da mãe (o filho competindo ao marido e não ao amante). A ruptura que o casamento institui na vida afetiva e sexual concerne principalmente a mulher, a liberdade juvenil dos homens prolongando-se freqüentemente após o casamento e o nascimento do primeiro filho (Tabet, 1985).

Hoje em dia, a sexualidade e a fecundidade pré-conjugais dizem respeito a uma grande parte das mulheres da África Subsaariana e da América Latina. Na maioria dos países cobertos pelo programa DHS, de 20 a 60% das mulheres casadas declaram ter tido relações sexuais antes do seu primeiro casamento. As proporções mais baixas (inferiores a 10%) são registradas nos países islamizados do Sahel, ao passo que as mais elevadas (superiores a 50%) são observadas na África Austral e na África Oriental (quadro 1). Deve-se relacionar este fenômeno à elevação da idade do primeiro casamento e a um certo relaxamento dos controles sociais exercidos sobre a sexualidade feminina. Ficando mais tempo solteiras, as mulheres têm uma probabilidade maior de começar sua vida sexual antes de se casarem. Em contrapartida, elas não começam necessariamente a sua vida sexual mais cedo. Na África, observa-se, ao contrário, um recuo da idade às primeiras relações sexuais (Meekers, 1993). Em realidade, os fatores do adiamento do casamento também atuam em favor de um adiamento das primeiras relações sexuais: a escolarização e a entrada na vida profissional permitem certamente às mulheres contornar as interdições, mas também de melhor negociar, mais tardiamente, suas relações com os homens, inclusive em matéria de sexualidade. A idade das primeiras relações se verifica assim tão mais elevada quanto mais importante seja a escolarização da mulher. (gráfico 4)

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Para que a importância adquirida pela sexualidade pré-conjugal pudesse ser realmente considerada como um fator de emancipação feminina, seria preciso que as mulheres dispusessem dos meios para geri-la pelo menos sem serem confrontadas a gravidezes não desejadas. Contudo, o acesso à contracepção livre ainda não foi conquistado em numerosos países. Com muita freqüência, os serviços de planificação familiar exigem autorização dos pais antes de ceder a contracepção a menores (van de Walle e Foster, 1990). Na África Subsaariana, o pessoal dos centros de planejamento familiar nem sempre tem formação para atender adolescentes, dar ouvidos e respeitar suas demandas (Locoh, 1994a; Adeokun, 1994). O custo social associado à iniciativa da consulta e a apreensão quanto ao julgamento dos adultos são tais que afastam numerosas adolescentes dos serviços oficiais de planejamento familiar. O recurso à venda selvagem de contraceptivos nos mercados ou ao aborto, geralmente clandestino (Bledsoe e Cohen, 1993), são alternativas que as adolescentes escolhem preferencialmente, mas que as expõe a riscos sanitários adicionais. Em Abidjan, entre as mulheres de 15 a 24 anos pesquisadas por ocasião de uma consulta pré-natal, 37% reconheceram ter provocado pelo menos um aborto (Desgrées du Loû et al., 1998). Concernente a um país em que o aborto é ilegal, esta estimativa diz muito sobre as exigências das adolescentes em matéria de controle da fecundidade e sobre a inadequação dos serviços de planificação familiar às suas demandas. A importância adquirida pelos nascimentos pré-conjugais em alguns países é outra ilustração das dificuldades que afligem as gerações jovens no controle da sua própria sexualidade (quadro 1). No Quênia e na Namíbia, hoje, um quarto das mulheres jovens começam as suas vidas de mães fora do casamento; na Bolívia e no Paraguai, é de 10% a proporção das que se encontram neste caso. Se é verdade que a gravidez pré-conjugal decorre às vezes de uma escolha, quiçá de uma estratégia da moça para forçar seus pais e parentes a reconhecer seu parceiro (Meekers, 1993), resta que bem freqüentemente ela é sofrida ou imposta, e confronta as jovens a dificuldades suplementares na construção da sua vida adulta. Os custos da gravidez pré-conjugal são sobretudo de natureza social: a gravidez provoca a exclusão escolar na maioria dos países africanos e, assim, freqüentemente assinala o fracasso do projeto profissional da moça (Bledsoe e Cohen, 1993); ela também é causa de reprovação familiar e social e pode obrigar a revisar as ambições matrimoniais. A fecundidade

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precoce também expõe as mulheres jovens a riscos sanitários aumentados, de maneira direta por causa das complicações médicas oriundas da gravidez e do parto ligados à imaturidade fisiológica, e de maneira indireta, pois essas mulheres lançam freqüentemente mão do aborto clandestino, freqüentemente realizado por pessoas não qualificadas e em más condições de higiene (Bledsoe e Cohen, 1993; Delaunay, 1994; Gyepi-Garbrah, 1988). A integração de um número crescente de filhos de mães solteiras representa certamente um desafio para as sociedades fundadas na patrilinearidade. As disposições institucionais para a inserção de crianças sem pai (em particular por sua afiliação à linhagem de sua mãe) poderiam alcançar rapidamente o seu limite ao aplicar-se à grande escala, e seria o conjunto de uma ordem social que privilegia a transmissão de direitos, bens e poderes pelos homens que estaria correndo o risco de se ver abalada. As mulheres jovens suportam, bem mais do que os homens, os custos e as conseqüências da sexualidade e da fecundidade pré-conjugal. A exclusão escolar, a reprovação social, a gestão da gravidez (ou do aborto), o sustento do filho e as obrigações matrimoniais dizem geralmente respeito a elas, e mais raramente aos seus parceiros. A liberdade sexual é mais geralmente considerada como um direito dos rapazes, pois não implica responsabilidades nem sanções em caso de gravidez. Face à sexualidade e às responsabilidades parentais, os homens e as mulheres estão em posições diferentes. Contudo, a ameaça da AIDS é um fator que leva os homens a envolverem-se mais na gestão da sua sexualidade, o que pode contribuir para uma melhor partilha dos riscos e dos custos associados.

3. A vida em união

A vida familiar apresenta contornos muito diferentes segundo a apreendemos do ponto de vista masculino ou feminino: os arranjos residenciais, a organização doméstica, o regime matrimonial designam lugares e tarefas claramente diferenciados aos homens e às mulheres. A discriminação na alocação de recursos e o controle das rendas, as violências institucionalizadas contra as mulheres são expressões particularmente reveladoras das desigualdades estruturais que marcam a vida cotidiana da maioria dos casais.

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1. Os espaços dos homens, os espaços das mulheres

A diferenciação das atividades e dos espaços de vida dos homens e das mulheres é talvez o componente mais visível de um sistema de gênero, sem dúvida também um dos mais eficazes para controlar e reproduzir as desigualdades entre os sexos. Em todas as sociedades, a manutenção dos filhos, a manutenção da casa e a preparação das refeições são, antes, competência das mulheres. O universo doméstico e privado é reconhecido como o espaço feminino por excelência, ao passo que os espaços públicos pertencem mais ao domínio dos homens. Entretanto, estes princípios quase universais são postos em prática segundo modalidades e com rigidez variáveis em função de cada sociedade, deixando às mulheres um espaço de expressão mais ou menos importante fora da esfera doméstica... e em geral justificando a ausência de contribuição dos homens nas tarefas domésticas.

A segregação entre os sexos e a retenção das mulheres no espaço doméstico encontra certamente a sua expressão mais acabada no parda (ou purdah) tal como existe na Ásia do Sul (Adnan, 1993; Dube, 1997; Caïn et al., 1979). Diversas práticas destinadas a limitar o contato das mulheres com homens que não pertençam à sua parentela ou círculo próximo ligam-se a esta noção: restrições importantes aos deslocamentos das mulheres fora de casa (tolerados somente em certas ocasiões e em certos horários), exigência de escolta e de cobertura indumentária completa, ocultando o corpo e o rosto em caso de saída, codificação dos espaços interiores, codificação da linguagem segundo o status do interlocutor, etc. Confinadas no espaço doméstico, as mulheres só têm um acesso muito limitado ao mercado de trabalho e aos locais de informação e de expressão (mercado, reuniões, eleições, etc.). Dentro de um tal sistema, a identidade e a personalidade da mulher são negadas, ela é invisível e silenciosa; ao se deslocar, a manutenção de uma distância física e a cobertura indumentária a tornam anônima, indiferenciada. Sem desaparecerem, esses constrangimentos tendem a se flexibilizarem. As precauções indumentárias se sobrepõem à reclusão, nos meios educados. Por outro lado, as regras são desigualmente respeitadas.Paradoxalmente, é nos meios mais afluentes que elas são mais estritas. Ao contrário, nas famílias modestas, a pressão econômica obriga a aceitar mais facilmente a entrada das mulheres na vida ativa. O purdah encontra uma fonte de legitimação no Alcorão,

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que considera a mulher como um ser vulnerável e dependente, mas potencialmente perigoso, necessitado de proteção e tutela permanente da parte dos homens (sucessivamente seus pais ou irmãos, seus esposos e seus filhos). Encontram-se os princípios do isolamento da mulher e da segregação entre os sexos na arquitetura e na organização da vida das mulheres árabes da África do Norte e do Oriente Próximo (Fargues, 1986). Evitar-se-á, contudo, associá-los de maneira estrita e unívoca ao Islã. Em vez disto, vê-se que decorrem de um sistema social, o patriarcado, que institui a dominação das mulheres em todos os níveis de sua organização, da qual o Islã é um dos componentes. Assim, as populações patriarcais hindus respeitam igualmente o purdah, ao passo que as populações islamizadas da Indonésia e da Malásia, de sistema de parentesco bilateral ou matriarcal, o rejeitam. (Dube, 1997).

Na África e na América Latina, esta submissão residencial e indumentária das mulheres não existe. Com certeza, a utilização do espaço revela uma ocupação diferencial dos locais pelos dois sexos: o espaço doméstico é mais investido pelas mulheres do que pelos homens, os pontos de encontro dos dois sexos são diferentes (no meio rural africano, por exemplo, em volta do poço, para as mulheres, e nas pequenas praças, para os homens) e a mixidade está longe de ser a regra nas reuniões e nos locais de decisão. Entretanto, não se pode dizer que são os homens que detêm o controle dos deslocamentos das mulheres. As mulheres dispõem de uma liberdade de movimento que se traduz também por uma implicação muito mais importante sobre o mercado do emprego. Segundo os indicadores calculados nas pesquisas DHS realizadas em 1990-1994 em 25 países, ao menos 40% das mulheres desempenham uma atividade profissional (formal ou informal, assalariada ou não) na maioria dos países da África Subsaariana e da América Latina, contra menos de 25% na maior parte dos países muçulmanos da Ásia do Sul e da África do Norte (Kishor e Neitzel, 1996). O acesso ao emprego e a liberdade de deslocamento são indicadores particularmente reveladores da condição das mulheres. Com efeito, como lembram Sunita Kishor e Katharine Neitzel (1996), também condicionam o acesso a recursos financeiros e a fontes de informação diversificadas, bem como os intercâmbios com o mundo exterior e a capacidade de intervir no universo conjugal e familiar, todas coisas que contribuem para a melhoria do status e do poder de ação da mulher.

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2. Violência doméstica contra mulheres, um flagelo sempre presente

Não é raro que o desejo de “controle” exercido sobre as mulheres e a norma segundo a qual os homens devem dominar as mulheres conduzam a abusos e violências.4 A reclusão das mulheres é uma das suas formas em algumas sociedades

de que já falamos. A excisão é outra forma de violência que, socialmente legitimada, não é interpretada como tal por aqueles e aquelas que a infligem às meninas. Mais generalizadas e banalizadas são as violências físicas infligidas às mulheres no cotidiano das suas vidas conjugais. Evidentemente, é bem difícil ter um conhecimento quantificado desses comportamentos, pois são ocultados não apenas por seus autores, mas freqüentemente também por aquelas que deles são vítimas, e isto devido a um conjunto de razões: em muitas sociedades, as mulheres são demasiado condicionadas à submissão para acharem “anormal” o fato de serem espancadas; elas também se sentem ameaçadas e têm medo ou vergonha de denunciar um pai ou um marido. Apenas um pequeno número de violências será finalmente relatado a uma autoridade externa (polícia, juiz). Por causa disto, a pesquisa se vê reduzida a coletar dados pontuais ilustrativos da freqüência das violências, sobretudo entre esposos, mas que constituem uma amostragem estatística irrefutável (Bunch, 1991). Em 1972, o UNIFEM [Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher] publicou um balanço, resumindo os dados estatísticos sobre violências contra esposas no mundo. Descobre-se neste documento que bater na mulher é um comportamento habitual em Bangladesh, Barbados, Chile, Costa Rica, Guatemala, Índia, Quênia e Sri Lanka. Sabe-se muito pouco sobre os casos de estupro no interior das famílias (entre esposos, entre pais e filhos) e apenas há poucos anos este tema começou a ser abordado de frente por alguns grupos ativistas, essencialmente nos países desenvolvidos. Nos países em desenvolvimento, os estudos são raros demais para dar uma idéia mínima da amplitude do fenômeno. As situações de flagelo, campos de refugiados ou de deslocados constituídos ao longo de guerras, são particularmente geradoras de tais riscos para mulheres e crianças (Ouattara et al., 1998).

Os estudos sobre a violência familiar mostram claramente que não é possível explicá-la somente pelas características individuais dos protagonistas, pois trata-se, em vez disso, de comportamentos que refletem os sistemas socialmente valorizados que estruturam as desigualdades entre os sexos. Uma

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recomendação da CEDAW [Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher] lembra que:

“As atitudes tradicionais pelas quais as mulheres são vistas como subordinadas aos homens ou como tendo papéis estereotipados perpetuam práticas disseminadas que implicam violência ou coerção, tais como a violência e o abuso familiares, o casamento forçado... Esses preconceitos e práticas podem justificar a violência com base de gênero como uma forma de proteção

ou controle das mulheres.” 5 * (citado em Heizer, 1998)

É nestes valores, tradições e hábitos que é preciso procurar a origem da violência doméstica. É na modificação destas normas que é preciso buscar a resposta adequada aos comportamentos violentos, ainda demasiadamente encorajados ou pelo menos tolerados em numerosas sociedades.

3. Estruturas familiares e dinâmica dos papéis femininos

A configuração e a organização domésticas das unidades familiares também são indicadores do lugar desigual dado a homens e mulheres na sociedade. A família estendida, reunindo numerosos membros e várias gerações, sob a autoridade do homem mais velho, continua a ser um modelo grandemente valorizado entre numerosas populações em desenvolvimento. Nas sociedades de agricultores apoiadas num modo de produção familiar, esta é a estrutura que garante a segurança dos seus membros, o número permitindo fazer frente às eventualidades climáticas e sustentar os inativos. É também a estrutura que melhor se adapta à instauração e reprodução de desigualdades ligadas ao sexo e à idade. Inversamente, quando a família reúne apenas um pequeno grupo de indivíduos, o respeito a uma divisão estrita e exclusiva de tarefas e responsabilidades segundo o status fica mais difícil de observar e a polivalência se torna às vezes uma necessidade, provando, por isto mesmo, o caráter arbitrário das regras que governam as relações de gênero e das ideologias que as legitimam.

Na maioria das populações, as casas agrupando vários núcleos familiares não são majoritárias. Porém, é grande o número de indivíduos que são obrigados a passar por esta estrutura em um momento ou outro da sua existência. Nas * Em inglês no original: “Traditional attitudes by which women are regarded as subordinate to men or as having stereotyped roles perpetuate widespread practices involving violence or coercion, such as family violence and abuse, forced marriage… Such prejudices and practices may justify gender-based violence as a form of protection or control of women.” (NT)

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sociedades em que o casamento não dá acesso imediatamente a uma moradia independente, à formação de uma família nuclear, este tipo de configuração familiar é vivenciado pelos indivíduos quando eles começam a sua vida conjugal e quando, mais idosos, casam seus próprios filhos. Porém, a experiência vivida é completamente diferente segundo a situação do indivíduo, se numa ponta ou noutra das idades da vida. No começo da vida conjugal, a inserção numa unidade familiar ampliada implica freqüentemente uma posição de subordinação à autoridade dos mais velhos, particularmente para as mulheres, e obstáculos à aproximação dos jovens esposos. Em numerosas populações da Ásia e da África, a jovem esposa é considerada estrangeira por sua nova família, do esposo, devendo fazer-se apreciar por um trabalho e um comportamento exemplares, mas cuja pertença nunca será completamente reconhecida (Caïn et al., 1979; Fargues, 1986; Mair, 1974; Dube, 1997). Sua posição melhora com o nascimento de filhos (em meio muçulmano, particularmente o nascimento do primeiro filho) e a passagem à família nuclear, que lhe traz uma certa autonomia.

Posteriormente, o casamento do filho mais velho conduz a uma fase de extensão da unidade familiar, mas dessa vez a mulher estará numa posição beneficiária: ela passa a dispor de uma nora sob sua autoridade, com quem pode se desincumbir da maior parte das tarefas domésticas. Na África, por outro lado, é bastante freqüente que o fim do período de reprodução abra a porta a certos atributos do poder e da masculinidade, inclusive na cena pública: participação em instância de decisão de linhagem e do povoado, intervenção em certos rituais religiosos, direito de cultura sobre certas terras, etc.

Em muitas sociedades da Ásia e do Oriente Médio, a preferência por meninos é constante e acarreta simultaneamente a inferioridade do status das meninas e a necessidade imperiosa para as mulheres de dar meninos à luz. Infelizes daquelas que só têm filhas.... seu status na família estará comprometido. Uma hierarquia suplementar se instaura entre mulheres em detrimento das mães que tenham apenas filhas.

4. Relações entre esposos, produção e controle de recursos O modelo eurocêntrico de casal, em que a esposa é “protegida” por um marido dedicado e responsável que garante todas as obrigações familiares, parece relegado à lembrança da burguesia do século XIX. Em todo caso, é desconhecido

Referências

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