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REFLEXÃO SOBRE DUAS MODALIDADES DE CRUELDADE FRENTE AO CORPO DA VÍTIMA 1. Marie Danielle Brulhart Donoso 2

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Academic year: 2021

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REFLEXÃO SOBRE DUAS MODALIDADES DE CRUELDADE FRENTE AO CORPO DA VÍTIMA1

Marie Danielle Brulhart Donoso2

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Trabalho produzido como resultado parcial de pesquisa em andamento sob orientação do Prof. Dr. Nelson da Silva Junior do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho – Instituto de Psicologia - USP

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A cultura ocidental pós-moderna assistiu ao paroxismo da crueldade humana quando o próprio homem arquitetou e executou um planejamento, de dimensões industriais, cujo objetivo era o de eliminar outros seres humanos. O holocausto se perpetuará como modelo do inumano. No entanto, atribuir à “solução final” um caráter de excepcionalidade absoluta seria negligenciar os herdeiros dos extermínios sistemáticos. Genocídios, atrocidades ou torturas são termos que vão ao encontro de uma perturbadora realidade: basta ser humano para alcançar esta capacidade de destruição.Os requintes de bestialidade mais atrozes acompanham o homem ao longo de toda sua história e a aculturação, a ciência e a razão não trouxeram a civilidade.

O meu interesse pelo tema surgiu da perplexidade experimentada frente ao fenômeno social da crueldade, e foi tomando corpo através da interlocução com o Prof. Nelson da Silva Junior. Suas publicações sobre temas como destruição do corpo (SILVA Jr., 2006), sua concepção de desfusão pulsional como sendo constitutiva da cultura contemporânea (SILVA Jr., 2003), entre outros, assim como a participação no seu grupo de pesquisa sobre “Marcas Corporais”*, resultaram neste estudo inicial, que enfoca a maldade sobre o corpo. Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, revelam que seria na relação com o corpo (próprio ou alheio) que a irracionalidade e a injustiça da dominação reapareceriam como crueldade. De acordo com eles, os assassinos, os homicidas, os linchadores, os executores “estão sempre aí quando se trata de eliminar alguém” (1969, pp.218-219).

Dentro do sofrimento humano, meu interesse consiste em aprofundar a questão do mal, mal despido do seu contexto religioso, moral ou aplicado à falta de saúde, mas sim o mal exercido sobre a alteridade. Dentro desta esfera serão apontados dois diferentes

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estatutos de violência. Uma primeira modalidade que se encontra no âmbito da tortura, mais especificamente na relação de objeto do carrasco. Este não abre mão do corpo alheio, visto que se constitui como torturador pelo testemunho vivo da vítima. A segunda manifestação, também examinada à luz da relação objetal, emerge em um contexto dentro do qual o malfeitor tem a absoluta necessidade de suprimir o outro, dentro de um cenário que não encontra raison d’être aparente.

Seguindo uma abordagem psicanalítica, os conceitos metapsicológicos como dualidade pulsional, sadismo, perversão, fusão/desfusão pulsional e desobjetalização, formarão os alicerces teóricos desta investigação. Freud, em sua obra, divide a questão das pulsões em três grandes momentos. Em Mais Além do Princípio de Prazer toma forma a última teoria pulsional, que será o ponto de partida deste estudo. Em um dos seus textos Freud não hesita em comparar os seres humanos a bestas selvagens que “nem sequer respeitam os membros de sua própria espécie”(FREUD, 1930[1929], p.108). O autor destaca as questões decorrentes do antagonismo entre as exigências pulsionais e as restrições impostas pela civilização, constatando que a aculturação não somente trouxe a renúncia pulsional como não garantiu a felicidade entre os homens. Freud traz uma descrição da natureza humana bem distante dos valores impostos pela cultura judaico-cristã: (ibid, p. 108).

em conseqüência, o próximo não é apenas um possível auxiliar e objeto sexual, mas sim uma tentação para nele satisfazer sua agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, subtrair-lhe seu patrimônio, humilhá-lo, infligí-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo

Ao opor a pulsão de vida, Eros, à pulsão de morte, Freud postula que esta última iria em direção à redução completa das tensões, levando o ser vivo ao estado anterior, isto é, anorgânico. Conseqüentemente, a descarga pulsional, movimento dirigido pelo

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princípio de prazer, estaria a serviço da pulsão de morte. “O princípio do prazer não seria mais o guardião da vida” concluiria Freud em O Problema Econômico do Masoquismo (1924, p. 167). Em 1930, Freud acrescenta que a pulsão de morte só poderia ser identificável quando exteriorizada, como pulsão de agressão. Esta pulsão de agressão seria a pulsão de morte originariamente dirigida para dentro, porém desviada para o objeto devido à libido narcísica. Eis a definição dada por Freud (1929[1930}, p. 115):

O Problema Econômico do Masoquismo já apontava que esta pulsão de destruição só poderia ser neutralizada pela libido que a desviaria, em parte, para fora. Assim Freud acrescenta: “Um setor desta pulsão é posto diretamente a serviço da função sexual, onde tem ao seu cargo uma operação importante. É o sadismo propriamente dito” (1924, p. 169). A parte da pulsão que permanece dentro seria ligada libidinosamente, “é o masoquismo erógeno, originário” (ibid., p.169). Estabelece-se, portanto, que o sadismo seria uma associação da sexualidade e da violência exercida sobre o objeto e que o império da pulsão de morte andaria de mãos dadas com o império do id. Em O Id e o Ego Freud aponta ainda que quando Eros, uma vez segregado pela satisfação “a pulsão de morte fica com as mãos livres para levar a cabo seus propósitos”(1923, p. 48). Desprovida de representações, a pulsão de morte não faria discriminação entre objetos, entre noções de bom/ruim, certo/errado, seria pura descarga.

Em relação à concepção de fusão e desfusão, Freud postula que as duas classes de pulsões trabalhariam de forma entrelaçada e que da mistura destes dois componentes antagonistas em diferentes proporções, emergiriam distintas condutas e tipos de relação de objeto. “Produzem-se uma fusão e uma combinação muito vastas, e de proporções variáveis, entre as duas classes de pulsão.” (1924, p. 170).

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Podemos concluir assim que, para Freud, a existência do mal no ser humano seria intrínseca, constitutiva de sua natureza. A seguir, através de outros autores, aprofundaremos as noções de sadismo e perversão.

No Vocabulário de Psicanálise, Laplanche e Pontalis definem o sadismo como uma “perversão sexual na qual a satisfação está ligada ao sofrimento ou a humilhação infligida a outrem” (2004, p. 428). No entanto, acrescentam que a psicanálise ampliou a noção de sadismo com diferentes formas e graus de perversão sádica. Estes autores destacam que Freud, por vezes, nomeava sadismo, o exercício só da violência, fora de toda satisfação sexual. O masoquismo seria o sadismo voltado contra a própria pessoa, formando as duas faces de uma só moeda, indissociáveis.

Reforçando esse conceito, em seu texto Le Masochisme Érogène, Nelson da Silva Jr. constata que, na psicopatologia, os fenômenos sado-masoquistas clássicos se organizam em torno da dor, da mise-en-scène e, às vezes, de uma organização contratual. Ao citar Freud, em O Id e o Ego, Silva Junior relembra que é o corpo, e sobretudo sua superfície, o lugar do qual podem partir percepções internas e externas. A questão do corpo é nuclear para este estudo, visto que é nele que incide a crueldade.

Em relação à noção de perversão, muito interessantemente, Laplanche e Pontalis, apontaram em uma nota de rodapé, a ambigüidade do adjetivo perverso, ao qual corresponderiam dois substantivos, perversidade e perversão. Citando os autores: “Em psicanálise, fala-se de perversão apenas em relação à sexualidade, no entanto, enfatizam que “é comum falar de perversão, ou melhor, de perversidade para qualificar o caráter e o comportamento de certos sujeitos que fazem prova de uma crueldade ou de uma malignidade particulares” (ibid, p. 307).

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Otto Kernberg, psicanalista que se aprofundou no estudo das perversões, corroborou essa distinção e definiu a perversão como um desvio sexual e a perversidade como a “transformação consciente ou inconsciente de algo bom em algo ruim” (1995, p.260). Em 1998, o autor apresentou uma classificação das perversões seguindo o grau de agressão nelas contidas. Quanto maior a presença de agressão, mais grave o nível de perversão, com distúrbios narcísicos de personalidade importantes. “A agressão ego-sintônica pode infiltrar-se numa perversão particular e transformá-la num padrão sado-masoquista”. (1998, p. 73).

O psicanalista Flávio Carvalho Ferraz, em seu livro Perversão (2000, p.21) esclarece que, dentro das considerações metapsicológicas, “a perversão é caracterizadas muitas vezes por uma relação com os objetos na qual estes são manipulados de modo a serem usados, na pior acepção do termo”. E acrescenta “a prática do perverso tem o poder de assegurar o gozo e acrescenta que sua onipotência reforça a base narcísica de sua dinâmica psíquica – gozo este de caráter compulsivo e compulsório” (ibid., p. 93). Ou seja, neste contexto está presente uma trama tecida em torno da libido.

Estes autores citados acima fortalecem a hipótese de que a relação objetal do torturador está tramada em um tecido libidinal, onde a busca de prazer comanda ...

Para aprofundar a segunda modalidade de crueldade, o psicanalista francês contemporâneo André Green, em seu artigo Porque o Mal? contribui com conceitos provenientes, em parte, dos textos freudianos e com novas noções de relações objetais.

Green esclarece que haveria duas formas de expressão da pulsão de morte: a primeira seria “ligada” e conectada ao superego e a segunda, “solta” na qual não estaria presente o componente libidinal, pois não existiria prazer ou gozo por parte do malfeitor.

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“Pois o mal é insensível à dor alheia e é nisso que é o mal” (GREEN, 1988, p. 250). Ou seja, o sofrimento do objeto não encontraria eco dentro do carrasco. Este último aspecto do mal, a destruição pura e integral, como tal, seria inanalisável. Solta, essa libido destrutiva se tornaria literalmente “sem sentido” (ibid., p. 254). Green acrescenta o conceito de um papel cuja “função desobjetalizante” da pulsão de morte retiraria do objeto sua propriedade de semelhante humano para atingir uma dimensão de destruição ainda maior. Portanto, seria incompatível com o prazer sádico, já que este último implicaria uma cena libidinosa malfeitor/vítima. O analista francês declara: “o mal repousa sobre a indiferença ao rosto de semelhante declarado estrangeiro absoluto”(ibid., p. 259). Na realidade, a pergunta presente no título deveria,segundo o próprio autor, ser formulada da seguinte maneira: “porque o mal não tem porque?” “porque sua raison d’être é a de proclamar que tudo o que é não tem sentido, não obedece a nenhuma ordem, não segue nenhum objetivo, depende apenas do poder que pode exercer para impor sua vontade aos objetos de seu apetite” (ibid. p. 259). De acordo com Green, dentro da aniquilação do outro, não haveria identificação, nem prazer, visto que não haveria necessidade do outro porque nesta mente a alteridade simplesmente “não é”.

Levando em conta o quanto a atualidade nos defronta cotidianamente com cenas de barbárie, como a de João Hélio ou Isabella, consideramos digna de atenção esta investigação na procura de uma maior compreensão sobre a questão da maldade no seio das relações humanas. Em seu livro Porque as pulsões de destruição e de morte?, Green declara que as ideologias não são todas portadoras da paz, pois “semeiam e ameaçam os povos mais civilizados” (2007, p. 160). Diante desta verdade, desta violência, que não

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respeita raça, credo, fronteira nem idade, este estudo visa contribuir para a questão do sofrimento humano, tema tão caro à Psicologia.

Referências Bibliográficas

- ADORNO T, & HORKHEIMER. M. A Dialética do Esclarecimento. Jorge Zahar Ed. – Rio

de Janeiro, 1969

- FERRAZ, F.C. Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006-Coleção “Clínica Psicanalítica” - FREUD, S. Mas allá del Principio de Placer (1920).Vol XVIII - Amorrortu Ed., Bs.As. - 2004. - _________ El Yo y el Ello (1923). Vol. XIX – Amorrortu Ed., Buenos Aires, 2004.

- _________ El problema económico del masoquismo (1924). Vol. XIX – Amorrortu Ed., Bs.As. - _________ El malestar en la cultura (1930[1929]). Vol. XXI – Amorrortu Ed., Bs.As. -2004. - GREEN, A. Pourquoi le Mal, in «Le Mal» – Editions Gallimard, Nouvelle Revue de Psychanalyse n. 38, Paris, 1988.. Éditions du Panama, Paris 2007.

- ___________ Pourquoi les pulsions de destruction ou de mort ?

- KERNBERG, O.F. Perversão, Perversidade e Normalidade: Diagnóstico e considerações terapêuticas. Rev. Brás. Psicanálise – vol. 32, 1998

- _______________ Agressão nos transtornos de Personalidades e nas Perversões. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995

- LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.B. – Vocabulaire de la Psychanalyse- 4e. édition Quadrige: 2004. PUF

- SILVA Jr, N. Le masochisme érogène, dernier rempart pour le sujet post-moderne? Réflexions sur les pratiques de modification corporelle- Palestra. – 2006.

- ____________ A sombra da sublimação: O imperialismo da imagem e os destinos pulsionais na contemporaneidade – Psyché SP, vol. VII, 2003.

- ____________ A gramática pós-moderna da perversão e sua clínica psicanalítica – In: Fátima Milnitzky (org.) – 1 Ed. Goiânia Dimensão Ed. 2006.

* Pesquisa Internacional França/Brasil - « Psychopathologie des Pratiques de Corps dans le Lien

Social Contemporain » - Université de Rennes 2/USP - (CAPES/COFECUB) – vinculada ao Laboratório de Epistemologia Genética e Reabilitação Psicossocial.

Referências

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