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O homem viril desvelado: representações de masculinidade na arte funerária paulistana

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Academic year: 2021

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O homem viril desvelado:

representações de masculinidade na arte

funerária paulistana

The virile man: representations of masculinity in the

funerary art of São Paulo

maristelacarneiro86@gmail.com

O artigo investiga representações de trabalho e masculinidade na arte funerária modernista da cidade de São Paulo, a partir de duas construções escultóricas integrantes do acervo do Cemitério da Consolação, pertencentes às Famílias Rizkallah Jorge e Calfat, de autoria de Antelo Del Debbio (1901-1971). Os túmulos são exemplos de propriedades de famílias imigrantes que se integraram à elite e fizeram uso da arte funerária como suporte de distinção social. Recorrem às representações de trabalho e masculinidade, sendo o labor o elemento que correlaciona os conjuntos funerários selecionados, observados por intermédio das lentes de Didi-Huberman. Analisa os lugares do trabalho, dos trabalhadores e dos imigrantes no cenário do período. Estes homens forjados em bronze simbolizam os sepultados e o lugar que os mesmos ocupavam enquanto vivos. Deste modo, ambas as esculturas, ancoradas nas trajetórias dos proprietários dos túmulos, configuram-se enquanto alicerce social: a força física é representativa da solidez social e econômica que seu trabalho ajudaria a compor.

Palavras-chave: Escultura funerária – Masculinidade – Nudez e seminudez – Virilidade – Trabalho

RESUMO

This article investigates representations of work and masculinity in the modernist funerary art of the city of São Paulo, from two sculpture sets in Consolação Cemetery, both authored by sculptor Antelo Del Debbio (1901-1971) and belonging to the Rizkallah Jorge and Calfat families. The tombs in question are examples of properties of immigrant families that integrated with the elites and made use of funerary art as a platform for social distinction. Both tombs make use of representations of work and masculinity in their sculpture settings, in such a way that labor is the key element that correlates the selected funerary buildings, observed through the lenses of Didi-Huberman. Their arrangements converted themselves in platforms of identity and analysis of workplaces of laborers and immigrants in São Paulo during that period. These men forged in bronze symbolize the buried and the place they occupied while they were alive. This way, both sculptures, anchored in the life stories of the tomb owners, shape themselves as social foundation: their physical strength is representative of the social and economic hardiness their work would help to compose.

Keywords: Funerary sculpture – Masculinity – Nudity and seminudity – Virility – Work

ABSTRACT

Pós-Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil. Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil. Autora de livros e materiais didáticos pelo IESDE - Inteligência Educacional e Sistemas de Ensino. CV: http://lattes.cnpq.br/8461204091007488

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omo berço dos Jogos Olímpicos, a Grécia Antiga atribuía significativa importância ao esporte e ao cultivo do corpo. Homens concebiam o tempo nos ginásios como oportunidade de preparação para a guerra. Qualquer sinal de fraqueza ou debilidade era considerado como feminino e indesejável. O corpo deveria ser cuidado para garantir força e poder. Para Viegas (2008, p. 17), nessa sociedade de guerreiros a ênfase incidia sobre a integridade física; um corpo belo e forte era próprio dos homens ideais, dos aristoi – os melhores, na acepção grega antiga, àqueles indivíduos considerados “excelência pública”. Esta cosmovisão certamente sugere a existência de determinados códigos de gênero, demonstrando que papéis masculinos e femininos são atribuídos social e culturalmente há muitos séculos.

A masculinidade não é aqui tratada enquanto discurso único, homogêneo e/ou verticalizado, mas como uma coleção de informações atribuídas e debatidas em diferentes tempos e espaços, assim como também ocorre com os discursos acerca da feminilidade. O conceito de gênero tem sido uma categoria utilizada e difundida de forma crescente, sobretudo a partir da década de 1960. Matos (2005, p. 21-22) destaca que a proposta basicamente relacional deste conceito ressalta que “a construção do feminino e masculino define-se um em função do outro, uma vez que se constituíram social, cultural e historicamente em um tempo, espaço e cultura determinados.”

Essa perspectiva remete às reflexões tecidas mais largamente por Scott em meados da década de 1980. Para a historiadora e feminista norte-americana, a categoria gênero deve abarcar não apenas as definições biológicas e/ou as relações de parentesco, mas também o mercado de trabalho e os sistemas educacional e político, esferas estas sexualmente segregadas e socialmente masculinas. Scott pontua que as relações entre os sexos são construídas socialmente e correspondem às mudanças nas representações de poder nos chamados “campos de força sociais”. Em suas palavras: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.” (Scott, 1995, p. 86)

Diante do pressuposto de que as relações de gênero são um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que distinguem os sexos, devem ser observadas como uma forma primária de relações significantes de poder, ainda segundo Matos e Scott, evitando-se as oposições binárias fixas e naturalizadas. No interior desse debate está inserida a reflexão sobre a categoria de masculinidade e seus códigos, associados às representações de trabalho, para os limites deste artigo, a partir de duas construções escultóricas integrantes do acervo do Cemitério da Consolação, em São Paulo, apresentadas e discutidas adiante. Conforme referido, tais códigos são forjados como parte da resposta ao problema da finitude na sociedade paulistana da primeira metade do século XX, nos quais a nudez/seminudez também desempenha relevante função. Na História da Arte, as representações da nudez corporal, sobretudo da masculina, provêm da antiguidade.

Era uma vez um nu, que conta a história de um corpo vestido em arte, the nude. O gênero do nu é considerado como forma ideal de arte [...],

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buscando sempre a mimeses do belo, como isso ele é um indicador da ideia dominante de arte e seu papel na sociedade [...], ou até os boundaries dela [...], porque é a representação do corpo possível de ser mostrada dentro da moral regente e de cada sociedade (Batista, 2010, p. 129).

Este diálogo entre a nudez e a arte remonta à arte grega clássica, quando o escultor, ao retratar o nu humano, buscava expressar a nudez do homem em si, colocava-se diante do próprio ser. Tal atitude se justifica porque, para o artista de então, o corpo humano não era um modelo, mas um módulo, representativo da harmonia absoluta. Tratar do nu na arte grega significa referir-se à relação com o divino, porque o grego acreditava na existência do kosmos, em oposição ao kaos, de forma que a representação do corpo nu é equivalente ao próprio mundo ordenado (Andresen, 1992, p. 5-6). O desnudar expressa, além da beleza física, valorizada na antiguidade clássica, a virtude do cidadão, enquanto ser de harmonia e equilíbrio. A nudez masculina é parte primordial da escultura grega, representada nos Kouroi, estátuas masculinas inteiramente nuas. “Partindo de uma imagem que é o homem, o Kouros é um modelo para o homem” (Andresen, 1992, p. 27). Ao compor este modelo, esta imagem fundamental, o artista apresenta um projeto moralizador, de adequação do homem ao ideal democrático e cultural da civilidade grega.

Desse modo, a nudez corporal masculina comumente ocupou lugar de destaque, sendo temática relevante em diferentes momentos históricos e artísticos, desde a Antiguidade Clássica até a contemporaneidade, passando pelo Renascimento e o Neoclassicismo. Defende-se que um corpo nunca existe em si mesmo, nem quando está nu, conforme Katz (2008, p. 69). Corpo é sempre um estado provisório de uma coleção de informações que o constitui como corpo. Questionar o lugar da masculinidade e o significado da nudez, aqui associada às representações de labor, concerne à compreensão das concepções imaginárias do corpo pensadas enquanto narrativas, imbuídas de valores sociais e culturais. A nudez do masculino tem a função de construir determinado sentido, que pode ser interpretado à luz dos valores sociais, constituintes da corporeidade. Este viés rompe com uma leitura determinista e/ou biologizante: ser homem/ mulher vai além da existência de um corpo masculino/feminino. Segundo Nicholson:

Defendo que a população humana difere, dentro de si mesma, nao só em termos das expectativas sociais sobre como pensamos, sentimos e agimos; há também diferenças nos modos como entendemos o corpo. Consequentemente, precisamos entender as variações sociais na distinção masculino/feminino como relacionadas a [...] diferenças ligadas não só aos fenômenos limitados que muitas associamos ao “gênero” (isto é, a estereótipos culturais de personalidade e comportamento), mas também a formas culturalmente variadas de se entender o corpo (Nicholson, 2000,

p. 14).

No entender da autora, o corpo deve ser pensando como uma variável e não uma constante. Deste modo, é possível observar as atribuições de sentido dadas tanto aos corpos quando às ideias de feminilidade e de masculinidade que daí decorrem. Nesse sentido, Batista

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(2010, p. 125-126) pontua que o corpo na arte, tanto na literatura quanto nas artes visuais, é sempre um corpo-representação, um corpo imaginário que revela narrativas que objetivam conceder sentido aos corpos reais. As várias representações do corpo imaginário indicam negociações, no que diz respeito ao discurso do corpo, às relações e normas sociais, e aos valores de determinada sociedade. Deste modo, o corpo pode ser compreendido enquanto “materialidade polissêmica”: “como união de elementos materiais e espirituais e também como síntese de sonhos, desejos e frustrações de sociedades inteiras, pois o múltiplo sentido do corpo pede múltiplos olhares” (Batista, 2010, p. 126). Essa polissemia do corpo é, portanto, uma polissemia da própria masculinidade.

A masculinidade, assim como a feminilidade, não é um caractere biológico. Trata-se do “fazer-se homem”, ou seja, um processo individual/social que se realiza na cotidianidade espacial da construção de gênero como um elemento identitário primordial das relações humanas. A concepção dos elementos típicos e/ou necessários concernentes ao “ser homem” é construída e, ao mesmo tempo, relacional. Em conformidade com Silva et al (2011, p. 19), depreende-se que o gênero é uma representação, experienciada habitualmente, e não algo que se adquire. São as práticas de gênero que permitem, contraditoriamente, sua existência e transformação. Nesse sentido, não existe uma única forma de “fazer-se homem”, mas múltiplas vivências possíveis, possíveis masculinidades que se forjam em diferentes tempos e espaços. Assim, apesar de considerar que a nossa sociedade está organizada a partir do privilégio do gênero masculino, não existe uma única forma de masculinidade.

Construída num contexto social, cultural e político, a masculinidade e suas formas de manifestação, no caso, relacionadas ao trabalho, devem ser compreendidas dentro dos suportes simbólicos de masculino e de feminino, próprios a cada sociedade. Vieira-Sena (2011, p. 38) esclarece que aquilo que se entende por tipicamente feminino e masculino não são imagens que correspondem a qualquer valor essencial, universal e atemporal, mas as imagens construídas historicamente e que, desde a modernidade, vêm sendo profundamente alteradas, graças à fluência e à confusão entre as fronteiras de gênero. Estas flutuações são contidas no fenômeno de fragmentação das identidades, aceleração, ritmo e do tempo, mudanças de papéis, entre outras transformações próprias da sociedade contemporânea.

Ainda que pareça haver uma única representação possível do masculino e do feminino, legitimada pelas relações de poder, o gênero enquanto categoria analítica “fornece um meio de decodificar o significado e de compreender as complexas conexões entre várias formas de interação humana” (Scott, 1995, p. 89). Todavia, essa significação não deve ser lida como algo inscrito de forma unilateral em um sexo previamente dado, entendido como um simples suporte, conforme pontua Butler (2013, p. 25). Gênero deve designar também, no entender dessa autora, o aparado de produção e estabelecimento dos próprios sexos – tão construídos e históricos quanto as relações de gênero e os conceitos de masculinidade e feminilidade. As esculturas ora em análise, coleções representacionais de masculinidade e trabalho, alimentadas pela conjuntura paulistana, decorrem dessas complexas relações de força e de poder, produtoras de sentido.

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O trabalho como identidade do homem: suporte para a masculinidade

Há milhares de anos, o trabalho é uma categoria identificadora do homem. Dentre as múltiplas teorias sobre a evolução humana e espécimes catalogados, destaca-se o chamado Homo Ergaster, popularmente denominado Homo Erectus Africano. Ergaster, vocábulo latino, significa “trabalhador”. O mais provável ancestral humano conta com registros de labor: teria utilizado instrumentos de pedra, osso e madeira elaborados e tido bom domínio do fogo para o cozimento de alimentos e defesa, conforme resquícios fósseis de acampamentos desse hominídeo. Dawkins (2005, p. 66-67) sugere que esse espécime foi um dos primeiros a aventurar-se territorialmente, propagando-aventurar-se muito além da sua gêneaventurar-se africana.

Para atender as necessidades mais básicas para a própria sobrevivência, o homem foi imediata e irremediavelmente impulsionado ao trabalho, inicialmente com as próprias mãos e, progressivamente, com o auxílio de diferentes ferramentas, as quais foram sendo aperfeiçoadas a cada geração, evoluindo tanto quanto o próprio homem. Paulatinamente, o trabalho contribuiu para a construção de divisões no interior dos agrupamentos humanos, estabelecendo atribuições específicas, pautadas em diferenças de gênero, classes e/ou estamentos sociais, procedência e faixa etária. Ao mesmo tempo, ao trabalho foram sendo atribuídos distintos sentidos simbólicos.

Segundo Woleck (2002, p. 02), na Antiguidade, majoritariamente o trabalho era entendido como a atividade dos que haviam perdido a liberdade, cujo significado confundia-se com o de sofrimento ou infortúnio, com frequência vinculado à escravatura. A própria etimologia latina do vocábulo contém o sentido do trabalho enquanto atividade punitiva.

O significado de sofrimento e de punição perpassou pela história da civilização, diretamente se relacionando ao sentido do termo que deu origem à palavra trabalho. Essa vem do latim vulgar tripalium, embora seja, às vezes, associada a trabaculum. Tripalum era um instrumento feito de três paus aguçados, com ponta de ferro, no qual os antigos agricultores batiam os cereais para processá-los. Associa-se a palavra trabalho ao verbo tripaliare, igualmente do latim vulgar, que significava “torturar sobre o trepalium”, mencionado como uma armação de três troncos (Woleck,

2002, p. 03).

Dentre os povos da Antiguidade, representações de trabalho e trabalhadores são habituais, sendo observadas especialmente em representações artísticas egípcias, gregas e romanas. É relevante observar que diferentes regimes de trabalho (escravo, servil, assalariado, autônomo, cooperativo, corporativo ou comunitário) incluem distintos códigos sociais e, por conseguinte, de masculinidade. Na tradição abraâmica, por exemplo, segundo Woleck (2002, p. 3), em conformidade com as narrativas do Antigo Testamento, o trabalho associava-se à noção de punição, de maldição, condenação pelo pecado original, assumindo a dimensão de obrigação, dever e responsabilidade: Tu comerás o pão e o suor do teu rosto (Gn 3, 19). Por sua vez, o advento da cristandade contribui para a dignificação do conceito de trabalho, que passa

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a ser um instrumento para a conquista do Reino dos Céus e, por consequência, contribui para a manutenção da estrutura social própria do medievo.

Os escritos teológicos de Santo Agostinho (354-430) foram de fundamental importância para desfazer a concepção de trabalho como maldição. Para o filósofo da Igreja, ao estabelecer uma distinção entre o “exterior” e o “interior”, o “visível” e o “secreto”, o trabalho a rigor não é bom nem mau, porque é uma dimensão exterior. Portanto, será o uso que o ser humano, enquanto dimensão interior, fizer do trabalho que concederá sua valoração. Para Matias (2014, p. 258-265), o trabalho é a ferramenta para a transformação do mundo criado por Deus e, através de sua graça e do livre-arbítrio, o homem poderá escolher o caminho do bem e, assim, fazer da terra um melhor lugar para viver.

desde o século VIII, o termo labor e seus derivados e compostos [...] desenvolvem um novo sentido, centrado na ideia de aquisição, de ganho, de conquista, sobretudo no meio rural, onde a palavra se associa, de fato, à noção de arroteamento. Esta evolução semântica traduz outra conquista: a da promoção ideológica e mental do trabalho e dos trabalhadores. Valorização ainda ambígua, já que o trabalho é, sobretudo, exaltado para elevar o rendimento e a docilidade dos trabalhadores. Mas, tal valorização já é sem dúvida o resultado da pressão dos trabalhadores sobre a ideologia e a mentalidade medievais (Le Goff, 2013, p. 258).

Inicialmente punitivo, progressivamente tomado como inelutável ao longo do medievo, o trabalho passou a ser finalmente visto enquanto instrumento de salvação e como forma de realizar a vontade divina, com a ascensão da Reforma Protestante, a partir do século XVI. Para Barbosa (2007, p. 18), a Reforma Protestante ultrapassou o âmbito religioso e influenciou e/ou suscitou movimentos reformistas nas demais áreas da estrutura social, as quais também ultrapassaram as fronteiras nacionais – aí inclusa a esfera do trabalho. Nas palavras de Sanson:

A Reforma Protestante muda radicalmente a visão sobre o trabalho conduzindo-o a um pleno reconhecimento. Será através da Reforma, que o trabalho assumirá verdadeiramente um status de importância e contribuirá decisivamente para uma outra subjetividade manifesta no trabalho (2009, p. 28).

A partir da Reforma e subsequentes transformações, os séculos XVI e XVII assistiram à emergência de um novo sentimento individualista e racionalista, que consolida-se na emergência do Iluminismo, no século XVIII – o chamado Século das Luzes. Da mesma forma, tais mudanças conjunturais também alimentaram a sedimentação do capitalismo na modernidade, da qual trata Weber, em A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Faz-se pertinente salientar que o protestantismo, em particular o Calvinismo, defende uma ética diferenciada, que se torna fundamental para a constituição de um novo olhar acerca do trabalho e do capital, em um viés cada vez mais individualizado. Diferente do que a Igreja havia postulado até então, o

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protestantismo não parece condenar o lucro, mas considera-o resultado de uma racionalidade metódica do próprio trabalho. Sanson (2009, p. 29-30) esclarece que é em Calvino que o trabalho assumirá um caráter mais radical de valorização, associado ao individualismo, passando a tornar-se um dever – deve tornar-ser uma muralha contra a preguiça. Para além da dimensão religiosa, o protestantismo constrói os fundamentos para um novo ethos, no que se refere ao trabalho.

A visão protestante, para além de uma valorização religiosa do trabalho, contribui para criar um “espírito” motivacional para o empreendedorismo. A contribuição de Weber é mostrar que o capitalismo ensejado pela Revolução Industrial tinha, em sua base, uma concepção de trabalho vinculada ao ascetismo secular do protestantismo. Foi essa concepção de trabalho, que liberou moral e eticamente os homens – os capitalistas – à aquisição de bens, à obtenção do lucro, à cobrança de juros e à acumulação de capital. Esse ethos – conjunto de valores culturais – exortava que a acumulação do capital deveria ser reinvestida em novos empreendimentos que gerassem mais empregos. Esse círculo virtuoso – trabalhar, acumular e reinvestir – permitia o estabelecimento da harmonia social. Será esse ethos que fomentará a atividade capitalista (Sanson, 2009, p. 32).

No interior desse novo ethos, passa-se a valorizar a concepção do trabalho associada ao progresso humano, não apenas em termos econômicos. O progresso só é possível individualmente, mas é através do coletivo de individualidades que o todo acaba por progredir, mesmo no caso tecnológico. O trabalho passa a ser tomado sob um viés cada vez mais afirmativo, mais dignificante, que se pauta nos sentimentos de autonomia, individualidade e racionalidade humana. É esta dimensão que, com frequência, é expressa nas construções tumulares, nas quais o trabalho assume o papel de mitificador dos sepultados, pedra de toque da construção de suas identidades. Esse processo era parte de um movimento mais amplo de adequação (ou submissão) dos corpos aos “novos tempos”, que se fazia presente também no contexto brasileiro.

Segundo Albuquerque Júnior (2013, p. 38), certas transformações na cultura de gênero foram motivadas pelo advento da República e a necessária ampliação do espaço social para a inclusão de novos grupos que emergiam com crescente influência e poder – comerciantes, industriais, operários e mulheres. No caso específico de São Paulo, a dinamização do processo de crescimento populacional e territorial da cidade intensificou-se a partir da virada do século e, com isso, novos códigos sociais emergiram. Para Matos:

Desde o inicio do novo regime, o programa politico republicano, sob a influencia da doutrina positivista, concentrou suas atenções no binômio família-cidade, base da proposta de estruturação do Estado, em que o conceito de pátria se baseava na família. Essa era vista, mais do que nunca, como o sustentáculo de um projeto normatizador, cujo desenvolvimento reequacionou seu papel e sua inserção social na cidade, já que a “nova família” fora estimulada a desenvolver práticas sociais que se adaptassem

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Paralelamente à intensa urbanização, ao final da escravidão, ao processo de imigração e

à crescente industrialização, novos códigos de masculinidade e feminilidade se faziam necessários.

Com a libertação dos escravos, separaram-se os homens de sua força de trabalho. Deste modo, segundo esclarece Chalhoub (2008, p. 65), as classes possuidoras não podiam garantir o suprimento da força de trabalho em seus empreendimentos por intermédio da aquisição de escravos. Isso impunha a necessidade de que os homens libertos se dispusessem a vender suas forças de trabalho para os empreendedores. Em outras palavras, os homens libertos deveriam se perceber enquanto trabalhadores.

Para isso, o trabalho deveria ser visto como uma atividade dignificante, conforme já pontuado. Especialmente no que dizia respeito aos homens, os novos códigos passaram a se centrar na importância do trabalho, buscando reforçar a identificação masculina com o mesmo, ao destacar seu papel de provedor. De acordo Matos (2001, p. 41-42), discursos políticos, religiosos e médicos reforçavam a necessidade do homem de ser resistente, jamais manifestando dependência ou sinais de fraqueza, devia ser “metódico, atento, racional e disciplinado”. O objetivo central era esse: cristalizar um ideal de masculinidade fundado na correspondência necessária entre homem e trabalho. Esta relação intrínseca se fazia ainda mais evidente ao se tratar do homem imigrante, em conformidade com a análise, mais adiante.

As classes dominantes esperavam que este fosse “morigerado, sóbrio e laborioso”, cultivando as principais virtudes da ética capitalista: “o imigrante devia servir de exemplo ao trabalhador nacional” (Chalhoub, 2008, p. 77). Servia como um protótipo do homem e do trabalhador ideal, no contexto de industrialização que emergia na passagem do século XIX para o XX. É esta representação que seria transportada a tantas construções tumulares dos cemitérios paulistanos, especialmente àquelas pertencentes às famílias de imigrantes. A morte é uma problemática social, que se concretiza de múltiplas formas no espaço cemiterial em torno da busca por perenizar a memória do ambiente que o abriga. Portanto, o que se propõe ao longo deste artigo, com base nas duas composições tumulares selecionadas, é refletir sobre quais memórias são perenizadas por meio destas representações associadas ao labor.

Cemitérios e arte funerária: uma dinâmica própria

Oficialmente, os cemitérios públicos brasileiros foram secularizados ao final do século XIX, após a Proclamação da República. Ainda que o processo tenha sido encaminhado e pensado por membros da elite política e intelectual do período (Rodrigues, 2005, p. 298), gradativamente estes espaços funerários passaram a assumir novos papeis no espaço urbano. Ao serem novamente incorporados às cidades, após o transcurso do processo de medicalização e, em seguida, de secularização, os cemitérios passaram a refletir o universo de cada época e sociedade, nos quais cristalizam-se as relações entre as representações sociais, a memória e as práticas identitárias (Borges, 2002). Para Almeida:

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Dentre as várias leituras possíveis que podem ser realizadas acerca das cidades, uma delas diz respeito às suas características como lugares de memória e esquecimento. Compostas de fragmentos, vestígios do tempo que suscitam emoções. Estes sentimentos podem ser percebidos na medida em que esquadrinhamos os espaços nela constituídos. O cemitério é um desses lugares privilegiados nos quais afetos, lembranças e olvidamento se entrelaçam, possibilitando através de sua interpretação a escrita de uma história das sensibilidades. Os cemitérios tornam-se, pois, fontes incontornáveis nos quais se encontram os registros das impressões e experiências sensíveis formuladas pelos sujeitos em seu devir histórico

(ALMEIDA, 2007, p. 319).

Portanto, a arte funerária não deve ser vista apenas como sinônimo de sacralidade – ainda que muitas vezes as necrópoles sejam tomadas pela via da religiosidade. Constitui-se com base em uma miríade de influências, advindas de tempos múltiplos, que em muito transcendem tanto a função primeira, o sepultamento dos corpos, quanto o âmbito religioso e/ou espiritual. Sobre a arquitetura e a estatuária funerária, Borges afirma:

Elas valem por si mesmas e sua presença é suficiente para integrar-se ao inconsciente coletivo da comunidade vigente. Como mantêm um compromisso com as representações do luto, alicerçadas no discurso religioso, moral e econômico do grupo social de que procedem, sua abrangência é mais ampla do que se supõe (Borges, 2003, p. 86).

No decorrer do século XIX, emergiu uma série de novos gestos referentes aos mortos, à morte e ao morrer, conforme pontua Sorio (2009, p. 26), organizados a partir de dois referenciais, quais sejam a família e a pátria, logo transportados aos cemitérios a céu aberto. As “novas” atitudes apresentavam-se em geral como reaproveitamento das tradições, eventualmente presentes há séculos, mas agora “deformadas e retomadas” sob novo ângulo. Os espaços da morte, sobretudo os cemitérios públicos, passaramom a conjugar elementos sacros e profanos, religiosos e civis, constituindo um universo familiar, um cenário cada vez mais propício para a exibição da chamada “morte burguesa”.

Motta argumenta que, embora o “exercício genealógico” tenha sido comum entre as aristocracias, seria apenas a partir dos séculos XVII e XVIII que famílias burguesas demonstrariam interesse por compor representações de suas origens, manipulando-as, “com o intuito de criar novas identidades  em razão do novo status socioeconômico adquirido” (2010, p. 61). Os túmulos dos antepassados passavam a ser um marco importante, nos quais gerações mais jovens podiam ter um referencial, vendo-se neles e projetando uma identidade familiar e um patrimônio simbolizado em pedra.

Assim, o gosto pelo túmulo de família passava a ser uma importante referência para as elites brasileiras urbanas, que logo se adaptaram aos novos padrões de uso e apropriação dos espaços cemiteriais públicos,

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bem como de suas lógicas de enterramento. Depois de alguns anos de inaugurados, os cemitérios passaram a concorrer entre si pela grandiosidade e luxo que suas construções tumulares eram capazes de exibir. [...] Anos mais tarde, seria a vez das novas fortunas, procedentes do capital financeiro especulativo, da indústria, de profissões liberais, assim como de outros setores das camadas urbanas que surgiam nas principais capitais do país (MOTTA, 2010, p. 61).

Assim, esta “morte burguesa” era uma forma de sedimentar em alvenaria a grandiosidade de um patrimônio material, primeiramente amealhado na forma de grandes propriedades e escravos e, posteriormente, de capitais reunidos a partir de atividades industriais e comerciais. Era também, por outro lado, uma forma de agregar gerações em torno de uma ideia de patrimônio construído, de riqueza erigida a partir de engenhosidade, diligência e esforço, uma imagem elevada de si, que se espalhava dos grandes nomes nas lápides para os seus descendentes. Borges salienta que a sociedade burguesa, como meio de afirmação social, passou a encomendar a escultores e artistas-artesãos obras que expressassem seu gosto e pequenas fantasias advindas do inconsciente coletivo, atitude sobre a qual estudiosos como Ariès (2003; 2014) e Vovelle (1997) também trataram:

Adotando padrões estéticos convenientes a arte funerária contribuiu para desenvolver um ideário estético determinado. [...] essas construções tumulares estão imbuídas de signos que expressam valores religiosos e socioculturais de fácil assimilação. Enfim, a arte funerária burguesa misturou com harmonia os símbolos cristãos e profanos que despertam nos sobreviventes o mais profundo e significativo sentimento (Borges,

2004, p. 1).

Com o propósito de compreender as relações entre o nu e o seminu masculino, e as representações de masculinidades na composição da arte funerária burguesa, empreendi um inventário das ocorrências das esculturas funerárias despidas, parcial ou totalmente, constituídas no período Modernista, especialmente entre as décadas de 1920 e 1950, a partir do acervo artístico do Cemitério da Consolação. Escolhi este cemitério por ser um dos mais significativos espaços de sepultamento no Brasil, em virtude da própria conjuntura paulistana no período – que coincide com a expansão vultosa do tecido urbano de São Paulo.

Inaugurado em 1858, após uma série de debates médicos e políticos travados ao longo da primeira metade do século XIX,1 paralelamente à redefinição da concepções de salubridade e de

morte na capital paulista, o Cemitério da Consolação foi se constituindo paulatinamente como um suporte para a demonstração da afluência material das famílias burguesas. Para Valladares (1972, p. 1075), esta necrópole é a que melhor representa a fortuna pauliceia, em função da presença dos túmulos de propriedade dos cafeicultores e posteriormente dos industriais. Neste espaço,

1 Sobre a criação dos cemitérios extramuros em São Paulo, consultar: Camargo, 2007; Cymbalista, 2002; Matrangolo,

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observa-se o uso inicial da nobre estatuária de mármore importada e em seguida dos túmulos de blocos de granito com estatuária de bronze, constituindo um “depósito de todos os estilos e gostos” (Valladares, 1972, p. 1087).

O Cemitério da Consolação conta ainda hoje com uma grande quantidade de túmulos pertencentes à personagens da chamada “velha cultura do café”, expressão esta utilizada por Martins (2008a, p. 12). Segundo o autor, ali se encontram sepultados vários indivíduos que foram responsáveis pela transição do trabalho escravo para o trabalho livre, como Antônio da Silva Prado (1840-1929), bem como grandes empresários, principalmente industriais, que disseminaram a moderna economia capitalista em São Paulo e no Brasil, como Diogo Antônio de Barros (1791-1876) e Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948). À medida que ia sendo absorvida ao perímetro urbano paulistano, segundo Rezende (2006, p. 99), foi se tornando uma necrópole para os ricos, em função das concessões perpétuas. Além disso, a área de seu entorno também foi progressivamente valorizada ao longo do século XX, inclusive em termos imobiliários e ambientais, sendo atualmente considerada uma região nobre da capital paulista.

Do acervo da arte funerária do cemitério em questão, uma das escolhas burguesas mais numerosas é a imagética relacionada ao trabalho. Desta, um dos artistas mais profícuos foi o escultor italiano Antelo Del Debbio (1901-1971).2 Ao estudar os escultores italianos e sua

contribuição à arte tumular paulistana, Ribeiro (1999, p. 252-254) identificou mais de oitenta obras funerárias advindas do ateliê de Del Debbio, que funcionou em plena atividade até a década de 1960. Segundo a autora, o artista teve uma clientela diversificada, construindo desde jazigos simples, seguindo um projeto padronizado, com apenas vasos ou portões simples, por exemplo, até obras monumentais exclusivas, de significativo valor estético e artístico.

Ruggiero (2014, p. 89) salienta que Del Debbio se tornou um dos escultores mais afirmados na grande cidade brasileira, São Paulo, sendo de sua autoria uma grande quantidade de monumentos funerários contratados pelas famílias da alta burguesia da pauliceia. Sua temática é essencialmente religiosa, com muitas ocorrências de Maria e de Cristo, embora seja possível encontrar obras alegóricas e composições celebrativas de personagens ou famílias emergentes, sobretudo de origem sírio-libanesa – que é o caso de ambas as obras escolhidas para a análise neste artigo. Os túmulos em questão, pertencentes às Famílias Rizkallah Jorge e Calfat, particularmente, são exemplos de propriedades de famílias imigrantes que, ao se instalarem em São Paulo, integraram-se à elite e utilizaram a arte funerária como suporte de distinção social.

A temática escolhida por ambas as famílias relaciona-se ao trabalho, o que oferece subsídios para refletir sobre a caracterização da arte funerária no período em questão, quando os códigos de gênero e, mais especificamente, novas representações de masculinidade estavam se afirmando, conforme pontuei anteriormente. Enquanto à mulher cabia o papel de mãe e esposa, ao homem era reservada a função de provedor. “O homem teria sua função social de provedor viabilizada pelo trabalho, fonte básica de auto realização, veículo de crescimento

2 O artista nasceu em Viareggio, na Itália, radicou-se no Brasil em 1904. Após ter sido discente do Instituto de

Belas Artes de São Paulo, retornou à Itália para estudar na Scuola Dell’Arte Della Medaglia, em Roma e em Lucca. No Brasil, venceu concursos para a construção de diversas obras escultóricas, entre as quais os monumentos à Revolução de 1932, em Santos e em São Carlos, e o Monumento a Camões, oferecido pela colônia portuguesa de Ribeirão Preto.

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pessoal, sendo através do trabalho reconhecido como homem. Sem o trabalho o homem não poderia ser considerado como tal” (Matos, 2005, p. 42). O trabalho era visto como padrão de masculinidade, como identificação máxima do homem – motivo da escolha deste motivo para as construções tumulares selecionadas.

Para a escolha, realizei diversas visitas exploratórias ao Cemitério da Consolação, observando a distribuição espacial dos túmulos, sua temporalidade e caracterização geral, para apreender a maneira como se inserem na malha urbana paulistana. A partir do pressuposto de que o sentido da nudez está para além do despir de um corpo, considerei que esta desempenhava uma função discursiva naquele espaço e conjuntura. Como as representações associadas às práticas de trabalho eram mais numerosas, sobretudo dos túmulos de famílias imigrantes, revelaram-se certas similitudes e disparidades sobre o emprego da nudez na arte funerária3,

e propiciaram a escolha das duas construções funerárias em análise, por serem de autoria de Del Debbio, apresentarem uma associação entre masculinidade e trabalho e serem de famílias imigrantes.

Para a operacionalização da investigação destas representações do nu e do seminu e das masculinidades, foi necessário examinar as características do masculino (Gutmann, 1997, p. 387). Faz-se pertinente salientar que a inscrição dos sujeitos obedece à ordem simbólica – os corpos masculinos e/ou femininos podem se inscrever em lugares diferenciados, até mesmo contraditórios. Deste modo, observo que a análise da masculinidade deve contemplar às diferentes maneiras de ser homem, ou diferentes masculinidades, “ampliando as possibilidades de compreender os processos de atribuição de gênero” (Piscitelli, 2004, p. 185), o que permite observar mais atentamente como as características vistas como masculinas são utilizadas e relacionadas, para compor as esculturas selecionadas.

Diante disso, observou-se a morfologia das imagens, atentando primeiramente para a representação das diversas características físicas (compleição, pelos faciais e corporais, cabelos, faixa etária), em segundo lugar para a pose e gestos corporais marcantes na composição destas figuras e, finalmente, de possíveis figurinos, panejamentos e atributos adicionais na

mise-en-scène.4 O discurso de masculinidade em cada escultura é obtido a partir da representação

conjunta do físico, do posicionamento do(s) personagem(ns) e dos elementos aditivos. Em conformidade com o que Gutmann (1997, p. 386) defende, masculinidade é uma performance.

3 A partir do inventário das ocorrências de imagens masculinas, parcial ou completamente despidas, observou-se

que estas se utilizam de representações que ora destacam a sensibilidade perante a morte, ora deixam em relevo a virilidade em associação ao mundo do trabalho; opções nem sempre em consonância com a moral burguesa e o ideal de masculinidade do período.

4 Cada um dos túmulos, enquanto conjugação do suporte arquitetônico e das composições escultóricas, é

entendido como uma mise-en-scène, uma composição específica e organizada dos elementos cênicos. Por significar literalmente “colocar em cena”, o termo compreende, na linguagem teatral e cinematográfica, a organização dos componentes em cena: cenário/espacialidade, iluminação, caracterização/figurino e atuação (Bordwell & Thompson, 2001, p. 90). A partir dessa prática, o diretor determina o que é incluído ou não em cena, criando uma visualidade narrativa fechada. Embora o elemento da iluminação artificial não se faça presente na composição de um conjunto estatuário como os analisados neste trabalho, estes incorporam, tal qual uma peça ou um enquadramento fílmico, uma organização espacial determinada, e os personagens são apresentados com uma caracterização específica e gestual que contribuem para a fruição figurativa e simbólica das figuras. A devida análise da estrutura de cada um dos túmulos selecionados implica, portanto, a leitura da respectiva mise-en-scène, que inclui uma espacialidade determinada, a disposição dos personagens e sua caracterização, além dos gestos e poses.

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De forma ampla, a metodologia empregada considerou, em um primeiro momento, os elementos da forma, amparada pelas reflexões acerca da escultura enquanto linguagem artística, de seu suporte (neste caso, o espaço funerário), com suas funções próprias, e as determinações do contexto paulistano da primeira metade do século XX – sobretudo no que diz respeito à expansão urbana e suas consequências. Mas, para além da forma, observa-se a temática emergente das obras, sob o viés da História da Arte e das lentes de Didi-Huberman, e a maneira como cada imagem apresenta um “tempo ferido”, para se posicionar diante da finitude.

A primeira obra didi-hubermaniana a ser traduzida para o português e publicada no Brasil foi O que vemos, o que nos olha (1998). A expressão que dá título à obra e que apresentou Didi-Huberman ao público brasileiro foi emprestada de Ulysses, de James Joyce (2012), e desde então tem sido amplamente utilizada nos círculos de estudo imagético. Faz referência às tensões entre observador e coisa observada – mais que uma relação unilateral, aquilo que observamos, também nos observa. Em suas palavras: “Ora, imagem não é horizonte. A imagem nos oferece algo próximo a lampejos (lucciole), o horizonte nos promete a grande e longínqua luz (luce).” (Didi-Huberman, 2011B, p. 85)

Em se tratando do universo da arte, o aprendizado é interminável, visto ser um campo instigante em si mesmo, com leis e aventuras próprias. Uma imagem não é o simples resultado de uma transposição do real, mas é o produto do processo de leitura realizado pelo artista, a ser também apreendido pelo observador. “Talvez o mais importante seja que, para apreciarmos tais obras, há que ter um espírito leve, pronto a captar as sugestões mais sutis e a responder a cada harmonia oculta”, defende Gombrich (2013, p. 33).

Nesta perspectiva, refletir sobre as obras funerárias na perspectiva da história da arte, segundo Didi-Huberman, significa tomá-las enquanto “objectos problemáticos para a historicidade em geral, objectos para abrir a história até o cerne dos seus modelos de inteligibilidade bem como dos seus instrumentos de interpretação.” (2011a, p. 11 – grifado no original) Para o autor, abrir não significa somente ampliar, mas também ferir: é um ato de perfurar a imagem para se colocar diante do tempo. Mais do que uma ampliação do olhar acerca das imagens, proposto aqui, portanto, trata-se de uma abertura que atravesse os territórios da arte e da história, para que as imagens sejam capturadas e englobadas na ordem temporal/espacial que as precede. Em suas palavras:

Ampliar o seu domínio às imagens é adoptar, certamente, novos objectos, mas é também capturá-las, englobá-las na ordem que as precede. É olhar a interdisciplinaridade pelo mero prisma das relações territoriais, de modo que “ampliar-se” às imagens corresponda, mais ou menos, a estender o seu império e a sua autoridade a novas paisagens e a novos objectos. Muito diferente é a abertura que fere, perfura ou atravessa o território que acolhe a operação. Com efeito, só essa possui uma dimensão crítica, uma capacidade extraterritorial de atravessar as fronteiras, de criar caminhos inéditos e de modificar a consistência – começando pelos usos e costumes, as retóricas da autoridade – do território atravessado

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Tomar a história da arte sob esse prisma diz respeito a assumir um posicionamento crítico, que permita que os vocábulos em questão – Arte e História – possam se criticar e transformar reciprocamente. Trata-se de abrir as fronteiras disciplinares, conceituais e linguísticas, permitindo que os domínios do historiador sejam modificados pelas clivagens da arte, mesmo no seio dos seus modelos teóricos melhor estabelecidos, ainda conforme Didi-Huberman. Propõe-se, como chave de leitura de imagens funerárias a partir deste autor, “ferir” tanto o território histórico quanto o cemiterial, na medida em que se compreendem as imagens como dispositivos capazes de posicionar o humano sempre diante do tempo.

Didi-Huberman defende que as imagens tocam o real – até porque seria um enorme equívoco crer que a imaginação é uma simples faculdade de desrealização. Em sua opinião, uma das grandes forças da imagem é criar ao mesmo tempo sintoma (interrupção no saber) e conhecimento (interrupção no caos), porque imagem é “uma impressão, um rastro, um traço visual do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares – fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles” (2012, p. 216). As imagens expressam o poder e a força do pensamento figurativo e, uma composição funerária, seja sacra, seja profana, é representativa das esferas relacionais que alimentam seus sentidos e intenções significantes. Para Didi-Huberman (2012, p. 222), é preciso saber ver nas imagens aquilo de que elas são as sobreviventes. Assim a história, liberta do puro passado (enquanto absoluto e/ou abstração), pode contribuir para abrir o presente do tempo. Nesta abertura, abre-se a possibilidade de observar a masculinidade como performance e a maneira como os códigos de gênero são construídos no espaço funerário, para a perenização da trajetória dos sepultados.

Atributos de trabalho: a morte e a identidade do imigrante burguês

A primeira escultura a ser analisada procede do túmulo da Família Rizkallah Jorge (1949), situado no Cemitério da Consolação, de autoria do escultor Antelo Del Debbio (1901-1971) (FIGURA 01).

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FIGURA 01 – Túmulo da Família Rizkallah Jorge (1949), relevos em bronze de Antelo Del Debbio, Cemi-tério da Consolação.

FONTE: Acervo da autora, 2014.

Trata-se de uma edificação em formato capelar, com dimensão monumental e verticalizada, predominantemente construída com uso de linhas retas, revestida por placas de granito polido marrom.

O projeto arquitetônico é verticalizado e consiste na superposição de três volumes de granito, todos com base quadrada, mas progressivamente menores, no sentido ascendente. O bloco inferior é ligeiramente mais elevado que os demais. No alto, o conjunto é arrematado por um campanário de granito com um sino de bronze.[...]

O acesso à capela se faz por uma alta porta frontal de bronze, cuja metade superior apresenta um fundo de vidro, entrecruzado por duas lâminas verticais de bronze e três horizontais. Sobre cada uma das seis intersecções dessas barras, vê-se um pequeno painel retangular – igualmente em bronze – com símbolos alusivos à Paixão de Cristo, a saber: tenaz e colher de pedreiro; três lanças; três cruzes; as iniciais JHS e uma cruz; os cravos da crucificação; um azorrague. Uma cruz de bronze sobrepõe-se ao conjunto, exceto no quinto superior da parte envidraçada. Abaixo desta, veem-se diversas inscrições em árabe (Ribeiro, 1999, p. 400-401).

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Em cada face da construção foram inseridos dois conjuntos escultóricos confeccionados em bronze, todos com as mesmas dimensões. Nas faces frontal e posterior da edificação encontram-se figurações que remetem primordialmente à família (FIGURA 02).

FIGURA 02 – Detalhes dos relevos frontais e posteriores do Túmulo da Família Rizkallah Jorge .

FONTE: acervo da autora, 2014.

No primeiro nicho, um trabalhador de corpo nu, acompanhado por duas mulheres e duas crianças. A figuração inferior é de uma Pietà, com os traços escultóricos próprios do artista – dramaticidade contida e pose hierática. Na parte posterior, encontra-se no painel superior outra composição que faz referência ao conceito de família: um casal acompanhado por três crianças. Enquanto a mulher apresenta uma vestimenta peculiar às representações bíblicas femininas, o homem tem o torso nu e calças contemporâneas – vestuário comum, no período, para um homem de classe operária. No painel inferior, a figura do mesmo trabalhador em

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segundo plano, é acompanhada por outras duas imagens femininas. Uma traja vestuário árabe, possivelmente uma referência à origem do sepultado, e a outra é figurada a partir de convenções bíblicas; ambas portam uma guirlanda, representativa da saudade, diante da finitude.

A imagem composta por Del Debbio (FIGURA 03) é alusiva ao trabalho, eixo a partir do qual se constrói a concepção de masculinidade.

FIGURA 03 – Detalhes dos relevos laterais do Túmulo da Família Rizkallah Jorge.

FONTE: acervo da autora, 2014.

Aos pés das três figuras masculinas desnudas há uma bigorna e uma roda dentada. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 783), a roda participa da perfeição sugerida pelo círculo, com certa valência de imperfeição: refere-se ao mundo do vir a ser, da contingência, da criação contínua. É a associação com a criatividade que incentiva o uso como referencial de trabalho. A figura central porta uma balança alusiva tanto à justiça quanto à prática do comércio – elemento fundamental na biografia do sepultado. O painel abaixo evoca as atividades filantrópicas da Família Rizkallah Jorge, que incluem o Orfanato Lar Sírio e a Igreja São Jorge, ambos os edifícios representados em

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forma de maquetes, acompanhando as figuras em questão: um santo, uma mulher, um jovem e uma criança.Na lateral direita, no nicho superior, o trabalhador é representado juntamente com três figuras femininas, uma das quais ampara uma criança, exaltando o conceito de amor materno. Uma vez mais Del Debbio recorre à edificação dos valores burgueses, sendo um deles o da instituição familiar, entrevisto pela figuração da mãe, recorrente nos diversos painéis. Por sua vez, no oitavo e último nicho há três figuras, alusivas ao esporte: uma mulher segurando uma raquete e uma peteca, uma segunda mulher com uma coroa de louros, e um homem com um disco. A imagem masculina, em especial, está nua, coberta apenas por uma faixa de tecido, exibindo uma musculatura vigorosa, que sinaliza a virilidade e a constituição do ser homem, tal como os homens trabalhadores do primeiro painel lateral, à direita.

Os personagens compostos por Del Debbio possuem uma pose hierática, sóbria e contida. Não apresentam gestos bruscos ou dramaticidade. Há que se salientar: o trabalhador ideal é sóbrio, porque acreditava-se que um indivíduo ocioso não possui educação moral, responsabilidade ou respeito pela propriedade (Chalhoub, 2008, p. 74-75). O geometrismo da capela, inspirado pelo art deco, também se encontra presente na concepção das figuras. O tratamento anatômico é volumétrico e moderno, como ocorria com as obras de Arturo Martini (1889-1947)5. A monumentalidade da construção vertical engrandece os sepultados, ao mesmo

tempo em que o conjunto de painéis objetiva a construção de uma narratividade identitária para eles. Entretanto, a compreensão do enredo proposto por Del Debbio é prejudicada pela abundância e concentração de personagens e atributos.

No todo, a configuração escultórica de Del Debbio é alusiva à família, ao trabalho e aos valores considerados relevantes pela Família Rizkallah Jorge, como as atividades filantrópicas do sepultado. O imigrante armênio Rizkallah Jorge Tahan (1867-1949), ao desembarcar no porto de Santos, passou a se dedicar à fundição de cobre. Após três anos inaugurou a chamada Casa da Bóia. A empresa do imigrante, inicialmente dedicada à confecção de boias sanitárias, continua em atividade, atuando como distribuidora de metais não ferrosos e materiais hidráulicos. Nas palavras de Geraissati:

Sua trajetória na capital foi bastante singular. Ao contrário da maioria dos imigrantes de mesma procedência que chegavam à cidade e se envolviam com a comercialização de tecidos e outros objetos, tornando-se, assim, mascates, Rizkallah Jorge procurou uma profissão que se adequasse à atividade que exercia em sua terra natal: a fundição de cobre. Isto mostra uma peculiaridade deste imigrante dentro do grupo de sírio-libaneses que imigraram ao Brasil, pois a grande maioria destes homens eram camponeses analfabetos, já este sabia ler, escrever e era um artesão bem posto em sua sociedade de origem, algo que era notado dentro da comunidade aqui fixada e que foi explorado por ele como fator de distinção social e de capitalização (Geraissati, 2013, p. 340-341).

5 A obra de Del Debbio parece dialogar estreitamente com a fórmula da arte monumental italiana, própria sobretudo

da primeira metade do século XX, quando convergiram tendências modernistas, como o Futurismo, e academicistas, como o retorno à ordem. Isso resultou em um equilíbrio delicado, sintetizado no trabalho de artistas como o italiano Arturo Martini (1889-1947).

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A edificação projetada pelo imigrante é um dos principais exemplares do ecletismo arquitetônico na capital paulista, tendo sido tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo em 1992 e restaurado em 2008 (FIGURA 04).

FIGURA 04 – Fachada da Casa da Boia (início do séc. XX), fotografia de autoria desconhecida, Museu da Casa da Boia.

FONTE: acervo da autora, 2014.

Originalmente, o andar térreo possuía funções comerciais e o pavimento superior servia de moradia ao proprietário e seus familiares. Atualmente o prédio abriga a empresa da família – a Casa da Boia, e um museu, que busca preservar a historicidade de seu empreendedor, Rizkallah Jorge. Segundo Geraissati (2013, p. 347), a filantropia foi o principal fator que contribuiu para afirmar o imigrante nas comunidades que frequentou, e para sua mitificação. A leitura conjunta

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dos elementos tumulares concebidos por Del Debbio e da trajetória do sepultado Rizkallah Jorge evidencia o lugar concedido ao trabalho, numa perspectiva dignificadora do ser homem. Este é a espinha dorsal da figuração do escultor, que contribui para a mitificação do imigrante, enquanto burguês que conquistou um lugar de destaque na tessitura industrial de São Paulo. Seu desempenho de sucesso é marcadamente exaltado, mediante os conjuntos escultóricos, que também fazem constante referência à família e ao lugar ocupado pelo sepultado em seu meio social: mais do que um imigrante ou um burguês bem-sucedido, ressalta-se o trabalhador. Este é o discurso de masculinidade tecido por Del Debbio. Nas palavras de Piscitelli:

Nos relatos, antigos e recentes, o denominador comum no qual se assentam as considerações sobre as diversas maneiras de ser homem é o trabalho. Concebido como instrumento através do qual se concretizam as possibilidades “criadoras” e transformadoas (da matéria, “da terra e dos homens”) e como arma indispensável na luta, o trabalho, apresentado como constituinte da masculinidade, converte-se no eixo em torno do qual são tecidos [...] os estilos de ser homem (Piscitelli, 2004, p. 193).

As representações do trabalho, discursivas sobre a masculinidade, não se restringem à arte funerária. Durante o período realista, destacam-se as obras de Gustave Courbet (1819-1877), artista preocupado em representar o cotidiano e os trabalhadores, como vê-se em Os quebradores de pedra (1849)6 (FIGURA 05).

No centro da composição estão dois trabalhadores, um adulto, que reduz pedras com um martelo, e um menino, que carrega os fragmentos em um grande cesto, possivelmente filho do primeiro. Ambos são representados de forma pouco idealizada, debruçados sobre suas tarefas com resignação. Seus rostos não aparecem, de modo que seus trajes, gastos e rasgados, compõem sua identificação: são anônimos, como tantos outros trabalhadores; o próprio cenário parece indicar que vivem à margem. Junto dos trajes, as ferramentas e a marmita postas de lado, em meio ao local de trabalho, compõem um cenário de simplicidade e rudeza. Ao fundo, destaca-se a grande sombra de uma colina, que dá espaço a um pequeno fragmento de céu. Os trabalhadores, em sua movimentação forçosa e monótona, destacam-se contra o painel desolado e monocromático.

6 Exposta em Dresden, infelizmente foi destruída no bombardeio da cidade em fevereiro de 1945, durante a Segunda

Guerra Mundial. Os quebradores de pedra, obra considerada por muitos como fundadora do realismo, despertou inúmeros comentários críticos, à época de sua concepção. Exposta no Salão de Paris em 1850-1851 juntamente com Os camponeses de Flagey retornando da feira (1848) e Enterro em Ornans (1850), constitui com estes uma espécie de trilogia realista de Courbet (Taylor, 2005, p. 552-554).

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FIGURA 05 – Os quebradores de pedra (1849), óleo sobre tela de Gustave Courbet, destruída.

FONTE: FABRIS, 2013, p. 171.

Portanto, representados de maneira quase fotográfica, os dois quebradores de pedra de Courbet são figurados em trajes humildes em uma paisagem ruralista. O artista é considerado o criador do realismo social na pintura, ao voltar-se para temas cotidianos e à figuração de personagens ordinários, como os ferreiros de Goya.

Courbet voltou-se à pintura de pessoas comuns, trabalhadores, camponeses, burgueses rurais. Mas estes às vezes recebiam o escopo monumental que deveria ser reservado à pintura histórica. O realismo significou o “desaparecimento do tema”, no sentido de uma cena ou evento já tornado canônico pela história, pela religião ou pela cultura clássica e que a pintura se propõe a representar. Mas os acontecimentos comuns sem esse significado estabelecido recebem a dignidade de tratamento antes restrita aos que o possuíam. Isso foi intencionalmente uma rejeição da hierarquia e, em certo sentido, um deslocamento. Esses novos “temas” estavam tomando o lugar dos antigos; uma afirmação estava sendo feita sobre sua dignidade (Taylor, 2005, p. 554).

Courbet não pretendeu idealizar suas representações do cotidiano. Suas obras buscam propriamente a expressão do real, renunciando em especial a toda retórica romântica, que lhe

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era contemporânea. A dignificação do trabalhador não se dá pela via da idealização do tema, mas pela visualidade que concede a personagens comuns, anônimos – como os quebradores de pedra. Ao invés de fazer uso de temas e da inspiração mitológica, o objetivo de Courbet era retratar a vida e os problemas reais de seu tempo. Desse modo, o discurso pictórico de Courbet e dos realistas em geral assume o trabalho como peça central de sua visão de mundo. Ao tratar de forma individual tais eventos mundanos, tal como ocorrem, estes artistas fazem a opção de romper com as narrativas convencionais da arte acadêmica de então. Assim, a figura do próprio trabalhador, para além da arte, é repensada, à medida em que expressa a própria complexidade histórica do cenário europeu no período. Chiarelli salienta que, muito embora a obra de Gustave Courbet, comprometido com a realidade social francesa, tenha sido a mais radical, entre todas as iniciativas realistas do período, efetivamente não é exclusiva neste contexto.

Antes e em paralelo a tal produção, era possível perceber na cena inglesa e francesa um interesse crescente de certos artistas em eleger paisagens campestres ou suburbanas, trabalhadores das classes sociais menos favorecidas do campo e da cidade, como temas para suas obras (Chiarelli,

2007, p. 217).

Tais iniciativas não ficaram restritas ao contexto europeu. No Brasil, Almeida Júnior (1850-1899)7 é o artista que melhor assimilou o legado realista de Courbet, articulando-o a uma

abordagem regionalista, e introduzindo temáticas até então inéditas na produção acadêmica brasileira.

Tal como Courbet, Almeida Júnior concede amplo destaque a personagens ordinários e anônimos. Dedicou-se especialmente a criar um vívido retrato da cultura caipira, sobretudo paulista, num viés real-naturalista, em detrimento da monumentalidade até então em voga no ensino artístico oficial. Ademais, o artista foi capaz de criar uma impressão de proximidade entre o espectador e a cena retratada, constituindo-se um ambiente intimista. Do conjunto de sua obra, destacam-se as composições de caráter regionalista, que retratam a arquitetura de pau-a-pique e o homem do interior, de barba rala e pés descalços, dentre as quais O derrubador brasileiro (1879) (FIGURA 06).

Exposta no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, a referida obra é a primeira de sua autoria a apresentar temática nacional. “Esta obra foi produzida no período em que o pintor estava na Europa e a paisagem que foi pintada de memória, difere das demais obras regionalistas que foram pintadas a partir da observação do real” (Frias, 2013, p. 31).

7 O pintor, de origem humilde e proveniente do interior do Estado de São Paulo, iniciou seus estudos na Academia

Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Mais tarde, em função de uma bolsa de estudos cedida pelo Imperador, ingressou na Escola de Belas Artes de Paris. Segundo Frias (2013, p. 30), sendo um pintor de formação acadêmica, sua produção pictórica caracterizava-se pela excelente qualidade técnica, mantida em toda sua trajetória.

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FIGURA 06 – O derrubador brasileiro (1879), óleo sobre tela de Almeida Júnior.

FONTE: Acervo Online. Museu Nacional de Belas Artes

Ainda que os traços acadêmicos de sua formação não sejam totalmente abandonados, sua plástica é autêntica e inovadora, à medida em que são mesclados elementos do realismo europeu, à temática tropical, sem prescindir de delicado refinamento técnico, para a concepção de uma imagem efetivamente nacional. Nas palavras de Souza:

Pintada em Paris em 1879, trai, na presença do rochedo, a concepção grandiosa do Realismo; mas nos demais elementos, nos coqueiros, na natureza tropical do pequeno trecho de paisagem, nas feições mestiças da figura, exprime a nostalgia da pátria distante. É nosso, sobretudo, o jeito do homem se apoiar no instrumento, sentar-se, segurar o cigarro entre os dedos, manifestar no corpo largado a impressão de força cansada, a que Candido Portinari parece não ter sido insensível (Souza,

1974, p. 120).

O personagem ao centro da composição traduz uma identidade, seja brasileira, seja especificamente interiorana. Esta se expressa tanto nos traços faciais nitidamente mestiços do homem de pele bronzeada e barba rala (ainda que o modelo utilizado tenha sido um italiano);

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quanto em sua pose displicente, marca de uma força física em estado de repouso: apoia-se no machado, pernas abertas, os pés repousando à vontade, palheiro entre os dedos, costas reclinadas contra a rocha. São elementos que caracterizam tanto a atividade do personagem enquanto derrubador, quanto a sua masculinidade, associada aovigor físico e, talvez, certa brutalidade, em sua caracterização e gestualidade.

Este corpo forte e em repouso transmite também uma sensualidade latente na ênfase concedida pelo artista aos contornos da musculatura, ressaltada com brilhos de suor, e ao enquadramento, que situa os músculos abdominais e o baixo-ventre do trabalhador como ponto fulcral da figuração. Sobre esta sensualidade na tessitura da composição, Perutti argumenta que a luminosidade da própria tela contribui para a construção discursiva em questão: “as pernas abertas da personagem [...], ocupando uma área significativa na pintura, forma uma espécie de grota, com espaços bem delimitados geometricamente e que conferem às partes baixas de seu corpo um grande destaque na cena” (Perutti, 2007, p. 211).

O cenário ao redor é uma declaração identitária tão forte quanto a figura humana: coqueiros, cactos, bromélias e samambaias emolduram o derrubador, construindo uma paisagem acima de tudo brasileira. Ao mesmo tempo, a obra é tributária do estilo paisagístico anteriormente visto em Courbet, em sua composição Os quebradores de pedra. O céu ao fundo denota, associado ao brilho do corpo, a importância do trabalho com a luz para o artista: embora trate-se de uma obra composta em estúdio, o tratamento da luminosidade é dotado de nuances e contrastes, podendo ser classificada como proto-impressionista.

Dentre as questões que permeiam a produção regionalista de Almeida Júnior, uma das mais complexas é a questão do clareamento da paleta de cores apresentado nestas obras. As cores usadas nas obras regionalistas são mais vivas, o artista altera alguns tons de cores de sua paleta tornando-a mais clara. Uma das explicações dos críticos para o uso das “novas cores” estaria relacionada à representação da luminosidade natural das paisagens que o pintor retratou, que seriam reflexos da natureza tropical. Outra explicação seria a influência da “luz impressionista” com a qual o pintor teria tomado contato durante o período em que esteve em Paris (Frias, 2013, p. 33).

Almeida Júnior aprimora a representação do caipira e/ou do homem trabalhador em obras subsequentes, como Caipira picando fumo (1893) e Amolação Interrompida (1894). A partir destas e de outras obras, de acordo com o que postula Chiarelli, Almeida Júnior pode ser considerado como o elo problemático, unindo a paisagem física local à paisagem humana. Deste modo, para o autor, as pinturas “caipiras” do artista seriam “uma espécie de arrolamento estético-documental do que o paulista do final do século XIX supostamente deixava de ser – um miserável, vivendo em condições degradantes, submetido a uma apatia pouco produtiva” (Chiarelli, 2009, p. 138). Talvez o artista do interior paulista tenha pretendido preservar nas telas esse tipo humano supostamente em extinção, ameaçado ora pelos imigrantes cada vez

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numerosos, ora pelos “novos paulistas”, entretidos com a prosperidade da economia cafeeira. Talvez seja o que acontece com a representação dos trabalhadores por parte de Del Debbio nas construções tumulares, tanto da Família Rizkallah Jorge quanto da Família Demétrio Calfat, a ser analisada adiante, ambas do final da década de 1950. Especificamente, no que diz respeito à arte funerária, a presença dos trabalhadores constitui indicativo de afirmação da classe burguesa, muitas vezes proveniente dos fluxos imigratórios do início do século XX. No caso de Rizkallah Jorge, as alegorias relacionadas ao labor se propõem a reafirmar seu protagonismo no cenário paulistano. Para o imigrante, o trabalho, seja agrícola, comercial ou industrial, era com frequência a alternativa para a ascensão social e econômica.

Com base em Scott (1995, p. 93), questiona-se que compreensão de gênero se inscreve aqui. A presença das representações de labor nos túmulos, por intermédio dos atributos e/ou dos trabalhadores, é uma forma de perenização enobrecedora dos sepultados, perspectiva que contribui para a mitificação do burguês, sobretudo do imigrante burguês – é uma representação de masculinidade expressiva das relações de poder da sociedade paulistana do período, que vê (ou deposita) no imigrante um modelo de homem a ser seguido.

Absorvidos pela sociedade brasileira, na grande maioria dos casos os imigrantes experimentam uma relação entre o homem e a terra e entre o trabalhador e o proprietário que havia se tornado difícil no país de origem [...]. Em consequência, a interpretação que o próprio imigrante desenvolveu sobre a acumulação primitiva, a expropriação, a expulsão e a migração para a sociedade brasileira assumiu um conteúdo conservador. A sociedade de adoção aparentemente recriava relações que estavam desaparecendo no país de origem e se apresentava para ele como a “boa sociedade”, pois os que o expulsaram da terra e que se beneficiaram com a expulsão não estavam aqui. A sociedade brasileira, de certo modo, oferecia-lhe de volta o que lhe haviam tirado no país de origem (Martins,

1979, p. 119).

Deste modo, a via do trabalho assume a função de sintetizar a identidade do imigrante/ trabalhador (mesmo para os já enriquecidos e que efetivamente não trilharam necessariamente uma trajetória camponesa e/ou operária): são as terras tropicais que permitiram a ascensão social destes personagens, e é esta memória que deverá ser perenizada nas edificações tumulares. Conforme pontuado anteriormente, os imigrantes foram convertidos em modelos de trabalhadores a serem seguidos e, por consequência, modelos de masculinidade, vistos como sóbrios e sempre dispostos ao trabalho árduo e à vida difícil, sacrifícios estes que seriam compensados posteriormente (Chalhoub, 2008, p. 77). Assim, a representação do trabalho é diretamente conexa à concepção de masculinidade, claramente reforçada a partir da consolidação do sistema capitalista. Nas palavras de Nolasco:

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cada vez mais a reforçar e a definir os padrões de comportamento masculinos. Desejar construir um patrimônio e ter status e poder podem ser parâmetros tanto para analisarmos os valores do sistema capitalista como para identificarmos as principais diretrizes que um homem deva tomar para si. É pela determinação da função do que é o trabalho, segundo a especificação capitalista, que estará sendo mantida a direção para os comportamentos e projetos homens (Nolasco, 1993, p. 52).

O trabalho, portanto, assume a função de caractere identificador do conceito de homem e masculinidade. O autor ainda pontua que, para os homens, o trabalho equivale ao significado que a maternidade assume para as mulheres e para a feminilidade: a única possibilidade de realização, aquilo que identifica um homem como tal. Conforme Martins (1979, p. 150), no caso brasileiro, o paternalismo e o populismo burgueses estão diretamente fundados nessa concepção do trabalho masculinizado, do homem protetor, o que favorece a consolidação da ideologia do trabalho dignificante, legitimando a exploração do trabalhador. Os símbolos podem ser os mesmos do passado, conforme pontua Scott (1995, p. 93), mas são os processos políticos e sociais, temporal e espacialmente localizados, que determinam os resultados e/ou as leituras que irão prevalecer. Em outras palavras, a categoria “homem” é aqui preenchida com os atributos de trabalho, para construir um ideal de masculinidade específico e consoante com o contexto paulistano.

O caminho viril: força física e trabalho como síntese mitificadora

Na mesma linha simbólica, o escultor Antelo Del Debbio (1901-1971) concebeu outro conjunto tumular, que apresenta o tema do trabalho em sua tessitura. É a construção da Família Demétrio Calfat (FIGURA 07).

A data da edificação do túmulo da Família Demétrio Calfat no Cemitério da Consolação é imprecisa, visto que a data de sepultamento de Demétrio Calfat é desconhecida – provavelmente remonta à década de 1950. É sabido que a Família Calfat, de origem libanesa, desempenhou relevante papel no processo de industrialização de São Paulo. O libanês Miguel Calfat (1881-1957) (irmão de Demétrio Calfat) teria emigrado para o Brasil em 1901, tendo inicialmente se dedicado à atividade comercial em Dourados. Mais tarde, mudou-se para São Paulo com os irmãos Elias, Demétrio e Gabriel, ali fundando a firma comercial e industrial Elias Calfat & Irmãos, empresa têxtil. As atividades comerciais ligadas a este ramo foram sendo ampliadas pelo grupo familiar ao longo dos anos.

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FIGURA 07 – Túmulo da Família Demétrio Calfat (c. 1950), esculturas em bronze de Antelo Del Debbio, Cemitério da Consolação.

FONTE: acervo da autora, 2014.

O complexo tumular Calfat é uma estrutura monumental, predominantemente verticalizada, revestida por placas de granito preto polido, estabelecida sobre uma grande base, do mesmo material. Em um plano elevado está afixado um conjunto escultórico confeccionado em bronze, acompanhando o ângulo formado pelas faces frontal e lateral esquerda da construção, sem sustentação inferior. O grupo é formado por cinco figuras humanas e uma figura angelical, sem contar os infantes que as acompanham (FIGURA 08).

Na parte frontal, observa-se o busto em baixo relevo, retratando Demétrio Calfat. Sob uma figura angelical de contornos femininos, encontram-se cinco personagens, além dos infantes. Da direita para a esquerda, uma mulher acompanhada por um menino, ao seu lado uma segunda mulher, segurando um bebê em seu colo, um homem com o torso nu, posicionado no exato ângulo frontal esquerdo, ladeado por outra figura feminina e um segundo personagem masculino, também com o torso nu, fechando o grupo. A composição tecida por Del Debbio

Referências

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