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As crianças Guarani e Kaiowá, cultura material e religiosidade no acampamento Itay, Douradina -MS 1

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As crianças Guarani e Kaiowá, cultura material e religiosidade

no acampamento Itay, Douradina -MS

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Beatriz dos Santos Landa, UEMS/MS A partir da década de 1980, as modalidades de assentamentos Guarani e Kaiowá foram se diversificando para atender a realidade sócio-histórica e territoriais vivenciadas em Mato Grosso do Sul, associadas aos movimentos de mobilização empreendidas por este povo na busca do reconhecimentos dos seus direitos territoriais e étnicos negados ao longo do século XX e início do XXI. Neste contexto, o surgimento de acampamentos foi uma das respostas à violação do direito à terra, e multiplicaram-se na região tradicional de ocupação, enquanto a situação fundiária permanece sem solução adequada até o presente momento. A presença das crianças é marcante para qualquer visitante nestes novos espaços de luta, independente da condição na qual se encontre: pesquisador, professor, jornalista, antropólogo. É possível vê-las em todos os espaços executando as mais diversas atividades, e uma destas é o aprendizado de aspectos da religiosidade empreendidas por elas ao anoitecer, no mesmo momento em que os adultos também realizam seus rituais tradicionais. Busca-se apresentar a ação das crianças presenciada no Primeiro Encontro de Acampamentos Indígenas ocorrido no acampamento Itay, no município de Douradina-MS, destacando os aspectos da organização entre as crianças neste aprendizado, a cultura material utilizada e uso do espaço por meio da abordagem etnoarqueológica com a perspectiva de melhor compreender os dados arqueológicos provenientes de sítios Guarani coloniais e pré-coloniais.

Palavras-chave: Crianças Guarani e Kaiowá, acampamento indígena, cultura material e religiosidade

Introdução

Os povos indígenas do estado de Mato Grosso do Sul tem nos últimos dez anos ampliado e consolidado a luta pelo reconhecimento e demarcação de terras tradicionais de onde foram sistematicamente sendo expulsos durante o século XX, por meio de diferentes estratégias de ocupação por não-índios. Estas retomadas contam com a participação de diferentes grupos etários presentes na comunidade. Assim, nas diferentes manifestações e situações de ocupações territoriais dos povos Guarani e Kaiowá são vistos adultos, idosos, jovens e crianças por todos os espaços.

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Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.

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A efetiva participação das crianças em todos os aspectos da vida social nas áreas indígenas tem sido objeto de investigação mais recentemente, e tem demonstrado a importância destas enquanto agentes de produção, reprodução, transformação cultural, e como definidoras e redefinidoras de seus papéis na sociedade, corroborando que são sujeito sociais plenos e produtores de sociabilidade e cultura (NASCIMENTO, AGUILERA URQUIZA, VIEIRA, 2011; NASCIMENTO, LANDA, AGUILERA URQUIZA, VIEIRA, 2009; TASSINARI, 2011).

O antropólogo Levi Pereira (2006), a partir do que é presenciado atualmente no estado de MS em termos de ocupação espacial pelos Guarani e visando oferecer uma melhor compreensão destes diferentes modalidades de assentamentos, classificou-os da seguinte maneira: a) Reservas2: criadas entre 1915 e 1928, são as que apresentam as maiores taxas populacionais e problemas variados, sendo a restrição territorial e a impossibilidade de viver o ñande reko (nosso modo de ser) em plenitude que tem levado a luta por ampliação destes espaços ou a retomada de áreas tradicionais; b) índios ou populações de “corredor”, ocupadas por famílias isoladas que passaram a residir às margens de rodovias e estradas vicinais; c) acampamentos, organizados para a retomada de terras consideradas pelos índios de ocupações tradicionais d) as populações que vivem nas periferias das cidades.

Uma outra modalidade que não foi listada pelo autor anteriormente citado, são aquelas áreas que foram reconhecidas e demarcadas a partir da década de 1980, como são os casos da Terra Indígena Cerrito no município de Eldorado e a Terra Indígena Panambizinho, no município de Dourados. Posteriormente em outro trabalho (2010) incluiu estas áreas demarcadas e mais uma categoria que são os acampamentos dentro das áreas de fazenda, no qual o acampamento Itay é um exemplo e estas reservas demarcadas

Considerando a complexa situação vivida pelos Guarani que a todo instante se reorganizam para sobreviver física e culturalmente para lutar pelos seus territórios expoliados no processo de avanço do setor agropecuário intensificado a partir da década de 1960, além destas modalidades citadas anteriormente, devem haver configurações que aglutinam estas e outras formas de localização no espaço.

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A seguir são relacionados junto com os municípios onde estão inseridas atualmente: Dourados ou Horta Barbosa (Dourados), Amambaí e Limão Verde (Amambaí), Pirajuy (Paranhos), Caarapó (Caarapó), Taquaperi (Coronel Sapucaia), Porto Lindo (Japorã) e Sassoró/Ramada (Tacuru)

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Em 2010, este mesmo pesquisador, ao ouvir lideranças tradicionais que assumiram o desafio de reorganizar a comunidade com vistas a reivindicação territorial, foi destacado que “Em tais situações as lideranças costumam buscar apoio nos valores religiosos do grupo para conseguir êxito nesta difícil tarefa” (p. 120), o que é corroborado por Ambrósio Vilharva, liderança na luta pelo reconhecimento do território tradicional denominado por Guyra Roka ao afirmar que

“quando iniciou o trabalho de reorganizar as famílias para retomar o território, sentiu necessidade de aprender mais sobre o sistema dos antigos. Disse que com a expulsão da comunidade de Guiraroká e a vida errante pelas fazendas e reservas demarcadas , a família de seus pais, que pertence a uma linhagem de rezadores renomados, foi obrigada a interromper muitos ciclos de rezas. Dessa forma, as pessoas de sua geração ficaram com uma lacuna na formação.(...) “ (PEREIRA, 2010, p.120)

Neste artigo, será abordada a participação das crianças e adolescentes em uma das atividades noturnas que ocorreram no 10 Encontro de Acampamentos Indígenas3 ocorrido no acampamento Itay, no município de Douradina-MS, destacando os aspectos da organização entre as crianças neste aprendizado, a cultura material utilizada e uso do espaço por meio da abordagem etnoarqueológica com a perspectiva de melhor compreender e interpretar os dados arqueológicos provenientes de sítios Guarani coloniais e pré-coloniais. Esta atividade ao mesmo tempo corrobora as palavras da liderança anteriormente mencionada de que nestes momentos de retomada de áreas consideradas de ocupação tradicional, é necessário aprender sobre o sistema dos antigos, que neste caso inclui as práticas religiosas, em geral lideradas pelos mais idosos para aumentar a coesão grupal, e num segundo momento problematizar a frase ouvida frequentemente, em situações variadas entre índios e não-índios de que os jovens e as crianças não querem mais aprender com os mais velhos, não praticam mais as rezas, os cantos, as danças e os costumes tradicionais.

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Os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul

Vários estudos tem apresentado em profundidade o percurso histórico dos povos Guarani e Kaiowá no estado destacando desde os tempos pré-coloniais e coloniais, as sucessivas perdas territoriais ocorridas durante o século XX, o confinamento4 nas oito reservas criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio/SPI e o acirramento das disputas territoriais entre os proprietários de terras e indígenas em diferentes municípios no Estado (BRAND, 1993, 1997, 1998; COLMAN, 2007; FERREIRA, 2007; LANDA, 2005; MURA, 2010 entre outros)

Arqueologicamente os dados existentes para a presença de grupos culturalmente filiada aos Guarani, a pelo menos 2000 anos, desde a sua origem e saída da Amazônia, com seu processo já conhecido de expansão pelo território brasileiro através dos grandes rios até a chegada no rio da Prata, região ao sul do continente (BROCHADO, 1984; NOELLI, 1993). Para o estado de MS, esta presença foi estudada tanto na bacia do rio Paraná como na bacia do rio Paraguai, do com datações em torno dos 600 anos (EREMITES DE OLIVEIRA, VIANA, 2000; KASHIMOTO; MARTINS, 2009; LANDA ,2005; PEIXOTO, 2003 ).

No Estado, a população de indígenas é de 68860 (portal saúde) pertencentes as etnias Guarani, Kaiowá, Terena, Kadiwéu, Kinikinau, Guató, Ofaié, Kamba. Destes, 42866 são falantes do Guarani, sendo 31741 kaiowás e 11125 guaranis- ñandeva representando 62% e que apresentam o menos espaço territorial associado a problemáticas sociais, econômicas, educacionais, produtivas e de sustentabilidade. No presente estudo será apresentada uma das situações de acampamento vivenciada por Guarani e Kaiowá na luta pela terra.

A formação, a estruturação e a organização dos acampamentos está iniciando a ser estudado em suas especificidades (LUTTI, 2009a e b, 2012) e as motivações iniciais dos deslocamentos de grupos familiares para estes espaços que incluem a exploração econômica da ampla região de ocupação tradicional dos Guarani atestada por dados históricos, etno-históricos e arqueológicos. Para a antropóloga

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Definição do historiador Antônio Brand: “Entendo por confinamento o processo histórico de concentração da população Kaiowá/Guarani dentro das reservas demarcadas até 1928, após a destruição de suas aldeias e/ou a conclusão do processo de implantação de fazendas de gado e correspondente desmatamento do território tradicional. Este processo histórico de confinamento geográfico e cultural se acentua durante a década de 1970, com a mecanização da lavoura e correspondente ampliação do desmatamento do território tradicional Kaiowá/Guarani” (BRAND, 1993; 1997, p. 91-108; 1998, p. 21)

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(...) os acampamentos são uma resposta relativamente recente ao esbulho sofrido por comunidades indígenas e ao processo de territorialização nas reservas. A partir dos dados levantados em campo e em documentos consultados no Ministério Público Federal em Dourados, estima-se que eles começaram a surgir no estado a partir da década de 1980.(...)

No relatório (ELOY, 2012) produzido por membros do CIMI em visitas a alguns acampamentos indicam três fatores para a formação dos acampamentos destes.

O primeiro é a luta pela terra, o retorno ao tekoha e a violenta expulsão, como são os casos mais recentes de Kurusu Ambá,

Guayviry, Laranjeira Nhanderu e Ypo’i. (...) A segunda causa são os próprios confinamentos, onde inúmeras famílias extensas são jogadas e obrigadas a viverem justapostas, desencadeando processos de conflitos internos (...). O terceiro processo de formação dos acampamentos vem se dando através da expulsão de famílias que ainda sobreviviam em alguns fragmentos de mata nos fundos de fazenda e que foram sendo rapidamente destruídas a partir do acelerado processo de expansão da monocultura da soja e atualmente da cana.

O primeiro encontro de acampamentos indígenas teve a presença de representantes lideranças Guarani, Kaiowá e Terena de onze acampamentos da região sul do Estado e foi realizado em três dias de discussões e apresentações das demandas de cada uma destes assentamentos e no final foi elaborado um documento que foi publicado pelo CIMI no dia 16 de novembro de 2011, onde explicitam a situação de angústia, medo e a certeza de novas represálias e conflitos a que estão expostos por lutarem pelo reconhecimento de direitos garantidos pela Constituição brasileira.

Em meio a este cenário, as crianças ocupam todos os lugares e estão presentes em todas as atividades realizadas no encontro, sejam aquelas previstas somente para elas por meio de graduandos de universidades do estado, como aquelas em que os relatos de violação dos direitos indígenas são uma constante. Assim, é possível ver bebês amamentando, dormindo ou aconchegadas no colo da mãe ou de alguma parente próxima; as que dominam a marcha circulando próximas as suas cuidadoras; e os maiores explorando o local em brincadeiras, saídas próximas e vivenciando talvez uma segurança maior que pode não ser sentida no acampamento de onde é originária.

Há que se destacar que o acampamento Itay onde aconteceu o primeiro encontro, está situado ao lado da Terra Indígena Panambi, no município de Douradina/MS e encontra-se afastado de condições que podem criar ainda mais insegurança como é o caso dos que se localizam próximos a rodovias onde as crianças devem ser alertadas para o perigo que o tráfego de veículos representa, principalmente em estradas com

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pouco ou nenhum acostamento. A exposição às intempéries que torna todas as situações mais complexas e a ausência de políticas públicas adequadas para lidar com a questão, como ocorre em Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante/MS onde em períodos chuvosos, os indígenas convivem com alagamentos e perigo de animais peçonhentos. Isto não significa que esta situação de acampamento é aceitável, mas há menos interferências que requeiram atenção redobrada por parte dos responsáveis do local. Por este motivo as crianças e as mães podem considerar que estão em um local “seguro” ao ser comparado com outras realidades de assentamento contemporâneos.

Outras investigações conduzidas sob perspectivas teórico-metodológicas diversas e com objetivos diferenciados (COHN, 2005; LANDA, 2005, 2011; CODONHO, 2009; ASSIS, 2010) só para citar alguns, confirmam o que a pedagoga Adir Nascimento (2006, p.8) concluiu em seus estudos que o processo de aprendizagem ocorre quando

a criança aprende experimentando, vivendo o dia da aldeia e, acima de tudo acompanhando a vida dos mais velhos, imitando, criando, inventando, sendo que o ambiente familiar, composto pelo grupo de parentesco, oferece a liberdade e a autonomia necessárias para esse experimentar e criar infantil.

corroborando que estes são sujeito sociais plenos e produtores de sociabilidade e cultura e que suas manifestações devem ser analisadas sob uma ótica diferenciada já que as culturas infantis associam as culturas adultas com o repertório próprio das crianças. (NASCIMENTO, AGUILERA URQUIZA, VIEIRA, 2011, NASCIMENTO, LANDA, AGUILERA URQUIZA, VIEIRA, 2009; TASSINARI, 2011).

As crianças Guarani e Kaiowá e as atividades religiosas

No acampamento Itay há uma casa de reza/ogapysy construída em formato considerado tradicional que é a ogajekutu que no passado tanto podia abrigar os membros de uma mesma família extensa, como podiam servir aos caciques para as suas rezas, cantos e danças tradicionais onde eram realizadas cerimônias como o batismo das crianças, o batismo do milho, a introdução do tembetá nos meninos, enfim, esta casa tradicional foi variando em material construtivo, tamanho, função. As pesquisas apontam para a caracterização da ogajekutu , que é uma “casa fincada’, (kutú, fincar, cutucar) ou, em português, ‘casa beira-chão” (SCHADEN, 1974, p. 26), “construções beira-chão” (MURA, 2000, p.45), “casa de paus fincados no chão” (ROSSATO, 2002, p. 162). O pesquisador Fábio Mura (2000, p. 45/6), em seu estudo detectou dois tipos

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diferentes para esta construção: um que tem “os pilares centrais que sustêm a viga cumeeira”(...), e o outro “que tem vigas laterais e/ou transversais com ausência de colunas centrais (nesta última a transmissão ao solo das cargas da linha cumeeira é feita através dos tirantes).”

A ogapysy do acampamento comporta em torno de 50 pessoas, tem duas aberturas para entrada e saída do ambiente de tamanhos diferentes. Internamente apresentava somente um guarda-roupa, redes penduradas nos travessões e instrumentos de uso das mulheres nas danças para marcar o ritmo / taquapy ou takua. É construída de material retirado da mata sendo que as paredes são sustentadas por taquaras e a cobertura é de sapé. A frente da abertura maior está o altar denominado por mbae marangatu representado por uma cruz de pouca altura onde podem ser dispostos instrumentos rituais.

É nesta construção que são realizadas as práticas religiosas, principalmente ao cair a noite, após o encerramento das atividades diárias, e no evento em tela após as discussões das demandas dos que estão nos acampamentos. Em geral estas atividades são iniciadas pelo rezador e as mulheres e em seguida os demais aproximam-se para participar ou somente observar. Como estava quente e havia muitas pessoas, os cantos rituais ocorreram externamente à casa de reza ao redor do altar existente. As mulheres portavam tanto a taquara ritual quanto o mbaraka, e a maioria estava com roupas diferentes para esta atividade religiosa. As roupas- saias, blusas e vestidos- eram de algodão branco, pintadas com motivos geométricos e em alguns pontos pendiam fios e bolas de lãs coloridas, com tons de branco, vermelho, laranja, verdes e azuis. Na cabeça, a maioria usava o cocar também feito com lãs coloridas, mas as cores predominantes eram a amarela e a laranja. Algumas meninas e jovens também estavam com este mesmo tipo de vestimenta, inclusive o adorno de cabeça.

Após uns 30 minutos foram ouvidas vozes infantis, cujo som vinha da parte interna da ogapysy. Eram sete meninas com idades entre 7 e 12 anos que dançavam e cantavam uma música diferente da que era entoada no ambiente externo liderado pelos adultos. Estavam com o rosto pintado e algumas portavam a taquara ritual. Estas meninas estavam anteriormente no grupo dos adultos, e certamente foram as que iniciaram a atividade somente entre as crianças. Aos poucos outras crianças aproximaram-se e o grupo mais que dobrou, sendo que alguns foram para o círculo para dançar e cantar, enquanto outras mantiveram-se observando. Os meninos que se aproximaram portavam o mbaraka e com ele participaram da atividade que se tornou

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eminentemente infantil. O canto e dança tiveram a duração em torno de 30 minutos. Após, alguns juntaram-se ao grupo dos adultos que continuavam com suas rezas, enquanto outras dispersaram-se pelos espaços do acampamento.

Em relação a esta atividade noturna presenciada e que foi protagonizada pelas crianças vou me deter em dois aspectos: o primeiro é a cultura material envolvida nesta ação e que será analisada pela abordagem etnoarqueológica como levantamento de dados importantes para a interpretação dos vestígios arqueológicos obtidos nas pesquisas, e o segundo é a inserção e participação das crianças em momentos de religiosidade expressa associada a discussão sobre a retomada de terras tradicionais.

A participação e influência das crianças na formação de sítios arqueológicos apresenta-se como uma nova variável a ser considerado na interpretação tanto dos dados materiais coletados, quanto na conformação espacial dos contextos onde estes são encontrados. O arqueólogo Gustavo Politis (1999, p.263) ao tratar da interferência das crianças em contextos arqueológicos destaca que

“(...) Básicamente se ha reconocido explicitamente algo absolutamente obvio: que los niños son tanto productores como consumidores de cultura material” e alerta que há uma tendência em se assumir que o material recuperado assim como os vestígios de sua produção tenham sido produzidos por adultos somente “por ausencia (

default) de otros actores sociales”.

Esta tendência resultou em interpretações nas quais foi ignorada a importância das crianças como atores sociais que participam de muitas atividades nas quais eventualmente o segmento masculino ou feminino não tem acesso, partilham dos mesmos códigos culturais vivenciados pela comunidade e também produzem, reproduzem, utiliza, usam e descartam bens materiais de uso cotidiano como aqueles específicos para rituais e eventos específicos relacionados ao sagrado. Neste aspecto, há que se destacar que aprendem não somente com os adultos, mas também com outras crianças e jovens com os quais dividem seu tempo, brincadeiras e aprendizagens no que é denominada por Codonho (2009) como “transmissão de saberes horizontais”. Nesta noite, ocorreu exatamente isso, pois assim como havia crianças que sabiam o ritmo a ser produzido com os instrumentos e os cantos entoados, havia outras de idades diferentes que acompanharam toda a movimentação efetuada por este grupo, em um processo que resultará em aprendizagem pela observação, participação e reforço identitário que estes eventos promovem.

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Considerando-se que os Guarani são bastante conhecidos arqueologicamente, pois desde a década de 1960 os dados obtidos em campo e já analisados por diferentes grupos de pesquisa na região sul, sudeste e centro-oeste vem demonstrando uma grande complexidade na organização social e na produção da cultura material, que poderia ser ainda mais evidenciada se os diferentes segmentos etários que compõe as populações estudadas estivessem presentes como componente de análise.

Serão destacados alguns elementos materiais para a análise etnoarqueológica que busca integrar e correlacionar dados provenientes da arqueologia, da antropologia e da história sobre um mesmo tema. Para o arqueólogo Gustavo Politis (2003) para a América Latina está sob a influência da tendência em construir uma história indígena, que permita um olhar mais acurado sobre uma região que tem populações que apresentam uma continuidade cultural com épocas mais recuadas no tempo.

Além da casa de reza / ogapysy que foi utilizada para os cantos e danças das crianças, elas portavam os tradicionais instrumentos rituais: o mbaraka e a takuapy. É importante observar que as meninas portavam tanto um quanto o outro instrumento, enquanto os meninos somente o mbaraka. Entre os adultos esta divisão sexual no uso dos instrumentos rituais é verificada igualmente entre os adultos, nas situações que foram observadas tanto no ritual que ocorreu no acampamento quanto em outras ocorrências similares entre os Guarani e Kaiowá. Um dos meninos estava adornado com um cocar / acangua’a elaborado com fios de lã coloridas.

Empregando as classes propostas por Politis (1999, p.270) para categorizar os objetos que eram portados ou utilizados pelas crianças para as diferentes atividades cotidianas, Landa (2005, 2011) apresentou objetos, estruturas elaboradas ou utilizadas para ou pelas crianças, além de outras classes que abarcavam os demais ítens da cultura material. Em relação aos dados presentes neste texto não é possível precisar em qual classe estes objetos melhor se enquadrariam, pois não foi observada a produção mas somente o uso dos mesmos. Assim, somente a título de exercício de sistematização se poderia situar os mbaraka e as takuapy em uma classe de artefatos feitos por e para adultos, mas utilizados por crianças. Já o cocar, que necessita de uma medida de crânio específico para que possa permanecer firme, possivelmente, foi produzido por adulto para ser usado por uma criança.

Outro dado que deve ser investigado com mais profundidade é a utilização do espaço por parte das crianças nestas atividades relacionadas à religiosidade, pois na ocasião presenciada, além de reproduzirem a movimentação que os adultos efetuam

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quando praticam este ritual, movimentando-se em linha e em círculo em um espaço delimitado, em determinado momento ficaram em fila e entravam e saíam da casa de reza, no que eram acompanhadas por outras que se aproximaram para participar desta atividade que tornou-se ao mesmo tempo lúdica. Era perceptível o prazer com a qual era realizada esta atividade, alegria que estendeu-se aos adultos ali presentes.

Considerações finais

Está sendo verificado que em áreas retomadas, afloram saberes e práticas que estavam adormecidas e que os adultos sentem urgência em transmitir às crianças, mesmo que em contextos que parecem deslocados e pouco apropriados para o momento histórico atual. As crianças por sua vez sentem-se motivadas para aprendizagens que talvez em outros momentos não fossem interessantes, mas que a luta pela terra mobiliza toda uma tradição de conhecimentos que contribui para o fortalecimento de identidades em construção. Há que se considerar que as crianças não só aprendem com os adultos, mas também ensinam outras crianças, situação estabelecida pela horizontalidade das relações sociais, e esta transmissão recebe outras conotações e interpretações realizadas por elas, que constróem sentidos para as suas ações. A estudiosa Antonella Tassinari (2011) corroborando a tese de outros autores afirma “ As crianças aprendem muito mais do que os adultos lhes ensinam, pela sua habilidade em processar tudo a sua volta: o dito e o não-dito, o explícito e o velado, o entendido e o subentendido”, e esta percepção infantil cria novos conhecimentos relacionados aos já existentes no repertório dos adultos e que lhes é transmitido.

A etnoarquelogia propicia a perspectiva de estabelecer um diálogo entre a arqueologia e a antropologia, introduzindo questionamentos antropológicos ao fazer arqueológico. A interpretação dos dados provenientes das atividades arqueológicas propriamente ditas terá resultados mais próximos do que pode ter ocorrido no passado ao incorporar todos os segmentos etários em suas análises da cultura material, pois investigações conduzidas sob diferentes perspectivas, em várias áreas do conhecimento, vem demonstrando o importante papel social que as crianças desempenham em cada sociedade na produção de sociabilidades e cultura.

Para os Guarani, estes estudos demonstram que as crianças estão presentes em todos os eventos, lugares, espaços que ocorrem dentro ou fora das áreas indígenas, e que esta presença é parte constituinte da cultura deste povo, portanto, inserir as crianças nas análises e compreender a sua participação na continuidade de pautas culturais que

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definem este povo é avançar significativamente para interpretações mais seguras e que dêem conta da riqueza cultural vivenciada tanto no passado como na atualidade.

As manifestações relacionados a religiosidade deverão assumir e incluir a participação de crianças e jovens mais sistematicamente, com o intuito de dimensionar adequadamente esta vivência no grupo, buscando superar a visão adultocêntrica que tem marcado a ciência realizada modernamente.

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