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As fontes patrísticas Importância e atualidade para a Igreja

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As fontes patrísticas

Importância e atualidade para a Igreja

Paulo César Barros, SJ Introdução

O período em que viveram os Padres da Igreja – a assim chamada Patrística – pode ser definido, com propriedade, como um tempo áureo da era cristã. Sucede ao tempo dos Apóstolos, e tem características singulares e marcantes. A palavra “Padres” – ou “Pais” (que seria um melhor vocábulo em português) – tem raízes já no Antigo Testamento (cf. Eclo 44-50 e Lc 1,54-55) e traduz a relação que tais personagens tiveram com a Igreja: deram uma enorme contribuição na organização eclesial e na elaboração da doutrina cristã justo nos primeiros tempos – vale dizer, na “infância” – da Igreja. Como pais devotados, cuidaram da Igreja nos seus primeiros passos, ajudando-a a se firmar nos diversos contextos em que ela se inculturou.

Como se trata de um período relativamente longo, os estudiosos da patrística dividem-na em algumas fases, a saber: a fase dos Padres apostólicos (Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, …); aquela dos Padres apologistas (Justino, Ireneu de Lião, Clemente de Alexandria, Orígenes, …); em seguida, a fase de “maturidade” da patrística (no Oriente: Basílio, Teodoreto de Ciro, …; no Ocidente, no fim do séc. IV e no início do séc. V: Agostinho, Jerônimo, …). Costuma-se classificar os personagens destes tempos iniciais da Igreja em dois grandes grupos: os “Padres da Igreja”

propriamente ditos, e os “escritores eclesiásticos”. Os Padres da Igreja são aqueles que se distinguem por três características: ortodoxia da doutrina, santidade pessoal e comunhão com a Igreja. A partir desta diferenciação, figuras importantes como Tertuliano e Orígenes, por exemplo, muito embora tenham composto obras de valor, que constituem referência para a reflexão teológica e para a vida da Igreja, são reconhecidos apenas como “escritores eclesiásticos”.

Há controvérsias quanto ao término do período patrístico. Comumente se admite que o tempo dos Padres se conclui, no Ocidente, com Isidoro de Sevilha († 636), e, no Oriente, com João Damasceno († em torno de 750), mas há quem estenda o tempo dos Padres, no Ocidente, até Bernardo de Claraval († 1153).

Grande parte da literatura patrística foi composta em grego e latim; porém, há textos patrísticos também em siríaco (por exemplo, Efrém de Nísibe, do séc. IV), copta (é o caso de Pacômio, do séc. IV) e armênio.

Os Padres e a Bíblia

Herdeiros da tradição bíblica, os Padres foram grandes freqüentadores das Escrituras sagradas. Os famosos comentários patrísticos dos textos bíblicos, por exemplo, deixam transparecer o assíduo contato dos Padres com os livros sagrados. Recordemos aqui o exemplo de Ambrósio de Milão, que se consagrou ao estudo sistemático da Bíblia, ao início como preparação para sua ordenação episcopal, e que se prolongou por toda a sua vida (cf. o testemunho de Agostinho, no livro das Confissões, VI, 3, 3).

Antes de comentar os textos bíblicos, os Padres “ruminavam-nos” nos âmbitos da oração pessoal e da liturgia. Entendiam que não é possível falar de Deus sem antes falar

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com Deus; para tanto, usavam a Bíblia como instrumento de comunicação com Deus. E mais. Os textos sagrados ocupavam lugar de destaque, quer nas polêmicas, quer nos escritos dogmáticos e de moral, sobretudo para fundamentar posições assumidas pelos Padres nas controvérsias com os que não aceitavam o cristianismo, ou mesmo com cristãos que tinham comportamento e/ou idéias contrários à doutrina da assim chamada “grande Igreja”. Vale a pena mencionar o testemunho de Agostinho de Hipona, ao dizer que se baseia nas Escrituras para “explicar” a Trindade: “No livro primeiro [da obra A

Trindade], apoiando-me nas Escrituras sagradas, mostrei a unidade e a igualdade

daquela suprema Trindade” (A Trindade, XV, 3, 5).

Ainda a propósito desta questão, tenha-se presente que nos séculos I e II a leitura cristã do Antigo Testamento foi rejeitada pelos gnósticos (que estabeleciam contraste entre o Deus justo do AT e o Deus bondoso do NT) e pelos marcionitas (seguidores de

Marcião). Os Padres viram-se, então, diante de um grave problema: como relacionar mutuamente o Antigo Testamento e o Novo Testamento? Responde por eles Agostinho de Hipona, ao dizer: “o Novo Testamento está oculto no Antigo, e o Antigo é desvelado no Novo” (Questões sobre o Heptateuco, II, 73). Por sua vez, Ireneu de Lião, entre a segunda metade do séc. II e a primeira metade do séc. III, chama a atenção para o progresso entre o AT e o NT, contra as posições que supunham a ruptura entre ambos. Os Padres liam a Escritura em sua totalidade e a situavam no amplo panorama da história da salvação, reconhecendo que a interpretação mais acertada da Escritura dá-se no interior dela mesma. Convém recordar que nesta leitura da Escritura integral, os Padres da Igreja faziam amplo uso da tipologia, aliás, já presente nas cartas de São Paulo: os “tipos” no AT, sobretudo personagens, são antevisões do que se realizará plenamente em Cristo, no NT. Apenas um exemplo: Abel é tipo do Cristo Bom Pastor, na medida em que este personagem do AT fora pastor (cf. Agostinho, Contra Fausto, 12,9-10). Tendo sido morto por seu irmão Caim, Abel também é imagem do sacrifício eucarístico (cf. Ambrósio, Gregório Nazianzeno, João Crisóstomo, Cirilo de

Alexandria, Melitão de Sardes) e representação antecipada do mártir (Cipriano, Ambrósio), enquanto inocente que teve o seu sangue derramado. Abel é “o primeiro justo”, dirá Agostinho (Sermões, 87, 4, 5; 294, 15; 341, 9, 11). Ainda Agostinho, em A

Cidade de Deus, relaciona Caim à cidade do demônio, e Abel, à cidade de Deus (A Cidade de Deus, XV, 1). E ainda, no mesmo livro de Agostinho, Abel é imagem da

Igreja, peregrina e perseguida pelo mundo e consolada por Deus (A Cidade de Deus, XV, 18, 2; XVIII, 51,2).

Já que os Padres da Igreja tinham formação clássica, aplicavam na leitura dos textos sagrados procedimentos interpretativos próprios dos gramáticos antigos. A respeito disto, recorde-se a influência que teve Fílon de Alexandria, judeu helenizado, sobre os Padres, no que respeita ao método alegórico de interpretação das Escrituras, bem como nos campos da teologia e da espiritualidade. Clemente, Orígenes, Gregório de Nissa e Ambrósio receberam muito desta influência de Fílon. Fazendo uso de tais ferramentas de interpretação dos escritos sagrados, os Padres experimentavam aqui uma tensão nada fácil, se recordarmos a advertência de Paulo quanto ao risco de se utilizar, na

compreensão da fé, a “sabedoria segundo a carne” e não a “sabedoria proveniente de Deus” (cf. 1Cor 1,17-31), ou ainda: “Que ninguém vos faça prisioneiros de teorias e conversas sem fundamento, conforme tradições humanas, segundo os elementos do cosmo, e não segundo Cristo” (Col 2,8). Todavia, os Padres empregavam tais ferramentas de leitura das Escrituras tendo Cristo e a Igreja como insubstituíveis referências de interpretação delas. Assim sendo, a confissão de Cristo e a fé vivida em

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Igreja eram, para os Padres, de um significado extremamente importante. Isto porque a orientação soteriológica da revelação bíblica era-lhes decisiva. Em Cristo, a história da salvação chega a seu ponto alto, e a acolhida da oferta de salvação não pode acontecer fora da Igreja. No mundo da patrística, não se entende Cristo sem a Igreja, e nem a Igreja sem Cristo, como não se entende que alguém possa ser salvo sem pertencer à Igreja. Desta forma, os instrumentos “profanos” de interpretação dos textos sagrados eram usados numa etapa prévia, de acesso ao texto enquanto texto, mas que, graças à ação do Espírito Santo na comunhão eclesial – graças Àquele que nos conduz a toda a verdade (cf. Jo 16,13) –, evoluía para uma compreensão profunda e transformadora de tais textos. O mesmo se diga da filosofia, utilizada pelos Padres como etapa preparatória na reflexão e na pregação da fé cristã.

Os Padres e a Igreja

Muito embora os Padres da Igreja tenham sido, cada qual a seu modo, figuras importantes na explicitação do mistério cristão, tal tarefa não se realizava sem a

experiência da comunhão eclesial, sem o rico e profundo “sentido da fé” (sensus fidei), vivido por todos os membros do Povo de Deus. Desta forma, os Padres entendiam que a teologia deve ser a “explicação” da experiência pessoal e comunitária do mistério de Deus. Resulta, daqui, a importância que os Padres atribuíam à liturgia e à catequese mistagógica. A catequese mistagógica (ou seja, a explicação dos mistérios da fé cristã) era praticada com freqüência e naturalidade nas comunidades eclesiais nos tempos da patrística. A explicação dos ritos litúrgicos era meio privilegiado de se iniciar, na fé cristã, os que aspiravam pertencer à Igreja. E ainda no contexto litúrgico, a homilia, derivada da liturgia sinagogal, gozava de lugar privilegiado. Aprendemos dos Padres que a homilia deve levar os fiéis a perceberem a unidade que há entre a Palavra proclamada e o sacramento celebrado. Ou seja, na celebração dos sacramentos, a liturgia da Palavra não é uma “preparação” para o que vem depois: é já celebração, é já experiência de comunhão dos homens com o Deus Trindade que fala a seu Povo e ouve seus clamores.

Os Padres experimentavam grande amor à Igreja. Entendiam-na como a Esposa de Cristo (cf. Ap 19,7; 21,9) e, portanto, merecedora de atenção e afeto. Agostinho de Hipona, por exemplo, gostava de dizer que a missão do bispo é ser como João Batista: “amigo do esposo” (cf. Jo 3,29). Desta forma, a missão do bispo é zelar pelo bem e pela unidade da Igreja, e fazê-lo como demonstração de fidelidade ao Esposo. O ministério pastoral era para eles o grande compromisso de vida em Igreja. Na sua maioria, os Padres eram pastores: bispos e presbíteros. Sua atuação pastoral desenvolvia-se como resposta a problemas concretos das comunidades eclesiais, no contato direto com os fiéis. Daí o lugar de destaque que os sermões, as catequeses e as cartas, assim como as obras ascéticas e morais, ocupam na literatura patrística, justo em razão de sua

finalidade pastoral. São textos mais de natureza prática que especulativa. Nos Padres, a articulação entre teologia e pastoral era espontânea: eles não se colocavam o problema da necessidade ou da conveniência de uma “teologia pastoral”. Para eles, a reflexão teológica tinha finalidade pastoral, pura e simplesmente.

O compromisso com a Igreja se manifestava também no empenho pela organização eclesiástica, com a configuração dos ministérios de governo para o bem de toda a Igreja. Como exemplo desta atenção, basta recordar as famosas cartas de Inácio de Antioquia, escritas a caminho de seu martírio em Roma, por volta do ano 107, sob o imperador Trajano. Ressalte-se também a grande atenção dos Padres com relação à unidade da

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Igreja. São freqüentes em homilias e catequeses dos Padres as exortações à manutenção da integridade do Corpo eclesial de Cristo. Desta forma, nada lhes repugnava mais do que cismas e heresias. Mencione-se aqui, por exemplo, a polêmica de Agostinho de Hipona com os cismáticos donatistas, no norte da África, nos séculos IV e V. Ainda que nos pareça duro e intransigente o modo como Agostinho se dirigia aos separatistas, não se pode negar sua preocupação sincera com a integridade do corpo eclesial, ameaçado de dilaceração pelas tendências cismáticas.

Ainda no que diz respeito à vida de Igreja, era muito significativo para os Padres o sentido de “tradição” (que nada tem a ver com “tradicionalismo”!). Ao tempo dos Padres, torna-se sólida a consciência de que a Igreja é lugar de transmissão e recepção da fé cristã. Os Padres souberam falar do Evangelho, e o fizeram bem, porque antes souberam escutá-lo de outros. Como exemplo, mencionemos a figura de Policarpo de Esmirna, que tendo ouvido Inácio de Antioquia, foi escutado por Ireneu de Lião. Este sentido de tradição – de transmissão da fé cristã por palavras e testemunhos –, que, aliás, se confunde com o sentido de Igreja, será decisivo, para os Padres, na preservação das quatro clássicas propriedades da Igreja, a saber: a unidade, a santidade, a

catolicidade e a apostolicidade. Os Padres e a liturgia

Para os Padres da Igreja, a liturgia é a “escola da fé” por excelência. Deste modo, não por acaso o batismo tem lugar de destaque na liturgia patrística. Se Tertuliano é tido como o autor do primeiro tratado sobre este sacramento (O batismo), Ireneu de Lião e Orígenes trabalham mais detalhadamente a teologia do mesmo. Não nos esqueçamos ainda o valor que têm aqui as catequeses sobre o batismo, em Padres como Ambrósio, Agostinho, Cirilo de Jerusalém, João Crisóstomo e Teodoro de Mopsuéstia. Mencione-se ainda uma simples nota histórica a respeito das controvérsias antigas em torno a este sacramento. Cipriano de Cartago não considerava válido o batismo celebrado por heréticos e cismáticos. Agostinho de Hipona esclarecerá esta difícil questão, ao associar a validade do batismo não à retidão moral do ministro, mas ao fato de que é Cristo quem, em última instância, “preside” à celebração do sacramento: “Ainda que Pedro batize, Cristo é quem batiza; ainda que Paulo batize, Cristo é quem batiza; ainda que Judas batize, Cristo é quem batiza” (Comentário ao evangelho de João, tr. 6,7). A relação entre eucaristia e Igreja era natural e óbvia nos tempos da patrística. A

expressão emblemática de Henri de Lubac – “A Igreja faz a eucaristia, e a eucaristia faz a Igreja” – traduz magnificamente este dado da patrística. Encontramos nos Padres uma vigorosa eclesiologia eucarística, que torna evidente o caráter sacramental da Igreja. Ao tempo dos Padres, percebia-se com clareza que a celebração eucarística era a principal manifestação da Igreja, local e universal ao mesmo tempo. Além disso, era-lhes muito claro o compromisso ético que a eucaristia traz em si mesma. Recordem-se, a propósito, as homilias eucarísticas de João Crisóstomo, como grande motivação ao compromisso social inerente ao sacramento da eucaristia. Homens de síntese, os Padres sabiam aliar, com grande lucidez, fé e compromisso social, o louvor a Deus e a vida humana feliz, como Ireneu de Lião deixou transparecer nesta bela e conhecida frase: “A glória de Deus é o homem que vive, e a vida do homem é a visão de Deus” (Contra as heresias, IV, 20, 7).

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“Explicar” o mistério de Deus era um enorme desafio para os Padres. Buscavam fazê-lo cientes da limitação da linguagem humana. Os Padres da Igreja foram os primeiros elaboradores da doutrina cristã, e neste sentido, do vocabulário específico desta mesma doutrina. Não por acaso os Padres foram contemporâneos dos primeiros concílios ecumênicos da história da Igreja, a saber, Nicéia (no ano 325), Constantinopla (381), Éfeso (431), Calcedônia (451), Constantinopla II (553), Constantinopla III (681) e Nicéia II (787). Os primeiros concílios da Igreja foram eventos únicos e de grande importância, nos quais se lançaram as bases da doutrina cristã, indispensável para organizar a vida interna da Igreja e para dinamizar a sua missão. Cabe aqui mencionar também os sínodos locais da Antigüidade, que também contaram com a significativa participação dos Padres, e nos quais se discutiam questões importantes para a vida das Igrejas locais, ou de determinadas regiões, com repercussões em todo o corpo eclesial. Neste particular, foi grande o mérito dos Padres na articulação entre fé e razão. Ou seja, o entendimento e a exposição da fé cristã através das categorias intelectuais de que dispunham na época. É o que entendemos por “intelecção da fé” (intellectus fidei). Os Padres praticaram, desta forma, um significativo e louvável exercício de inculturação da fé cristã, num ambiente complexo como era o Império romano, marcado por

inquietações que afligiam as consciências, tais como a morte e o destino, a redenção do mal, a purificação espiritual e a união com Deus, num ambiente de pluralidade de cultos pagãos e sincretismo religioso característicos da Antigüidade.

Os Padres e as resistências iniciais ao cristianismo

Sobretudo nos primeiros séculos da Igreja, os Padres passaram por dificuldades

especiais. É o tempo do florescimento da apologética, precisamente nos séculos II e III, que teve duas tendências mais destacadas. Uma, interessada em estabelecer diálogo com o diferente (representante desta corrente é, por exemplo, Melitão de Sardes). A outra, que assume pura e simplesmente uma posição crítica frente ao paganismo (é o caso de Tertuliano). Apologista famoso é Justino, nascido na Palestina e convertido ao

cristianismo: é o autor do Diálogo com o Judeu Trifão, obra mediante a qual responde às dificuldades postas ao cristianismo pelo judaísmo. Os cristãos eram vítimas de preconceitos os mais diversos, tais como a acusação de professarem uma religião atéia. Para exemplificar isto, basta mencionar esta provocação do filósofo pagão Celso: “Por que vós, cristãos, não tendes altares, nem estátuas, nem templos?” (Orígenes, Contra

Celso, 8, 17). Evoquemos também as objeções de outros filósofos, tais como Luciano de

Samósata e os sofistas (aos quais responde Clemente de Alexandria com a obra

Stromata), e Frontão de Cirta. Em meio a estes desafios, os Padres explicitaram a fé

cristã com categorias das escolas filosóficas então correntes, entre as quais se

destacavam o platonismo, o estoicismo e o neoplatonismo. Além destas perseguições difusas e de natureza ideológica, recordemos aquelas oficiais, do Império romano, que se deram ora de modo severo, ora de modo brando, às quais alguns Padres responderam com a aceitação do martírio, como Cipriano de Cartago e Inácio de Antioquia.

Os Padres e o Concílio Vaticano II

Nas décadas anteriores ao Concílio Vaticano II, os estudos em patrística ofereceram rico e profundo conteúdo doutrinário ao mesmo Concílio, na medida em que

proporcionaram grande incremento às pesquisas em liturgia, Bíblia, teologia

sistemática, ecumenismo etc. A renovação teológica que então se deu neste tempo é devedora, em grande parte, à redescoberta dos Padres da Igreja por teólogos tais como Yves Congar, Josef Ratzinger e Karl Rahner. Muitos destes teólogos, cujos nomes

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citados são apenas alguns exemplos, na qualidade de peritos no Concílio, deram valiosa contribuição na reflexão e nas decisões dos Padres conciliares. Convém mencionar, nesta perspectiva, a Nova Teologia (Nouvelle Théologie), na França, como programa teológico que se alimentou muito da revisitação dos Padres da Igreja.

Ao lermos os documentos do Vaticano II, encontramos muitas notas de rodapé com citações dos Padres da Igreja. Deu-se, neste importante sínodo, decisivo resgate deste formidável patrimônio eclesial. Quando falamos de recepção do Concílio Vaticano II, devemos nos ater não exclusivamente ao conteúdo doutrinal deste sínodo; devemos aprender do Concílio que teologia se faz, a rigor, como releitura das fontes da Tradição eclesial. E releitura quer dizer reinterpretação. Não podemos ler os Padres da Igreja como quem faz arqueologia, mas como quem busca, nas grandes referências do passado, inspiração na solução dos problemas de hoje. Com efeito, assim fizeram os Padres conciliares no Vaticano II.

Os Padres e sua atualidade

Com relação à leitura das Escrituras, cabe-nos aliar o método de interpretação bíblica dos Padres ao moderno método exegético histórico-crítico. O primeiro método dá-nos uma visão do “todo” da revelação. Ademais, os Padres da Igreja tinham consciência de que o Espírito é quem nos faz entender os textos sacros: o método patrístico de leitura da Escritura implica a experiência da docilidade ao Espírito Santo na comunhão eclesial. O segundo método, por seu lado, ajuda-nos a conhecer a formação histórica dos textos, a composição gradativa da Bíblia, os diversos gêneros literários. Os dois métodos não são incompatíveis, nem mutuamente excludentes; antes, se complementam em vista de uma melhor compreensão e assimilação da história da salvação

“concentrada” nos escritos sagrados.

O modo segundo o qual os Padres concebiam a liturgia nos ajuda, hoje, a melhor celebrar os sacramentos: não como protagonismo dos clérigos, mas como ação de todo o Povo de Deus. Isto implica em equilíbrio entre as funções da presidência e a

participação de todos, como única Igreja celebrante. Aprendemos dos Padres que a liturgia deve ser vivida não como show a que se assiste, mas como humilde e agradecida contemplação do mistério de Deus numa atmosfera de oração em comunidade.

Mencionemos Ambrósio de Milão e Cirilo de Jerusalém, para citar dois exemplos notáveis de Padres que reconheciam a centralidade da liturgia na vida cristã. O conhecimento das obras dos Padres, sem dúvida, há de nos ajudar a reencontrar o autêntico valor da celebração dos sacramentos, de modo particular enquanto atitude de respeitosa acolhida do Deus que fala a seu povo, o purifica e o alimenta. Aqui tem grande significado a compreensão dos ritos e dos sinais litúrgicos, de como foram sendo assimilados aos poucos pelos cristãos em suas celebrações nos tempos iniciais da Igreja. Esta consciência histórica da formação dos ritos litúrgicos por certo há de favorecer uma sadia criatividade na liturgia, muito diversamente da mera invenção de gestos vazios e estranhos à tradição litúrgica da Igreja.

Em face do afã de exterioridade que se percebe hoje na liturgia católica, é necessário resgatar o valor da interioridade, tão prezado pelos Padres da Igreja. Os exemplos neste particular são muitos, mas contentemo-nos em mencionar Agostinho de Hipona, com sua experiência de que o homem é autenticamente livre quando busca repousar em Deus; quando não se deixa mover pelo amor a si mesmo, mas pelo amor de Deus. Cabe, neste contexto, mencionar brevemente a analogia que Agostinho vê entre o homem e a

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Trindade Santa, na medida em que memória, inteligência e vontade, as três “operações” do espírito humano, fazem lembrar respectivamente o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Assim diz Santo Agostinho: “… descobri que o espírito não pode nunca existir sem recordar-se de si, sem compreender-se, sem amar-se, […] deixei para mais tarde o estudo sobre a Trindade, da qual o espírito é imagem” (A Trindade, XV, 3, 5). Os Padres têm muito a nos ensinar sobre a sadia diversidade de teologias, enquanto sínteses imperfeitas brotadas do esforço humano de dizer aquilo que é indizível: o mistério de Deus. Tais elaborações teológicas, porque imperfeitas, são complementares no empenho humano por “entender” o mistério de Deus. Lembremo-nos de que, no tempo dos Padres, conviviam grandes escolas teológicas, tais como a alexandrina, a antioquena e a asiática. A primeira teve em Orígenes um de seus expoentes, com seu rigoroso método de pesquisa demonstrado no Comentário ao Cântico dos Cânticos. A segunda, por sua vez, iniciada por Diodoro de Tarso na segunda metade do século IV, teve em Teodoro de Mopsuéstia seu representante máximo. Por certo, tais escolas teológicas coexistiam não em total harmonia, mas “rivalizavam” no propósito comum de pronunciar alguma palavra sobre o mistério de Deus, e que fosse útil ao fiel na acolhida do dom da salvação. A diversidade de posições era de se esperar, na medida em que nenhum discurso que queira dizer Deus pode pretender ser exaustivo e único. Os Padres são de valor inestimável para o movimento ecumênico. O seu amor pela unidade da Igreja de Cristo (cuja imagem eles reconhecem na túnica sem costura do Crucificado [cf. Jo 19,23]), por si só, justifica o atual empenho ecumênico. Nada lhes era mais repugnante que provocar cismas na Igreja. Ademais, os Padres são um patrimônio comum às grandes tradições cristãs de hoje – catolicismo, ortodoxia e protestantismo –, resultantes de processos históricos complexos quer por ocasião da separação entre Ocidente e Oriente (ano de 1054), quer por ocasião da Reforma protestante (1517). A revisitação dos Padres feita em comum por estas diversas

tradições cristãs tem alimentado o movimento ecumênico. Para nos convencermos disto, é suficiente ler os documentos conclusivos do diálogo teológico ecumênico.

Uma palavra ainda quanto aos ganhos que uma releitura dos Padres proporcionaria à pastoral, ou mais precisamente, à homilética. Caber-nos-ia aqui explorar o potencial poético da linguagem dos Padres, com suas ricas e sugestivas imagens, metáforas e analogias. Referem-se a Cristo como pastor, médico etc.; à Igreja como barco, lua, personagens bíblicas femininas etc. A Trindade é representada metaforicamente pelo curso d’água, que tem nascente, corrente e queda. Com certeza, o emprego destas analogias e metáforas proporcionaria enriquecimento também para a teologia, enquanto elaboração teórica do mistério de Deus que fosse menos “cerebral” e mais “cordial”. Conclusão

Não é justo “idolatrar” os Padres da Igreja. Eles foram homens comuns, com

fragilidades e pecados, mas que experimentaram, na Igreja e através da Igreja, a força libertadora e transformadora da Ressurreição de Cristo. Não podemos recorrer a eles como se fossem a solução mágica para todas as indagações e dúvidas que tenhamos hoje. Aliás, certas opiniões por eles formuladas não foram inseridas no grande patrimônio dogmático da Igreja. Citemos alguns exemplos. A idéia de Ambrósio de Milão, segundo o qual a paixão e a morte de Cristo foram o preço pago ao demônio pela salvação dos homens (Explicação do evangelho de Lucas, IV, 11-12; VII, 114-117;

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tempos ocorrerá o restabelecimento de todas as almas, inclusive as dos anjos decaídos e as dos pecadores condenados, na condição de felicidade paradisíaca. Os Padres são figuras importantes e respeitáveis, grandes referências para se pensar a fé cristã e vivê-la; todavia, suas obras devem ser lidas criteriosamente, com discernimento e bom senso. Levando-se em conta estas premissas, eles serão, hoje e sempre, como foram no

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