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O Mar que já Virou Sertão

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Academic year: 2021

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O Mar que já

Virou Sertão

O Mar que já

Virou Sertão

Patrícia Domingues de Freitas

Na caatinga nordestina, vestígios

paleogeográficos indicam que a seca

nem sempre esteve presente na região.

Rios, lagos e uma floresta tropical

úmida já dominaram o ambiente

Parque deve ser reconhecido em breve como Patrimônio Natural da Humanidade, devido principalmente à sua riqueza em fauna e flora André P

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A vegetação é a caatinga, o clima é o semi-árido, o índice pluviométrico chega a ser me-nor que 900 mm ao ano. Durante o inverno, a seca é grande e, no verão, apesar de chover um pouco, a temperatura é alta e a evaporação é grande. Os rios estão secos, o solo também... Os animais quase não encontram água para beber e se banhar. O calor é imenso...

Estamos no Parque Nacional Serra da Capivara, situado em região próxima ao município de São Raimundo Nonato, no su-deste do Piauí. O ano é 2002.

Se pudéssemos, no entanto, voltar no tempo, a paisagem descrita não seria a mesma. Árvores frondosas, típicas de uma floresta tropical, estariam compondo o ambiente. Os rios

seriam abundantes, o clima úmido e extremamente agra-dável. Os animais estariam próximos aos córregos, far-tando-se de água.

Mas, o que teria acontecido? Quais fenômenos produziriam um efeito tão avassalador sobre o ambiente, extinguindo inú-meras espécies de animais e vegetais que ali existiam?

Histórico

Para o grupo de pesquisado-res da Fundação Museu do Ho-mem Americano e da Missão Arqueológica e Paleontológica do Piauí, que estuda o Parque Nacional Serra da Capivara há cerca de 30 anos, as mudanças climáticas e as ações antrópicas são os principais responsáveis pelo cenário com o qual atual-mente nos deparamos. O Parque Nacional Serra da Capivara foi criado em 1979, quan-do pesquisaquan-dores, em missão franco-brasi-leira, constataram a presença de importan-tes sítios arqueológicos no local. A descoberta dos primeiros sítios a-conteceu ao acaso, por moradores locais que praticavam a colheita da maniçoba (planta típica da região) como principal atividade e-conômica. Muitos “ma-teiros” iam à procura do

vegetal em diferentes locais da serra, desbravando regiões de difícil acesso. Em dias chuvosos, mateiros procuravam locais que os protegessem da chuva. Em alguns desses abrigos, existiam inúmeros rabiscos desenhados nas rochas.

A novidade logo se tornou popular entre os moradores das cidades vizinhas, que a comu-nicaram aos políticos da região. Passados alguns anos, pesquisa-dores constataram que aqueles rabiscos eram na verdade pin-turas rupestres de povos antigos que habitaram a região há mi-lhares de anos. Desde então, o parque tornou-se um impor-tante centro de estudos, reve-lando aspectos cruciais sobre a história da civilização humana no continente americano.

Dentre as principais desco-bertas realizadas no parque está a identificação dos vestígios considerados como os mais anti-gos até hoje encontrados nas Américas. Instrumentos de pe-dra lascada, utilizados, provavel-mente, para cortar, raspar e mar-telar, foram datados pelos pes-quisadores como tendo 50 mil anos. A identificação de uma fogueira estruturada, localizada em uma camada ainda mais in-ferior, indica a presença de civili-zação humana há pelo menos 60 mil anos. Ambos os vestígios foram encontrados em um dos mais de 600 sítios arqueológicos localizados na Serra da Capivara: o sítio Toca do Boqueirão da

Descoberta dos primeiros sítios aconteceu por acaso, por moradores locais em busca da maniçoba, planta típica da região. Em dias chuvosos, “mateiros” procuravam locais que os protegessem da chuva. Em alguns desses

abrigos, existiam inúmeros rabiscos desenhados nas rochas

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Pedra Furada. Além desses vestí-gios, as pinturas rupestres en-contradas em diferentes pontos apontam para a certeza de que essa região se constituiu num excelente local para habitação do homem pré-histórico. Estu-dos sobre o relevo, a vegetação e a fauna local tentam agora des-vendar como era o ambiente naquela época e como ocorreu sua transição ao longo do tempo.

Variações climáticas

Segundo os pesquisadores, até o momento foi possível estudar as variações climáticas ocorridas nos últimos dois milhões de anos, com base em modelos hipotéticos, tais como explosões solares e mu-danças na posição dos pólos. As marcas causadas pelo intempe-rismo (conjunto de processos re-sultantes de ações de agentes biológicos e atmosféricos que pro-movem a modificação físico-quí-mica das rochas), vestígios de fauna e flora e a análise de sedimentos têm permitido estudar a transformação climática ocorrida ao longo dos anos.

A partir desses estudos, a idéia de que há 360-440 milhões de anos o Parque Nacional Serra da Capivara encontrava-se encoberto pelo mar tem sido sugerida. Um movimento tectônico ocorrido entre 210-225 milhões de anos atrás teria iniciado uma abertura no Atlântico Sul, promovendo o levantamento do fundo do mar, dando origem à atual serra encontrada na região, consti-tuída principalmente por rochas

sedimentares, arenitos e conglo-merados. A ação das chuvas e dos ventos aos poucos foi esculpindo o relevo até que, há aproximada-mente 60 mil anos, os primeiros

Homo sapiens chegassem ao local.

Durante esse período, o clima que preponderou na região foi o tropical úmido, com vegetação abundante e muitos rios e lagos cortando uma extensa floresta composta por árvores altas e frondosas. Inúmeras espécies de animais, como tatus, cavalos, veados e capivaras, juntamente com o homem, encontraram nesse local um ambiente pro-pício para habitação. Durante milhares de anos, a região des-frutou de água e alimento em abundância, até que, há cerca de

10 mil anos, se iniciou uma mu-dança climática e a região pas-sou a possuir um clima semi-árido e uma vegetação de caa-tinga. A causa principal para tal acontecimento foi a sensível diminuição das chuvas; árvores verdes e robustas

progressiva-No sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, um dos 600 existentes no Parque, vestígios indicam a presença do homem na região há pelo menos 60 mil anos

A partir dos estudos, a

idéia de que há

360-440 milhões de anos o

Parque Nacional Serra

da Capivara

encontrava-se

encoberto pelo mar

tem sido sugerida

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mente deram lugar a uma vege-tação mais resistente aos longos períodos de seca. Populações de animais entraram em declínio e apenas as espécies melhor adaptadas às novas condições conseguiram sobreviver. Apesar da mudança drástica no clima, a região ainda manteve parte de suas florestas preservada, nos locais onde a umidade era maior. Nos vales mais estreitos e nas planícies próximas ao pé da serra, onde a água permanecia retida nos lagos, ainda havia água e vegetação verde.

Etapas

A análise das diferentes cama-das sedimentares encontracama-das na região tem permitido a inter-pretação da sucessão de aconte-cimentos que promoveram a modificação do ambiente ao longo do tempo. As camadas sedimentares são formadas a partir de processos de erosão das rochas, promovidos pelo vento e pela água. Partículas se desprendem das rochas, sendo arrastadas e posteriormente depositadas no solo. Quanto maior é a força do vento ou da

água, maiores são as partículas carregadas. No Parque Nacional, a chuva foi o principal agente erosivo. As chuvas fortes atin-giam os paredões da serra, for-mando uma verdadeira queda d’água e arrancando das rochas pedras de grande porte, as quais eram arrastadas até o solo, for-mando inúmeros seixos. À me-dida que a força da água ia diminuindo, as partículas gran-des deixavam de ser transpor-tadas e apenas partículas leves, como areia e argila, continua-vam sendo carregadas. A cada A palavra caatinga tem

ori-gem tupi e significa floresta branca, denominação dada de-vido à sua aparência durante o período de seca, quando a ve-getação, sem folhas, assume uma coloração esbranquiçada. A caatinga é constituída por arbustos ramificados, com ga-lhos curtos e duros que têm como principal característica a perda de folhas e o arma-zenamento de água em seus tecidos, o que lhes confere uma maior resistência à ausência de água durante os longos pe-ríodos sem chuvas. Diferentes espécies de cactos (plantas consideradas suculentas) e plantas com espinhos

com-põem esse tipo de vegetação, que pode apresentar diferen-tes aspectos ou formas parti-culares dependendo do local onde está situada. Em geral, a caatinga é encontrada em re-giões com clima árido ou semi-árido, onde rios, lagos e chuvas são escassos. Na caatinga, o índice pluviométrico pode a-tingir valores inferiores a 1.200 mm por ano, e o período de seca perdura por até seis me-ses. No Brasil, cerca de 1 milhão de km2 encontra-se recoberto

pelas diferentes formas de caatinga, em grande parte lo-calizadas na região Nordeste do país.

Caatinga, floresta branca

Caatinga é constituída por arbustos

ramificados, com galhos curtos e duros que têm como principal característica a perda de folhas ou o armazenamento de água em seus tecidos, o que lhes confere uma maior

resistência à ausência de água durante os longos períodos de seca

Caatinga, floresta branca

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nova chuva, o evento se repetia e uma nova camada sedimentar era formada.

As escavações têm mostrado uma sucessão de camadas sedi-mentares diferenciadas, que

indicam uma diminuição do índice pluviométrico ao longo do tempo. As camadas mais profundas e, portanto, mais anti-gas, revelam sedimentos mais grosseiros, compostos por seixos que atingem dimensões signi-ficativas (50 cm x 30 cm). As camadas superiores, mais recen-tes, são compostas por materiais mais finos, sendo a superfície formada por uma granulação fina como o talco. Esses dados, juntamente com a datação das diferentes camadas sedimen-tares, permitiram aos pesquisa-dores inferir sobre a mudança

climática ocorrida. Assim, o clima semi-árido teria surgido na re-gião há cerca de 12 mil anos, quando as chuvas deram lugar aos longos períodos de seca.

Ação antrópica

A substituição de uma floresta exuberante por uma vegetação de caatinga aconteceu aos poucos, sendo intensificada, em grande parte, pela ação do homem. De acordo com levantamentos histó-ricos e estudos arqueológicos, o homem pré-histórico conviveu em harmonia com a natureza, utilizando seus recursos naturais com sabe-A Serra da Capivara é um modelo de estudo

peculiar. A grande quantidade de sítios em bom estado de preservação permite um alto número de escavações e o levantamento de dados difíceis de serem obtidos em outros locais. A pesqui-sadora Niède Guidon acredita que a excelente conservação desses sítios arqueológicos é devida à chegada tardia do homem branco na região. Até 1700, os povos indígenas povoaram aquele ambiente, sendo posteriormente exterminados. Outro aspecto instigante é a presença de animais e plantas típicos da Mata Atlântica. Para a arqueológa, o modelo atualmente aceito, que considera que a seca surgiu no Nordeste há

aproximadamente 30 mil anos, não é adequado ao cenário da Serra da Capivara. Niède salienta que, quando foram iniciados os estudos, nada se sabia sobre o relevo, a fauna e a flora da região. A idéia de formar uma equipe multidisciplinar reuniu geólogos, botânicos, zoólogos e arqueó-logos interessados em estudar as diferentes facetas daquele local. “Agora estamos datando níveis de sedimentos fluviais e lacustres encon-trados nas escavações. Um contrato de parceria realizado com a University of Newcastle upon Tyne (Inglaterra) nos ajudará com os estudos paleogeográficos que procuram entender melhor a evolução ocorrida no clima e na paisagem da região”, conclui a arqueóloga.

Na Serra da Capivara, chegada tardia dos colonizadores

permitiu a conservação de grande quantidade de sítios

Na Serra da Capivara, chegada tardia dos colonizadores

permitiu a conservação de grande quantidade de sítios

Substituição de uma

floresta exuberante

pela vegetação de

caatinga foi

intensificada, em

grande parte, pela

ação do homem

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Onça-vermelha (Felis concolor), Tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla) e Mocó (Kerodon

rupestris), exemplares da fauna da Serra da Capivara: apenas as espécies melhor adaptadas às

novas condições conseguiram sobreviver

doria. Quando as mudanças climá-ticas se acentuaram, tornando escas-so o alimento disponível, iniciou-se uma agricultura baseada no cultivo de milho, feijão e amendoim. Mes-mo com a prática da agricultura, as comunidades pré-históricas conse-guiram manter o meio ambiente

em equilíbrio, uma vez que este era explorado apenas com a finalidade de subsistência.

A chegada do homem branco pôs um fim a essa harmonia. A partir do século XVII, os colo-nizadores europeus ocuparam a região, iniciando a criação de gado. As queimadas e o desmata-mento passaram a ser constantes. No solo empobrecido, cresceu uma vegetação secundária, típica da caatinga arbustiva. A jurema, planta que possui uma secreção que impede a germinação de outras sementes, passou a domi-nar muitos locais.

Desde então, a região sofre um intenso processo de desertifica-ção. O desmatamento, seja para a criação de gado e plantio de capim ou para a obtenção de madeira para carpintaria ou com-bustível, deixa o solo nu, suscep-tível à intensa radiação solar. Dessa forma, as sementes não conse-guem germinar e “ilhas” sem ve-getação são formadas. Essas ilhas tendem a crescer e a se encontrar em diferentes pontos, constituin-do extensas áreas desertificadas.

Apesar das pesquisas terem trazido alternativas de empre-go para a população local, no

tra-Pesquisas indicam que

o clima semi-árido teria

surgido na região há

cerca de 12 mil anos

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O Parque Nacional Serra da Capivara surgiu com o objetivo de controlar as atividades predatórias e, ao mesmo tempo, preservar um importante objeto de estudo. Ele é considerado, desde 1991, Patrimô-nio Cultural da Humanidade pela Unesco e, segun-do o diretor segun-do Parque, o biólogo Issac Simão, deverá assumir em breve também o status de Patrimônio Natural da Humanidade, devido principalmente à sua riqueza em fauna e flora. O Parque possui uma área de 129.140 hectares, com perímetro de 214 km e altitudes que variam entre 25 e 600 metros acima do nível do mar. O clima é quente semi-árido, possuindo de seis a oito meses de seca ao ano, e o relevo é acidentado, compre-endido pelas serras da Capivara, Talhada, Branca e

Vermelha, que constituem o complexo da Serra do Bom Jesus da Gurguéia. Para quem deseja conhe-cer o Parque, existem inúmeras trilhas que podem ser visitadas com autorização e a orientação de um guia. As trilhas levam a diferentes sítios, onde podem ser vistas pinturas rupestres e locais onde foram realizadas diversas escavações. Mais info-rmações pelos telefones (86) 582-2085 e 582-2031, ou nos endereços www.ibama.gov.br e www.horizontegeografico.com.br.

O Parque Nacional Serra

da Capivara

O Parque Nacional Serra

da Capivara

Niède Guidon, arqueóloga que estuda a região desde a década de 70: apesar de o Parque ser unidade de

preservação, área ainda sofre com a caça, o desmatamento e as queimadas anuais

balho nas escavações dos sítios, na fiscalização do Parque ou como guia turístico, há uma parcela que insiste em desafiar os limites suportáveis de degra-dação do meio ambiente, prati-cando a exploração predatória dos recursos naturais ainda exis-tentes. A caça tem promovido um grande desequilíbrio na região, levando à diminuição de populações de animais e, em alguns casos, ao seu completo desaparecimento. Já não há mais capivaras na Serra da Capi-vara. Enquanto a ciência avança, dando indícios de que o homem pode ser mais avassalador do que a própria natureza, resta a certeza de que só o conheci-mento não basta.

Proteção

Para a arqueóloga Niède Gui-don, que chegou na região na década de 70, apesar de o Parque ser uma unidade de preservação, ele ainda sofre com a caça, o desmatamento e as queimadas anuais. Para garantir a integrida-de integrida-de todo esse patrimônio, em 1986 foi criada a Fundação Museu do Homem Americano (FUM-DHAM), com a finalidade de res-guardar as riquezas do Parque e desenvolver trabalhos de edu-cação ambiental junto à comu-nidade local. A pesquisadora e diretora da FUMDHAM acredita que somente a tomada de cons-ciência do homem poderá conter o processo de destruição pelo qual a região vem passando.

Referências

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