UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE LETRAS
CÁSSIO PINCHEMEL SALLES
O MARECHAL DE COSTAS:
A POLÍTICA DO PASSADO NO PRESENTE
Salvador 2017
CÁSSIO PINCHEMEL SALLES
O
MARECHAL DE COSTAS:
A
POLÍTICA DO PASSADO NO PRESENTE
Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado ao Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, como parte dos requisitos para obtenção do grau de bacharel em Letras Vernáculas.
Orientadora: Profª Drª Rachel Esteves Lima
Salvador 2017
AGRADECIMENTOS
À professora Rachel Esteves Lima, pelo acolhimento, pela orientação, pelo diálogo e por acreditar nesse trabalho;
RESUMO
SALLES, Cássio Pinchemel. O marechal de costas: a política do passado no presente. 2017. Trabalho de conclusão de curso (graduação) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia.
Este trabalho se dedica ao estudo do livro O marechal de costas, de José Luiz Passos, publicado em 2016, mapeando o modo como ele recorre à ascensão do Marechal Floriano Peixoto à presidência da República e a coloca em paralelo com as manifestações que levaram ao impeachment da presidenta Dilma. Nesse percurso recorremos às reflexões propostas por Linda Hutcheon, em suaPoética do
pós-modernismo, principalmente através do conceito de metaficção historiográfica,
para entender como se dá a leitura histórica. Buscou-se também estabelecer um diálogo com o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda e sua tese sobre a impossibilidade da democracia no Brasil, presente no seminal Raízes do Brasil, e com o filósofo italiano Giorgio Agamben e sua investigação como se dá a constituição e a persistência do dispositivo jurídico por ele chamado de estado de exceção nas democracias ocidentais.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO……….5
2. A LEITURA DO PRESENTE A PARTIR DA METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA……….………..9
3. A DEMOCRACIA SEMPRE POR VIR ….…….…….………..25
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS……….…….……….……….40
1 INTRODUÇÃO
Quando, em junho de 2013, estouraram as primeiras bombas em repressão às manifestações contra o aumento do preço da passagem em São Paulo, abriu-se, no Brasil, um espaço para a reflexão sobre um novo/outro momento pelo qual passa a república brasileira. O que se trouxe à tona naquele momento não foi tanto a natureza dos atos, ou a repressão desproporcional por parte da força política e policial – que em outros contextos já são velhas conhecidas de parte da população –, mas a pluralidade de vozes que, a partir desse momento, se uniram, mesmo com demandas e posicionamentos diversos, demonstrando insatisfação contra diversos aspectos da condução da república brasileira em seus diversos níveis. O aumento no preço da passagem se tornou o estopim para discussões e manifestações sobre o direito à cidade, e, por conseguinte, sobre questões caras à nossa sociedade, como acesso à saúde e à educação de qualidade, a corrupção, a falta de representatividade política por parte das mulheres e negros e a importância da luta feminista, antimachista e antirracismo.
Desde então, muito se tem discutido sobre esse momento particular da história recente do Brasil, seja traçando genealogias das mais variadas para o(s) movimento(s) que se seguiram ou identificando a ruptura com o modelo de protesto consolidado e suas temáticas clássicas ou, ainda, incluindo-o numa crescente onda de protestos anti-hegemônicos que ocorrem em diversas partes do mundo a partir de 2011 como a Primavera Árabe, o Occupy, os Indignados da Puerta del Sol, Geração à Rasca, o movimento estudantil no Chile, dentre outros. Nessa última hipótese, destacam-se as similitudes na forma de ação: “ocupação de praças, uso de redes de comunicação alternativas e articulações políticas que recusavam o espaço institucional tradicional” , também presentes no caso brasileiro. Nesse1 contexto, tanto o mundo virtual se tornou uma plataforma fundamental para organização, divulgação e discussão dos movimentos, quanto as ruas foram
1 CARNEIRO. Rebeliões e ocupações de 2011. In.: HARVEY, David …et al.. Occupy: movimentos
invadidas por hashtags e memes, que saltaram das telas para ganhar a rua. Coletivos de mídia independente - como Mídia Ninja, Ponte Jornalismo, Agência Pública, Jornalistas Livres, dentre outros, se destacaram pela cobertura via internet em tempo real dos atos e também se apresentaram como alternativa ao jornalismo oferecido pelos grandes conglomerados de comunicação. Esse momento marca também o forte crescimento de um discurso reacionário, o acirramento na polarização política entre direita e esquerda e a radicalização de suas posições.
Sob diversas palavras de ordem e com uma variedade de grupos mais ou menos organizados tentando atingir o protagonismo nos reclames e na organização, a multidão informe rapidamente se converteu em atos específicos, com direcionamentos diversos. Nas palavras de Raquel Rolnik, “a voz das ruas não é uníssona. Trata-se de um concerto dissonante, múltiplo, com elementos progressistas e de liberdade, mas também de conservadorismo e brutalidade, aliás presentes na própria sociedade brasileira” . Somando-se a esse caldeirão que2 movimentou as ruas, nesse mesmo período o País se preparava para receber as supermidiatizadas Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016, que exigiam legislações própria e em caráter de exceção. Também destaca-se, nessa época, o início da Operação Lava-Jato, realizada pela Polícia Federal, que desde março de 2014 ocupa o imaginário político-midiático da nação, atiçando um determinado senso de justiça e, por meio de ações arbitrárias, vem desvelando o funcionamento parcial da justiça brasileira (e de como ele atende a interesses específicos de determinados partidos políticos e de parcelas da população). Destaco, para ilustrar, a prisão do jovem negro Rafael Braga Vieira, ocorrida no dia 20 de junho de 2013 durante uma manifestação com uma garrafa de Pinho Sol e uma de água sanitária e condenado a cinco anos de prisão sob a justificativa de porte de material explosivo. A pena foi posteriormente estendida para onze anos e três meses por conta de um suposto flagra que o acusou da posse de 0,6g de maconha, 9,3g de cocaína e um
2 ROLNIK. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações. In.: MARICATO, Ermínia
…et al..Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013.
rojão num julgamento que utilizou unicamente o depoimento dos policiais como base da condenação . 3
Esse contexto complexo, com eventos e manifestações – apesar de simultâneas – tão heterogêneas e com objetivos, intensidades e circulações tão distintos –, estão inseridos numa disputa que visa expandir os limites da leitura e do entendimento da atividade política em nossa sociedade, que não mais está restrita às eleições e ao funcionamento das instituições com atores específicos encarregados de legislar, executar e fiscalizar, nos níveis municipal, estadual e federal.
A publicação do livro O marechal de costas, pelo professor, crítico e romancista José Luiz Passos em outubro de 2016 deveu-se, segundo o próprio autor nos conta, à sugestão do seu editor, Marcelo Ferroni, de aprofundar a história do conto “Marinheiro só”, escrito para a revista Granta, cuja temática era Traição. O conto, que se passa durante a Revolta da Armada, uma rebelião que propunha a restauração da monarquia e questionava a recém-nascida República Brasileira e sua principal figura, o Marechal Floriano Peixoto. Nela, o marinheiro Silvino de Macedo tomou o controle de navios de guerra da Marinha Brasileira e manteve os canhões apontados para a capital do país à época, o Rio de Janeiro, chegando a bombardeá-la algumas vezes. O líder da rebelião acabou sendo assassinado sem julgamento por fuzilamento. O romance, entretanto, se apresenta ao mesmo tempo como uma espécie de ficção-histórico-biográfica, em tensão com eventos recentes da República: um dos núcleos narrativos é voltado para a vida do Marechal Floriano Peixoto, desde sua formação na Escola Militar do Rio de Janeiro até sua morte, e, concomitantemente, narra-se o dia a dia de uma cozinheira de uma família de classe média-alta acompanhando os protestos de 2013, chegando ao discurso de defesa da presidenta Dilma à Câmara dos Deputados, quando aprovado seu impeachment. No plano histórico, o romance atravessa importantes episódios da história brasileira,
3 JUSTIFICANDO. Condenação de Rafael Braga gera revolta. In.: CONDENAÇÃO de Rafael Braga
gera revolta. Justificando, São Paulo, 22 abr 2017. Disponível em:
<http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/22/condenacao-de-rafael-braga-gera-revolta/> Acesso em: 15 jul 2017.
como a guerra contra o Paraguai, a posterior passagem da monarquia para a república, a primeira eleição indireta, bem como a subsequente renúncia do primeiro presidente. Esse episódio guarda uma particularidade intrigante: após a renúncia, a Constituição brasileira determinava a convocação de um novo pleito, coisa que não aconteceu, com Floriano permanecendo no poder até o final do mandato, apesar dos questionamentos sobre a inconstitucionalidade e a ilegalidade do ato. Pela violência com a qual combatia as revoltas e os movimentos de independência que se espalhavam pelo país, Floriano ficou conhecido como Marechal de Ferro e, por manter a unidade territorial brasileira sobre seu comando frente a movimentos separatistas, recebeu a alcunha de consolidador da República. No plano íntimo, a história de Floriano também guarda peculiaridades: a fixação por vaginas, o casamento com a meia-irmã Josina, a grande admiração por Napoleão Bonaparte e o silêncio misterioso com o qual observa as situações antes de tomar qualquer decisão nos fornecem um olhar singular sobre esse protagonista. No contexto presente, a narrativa é construída pela interação de algumas vozes da classe média brasileira em seus diversos níveis: a cozinheira que presta serviço para uma família tradicional, possivelmente recém-ingressada na chamada nova classe média, e que, apesar de dormir no trabalho, mantém um apartamento alugado; um professor contratado como tutor de Ramil Jr., representando um modelo de intelectualidade, que articula conhecimento acadêmico e uma certa cultura geral adquirida na internet; e Dr. Ramil e Ramil Jr. que carregam a tradição do sobrenome, a herança financeira e que gozam dos benefícios de serviçais ao seu dispor. Acompanhamos, aqui, como tais classes interagem e assistem, juntas, às manifestações de rua e aos acontecimentos que levaram à derrubada da presidenta Dilma. Através do paralelismo narrativo, o romance revela as semelhanças e contradições entre os dois momentos históricos, quando pensamos o funcionamento e as rupturas da República ao longo desses últimos 128 anos.
2. A LEITURA DO PRESENTE A PARTIR DA METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA
Pouco antes da publicação do romance, o crítico literário e professor Luís Augusto Fischer já havia destacado a ausência dessa temática e de personagens representativos do atual poder político na ficção brasileira contemporânea. Na coluna “Romance sem poder”, publicada no Jornal Zero Hora em maio de 2016, questiona o por quê da inexistência de romances que abordem a temática política por esse viés. Em suas palavras:
não há, em praticamente todo o extenso repertório dos escritores brasileiros abaixo dos 60 anos, um, sequer um, que tenha produzido um bom romance que encare e critique as elites econômicas ou políticas. Que tenha trazido para dentro de seu enredo, como figura central, um grande empresário, um político poderoso, alguém, enfim, cuja ação represente o poder de nosso tempo. E essa ausência dá o que pensar: por quê? Como se explica essa ausência? 4
Há aí a impossibilidade de uma resposta simples, pois, além dos aspectos criativos, estão envolvidas questões editoriais, mercadológicas, legais e culturais nem sempre explicitadas. Construindo um breve panorama da literatura brasileira, o crítico distingue dois grupos de escritores: os nascidos entre as décadas de 1950 e 1960 e os nascidos entre 1970 e 1980. Segundo Fischer é possível traçar um recorte temático dessas duas gerações: os primeiros contemplam “a vida dos miseráveis, dos de baixo, especialmente nas grandes cidades mas não só”, donde “nunca como agora em língua portuguesa os pobres, os miseráveis, os iludidos, os perdedores estiveram tão bem transfigurados em literatura” . O outro grupo5 apresenta como tema forte os “desconfortos existenciais das classes médias letradas, muitas vezes associados com a vida fora do Brasil, ou enfim com uma
4 FISCHER. Romance sem poder. Zero Hora, Porto Alegre, 07 mai, 2016. Disponível em: <
http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/colunistas/luis-augusto-fischer/noticia/2016/05/luis-augusto-fischer-r omance-sem-poder-5795461.html> Acesso em: 20 jul 2017.
experiência cosmopolita” . Por fim, o autor sinaliza, com algumas exceções, a falta6 de interesse pelo romance histórico como motivo dessa ausência.
Também no Zero Hora, ao ser questionado pelo jornalista Carlos Moreira sobre essa “notável ausência da política e das figuras do poder político na produção ficcional brasileira”, o escritor Contardo Calligaris esboça uma argumento, destacando, no caso, a rapidez das mudanças frente à complexidade do momento:
É uma reflexão interessante, porque isso é verdade para a literatura e tanto mais para o cinema, até porque o cinema tem como vocação responder com mais rapidez à tarefa de ficcionalizar a realidade. E na verdade o cinema não parece nem estar tentando. […] A política
brasileira está muito difícil para a ficção (grifo nosso). Quando
você vê a primeira temporada de House of Cards (seriado da Netflix), está totalmente aquém do tipo de trama que a política brasileira dos últimos dois ou três anos permitiria. 7
E o psicanalista continua, aprofundando sua posição e levantando a questão da possibilidade do acesso e de representação do real:
Aristóteles já dizia isso: o que é importante não é ser fiel à realidade, é ser verossímil, e muitas vezes ser verossímil significa baixar o tom. […] Mas a observação é justa: quando a gente escreve, tem de ser verossímil, o que muitas vezes significa ser menos ousado do que a realidade.
[…]
A narrativa não está à altura. Talvez seja cedo. Que eu saiba, ninguém está escrevendo nada com esse material. Você ouviu falar de alguém trabalhando nisso? 8
Voltando a Fischer, a resposta à questão é assim colocada:
Uma resposta óbvia: porque os escritores provêm das classes médias. Outra resposta, não tão óbvia: porque falta leitor, ou seja,
6 Idem. Ibdem.
7 MOREIRA, Carlos André. Contardo Calligaris: “a política brasileira está muito difícil para a ficção”.
Zero Hora, Porto Alegre, 27 mai 2016. Disponível em:
<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2016/05/contardo-calligaris-a-politica-brasileira-esta-m uito-dificil-para-a-ficcao-5810671.html>. Acesso em: 16 jul 2017.
falta eco. Outra ainda: porque o poder ficou muito mais distante do cotidiano, muito mais inacessível, nos nossos tempos líquidos, com dinheiro digital e sem pátria. Sei lá. 9
Dentre as proposições de Fischer, nenhuma é elucidativa e parece ao menos dar conta da questão levantada, e é possível sentir de sua parte uma falta de vontade em construir uma resposta aprofundada ou plausível. A fim de demonstrar que não estamos tão próximos da resposta – e talvez ela seja impossível no momento –, gostaria de analisar suas proposições mais detidamente. Podemos argumentar, primeiramente, com o apoio da professora e crítica Regina Dalcastagnè, e graças ao mapeamento do romance brasileiro contemporâneo publicados por grandes editoras por ela coordenado, que a maioria do escritores (e por extensão, premiados) possui sexo, cor e classe social bem definidos: são homens, brancos e de classe média. Segundo a professora, essa posição marca, inclusive, um recorte temático predominante, que se volta para o próprio ambiente social frequentado pelo autor e para o momento histórico, revelando, sob certos aspectos, um campo bastante homogêneo . No entanto, essas análises também10 denunciam uma série de ausências e invisibilidades no campo literário brasileiro, que tem crescido em heterogeneidade e complexidade, com o surgimento de pequenas editoras que circulam de modo mais restrito e apostam em novas formas de organização para se inserir no mercado. Em seguida, a alegada falta de leitores pode ser também facilmente questionada enquanto fato novo: o Brasil possui uma alta taxa de analfabetismo – cerca de 9% da população é analfabeta e 14% concluiu o ensino fundamental I – e possui índices percentuais baixíssimos de leitura, segundo pesquisa da Câmara Brasileira do Livro, em torno de 4,96 livros no último ano . Na sequência, a remissão à distância entre o cotidiano e o poder não11
9 FISCHER. Romance sem poder. Zero Hora, Porto Alegre, 07 mai, 2016. Disponível em: <
http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/colunistas/luis-augusto-fischer/noticia/2016/05/luis-augusto-fischer-r omance-sem-poder-5795461.html> Acesso em: 20 jul 2017.
10 DALCASTANGNE. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Rio de Janeiro,
Vinhedo: Editora da UERJ, Editora Horizonte, 2012
11 C MARA BRASILEIRA DO LIVRO. Retratos da leitura no Brasil: 4ª edição. Disponível em:
<http://cbl.org.br/site/wp-content/uploads/2016/08/Apresentacao_Retratos_da_Leitura_2015.pdf>. Acesso em: 05 ago 2017
corresponde ao modo como parte da população se envolveu nas manifestações, e de como se expandiu a repercussão dos discursos e das discussões feministas, antirracistas e anticapitalistas que estão em desenvolvimento. Nesse ponto, destaco ainda o modo como esse assunto, para o bem e para o mal, tomou parte das conversas entre as pessoas. Por fim, a citação à instabilidade dos tempos líquidos, tal como proposta por Zygmunt Bauman em seu Vida líquida, aparece como opção tanto “pelo dinheiro digital e sem pátria”, que parece pouco relevante nesse contexto apesar de sugestivo, como por apontar a velocidade com a qual se tem consumido e descartado objetos, ideias, pessoas, posições, relações, etc., e com isso aumentado a sensação de instabilidade. O que nos resta é impossibilidade de uma resposta generalista nesse cenário complexo e cheio de variáveis, que coloca em jogo, inclusive nossa curiosidade sobre determinados assuntos.
José Luiz Passos, autor do romance, também nota essa ausência no panorama literário brasileiro. Em matéria daFolha de S. Paulo sobre o lançamento do livro, ele afirma: "A literatura brasileira contemporânea, da minha geração, não trata os temas políticos de maneira direta. Abordam-se questões paralelas, culturais, identitárias, sociais, dilemas do âmbito privado, mas não há romances sobre política propriamente dita” . E complementa, em outro momento, ao Jornal do Commercio: 12
Ao contrário da literatura hispano-americana e da anglo-saxã, não
temos uma tradição forte no subgênero do romance histórico ou
da biografia romanceada. São poucos os livros dedicados a
figuras políticas centrais, como, por exemplo, na Inglaterra, os
romances recentes de Hilary Mantel sobre Thomas Cromwell e Henrique VIII, vencedores de dois prêmios Man Booker. Há também narrativas de Asturias, García Márquez e Roberto Bolaño sobre figuras políticas que vão de Simón Bolívar ao general Pinochet, além de uma tradição de narrativas sobre ditadores hispano-americanos. Então, eu me pergunto: e onde estão as nossas? (grifo nosso)13
12 COLOMBO. José Luiz Passos aborda autoritarismo a partir da figura de Floriano Peixoto. Folha de
S. Paulo, São Paulo, 29 out 2016. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/10/1827286-jose-luiz-passos-aborda-autoritarismo-a-part ir-da-figura-de-floriano-peixoto.shtml>. Acesso em: 01 ago 2017.
13 GUEDES. José Luiz Passos fala sobre seu novo romance e o tratamento do câncer. Jornal do
O cinema também tem esbarrado na mesma questão. Em matéria publicada no El país Brasil, temos elencados alguns depoimentos que tentam dar conta da questão. As produtora Mariza Leão argumenta que “nenhum roteirista em Hollywood seria capaz de superar a realidade brasileira […] as pessoas estão exauridas. Talvez a ida ao cinema seja uma fuga de realidade” . Novamente, a 14 irrepresentável realidade e o modo como esses assuntos nos chegam através da imprensa, mídia alternativa e redes sociais aparecem como empecilho à realização de produtos artísticos que coloquem a política em pauta, bem como a opõem aos espaços de entretenimento. Numa outra perspectiva, a roteirista Sonia Rodrigues e o professor Rodrigo Cássio Oliveira, quando consultados, apontam o partidarismo dos cineastas e realizadores como barreiras à temática. Nas palavras de Rodrigues: “Penso que não filmamos os escândalos porque ‘partidarizamos’ a possível abordagem cinematográfica. Como fazer um filme político sobre escândalos se o cineasta tem simpatia por um lado ou por outro?” . Esse argumento tenta privilegiar15 e valorizar uma visão neutra, ou imparcial, do mundo e de novo nos coloca frente ao questionamento sobre a possibilidade de se narrar a história e o presente, temática que tem sido recentemente abordada também por historiadores. Nesse sentido, gostaria de trazer, também, algumas reflexões que me serviram de baliza teórica durante a graduação, no estudo A “crise da crítica” em discussão: uma leitura da
produção metacrítica nos suplementos culturais de jornais brasileiros. Nesse
trabalho, o estudo sobre a constituição e o funcionamento do campo da crítica na contemporaneidade sustentou-se sobre a história do tempo presente. Nela a simultaneidade entre a publicação e a utilização dos textos enquanto objeto de pesquisa, assim como a necessidade de historicizá-los para melhor compreender as
<http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2016/10/23/jose-luiz-passos-fala-sobre-seu-novo-romance-e-o-tratamento-do-cancer-257800.php>. Acesso em: 01 ago 2017.
14 HAIDAR. No Brasil, muito escândalo político para poucos filmes nacionais do gênero. El País, São
Paulo, 06 ago 2017. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/04/politica/1501802603_682008.html?id_externo_rsoc=FB_B R_CM> Acesso em: 06 ago 2017.
mutações e embates que estavam se operando no campo investigado, colocaram-se “fundamentalmente como prática política […] de uma escrita que pensa um passado problematizado por questões vividas no presente” . 16
Partindo da tautologia que define que a “história do presente é primeiramente e antes de tudo história” 17 o historiador Jean Mac Cole Tavares Santos – entre ressalvas, empecilhos e cuidados próprios ao fazer histórico – defende a necessidade do estudo do presente enquanto “única maneira de lidar com as falas dos autores dos processos históricos” .18 Por sua vez,a também historiadora Helena Isabel Muller atribui o surgimento da história do tempo presente às mudanças na maneira de lidar com o passado que sociedades contemporâneas vêm vivenciando. A autora chama a atenção para os “indícios de uma mudança na noção de tempo e espaço que afetam a percepção do presente, do passado e do futuro: o centro de análise não seria mais o que aconteceu, mas o que é necessário reter, como também os acontecimentos sobre os quais temos, de alguma forma, capacidade de intervir” . 19
O professor de literatura da Universidade de Londres Steven Connor também discute e defende a possibilidade de apreensão do contemporâneo. Colocando lado a lado as possibilidades e as interdições de um saber sobre o presente, Connor provoca-nos afirmando que “qualquer reivindicação de que se conhece o contemporâneo é vista muitas vezes como uma espécie de violência conceitual, uma fixação das energias fluidas e informes do agora urgente, mas tenazmente presente numa forma apreensível e exprimível, através dos atos fundamentais e irrevogáveis de seleção crítica” . Porém, se, por um lado, assistimos 20 à instabilidade de um objeto fluido e informe, por outro estamos frente a mutações e
16 MULLER. História do tempo presente: algumas reflexões. In.: PORTO JR, Gilson (Org.). História
do tempo presente. Bauru: Edusc, 2007. p. 29
17 SANTOS. A atualidade da história do tempo presente. In.: PORTO JR, Gilson (Org.). História do
tempo presente. Bauru: Edusc, 2007. p. 8
18 Idem. Ibdem.
19 MULLER. História do tempo presente: algumas reflexões. In.:PORTO JR, Gilson (Org.). História do
tempo presente. Bauru: Edusc, 2007. p. 20
20 CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo. 4. ed. São
devires que se insinuam e atuam como reconfiguradores, impedindo qualquer descrição terminal.
Contemporaneamente, a construção do saber histórico – e aqui destacamos o campo da história do presente, ou história imediata – tem sido pensada a partir de uma “dependência necessária e inescapável entre experiência e consciência, e vice-versa” . Nas palavras de Jean Santos, “toda história é pensada 21 a partir do tempo do historiador que vai buscar no passado (mesmo o próximo) as interlocuções para a compreensão da realidade.” 22
Segundo Pieter Lagrou,
o historiador do tempo presente foi expulso do paraíso ilusório da extratemporalidade, da independência absoluta do pesquisador frente a seu objeto, pelo caráter urgente da obsessão ambiente por seu objeto […]. A reflexão sobre a memória não é o simples sub-produto da pesquisa sobre o tempo presente, ela tornou-se parte integrante da nossa prática 23
Pode-se perceber nas afirmações anteriores o forte desenvolvimento de uma autoconsciência e de uma autocrítica invadindo o campo disciplinar das ciências humanas, modificando assim sua sensibilidade para as possibilidades e limites do saber. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, afirma Connor:
Na tentativa de entender nossos eus contemporâneos no momento presente, não há postos de observação seguramente afastados, nem na “ciência”, nem na “religião”, nem mesmo na “história”. Estamos no e pertencemos ao momento que tentamos analisar, estamos nas e pertencemos às estruturas que empregamos para analisá-lo. Quase poderíamos dizer que essa autoconsciência terminal (“terminal” é glamuroso, mas impreciso, porque a questão é que essa
21 CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo. 4. ed. São
Paulo: Loyola, 2000. p. 12
22 SANTOS. A atualidade da história do tempo presente. In.: PORTO JR, Gilson (Org.). História do
tempo presente. Bauru: Edusc, 2007. p. 11
23 LAGROU. Sobre a atualidade da história do tempo presente. In.: In.: PORTO JR, Gilson (Org.).
autoconsciência nunca é terminal) caracteriza nosso momento contemporâneo ou ‘pós-moderno.’" 24
Partindo da possibilidade de definição do tempo presente como “um
continuum entre o período estudado e o momento da escritura”, 25 em que “as
questões políticas, os paradigmas, a estrutura intelectual através da qual buscamos analisar o passado ainda são partes constitutivas do presente” , retorno à discussão 26 trazendo a contribuição do cineasta pernambucano Marcelo Gomes, diretor de Joaquim. Em entrevista à revista Continente, Gomes ressalta a importância da promoção de um debate político profundo e consistente, sendo fundamental “discutir questões primordiais do país, refletir sobre o presente compreendendo o passado e sinalizando o futuro. Senão não vai dar certo” . E o cineasta prossegue: 27
Neste momento de crises política, e também existencial, porque vêm juntas, ou seja, ’quem somos nós?’, ’que país é esse?’, ‘que nação estamos construindo?’ temos de voltar para a história. O cinema tem uma responsabilidade muito grande de fazer filmes históricos [….] Acho que é muito sintomático, neste momento de crise, a gente voltar para o passado” . 28
A busca por um diálogo com a história e com a interpretação – ou melhor, as interpretações – do Brasil que contemplem nossa diversidade e expliquem a permanência e a persistência de alguns discursos em nosso presente também aparecem como inspiração (e desafio) na obra de José Luiz Passos. O escritor, que é formado e pós-graduado em sociologia e professor de literatura brasileira e portuguesa na UCLA (University of California, Los Angeles), encontrou na articulação e na tensão entre o discurso histórico e a leitura do presente os
24 CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo. 4. ed. São
Paulo: Loyola, 2000. p. 13
25 LAGROU. Sobre a atualidade da história do tempo presente. In.: In.: PORTO JR, Gilson (Org.).
História do tempo presente. Bauru: Edusc, 2007 p. 36
26 MULLER. História do tempo presente: algumas reflexões. In.:PORTO JR, Gilson (Org.). História do
tempo presente. Bauru: Edusc, 2007. p. 21
27 MORISAWA. Marcelo Gomes: “está na hora de discutir política de maneira profunda e consistente”.
Continente, Recife, abr 2017. Claquete. N 196.
fundamentos para seu livro. Em entrevista publicada em 2013 na revista Em tese, sobre seu processo criativo, o autor afirma: “a obsessão pelo entendimento do passado e pela transmutação do presente anima meus romances e me dá o mote para ensaios de crítica” . E complementa: 29
Minha formação é em ciências sociais e me interessa a sociologia histórica, os narradores, ensaístas como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, pessoas que buscam padrões em
comportamentos ao longo da história. Por um lado tem isso, e por
outro tem um pouco da história pessoal. Eu vim de uma família muito nostálgica, associada à cana-de-açúcar. Eu próprio nasci numa usina de cana-de-açúcar, com uma certa sensação de decadência, de declínio que fazia parte dessa construção familiar. Isso provocou em mim umaobsessão pela reflexão sobre o que se passou, sobre o
que acabou, sobre a ideia do encerramento de ciclos e o que
ficou para trás. Depois, é por uma razão consciente: minha
percepção sobre o poder, a potencialidade da literatura, essa
crítica reflexiva do passado.[…] No atual panorama, não vejo isso
com tanto vigor, esse senso crítico. A gente tem uma pressão tão grande pra se modernizar, dar um passo cosmopolita, como uma coisa compulsória, que muitas das narrativas contemporâneas são rasas do ponto de vista desse rendimento que o passado nos dá. Nós meus livros, invariavelmente a relação complicada com o tempo vem à tona, porque eu acho que esse é um dado que vejo na minha vida como sujeito: um cara que está longe de casa se pega pensando em como as coisas eram ou foram. Ninguém escapa disso. Quantas vezes você volta atrás de um passado longínquo? O
sujeito no presente é uma função da relação que ele mantém
com seu passado, muito mais que a noção abstrata e imaterial
do futuro (grifos nossos) 30
De certa maneira, podemos entender um autor que busca afirmar seu espaço naquele vazio sinalizado por Fischer na literatura atual, colocando-se em diálogo o modo como percebe sua história pessoal com uma tradição hispano-americana e anglo-saxã das ficções históricas. Chama atenção no
29 FARIA. As paixões críticas do texto criativo – entrevista com José Luiz Passos. Em Tese, [S.l.], v.
19, n. 2, p. 263-267, ago. 2013. ISSN 1982-0739. Disponível em:
<http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/5295/4700>. Acesso em: 07 ago. 2017.
30 SANTANA. Confira a íntegra da entrevista com o escritor José Luiz Passos. O povo, Fortaleza, 31
out 2016. Disponível em:
<http://www20.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2016/10/31/noticiasjornalvidaearte,3666731/confira-a-integra-da-entrevista-com-escritor-jose-luiz-passos.shtml>. Acesso em: 01/08/2017.
fragmento a articulação de sua formação acadêmica e as inevitáveis influências no método de construção do livro com um entendimento sobre os espaços pouco explorados do cenário literários brasileiro.
O uso deliberado de entrevista neste trabalho se apoia nas reflexões de Silviano Santiago sobre as atividades do escritor hoje. No ensaio Uma literatura
anfíbia, ele apresenta uma leitura muito particular sobre o modo que o escritor brasileiro encontra para divulgar suas ideias. Em sua perspectiva, tão importante quanto a publicação do romance é a “a ação persuasiva que esse livro pode exercer no plano politico” , seja através da leitura – realizada apenas por um grupo restrito,31 como vimos acima –, seja através de notícias e/ou comentários nos meios de comunicação de massa, destacando aqui a facilidade de acesso a esses meios por grande parte da população, o que serve como “trampolim para discussões públicas sobre ideias implícitas na obra literária” . Para caracterizar essa particular situação32 do escritor brasileiro – entre a tarefa de criar e a performance pública enquanto intelectual –, Santiago a conceitua como anfíbia, visto que “a atividade artística do escritor não se descola de sua influência política; a influência da política sobre o cidadão não se descola da sua atividade artística” . Assim, “livro e entrevista, folha33 de papel e tela, escrita e fala – estamos diante de situações concretas e excludentes, que se dão como cúmplices pelo escritor doublé de intelectual” . E34 continua:
O escritor brasileiro tem a visão da Arte como forma de conhecimento, tão legítima quanto as formas de conhecimento de que se sentem únicas possuidoras as ciências exatas e as ciências sociais e humanas. Ele tem também a visão Política como exercício da arte que busca o bom e o justo governo dos povos, dela dissociando a demagogia dos governantes, o populismo dos líderes carismáticos e a força militar dos que buscam a ordem pública a ferro e fogo. 35
31 SANTIAGO. Uma literatura anfíbia. In.: SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica
literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p. 64
32 Idem. Ibdem. p. 65 33 Idem. Ibdem. p. 66 34 Idem. Ibdem. p. 66 35 Idem. Ibdem. p. 72
Gostaria de retomar aqui, como curiosidade, a figura do editor Marcelo Ferroni, também autor do livro Método prático de guerrilha, publicado em 2010. Neste, com um método similar ao de Passos, o autor reconta os dois últimos anos da vida de Che Guevara, baseando-se em biografias, diários e eventos históricos para construção de sua ficção, propondo uma releitura desse importante personagem da América-Latina.
A discussão da relação entre literatura brasileira e poder também já foi alvo de reflexão pelo escritor, crítico e professor Silviano Santiago. No ensaio “Poder e alegria: a literatura brasileira pós-64 – reflexões”, o autor identifica um deslocamento temático no decorrer da década de 1960 e que caracterizará sua produção literária em relação à produção da primeira metade do século XX. Segundo o autor, o abandono de temas que remetem à exploração do homem pelo homem, ao processo de conscientização político-partidária dos movimentos sociais e à crítica – velada ou direta – à oligarquia rural e ao empresariado urbano, dará lugar à tentativa de entendimento do “modo como funciona o poder em países cujos governantes optam pelo capitalismo selvagem como norma para o progresso da nação e o bem-estar dos cidadãos” . 36
A descoberta assustada e indignada da violência do poder é a principal característica temática da literatura brasileira pós-64. São tematizadas as várias origens do poder, na sociedade ocidental e na época colonial brasileira, no tenentismo de 30 e no Estado Novo, também nos nossos dias com o aparato policial conveniente resguardado da imprensa pela censura; reflete-se sobre suas formas globais e centralizadas, como também sobre seus esfarelamentos em infinitas partículas moleculares pelo cotidiano […] Dessa forma, o escritor brasileiro pós-64 coloca em segundo plano nos seus textos a dramatização dos grandes temas universais e utópicos da modernidade, da mesma forma como guarda distância dos temas nacionais clássicos, e ainda discute sem piedade temas oriundos de 22 que falavam da indispensável modernização industrial do país . 37
36 SANTIAGO. Alegria e poder. In.: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra: ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. p. 14
Como retrato da época explorada por Santiago, temos a implantação do governo militar no País através de um golpe que resultou na interrupção e suspensão do Estado democrático, situação similar ao de diversos países na América Latina. No plano cultural, foi instituída a política da censura enquanto instrumento de controle de circulação sobre diversas produções artísticas julgadas subversivas. Por outro lado, no campo das ciências humanas europeu, desenvolvia-se o pensamento de viés desconstrucionista e pós-estruturalista, que se ocupam em investigar o funcionamento de instituições e comportamentos, levando a um entendimento, através dos levantamento histórico, de como os discursos de poder se constituem pela sociedade e sobre ela. Nesse momento histórico, de acordo com Santiago, ou o escritor brasileiro opta por dialogar com a literatura mágico-realista que se desenvolvia na América Latina ou retoma os problemas estilísticos estabelecidos pelo realismo social sem perder de vista o viés político.
Essa vocação política também se manifestou na prosa dos anos 1970 e 1980. A produção do período é retratada por Santiago como uma “anarquia formal”, onde é possível demonstrar a vivacidade do gênero através das inovações formais e da pluralidade de temas apresentadas nessa época. Outro ponto destacado por Santiago é o aparecimento da narrativa autobiográfica, que estabeleceu uma desconfiança diante “da compreensão da história pela globalização”38 e que contribuiu para “o melhor conhecimento da nossa história no período coberto pelos Atos Institucionais” . Na síntese de Diana Klinger: 39
Na escrita de si dos anos pós-ditadura se produz, então uma inversão com relação à escrita do século XIX e do modernismo, pois a memória não é mais dispositivo ao serviço da conservação dos valores de classe mas, pelo contrário, funciona como testemunho e legado de uma geração que precisamente teve um projeto de mudança de valores . 40
38 SANTIAGO. Prosa literária atual no Brasil. In.: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra: ensaios.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 37
39 Idem. Ibdem. p. 39
40 KLINGER. A escrita de si – o retorno do autor. In.: KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do
É também característico do momento a opção pelo hibridismo entre formas literárias e não literárias, destacando-se o romance-reportagem, influenciado pelo jornalismo e pelo new journalism, e o romance-ensaio, que surge do entrecruzamento entre ficção e crítica. A professora e crítica literária Flora Sussekind, em Literatura e vida literária, de 1985, classifica essa aproximação sob o título de literatura-verdade e identifica nela uma forma usada principalmente pelos escritores/jornalistas como forma de burlar a censura que fiscalizava os jornais após a publicação do AI-5. Tal produção existia concomitantemente à chamada literatura
do eu, que possuía um viés mais existencial e intimista . 41
No decorrer da década de 1980, durante o início do processo de abertura política, é possível apontar o surgimento de romances que encenam uma revisão e reescrita dos nossos mitos de fundação e da memória nacional sob o prisma da historiografia metaficcional. Essa forma de escrita pode ser caracterizada pelo modo como o conteúdo histórico se torna alegórico em relação à realidade nacional do período e “as referências históricas são metabolizadas de modo a possibilitar novas hipóteses interpretativas” . Nessa época começou-se a teorizar sobre o fim dos42 ideais da modernidade, como as utopias do universalismo, da razão, do saber e da igualdade, e a propor-se uma nova inscrição discursiva: o conceito de pós-modernidade. Essa vinha afirmar um novo estado das coisas, como
a crise dos grandes relatos legitimadores, a perda de certezas e fundamentos (da ciência, da filosofia, da arte, da política), o decisivo descentramento do sujeito e, coextensivamente, a valorização dos “microrrelatos”, o deslocamento do ponto de mira onisciente e ordenador em benefício da pluralidade de vozes, da hibridização, da mistura irreverente de cânones, retóricas, paradigmas e estilos . 43
41 SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
42 SCHØLLHAMMER. Breve mapeamento das últimas gerações. In.: SCHØLLHAMMER, Karl Eric.
Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p.30
43 ARFUCH. Breve história de um começo. In.: ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Tradução de
As transformações que os discursos artísticos, literários, historiográficos, científicos e políticos sofreram nesse momento, foram sintetizadas pela teórica canadense Linda Hutcheon em sua Poética do pós-modernismo. O vocabulário composto por prefixos que indicam negação – como des-, in-, e anti- –, primeiro destaque de Hutcheon, é fundamental para entender o movimento. Assim, este se estabelece a partir de uma característica contraditória e fundamental: a incorporação daquilo que pretende contestar. Como ponto de partida de sua reflexão, a autora retoma a Bienal de Veneza de 1980, cuja temática, “presença do passado”, inspirou o arquiteto italiano Paolo Portoghesi a analisar as 20 fachadas da Strada Novissima revelando como a arquitetura tem repensado o rompimento do modernismo com a história através da releitura paródica. O retorno ao passado, nesses termos, não é caracterizado pela nostalgia ou pelo sentimento de perda: segundo a autora, estamos diante de um movimento que realiza uma reavaliação crítica do passado a partir da problematização das formas estéticas e das formações sociais. Na abordagem do texto literário, Hutcheon faz um recorte e privilegia o gênero romance, destacando o que ela chama de metaficção historiográfica: textos que apresentam um grande preocupação autorreflexiva e que, concomitante e paradoxalmente, se apropriam de eventos e personagens históricos, atuando a partir de convenções e pressupostos a fim de subvertê-los. “Sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das formas e conteúdos do passado” , aponta a 44 autora. Outra importante característica do pós-modernismo é a recusa em propor estruturas e a ausência de valores universais – ou, de uma narrativa-mestra, para retomar o conceito de Lyotard –, traço do humanismo liberal e do modernismo. Em seu entendimento, nesse novo momento, tais estruturas e valores são construções, possuem caráter provisório, só existindo sob a ótica de um consenso ilusório. As fronteiras entre a ficção e a não-ficção – “entre arte e vida” 45 – também são
44 HUTCHEON. Teorizando o pós-moderno: rumo a uma poética. In.: HUTCHEON, Linda. A poética
do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1988. p. 21
questionadas: a aproximação e o embaralhamento entre ambas provoca uma problematização sobre a natureza do saber histórico e chama a atenção para o modo como essas narrativas estão atravessadas: “O pós-modernismo confunde deliberadamente a noção de que o problema da história é a verificação enquanto o problema da ficção é a veracidade. […]As duas formas de narrativa são sistemas de significação em nossa culturas” . A autora nos lembra ainda da proposição teórica46 do escritor italiano Umberto Eco sobre as maneiras de narrar o passado – a fábula, a estória heroica e o romance histórico – e sugere, como uma quarta maneira, a metaficção historiográfica. A ficção histórica, de um modo geral, não segue o modelo da historiografia que entende a o discurso histórico enquanto força modeladora e busca identificar as causas dos acontecimentos e investigar os processos através dos quais os efeitos são percebidos. A metaficção historiográfica se diferencia desse modelo pelo modo como explora de modo autoconsciente essas construções. Novamente Hutcheon: “a ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-Io de ser conclusivo e teleológico” . 47
Podemos ler O marechal de costas sob a ótica dessa teoria. Ao mesmo tempo em que a história do surgimento da República é retomado a partir de uma de suas figuras chaves, esse passado é posto em conflito com eventos presentes, revelando rupturas e continuidades. O autor, em diversas entrevistas, reafirma a importância de retomada da história, bem como da consciência de que ela é um constructo que deve ser (re)trabalhado pelo presente, de modo a extrair e provocar novos sentidos. Retomo Passos em três citações onde podemos ilustrar esse pensamento, cruzando, inclusive, seu discurso crítico/autoral ao discurso ficcional. A primeira, retirada da entrevista ao jornalista Diego Guedes:
para cada evento ou personalidade, a História admite vários cenários possíveis. Para o ficcionista, isso não deixa de ser fascinante. A cada geração, o presente refaz o passado por meio de novas narrativas.
46 HUTCHEON. Metaficção historiográfica: “o passatempo do tempo passado”. In.: HUTCHEON,
Linda. A poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1988. . p. 149
Então, o peso da história, ou do passado, é um peso em vários sentidos articulado pelo presente, no presente. 48
A segunda, retirada do início do romance – e já anunciando a autoconsciência do narrar histórico –, está escrita numa suposta carta enviada por Napoleão Bonaparte à qual Floriano tem acesso através de uma biografia. Cito:
Há uma diferença tão colossal entre dois livros escritos sobre a mesma época, ou o mesmo indivíduo, que quem deseje uma notícia confiável e se atire numa biblioteca vasta encontra-se num labirinto quase infinito.
[…]
Um único ponto de vista não nos dá o fato material nem a moral das intenções. […] Ao atuar, altero meu povo, modifico-lhe a história, porque a gênese do passado está no presente, não o contrário. 49
Temos ainda, ao fim do livro, a cozinheira expondo a sensação que carrega
de que a História é de um sentimentalismo comovente, supõe que dá gosto buscar um elo entre as situações de gente diferentes, distantes umas das outros no espaço e no tempo. Hoje me perco imaginando, nessas descrições movimentadas, a busca não de fatos mas de vidas que traçamos chamando o passado à ordem do dia. Sei que as saudades são um desejo de acordo entre o de agora e o de antes. 50
A problematização da relação com o próprio tempo e as possibilidades de apreensão deste são, também, tema da reflexão do filósofo italiano Giorgio Agamben. No ensaio O que é o contemporâneo?, o autor se propõe a descrever essa maneira de olhar para mundo através de uma “singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias” , ou seja, um 51
48 GUEDES. José Luiz Passos fala sobre seu novo romance e o tratamento do câncer. Jornal do
Commercio, Recife, 23 out 2016. Disponível em:
<http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2016/10/23/jose-luiz-passos-fala-sobre-seu-novo-romance-e-o-tratamento-do-cancer-257800.php>. Acesso em: 01 ago 2017.
49 PASSOS, José Luiz. O Marechal de costas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016. p. 17-18 50 Idem. Ibdem. p. 198
51 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinicius Nicastro
olhar que se constitui através de uma dissociação e de um anacronismo. Para se tornar contemporâneo, segundo Agamben, é necessário manter os olhos fixos para o próprio tempo, para nele perceber não só as luzes, mas também o escuro, as trevas, assinalando uma relação com o passado. “A contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo” , afirma. É também sintomático do contemporâneo perceber a52 permanência de um devir histórico que não para de agir sobre o presente.
Apoiado nessas reflexões, o crítico literário Karl Eric Schøllhammer tenta singularizar o modo como essa reflexão está presente na ficção brasileira contemporânea, representando a realidade da atualidade através de uma inadequação, revelando as zonas marginais e obscuras do presente. O autor, assim, identifica no escritor contemporâneo a urgência em se relacionar com a realidade histórica, “estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la na sua especificidade atual” . 53
3. A DEMOCRACIA SEMPRE POR VIR
O livro O marechal de costas se organiza em cinco capítulos, numerados e nomeados por fases, como se fossem movimentos de uma operação militar. Cada qual desenvolve aspectos da vida de Floriano e dos eventos nos quais ele esteve envolvido, bem como narra, a partir da ótica de uma cozinheira, os protestos de 2013 e o desenrolar dos eventos que culminaram no impedimento da presidenta Dilma Rousseff, expondo como se dão as suas relações com a família que a emprega. A 1ª fase, chamada Gênese, tem um início teatral. Floriano se prepara para entrar em cena: suas vestes sugerem as do monarca francês Luis XVI e, de mãos dadas ao seu preceptor, identificado ali como Napoleão Bonaparte, começa o
52 Idem. Ibdem. p. 69
53 SCHØLLHAMER. Que significa literatura contemporânea? In.: SCHØLLHAMMER, Karl Eric. Ficção
espetáculo. Naquele momento se encena na Escola Militar do Rio de Janeiro o “espetáculo dos grandes homens do Império, e de outras impérios. E das repúblicas”
, como forma de educação moral e cívica, mas a encenação de Floriano resulta
54
num grande fracasso. Essa tônica estará presente em todo o romance, mas como objeto teremos a encenação da vida do Marechal. São apresentados, de forma embrionária, sua prima-irmã Josina, e o seu tio-pai, Vieira Peixoto, de perfil liberal, que via em Floriano um descendente de Acioli Vasconcelos. Esse teria lutado na Revolução Pernambucana de 1817, movimento separatista que chegou a estabelecer um governo provisório republicano no estado e que acabou fortemente reprimido. Observamos aí a sugestão de um gene republicano que acompanharia a vida de Floriano. Outro destaque é o interesse deste pela vida de Napoleão Bonaparte: importante personagem de origem militar que ganhou destaque no decorrer da Revolução Francesa, no período da Primeira República, e que logo após liderou um golpe de estado que o tornou imperador.
Juventude, a 2ª fase, principia com a cozinheira contando sua história: o apartamento conjugado récem-alugado; a ajuda na ação movida por dr. Ramil contra o antigo restaurante onde ela trabalhava e o posterior convite para trabalhar em sua casa; a mudança com a família de Alagoas para o Rio de Janeiro em 1982; o mistério sobre a origem do pai, que havia inventado um sobrenome para os filhos; a constatação da dificuldade de instrução formal no seu caso e sua relação com a leitura, da qual não abre mão, mas que às vezes se realiza de pé, no trabalho, e o desprezo pelo idiota “de livros na mão […], marginal de pose, que vai perguntar sorrindo se não seria possível acender o abajur ou passar a página com mais calma” . São apresentados, ainda, o jovem Ramil Jr e o professor, contratado como seu
55
preceptor. Explicitando as relações trabalhistas existentes ali, Ramil Jr a aborda fora do ambiente de trabalho para solicitar que prepare o jantar do dia seguinte, num horário fora de seu turno de trabalho. É contada, no outro núcleo, a viagem pós-formatura de Floriano e sua família a Alagoas. Ele visitam o engenho de Vieira
54 PASSOS, José Luiz. O Marechal de costas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016. p. 15 55 Idem. Ibdem. p. 30
Peixoto, localizado na vila onde nasceu, e lá reencontra primos desconhecidos e os pais biológicos. É aí revelada sua atração afetiva e sexual por Josina e é noticiada sua partida para o sul, para a Guerra do Paraguai. Sugere-se que o desenvolvimento de sua carreira militar, diferentemente do discurso meritocrático, esteja relacionado à “influência de Vieira Peixoto junto aos gabinetes de predomínio Liberal”56 que compunham a administração imperial.
A 3ª fase, chamada Campanha, é a mais longa do livro. Ela se debruça sobre o tempo que Floriano passou nas trincheiras da Guerra do Paraguai, da qual foi um dos poucos a não pedir dispensa para visitar a família e onde se destacou como militar. Nela, revela-se um homem solitário e silencioso, que não cria laços com os companheiros de tropa, restando-lhe como foco o trabalho de planejar as ações do front. Max Ureña, um índio uruguaio conversador e guia das tropas nas operações fluviais, é o personagem que dele mais se aproxima. Sobre Ureña, os demais oficiais guardam uma grande desconfiança de que seja um agente duplo, um traidor a serviço de Solano López. Desse período, nos contam Lilia Schwarcz e Heloísa Starling em seu Brasil, uma biografia, que tal guerra foi extremamente prejudicial à imagem do imperador Pedro II: além de se estender além do tempo previsto, foi demasiado custosa aos cofres públicos, tendo sido necessários empréstimos junto à Inglaterra para mantê-la. Como contrapartida, esse evento contribuiu para o crescimento e fortalecimento do Exército Brasileiro, tornando-o independente da Guarda Nacional. Outro tema importante em pauta, eram as campanhas pela abolição da escravatura, cada vez mais intensas, que opunham os grupos liberais à aristocracia rural da época. No plano presente, a cozinheira é convidada a acompanhar o grupo formado por dr. Ramil, Ramil Jr e o professor ao centro do Rio de Janeiro, onde ocorriam os protestos contra o aumento das passagens. Eles estavam curiosos para “ver essa política toda acontecendo”57 e requisitaram sua companhia. No percurso, realizado na companhia de um taxista de confiança da família – afinal dr. Ramil afirma que gostava de sua rotina na
56 Idem. Ibdem. p. 45 57 Idem. Ibdem. p. 52
companhia das mesmas coisas e pessoas como forma de demonstrar sua confiança nas pessoas que o servem –, seu Jonatas, são explicitados os termos da relação que há entre eles: dr. Ramil considera a empregada “como se fosse da família” e a ajuda com um dinheiro extra para pagar os remédio da mãe, e, por outro lado, solicita com frequência serviços além do horário de trabalho e aos finais de semana. Temática semelhante foi retratada no filme Que horas ela volta?, dirigido por Anna Muylaert, que questiona a informalidade nas relações do trabalho doméstico e a ausência de regulamentação do mesmo, situação abordada que a Lei Complementar 150, conhecida como PEC das domésticas, promulgada em 2013 e regulamentada pela presidenta Dilma em 2015. Esta garante aos trabalhadores domésticos direitos como jornada de trabalho diária, horas extras, recolhimento do FGTS, seguro desemprego, dentro outros, que já eram garantidos às demais categorias. Por outro lado, nesse trecho revela-se, também, a distância que os separa: Ramil & Ramil, como são ironicamente chamados, apesar do convívio intenso, familiar, cordial, desconhecem a vida pregressa da cozinheira, preferindo contar e recontar o suposto – e improvável – parentesco entre ela e o Marechal pela origem comum, região nordeste, estado de Alagoas, vila de Ipioca. A conversa, no percurso até alcançar a manifestação, é dominada pelo professor, que para tudo tem uma história para contar ou uma citação a fazer, sempre pontuadas por perguntas retóricas. Temos como exemplo o trecho: “Todo mundo tem uma opinião sobre o mundo, concordam? Mas espalhar opiniões tocando trombone das redes sociais não é fazer política. Isso é comércio. Claro está. Comércio de egos em busca de uma fichinha de validação” . Ou em:
Vejam só, Só quem dá opinião e se vangloria dela é a classe média. Isso tudo o que vocês estão vendo é radicalismo de classe média. O aristocrata não dá opiniões, inspira obediência posando com a sua linhagem. O proletário só tem, como diz seu próprio nome, a prole. Não tem tempo para entrar no mercado de ideias, o dia é curto. O alto burguês […] não sobe ao plano das abstrações, por que ali não há o que ele quer, acumular posses. O pragmatismo dessas três classes obviamente a classe média não herdou, verdade? Vive uma sopa de opiniões, aspirando ser como um aristocrata, consumir como
um burguês e, ainda por cima, se queixar de que é difícil manter a dignidade do trabalho, terreno dos proletários 58
Os comentários, que em sua generalização soam contraditórias, abordam duas situações diferentes: o primeiro refere-se a uma polêmica da internet e questiona a intervenção ou não de um humano numa situação de desigualdade existente na natureza. As opiniões, nesse ambiente virtual, se são apenas exibição egóicas em busca de reconhecimento. As sugestões éticas e políticas desses discursos ali se encerram. No segundo caso, já no contexto dos protestos, convocados em sua maioria através das redes sociais, ele se apoia numa leitura marxista da sociedade, opondo e reduzindo os atores da discussão às suas possibilidade econômicas. Essa visão se mostra inconsistente frente ao mudanças na composição da classe média nos últimos anos. Novas denominações estão sendo propostas, como nova classe média ou nova classe trabalhadora, que apontam a heterogeneidade na composição desse grupo. Outro fator importante é o modo de consumir informação, que se desloca para uma leitura fluida nas redes sociais e sob a qual existe a incerteza sobre a influência dos algoritmos que ordenam a informação e a circulação de informações falsas, características da pós-verdade.
A Revolução, 4ª fase do romance, nos apresenta o contexto complexo no qual vive Floriano no período pré-proclamação. Ao mesmo tempo que prestava serviços para a coroa – “Sua atuação como presidente do Mato Grosso, de 1884 ao ano seguinte, já brigadeiro, mostra-se monárquica e plenamente liberal, de tendência abolicionista, seguindo a preferência do imperador” 59 –, o imperador demonstra sua plena confiança nele, promovendo-o a comandante-chefe do Exército e condecorando-o com a medalha de Grande Dignatário da Ordem da Rosa, a mais alta honraria da corte. Por outro lado, ele participa de reuniões com republicanos. Episódio interessante, contado por Passos, narra a ambiguidade e a falta de clareza
58 Idem. Ibdem. p. 99 59 Idem. Ibdem. p. 112