IDÉIAS BÍBLICAS
FUNDAMENTAIS
DE RELEVÂNCIA
FILOSÓFICA,
À LUZ DE
GIOVANE REALE
1) MONOTEÍSMO
Somente com a difusão da mensagem bíblica no
Ocidente é que se impôs a concepção do Deus
uno e único. E a dificuldade do homem em
chegar a essa concepção é demonstrada pelo
próprio mandamento divino “não terás outro Deus
além de mim” (o que significa que o monoteísmo
não é, em absoluto, uma concepção espontânea)
e pelas contínuas recaídas na idolatria (o que
implica sempre uma concepção politeísta) por
parte do próprio povo hebreu, através do qual foi
transmitida essa mensagem.
2) CRIACIONAISMO
A mensagem bíblica fala de "criação: 'No princípio,
Deus criou o céu e a terra.' E os criou através de sua
"palavra': Deus "disse" e as coisas "existiram". E,
como todas as coisas do mundo, Deus criou
diretamente também o homem: "Deus disse:
'Façamos o homem...' E Deus não usou nada de
preexistente, como o demiurgo platônico, nem se
valeu de "intermédios" na criação: ele produziu tudo
do nada. Todas as coisas têm origem do nada, sem
distinção. Deus cria livremente, ou seja, com um ato
de vontade, por causa do bem. Ele produz as coisas
como "dom" gratuito.
3) ANTROPOCENTRISMO
O antropocentrismo não foi uma marca do pensamento grego, que, ao contrário, apresenta-se fortemente cosmocêntrico. Na visão helênica, o homem não é a realidade mais elevada do cosmos, como revela este exemplar texto aristotélico: “Há muitas outras coisas que, por natureza, são mais divinas (= perfeitas) do que o homem, como, para ficar apenas nas mais visíveis, os
astros de que se compõe o universo.”
Na Bíblia, ao contrário, mais do que como um momento do cosmos, ou seja, como uma coisa entre as coisas do cosmos, o homem é visto como criatura privilegiada de Deus, feita “à imagem” do próprio Deus e, portanto, dono e senhor de todas as outras coisas criadas por ele. No Gênesis está escrito: “Deus disse: 'Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra.” E ainda: “Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou ser vivente ”.
E, sendo feito à imagem e semelhança de Deus,
o homem deve se esforçar por todos os modos
para "assemelhar-se a ele'. O Levítico já
afirmava: "Não deveis vos contaminar. Porque o
vosso Deus sou eu, Iahweh, que vos fez sair da
terra do Egito para ser o vosso Deus: “ vós, pois,
sereis santos como eu sou santo”. Os gregos já
falavam de "assimilação a Deus", mas
acreditavam poder alcançá-la com o intelecto,
com o conhecimento. A Bíblia, porem, atribui à
vontade
o
instrumento
da
assimilação:
assemelhar-se a Deus e santificar-se significa
fazer a vontade de Deus, ou seja, querer o
querer de Deus. E é exatamente essa
capacidade de fazer livremente a vontade de
Deus que coloca o homem acima de todas as
4) A LEI COMO MANDAMENTO DIVINO
Os gregos haviam entendido a lei moral como lei da
physis, a lei da própria natureza: uma lei que se impõe a
Deus e ao homem ao mesmo tempo, visto que não foi feita por Deus e que a ela o próprio Deus está
vinculado. O conceito de um Deus que faz a lei moral (um Deus "nomoteta") é estranho a todos os filósofos gregos.
O Deus bíblico, ao contrário, dá a lei ao homem como "mandamento". Primeiro, ele a dá diretamente a Adão e Eva: “ E Iahweh Deus deu ao homem este
mandamento: "Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás.” Posteriormente, como já dissemos, Deus "escreve' diretamente os mandamentos.
A virtude (o bem moral supremo) torna-se obediência
aos mandamentos de Deus. O pecado (o mal moral
supremo), ao contrário, torna-se desobediência a Deus, dirigindo-se portanto contra Deus, à medida que vai contra os seus mandamentos.
A vida, a paixão e a morte de Cristo desenvolvem-se inteiramente sob o signo do fazer-a-vontade-do-Pai que o enviou. O Novo Testamento também faz com que o objetivo supremo da vida o amor de Deus, coincida com o fazer a vontade de Deus, com o seguir a Cristo, que concretizou com perfeição aquela vontade.
Desse modo, o antigo "intelectualismo" grego é inteiramente subvertido pelo "voluntarismo": o 'querer de Deus" é a lei moral e o 'querer o querer de Deus" é a virtude do homem. A boa vontade torna-se a nova marca do homem moral.
5) A PROVIDÊNCIA PESSOAL
A Providência bíblica não apenas é
própria de um Deus que é pessoal em
alto grau, mas também, além de se
dirigir para a criatura em geral,
dirige-se ainda e particularmente para os
homens individuais, especialmente
para os mais humildes e necessitados
e para os próprios pecadores (basta
recordar as parábolas do 'filho pródigo"
e da "ovelha perdida").
6) O PECADO ORIGINAL, SUAS CONSEQÜÊNCIAS E SEU RESGATE
O pecado original, como todo pecado, é
desobediência,
mais
precisamente
desobediência ao mandamento original de não
comer do fruto "da árvore do conhecimento do
bem e do mal'. A raiz dessa desobediência foi
a soberba do homem, que não queria tolerar
limitação nenhuma, que não queria ter os
vínculos do bem e do mal (dos mandamentos)
e, portanto, que queria ser como Deus.
7) A NOVA DIMENSÃO DA FÉ E O ESPÍRITO
A filosofia grega havia subestimado a fé ou crença
(pístis) do ponto de vista cognitivo, pois dizia respeito às
coisas sensíveis, mutáveis, sendo portanto uma forma de opinião (doxa). Os pensadores gregos viam no conhecimento a virtude por excelência do homem e a realização da essência do próprio homem. A mensagem bíblica exige, porém, do homem precisamente uma superação dessa dimensão, invertendo os termos do problema e pondo a fé acima da ciência.
Isso não significa que a fé não tem um valor cognitivo próprio: entretanto, trata-se de um valor cognitivo de natureza inteiramente diferente, em comparação com o conhecimento da razão e do intelecto; de todo modo, trata-se de um valor cognitivo que só se impõe a quem possui aquela fé. Como tal, ela constitui uma verdadeira 'provocação" em relação ao intelecto e à razão.
Essa mensagem subversiva de todos os
esquemas
tradicionais
dá
origem
inclusive a uma nova antropologia (de
resto, já amplamente antecipada no
Antigo Testamento): o homem não é mais
simplesmente
"corpo"
e
"alma"
(entendendo-se por "alma“, sobretudo a
razão), isto é, em duas dimensões, mas
sim em três dimensões: 'corpo' 'alma' e
'espírito', onde o ‘espírito' é exatamente
essa participação no divino através da fé,
a abertura do homem para a Palavra
divina e para a Sabedoria divina.
8) EROS GREGO E AMOR CRISTÃO
Em um de seus cumes mais significativos, o pensamento grego criou, sobretudo com Platão, a admirável teoria do eros, que é desejo de perfeição, que torna possível a elevação do sensível ao supra-sensível, força que tende a conquistar a dimensão do divino. O Eros grego é falta-e-posse em uma conexão estrutural entendida em sentido dinâmico e, por isso, é força de conquista e ascensão, que se acende sobretudo à luz da beleza.
Já o novo conceito bíblico de 'amor' (ágape) é de natureza bem diferente. O amor não é primordialmente 'subida' do homem, mas 'descida" de Deus em direção aos homens. Não é “conquista”, mas 'dom'. Não é algo motivado pelo valor do objeto ao qual se dirige, mas, ao contrário, algo espontâneo e gratuito.
Para os gregos, é o homem que ama, não Deus. Para os cristãos, é sobretudo Deus que ama: o homem só pode amar na dimensão do novo amor realizando uma revolução interior radical e assemelhando o seu comportamento ao de Deus.
O amor cristão é verdadeiramente sem limite, é infinito: Deus ama os homens ao ponto do sacrifício da cruz; ama os homens inclusive em suas fraquezas. Aliás, é sobretudo nisso que o amor cristão revela a sua desconcertante grandeza: na desproporção entre o dom e o beneficiário desse dom, ou seja, na absoluta gratuidade de tal dom.
A ilimitude do amor cristão se expressa ainda mais profundamente nestas palavras do Evangelho de Mateus: "Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; deste modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos ”.
E a primeira Epístola aos Coríntios de Paulo contém o mais exaltante hino ao ágape, ao novo amor cristão: 'Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar os montes, se não tivesse a caridade, eu nada seria. Ainda que eu distribuísse os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria. (...) Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido. Agora,
portanto, permanecem fé, esperança, caridade, estas três coisas. A maior delas, porém, é a caridade.”
9) A REVOLUÇÃO DE VALORES OPERADA PELO CRISTIANISMO
A mensagem cristã assinalou sem dúvida a mais radical revolução de valores da história humana. Nietzsche chegou a falar até mesmo de total subversão dos valores antigos, subversão que tem sua formulação programática no 'Sermão da Montanha', que podemos ler no Evangelho de Mateus.
Segundo o novo quadro de valores, é preciso retornar à simplicidade e à pureza da criança, porque aquele que é o
primeiro segundo o juízo do mundo será o último segundo o juízo
de Deus e vice-versa. Desse modo, a humildade torna-se uma virtude fundamental do cristão: o estreito caminho que dá acesso ao Reino dos Céus. E essa também era uma virtude desconhecida dos filósofos gregos. O ideal do homem grego, que acreditava em si mais do que em todas as coisas exteriores com extrema firmeza, havia sido, indubitavelmente, um nobre ideal. Mas a mensagem evangélica agora o declara ilusório - e o faz de maneira categórica. A salvação não apenas não pode vir das
coisas, mas sequer de si mesmo, como diz Cristo:" Sem mim,
10) O NOVO SENTIDO DA HISTÓRIA E DA
VIDA DO HOMEM
Os gregos não tiveram um sentido preciso da história: o seu pensamento é substancialmente a-histórico. A idéia de progresso não lhes foi familiar ou só o foi em escala reduzida. Aristóteles falou de catástrofes recorrentes, que levam continuamente a humanidade ao estágio primitivo, ao que se segue uma evolução, que leva novamente a humanidade a um estágio de civilização avançada, que atinge o ponto atingido pela anterior, ao que se segue uma nova catástrofe e assim por diante, ao infinito.
A concepção de história expressa na mensagem bíblica, ao contrário, não é cíclica, mas retilínea: no transcorrer do tempo, verificam-se eventos decisivos e irrepetíveis, que são como que etapas que destacam o seu sentido. O fim dos tempos é também o fim para o qual eles foram criados: é o Juízo universal e o advento do Reino de Deus em sua plenitude. E assim a história, que vai da Criação à queda, da Aliança ao tempo de espera do Messias, da vinda de Cristo ao Juízo final, adquire um sentido, tanto no seu conjunto como em suas diversas fases.
E, conseqüentemente, na história assim entendida, também o homem se compreende a si mesmo bem melhor: compreende melhor de onde vem, onde se encontra e aonde é chamado a chegar. Sabe que o Reino de Deus já fez seu ingresso no mundo com Cristo e com sua Igreja e que, portanto, já se encontra entre nós, ainda que só no fim dos tempos vá se realizar em toda a sua plenitude. O antigo grego vivia na dimensão da polis e pela polis - e só sabia pensar dentro de seus quadros. Destruída a polis, o filósofo grego refugiou-se no individualismo, sem descobrir um novo tipo de sociedade. Já o cristão vive na Igreja, que não é uma sociedade política nem uma sociedade puramente natural. É uma sociedade que, por assim dizer, é ao mesmo tempo horizontal e vertical: vive neste mundo, mas não para este mundo; manifesta-se em aparências naturais, mas tem raízes sobrenaturais.
Ética Cristã
Medieval
A ética cristã
•“A ética cristã - como a filosofia
cristã em geral - parte de um
conjunto de verdades a respeito
de Deus, das relações do homem
com o seu criador e do modo de
vida prático que o homem deve
seguir para obter a salvação no
outro mundo”.( Adolfo Sánchez
Vásquez)
• O Cristianismo introduz a idéia
de igualdade na Civilização
Ocidental, na medida em que
todos somos filhos de um
mesmo Deus, para quem não
há distinções de classe, raça,
nacionalidade ou de sexo que
sejam relevantes.
• A afirmação da idéia de igualdade
contrasta com uma realidade marcada
pela desigualdade. No mundo feudal, as
distinções sociais, raciais, regionais e
sexuais são evidentes. Esse contraste
não foi condenado pela ética cristã
medieval, pois a igualdade e a justiça
foram consideradas realizáveis apenas no
mundo espiritual ou sobrenatural e a
desigualdade e a injustiça perdurariam
enquanto o mundo terreno fosse marcado
pelo pecado.
CONSIDERAÇÕES ADCIONAIS E
CONCLUSIVAS
• O Cristianismo difere das outras
religiões antigas pelo fato de
que o indivíduo já não se define
como cidadão, mas como filho
de um único Deus, em quem,
acima de tudo, deposita fé e
reconhece autoridade suprema.
• Essa
diferença
fundamental
traz
conseqüências éticas, tais como:
• A virtude, na ética cristã, será definida por
nossa relação com Deus. É dessa relação,
como defende a pensadora Marilena Chauí,
que teremos parâmetros para estabelecermos
relações com os outros. Daí as virtudes cristãs
fundamentais serem a “fé (qualidade da
relação de nossa alma com Deus) e a caridade
(o amor aos outros e a responsabilidade pela
salvação dos outros, conforme exige a fé). As
duas virtudes são privadas, isto é, são relações
do indivíduo com Deus e com os outros, a partir
da intimidade e da interioridade de cada um”.
•A vontade humana, na ética cristã, é livre,
ou seja, somos dotados de livre-arbítrio.
Além disso, segundo essa ética, nosso
impulso inicial é voltado para o mal, por
sermos fracos e pecadores, desde o
pecado original, mas, tendo o auxílio
divino, podemos voltar a nossa vontade
para o bem.
•O auxílio divino são os ensinamentos
morais e religiosos revelados, os quais
devemos seguir incondicionalmente. Esse
caráter obrigatório introduz a idéia do
dever, pois a lei de Deus é imperioso
cumpri-la.
• Além da idéia do dever a ética cristã introduz, na Civilização Ocidental, a idéia da intenção. “ Até o Cristianismo, a filosofia moral localizava a condutta ética nas ações e nas atitudes visíveis do agente moral, ainda que tivessem pressuposto algo que se realizava no interior do agente , em sua vontade racional ou consciente. Eram condutas visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas. O Cristianismo, porém, é uma religião da interioridade, afirmando que a vontade e a lei divinas não estão escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres humanos. A primeira relação ética, portanto, se estabelece entre o coração do indivíduo e Deus, entre a alma invisível e a divindade.(...) O dever não se refere apenas às ações visíveis, mas também às invisíveis, que passam a ser julgadas eticamente”.