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Desafios dos Estudos Gays, Lésbicos e Transgêneros

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Academic year: 2021

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Desafios dos Estudos

Gays, Lésbicos e

Transgêneros

Denilson Lopes1

RESUMO

Este ensaio introduz algumas questões relativas aos estudos feministas, gays, lésbicos, transgênesos e teoria queer na busca de contribuições teórico-metodológicas na análise da cultura contemporânea.

Palavras-chaves: Estudos gays e lésbicos, estudos transgêneros,

teoria queer, cultura.

ABSTRACT

This essay introduces some issues related tofeminist studies, gay and lesbian studies, transgender studies and queer theory in the search of theoretical and methodological contributions in the analysis of contemporary culture.

Keywords: Gay and Lesbian Studies, transgender studies, queer theory, culture

No fim do século XIX, a sexualidade, como nos ensina Michel Foucault na sua História da sexualidade (1985), passa se constituir cada vez mais como central na constituição do sujeito moderno, num processo de valorização da intimidade que já vinha se processando desde o Romantismo. A centralidade da sexualidade na construção do sujeito moderno levou à proliferação de saberes que tratam desta questão tais como a psicologia, a psicanálise e a sexologia. Paralelamente à publicização do falar de si, que assumirá proporções nunca vistas na cultura de massa, como observamos pela quantidade de programas de televisão, canais de rádio, sites na Internet centrados nos debates sobre sexualidade, não raramente levando a uma espetacularização do privado; a intimidade passa a ser politizada. E

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nesse sentido que devemos entender o surgimentos dos movimentos feministas, gays, lésbicos e transgêneros. A chave desses grupos reside na expressão visibilidade pública para combater preconceitos e formas de exclusão, muitas vezes associados aos discursos médico, legal e religioso; bem como buscar a igualdade de direitos na sociedade marcada pela universalização dos valores do homem heterossexual e branco.

Não é minha intenção fazer o histórico desses movimentos, mas apontar sua importância para a compreensão de como a questão da sexualidade vai ser tratada na cultura, na arte, e aqui, enfatizando suas contribuições teórico-metodológicas. Para compreender essa guinada rumo à constituição de uma área de estudos de gênero, termo que ressalta a construção cultural da sexualidade para além de qualquer visão naturalista, essencialista - é fundamental lembramos um momento histórico. É nos anos 60, no contexto da contracultura, que os movimentos feministas, gays, lésbicos e de transgêneros passam de uma visão meramente integrativa em relação às democracias representativas ocidentais, para contestá-la num plano mais amplo, articulando-se a propostas comunistas, socialistas, anarquistas e libertárias. Num momento privilegiado de questionamento das relações entre saber e poder, entre universidade e sociedade, emerge um novo intelectual engajado, não só definido pelas questões de nação e classe, mas também de etnia e gênero. Politicamente, a questão é como sair de um lugar específico e dialogar com o conjunto da sociedade. Teoricamente, inserir os estudos gays, lésbicos e transgêneros nos debates centrais desta virada de século, a partir da experiência intelectual de um país periférico.

Os estudos gays, lésbicos e transgêneros são áreas interdisciplinares de estudos emergentes na academia norte-americana após os anos 60, com o estabelecimento de disciplinas, programas, centros, realização de congressos. Essa área sofre crítica nos anos 90 pela teoria estudos queer, ao retomar uma radicalidade política na contraposição a uma visão integrativa que o termo gay foi assumindo na sociedade norte-americana. O termo queer inclui simpatizantes e é paralelo ao interesse pelo transgênero, pela bissexualidade e outros

situações identitárias, como os pomosexuals (fusão da palavra pós-modernidade com homossexualidade) e o pós-gay. O que me interessou

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nessa polêmica foi a complexifícação da noção de identidade, na busca de posições mais fluidas mas não menos politizadas. Nos anos 90, a chegada desses estudos no Brasil redimensiona nossa produção centralmente definida pelas ciências sociais e pela história.

Tanto os estudos feministas quanto os estudos gays, lésbicos e transgêneros têm um primeiro movimento de criticar representações sociais estereotipadas, os silêncios e as opressões. Essa abordagem sócio-histórica é fundamental para quebrar núcleos da misoginia e da homofobia, ao demonstrar que as diversas sociedades e os vários tempos históricos lidaram de forma bastante diversificada para além das dualidades masculino/feminino e heterossexualidade/homossexualidade. O preconceito se expressa na sociedade pela ridicularização e pelas violências; na política, ao ser considerado um tema menor diante das transformações conduzidas pelos partidos e pelos sindicatos; bem como na universidade, ao não legitimar estes estudos cm pé de igualdade com correntes de pensamento mais tradicionais.

Essa preocupação leva ao questionamento da cultura e da arte não como criadoras, mas por terem uma papel reafirmador ou crítico dos clichês das representações de gênero e de orientação sexual. Pelo seu impacto, o principal alvo passa a ser os filmes hollywoodianos, e depois a televisão, pelo seu papel hegemônico na indústria cultural cada vez mais transnacional.

Num primeiro momento, como no caso de outros movimentos minoritários, foi e ainda é necessário mapear sócio-historicamente as representações sociais da mulher e da homossexualidade bem corno desconstruir raciocínios simplificadorcs, como o de que haveria um caminho progressivo e evolutivo da repressão à liberação. No clássico

Celluloid Closet, Vitor Russo identifica clichés como a da sissy,

personagem masculino afeminado, normalmente em papéis pequenos em comédias, ou da possibilidade da apresentação de personagens lésbicas no auge da censura norte-americana, dos anos 30 a 50, como vampiras ou presidiárias. No Brasil, este esforço pioneiro se encontra no trabalho de Antonio Moreno, A Personagem Homossexual no Cinema

Brasileiro. Lembrando que o estereótipo (DYER, 1993; BHABHA,

1998) tem pelo menos um mérito em iniciar um diálogo que pode dissolver o próprio estereótipo pela dinâmica dos conflitos sociais.

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A representação social possibilita uma política identitária de confronto e marcação das diferenças que, num primeiro momento, enfatiza uma luta política e teórica contra a repetição da imagens negativas em favor da necessidade de imagens positivas. Essa estratégia teve o papel de enfatizar a relação entre estereótipo, estigma e cultura mas nos conduziu a um outro extremo, ao criar novos esterótipos, desta vez idealizados e romantizados, como o dos personagens gays masculinos em recentes comédias românticas como o novo herói romanesco. O que nos leva a defender hoje mais do que a necessidade de imagens positivas, a diversidade de narrativas.

Se a noção de representação, claramente se justifica na história, nas ciências socias, nos estudos de comunicação social, muitas vezes, acaba por transformar a obra de arte em ilustração de problemáticas da realidade sem considerá-las como estruturantes. É fruto dessa preocupação que nos anos 70 emerge a questão de gênero ser considerada como algo mais interno às obras artísticas e práticas culturais, e não meramente um tema. Quanto aos estudos feministas, sobretudo no caso francês, haverá um salto qualitativo ao se dialogar mais com a psicanálise e a filosofia. Nos EUA, tal movimento também ocorre, somando-se a viés mais político, fruto das esperanças dos movimentos libertários dos anos 60, fonte da explosão multiculturalista dos anos 80. O trabalho de Laura Mulvey em seu clássico ensaio "Narrativa e Prazer Visual", publicado no início dos anos 70, abre todo um leque de possibilidade ao associar a necessidade de abandonar a narrativa e o prazer visual cultivado pelo cinema hollywoodiano em favor de um cinema experimental, ainda mais próximo de um distanciamento brechtiano tão caro a vários cinemas novos. Este artigo influente produzirá um intenso debate e a medida que muito da produção das décadas seguintes buscará conciliar qualidade, mercado e público, arte e diversão, se produzirá quase uma inversão, como veremos no trabalho influente nos estudos gays (DYER, 1992) e nos ensaios marcado pelo pensamento de Deleuze e Guattari (SHAVIRO, 2000). Voltando um pouco ainda para os anos 70, é neste momento que emergem categorias como olhar feminino e homotextualidade (ver STOCKINGER, 1978). Respostas formalistas tanto em relação ao Estruturalismo como ao New Criticism, com o risco de se enrijecerem se usadas de forma muito classificatória, mas que tiveram o mérito de

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ir além de apenas marcar o gesto identifícatório do autor como criador engajado a partir das questões de gênero. A grande arte moderna privilegiou a linguagem sobre qualquer explicação biografizante. O autor foi apagado diante do texto, da obra, esta sim é que interessava. Se, por um lado, falar em arte de mulheres e arte gay aparecia como um esforço militante de fazer falar na história do cinema e na atualidade sujeitos silenciados, o que foi logo articulado a um processo de segmentação do mercado, na criação de festivais e mostras pelo mundo afora, mas que adotará estratégias mais recentes de politizar mesmo as relações entre identidade e consumo. Por outro lado, o interesse pelo olhar irá realizar uma desconstruçào primeira do paradigma hollywoodiano do olhar masculino/objeto feminino. Ou seja, com exceção do melodrama, os gêneros cinematográficos eram feitos em grande medida para um público masculino ou para quem se colocava na sua posição. A glamourização da personagem feminina a prendia sempre como um objeto de desejo e de contemplação. Esse processo exemplarmente estudado em A mulher e o cinema (KAPLAN, 1998), abre a porta para uma descontrução do cinema comercial por cineastas como Chantal Ackerman e Ana Carolina, bem como por respostas narrativas mais tradicionais, mas não menos estimulantes como as de Jane Campion e Claire Denis.

Curiosamente, nos estudos gays e lésbicos, a questão de uma homotextualidade ficou mais presente na literatura2 do que no cinema. Se pela homotextual idade estava presente a preocupação não com o autor mas com o texto, que dissolvia a dualidade, tão cara aos marxistas, entre arte e sociedade e suspendia o problema das mediações em favor de consideração de qualquer prática ou produto como texto, ela possibilita estar atenta a traços e marcas sutis na produção anterior a Stonewall, marco da explosão do movimento gay dos anos 60, da política de afirmação pública da homossexualidade e da formação de uma cultura gay de consumo (NUNAN, 2003) ou homocultura transnacional. Talvez mais fortemente do que nos estudos feministas, a determinação de um olhar gay descontrai o par olhar masculino/objeto feminino ao ressignificar filmes que não feitos para eles, ao construir todo um jogo de identificações com as stars, sobretudo femininas, como personagens excepcionais que impõem ao seu mundo a sua diferença (DYER, 1987). O próprio melodrama feito para um publico

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feminino é desconstruído pelo olhar gay, que resulta em trabalhos elaborados desde Douglas Sirk a Fassbinder, Almodóvar e o último filme de Todd Haynes, "Far From Heaven". Se o melodrama é a forma permitida da entrada da mulher e do feminino no cinema, ele é transformado pela audiência e por criadores gays.

Podemos voltar a falar em uma estética, sem dúvida localizada e engajada num tempo e numa sociedade, ao invés de abstrata e universal, que emerge do embate com as obras mas procura confrontá-las, compará-confrontá-las, estabelecer séries, linhagens, a partir de problemas, conceitos, categorias. Uma estética interessada, parcial e empenhada, sem que implique uma submissão a interesses de partidos políticos, classes e/ou grupos socais. Uma estética pop, indissociável de uma cultura de consumo, que não tem medo do fácil, da redundância informativa, do descartável, do afetivo e coloca no mesmo lugar o que antes chamávamos de popular e erudito. Uma estética híbrida, intertextual, transemiótica, multynidiática. É a partir desta com-preensão que a estética se encontra mais até do que com a homossexualidade, mas com o transgênero através do camp.

O termo camp aponta para uma sensibilidade e para uma estética marcadas pelo artifício, pelo exagero, presente no interesse por ópera, melodramas e canções românticas. O camp se situa no campo semântico de ruptura entre alta cultura e baixa cultura, como o kitsch, o trash e o brega. Como comportamento, a palavra remete à fechação, ao homossexual espalhafatoso e afetado, ao transformista que dubla cantores conhecidos tão presente em boates e programas de auditório, não só como clichê criticado por vários ativistas e recusado no próprio meio gay, quando se deseja firmar talvez um novo estereótipo ou pelo menos uma imagem mais masculinizada de homens gays, mas como uma base para pensar um política sustentada na alegria e no humor, como alternativa ao ódio e ao ressentimento. Através do humor, trata-se de uma estratégia do diálogo e de fluidez, não do isolamento e da marcação de identidades rígidas e bem definidas.

Como categoria estética, o camp se insere e a experiência do transgênero num longa tradição centrada no artifício, do Barroco ao Neo-Barroco, passando pelo Decadentismo, da metáfora do teatro do mundo às simulações tecnológicas.

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Apreocupação com esse termo surgiu do interesse em considerar o travesti não só como uma minoria dentro de uma minoria, um grupo social excluído, a prostituta ou o bufão tornado exótico na televisão, mas pensar o travestimento que atravessa a nós todos, dentro uma longa história de troca constante de fronteiras entre o masculino e feminino, incluindo desde os xamãs aos ciborgues, das amazonas aos eunucos, das dames aos

onnagata, dos castratti às divas da ópera, do cinema e da música; do

andrógino original a deuses hermafroditas, do anjo ao adolescente, dos homens ultramusculosos às drag queens e dragkings. O travestimento tão presente em várias tradições culturais e na historia do teatro contribui para problematizar não só visões bem delimitadas do masculino e do feminino, como também da polaridade estabelecida no século XIX entre heterossexualidade e homossexualidade.

Outra alternativa, mais política e menos estética, horizonte mesmo do boom multiculturalista está em defender cada vez a necessidade de articular gênero, orientação sexual com as questões de classe, nacional idade, condição periférica ou metropolitana, etnia para evitar simplificações identitárias. A identidade, no seu melhor, não seria uma classificação, mas uma experiência. Ainda que seja imediata na percepção, a experiência3 traz uma estória, uma verdade, não a verdade, que é sempre mediada por discursos sociais (SCOTT, 1999, p. 42). Apartir do cruzamento entre os estudos culturais e dos estudos de gênero, a experiência não só se insere num solo sócio-histórico, mas se constitui como a encarnação, a narrativização de identidades, transita por elas. Identidade que deve ser vista não só como questão lógica, formal, filosófica, mas sobretudo histórica, social e política. A experiência, lembrando Joan Scott, não é origem de explicação, evidência autorizada, mas o que buscamos explicar, sobre o qual se produz conhecimento (SCOTT, 1999, p. 27), que nos diz que é importante refletir sobre quem fala (SCOTT, 1999, p. 31).

Essa ênfase levou ao resgate das narrativas de testemunho, autobiografias, diários, não só como alternativa a uma estética do artifício, mas a uma politizaçào da experiência privada dos sujeitos excluídos da sociedade e das formas tradicionais do conhecimento científico. Talvez neste último questionamento tenhamos uma grande contribuição ao colocar o desafio da crítica não só como análise mas texto, escritura. O sujeito da pesquisa se expõe não como ato narcisista

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mas para contextualizar o lugar de fala, torná-lo mais concreto, estabelecer seus limites e alcance. Se, nos anos 60, a linguagem era enfatizada em detrimento do autor, este retorna até mesmo nos discursos teóricos, traduzido em diversas estratégias analíticas como a autoetnografia, a critica autobiográfica e o uso da narrativa.

O mote à volta do autor não deve ser visto como mero retorno ingênuo ao biografismo, mas busca de um adensamento e sofisticação. Primeiro, falar de um cinema de mulheres e de uma escrita feminina implica dizer que o corpo deixava de ser objeto do voyeurismo masculino e assume uma concretude, uma história. Se as falas no mundo das ciências, do trabalho e da política eram hegemonicamente masculinas, os espaços da intimidade, da casa, do corpo deixam de ser apenas lugares de opressão e de uma fala única. Se o mundo exterior, das viagens era dos homens, a intimidade deixa de ser prisão para emergir como possibilidade de resistência, de demarcação da diferença. Se não se trata mais de falar da histórias dos grandes fatos e acontecimentos, mas também do cotidiano; uma linhagem feminina se constrói onde aparentemente só havia silêncio e opressão. Por um lado isso levou a um trabalho de arquivos, de resgate, mas levou também a apontar as possibilidades estratégicas de uma estética feminina.

Para além deste trabalho historiográfico, temos o resgate da intimidade, da afetividade, no contexto dos estudos gays e lésbicos, ao afirmar sua relação com a ética. Na medida em que o próprio material da arte é a ambiguidade e não a persuasão, uma outra importante contribuição é repensar a homossociabilidade masculina (em lugares como bares, jogos, escolas, internatos, forças armadas) não só como forma homofóbica (SEDGW1CK, 1985), em que a masculinidade é reafirmada pela violência, mas compreender fomas mais sutis de afetividade que não se encaixam numa atitude confrontacional ativista de fortalecimento de uma identidade homossexual visível publicamente. Para tanto, pensei no termo homoafetividade para discutir no mesmo espaço quaisquer relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo, desconstruindo a polaridade criada no

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século passado entre homossexualidade e heterossexualidade e alargando o conceito de homoerotismo, resgatado entre nós por Jurandir Freire Costa. A relação entre ética e a fetividade não nega a questão do mercado mas a desloca oferecendo uma alternativa estética e política num mundo em que os discursos de contestação rapidamente se banalizam. Neste quadro, procurei na arte não só a circulação dos discursos e imaginários sociais, mas talvez algo que arte possa dizer de diferente. Gostaria de dar dois exemplos a temas bastante polêmicos como a pedofilia e a união civil entre parceiros do mesmo sexo.

A tradição lírica brasileira teria uma importante contribuição para a redução, feita com o aval dos meios de comunicação de massa, das relações entre homens adultos e adolescentes/menores à pornografia, violência e estupro. Um dos temas mais antigos na lírica ocidental, a pederastia homossexual se viu sem espaço pelo processo em que se transformou a pedofília como uma verdadeira paranóia globalizada, fazendo com que ministros caiam, o papa se prenuncie, passeatas sejam feitas, mas pouco se falou de afeto consentido. Seria um novo velho puritanismo, o mesmo que ridicularizou Freud quando afirmou que toda criança, longe do anjo idealizado, já possuía uma sexualidade polimorfa? Já que aos homens adultos que gostam de adolescentes e dos adolescentes que gostam de homens adultos foi-lhes tirada a voz, gostaria de lembrar que também a tradição lírica pederasta atravessa a produção poética brasileira, como já se pode comprovar desde um poema escrito por por Mario de Andrade, em 1937, até vários trabalhos contemporâneos, como contraponto a construção demonizadora desta prática, como aliás foi feita em relação com a homossexualidade no século passado. Em raros filmes, como "Chicken Hawks" de Adi Siderman, temos a passagem do discurso jurídico, da medicina ou da religião para a voz dos sujeitos sociais. Outro exemplo é relativo à parceria civil entre pessoas do mesmo sexo que se tornou uma importante bandeira do movimento gay internacional, mas curiosamente as narrativas literárias e cinematográficas brasileiras, diferentes das norte-americanas, apresentam em sua quase totalidade as relações afetivas e sexuais entre homens como marcadas pela rapidez do encontro, mesmo

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quando felizes. Seria interessante pensar esta construção não como a f i r m a ç ã o do clichê da h o m o s s e x u a l i d a d e a s s o c i a d a à promiscuidade, mas como uma alternativa afetiva para além da submissão a modelos tradicionais da família monogâmica estável.

Não pretendi dar uma única resposta à contribuição dos estudos de gênero, e mais espeficamente, dos estudos gays, à análise de produtos culturais e objetos artísticos mas levantar algumas possibilidades sem me aprofundar em nenhuma, talvez mais até contar uma estória, uma aventura. Esta trajetória me leva hoje a pensar a identidade feminina, a homossexualidade e o travestimento não só como experiências que apenas digam respeito, respectivamente, a mulheres, homossexuais e a travestis, nem só como uma questão que diga respeito a com quem cada indivíduo tem relações sexuais, mas uma base para uma formação (Bildung) contemporânea, pela qual aprendemos com o que somos mas também com o que não somos; uma ética, entendida como uma forma de conduta diante do mundo, em que a amizade e a deriva, como nos ensinou Michel Foucault (FOUCAULT, 1989 e 1994), aparecem como contraponto às prisões patriarcais do amor romântico e ao sexo rei, bem como base para uma estética mais afetiva e direta, o retorno ao simples e ao cotidiano. Trata- se ainda de um lugar de fala silenciado mas que precisa e tem sido resgatado se quisermos uma democracia multicultural, uma base para uma política em que o privado não é apenas espetáculo midiático permanente mas possibilidade de adesão ao mundo, uma política tão ambígua como somos todos nós.

O encontro de dois homens pode ser apenas um encontro, mas também pode ser uma uma possibilidade de diálogo e abertura para o mundo, desafio maior de todo discurso minoritário, alguma vez discriminado. Esta é a estória que queria contar e o motivo por que acho central ainda hoje assinar como crítico, gay. Não se trata de apenas considerar a homossexualidade como um adjetivo, mas afirmar uma experiência substantiva que interliga vida cotidiana e prática intelectual. A experiência

gay nada tem de redutora, classificadora, se assim o quisermos, é um

mistério insondável, um ponto de partida, uma pergunta mais do que uma resposta.

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