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Estado democrático de direito e a razão pública na construção de uma sociedade justa

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Academic year: 2021

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GRANDE DO SUL

REGINA GÜTLER CARVALHO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A RAZÃO PÚBLICA NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE JUSTA

Ijuí (RS) 2017

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REGINA GÜTLER CARVALHO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A RAZÃO PÚBLICA NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE JUSTA

Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Trabalho de Curso - TC.

UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientadora: MSc. Anna Paula Bagetti Zeifert

Ijuí (RS) 2017

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Dedico este estudo à minha família e a todos que colaboraram de alguma forma na minha trajetória até aqui. Dedico ao Senhor da minha existência que, com seu infinito amor, me permite viver e me alegrar com cada conquista.

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AGRADECIMENTOS

Durante a nossa jornada neste mundo, passamos a perceber que os acontecimentos mais extraordinários ocorrem no dia a dia, na vida comum, durante uma refeição com a família, conversa com os amigos, nas orações e nas confissões feitas para pessoas que amamos. Esses acontecimentos são as nossas conquistas diárias, nossos abraços, sorrisos, histórias, nossos diálogos e análises sobre o mundo, sobre os seres humanos e sobre a fé que nos move.

Contudo, essa percepção não ocorre da noite para o dia, não é algo que surge em nossa consciência com um “click”. É uma construção lenta, demorada... Depende da nossa capacidade de notar e de ser sensível ao que ocorre em nosso redor e em nosso íntimo. Depende da nossa busca pela sabedoria e pelo amor. Cada um constrói a si mesmo e auxilia na construção do outro.

Portanto, nesse ínterim, a construção do meu “eu” (que nunca chega ao fim) teve, e permanece tendo, o auxilio de pessoas iluminadas: meus pais e meus irmãos. Eles me ensinaram a ter a visão que hoje eu tenho do mundo. Ensinaram-me a ser crítica e proativa. Ensinaram a não me calar diante de injustiças. Ensinaram-me a ser realista e a fazer escolhas: nunca me vestiram de princesa, nem colocaram brinco quando nasci. Ensinaram-me a amar, a orar, a gostar das coisas simples, que o “ser” vem antes do “ter”. Gastaria páginas e mais páginas para descrever todos os materiais que eles forneceram para a minha construção. Serei para sempre grata por tudo, pois sempre foram presentes durante as dificuldades e durante as alegrias, em especial na minha jornada acadêmica. Compartilharam lágrimas e risos. É com muito amor no coração que faço esse agradecimento.

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Também quero agradecer a uma pessoa especial, José Ricardo, com quem compartilho todas as minhas experiências desde agosto de 2014, quando nos conhecemos, e com quem planejo o resto da minha vida. Agradeço por me ensinar a ter coragem, a confiar na minha e na nossa capacidade. Agradeço por sempre contribuir com as minhas atividades acadêmicas com conversas, sugestões e análises. Agradeço por contribuir com a minha vida espiritual, com palavras de muita fé e confiança, pelas inúmeras vezes que me acolheu em um abraço!

Agradeço à família Carvalho, à Gütler, à família Maciel e à Nerling. Pessoas que sempre me acolheram com carinho e amor, prestando todos os auxílios que necessitei durante toda a minha vida.

Aos meus amigos e colegas da Defensoria Pública, que no dia a dia compartilham seus saberes e experiências, enriquecendo a minha caminhada. Que fazem a rotina do trabalho ser mais leve e cativante.

À minha orientadora, MSc. Anna Paula Bagetti Zeifert, que também foi minha professora nas disciplinas de teoria do Estado e da Constituição, Teoria Jurídica Contemporânea e na disciplina de Projeto. Pessoa que admiro muito pela postura como professora, cidadã, mulher, mãe, que transmite seu conhecimento e experiência de forma simples, dialogada, demonstrando amor pelo que faz, com grande sensibilidade aos acontecimentos do mundo.

Por fim, diante de todos esses agradecimentos, quero agradecer Àquele que me permitiu viver todas essas experiências iluminadas, que colocou todas essas pessoas amadas em meu caminho. Àquele que É. (Êxodo 3:14)

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“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” Eduardo Galeano

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O presente estudo trata de temas carregados das mais diversas teorias, corriqueiramente debatidos no meio acadêmico: Estado, democracia, pluralismo político, tolerância, e o consenso dentre as doutrinas morais abrangentes. Tal fato não poderia ser diferente, tendo em vista que reflete questões mais íntimas do ser humano, como a fé, e envolve os mais valorosos princípios, como a liberdade, a vida e a igualdade. Portanto, este trabalho de conclusão de curso tem por objetivo fazer um estudo acerca da teoria da razão pública para a construção de uma sociedade justa. Para chegar até a análise dessa teoria do cientista político John Rawls, realizou-se uma breve pesquisa sobre o Estado, a partir dos pressupostos do Estado Democrático de Direito; da religião, trazendo a questão do Estado laico; e da democracia como fundamento para a construção de uma sociedade justa. Ainda, uma abordagem do pluralismo político, da tolerância e, por fim, da teoria da razão pública, concebendo a ideia de um consenso sobreposto das doutrinais morais razoáveis para a busca de uma sociedade justa, apesar de suas diferenças.

Palavras-Chave: Estado Democrático de Direito. Pluralismo Político. Tolerância. Justiça.

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This research refers to themes that are full of the most various theories, usually discussed in the Academia: State, democracy, political pluralism, tolerance, and the agreement among the comprehensive moral doctrines. Such fact could not be different, considering that it reflects on the most intimate matters of the human being, such as faith, and involves the most valorous principles, such as liberty, life and equality. Therefore, this undergraduate thesis aims at making study on the theory of public reason to building a fair society. To get to the analysis of this politic scientist John Rawls’s theory, a brief research about the State, from the presuppositions of the Democratic State of Law; from religion, bringing the matter of Lay State; and the democracy the foundation to building a fair society. The second chapter approaches the political pluralism, the tolerance and, finally, the theory of public reason, conceiving the idea of a superimposed agreement of the reasonable moral doctrines for the quest of a fair society, despite its differences.

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INTRODUÇÃO ... 9

1 ESTADO, SOCIEDADE E RELIGIÃO ... 12

1.1 Estado Democrático de Direito e seus pressupostos. ... 12

1.2 A laicidade como fundamento do Estado Democrático de Direito ... 20

1.3 A democracia como fundamento para a construção de sociedades plurais ... 23

2. PRESSUPOSTO PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE JUSTA: REVISITANDO RAWLS ... 27

2.1 A convivência das doutrinas morais abrangentes: o fato do pluralismo ... 27

2.2 A ideia de tolerância como fundamento para uma sociedade justa ... 35

2.3 O uso público da razão e o acordo razoável para a construção de uma sociedade justa ... 43

CONCLUSÃO ... 49

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INTRODUÇÃO

No intuito de alcançar uma melhor compreensão acerca do contexto político atual, devemos entender e distinguir certas concepções teóricas e conceitos históricos, uma vez que as experiências vivenciadas no mundo devem servir de exemplo para a realidade de hoje, principalmente para o exercício da cidadania, isto é, em nossas decisões políticas.

Dessa forma, surgiu o questionamento acerca do que deveria influenciar as decisões políticas de uma sociedade democrática, tanto dos representantes políticos, em suas atuações nos fóruns e instituições públicas, quanto dos cidadãos, em seus votos e suas participações democráticas.

Nesse sentido, ressalta-se a existência de princípios basilares de toda a sociedade que busca a justiça em suas decisões políticas, como a liberdade e a igualdade. Contudo, diante de uma pluralidade de concepções de bem e da verdade, há um impasse acerca de qual concepção deverá prevalecer nas decisões que normatizarão as condutas e relações sociais. Dessa forma, estudam-se nessa pesquisa algumas facetas de uma democracia: o pluralismo político e a tolerância.

Portanto, o tema tratado nesta pesquisa monográfica busca uma compreensão da realidade política do sistema democrático contemporâneo a partir de sua evolução histórica. Nesse sentido, a pesquisa traz um estudo acerca da conquista do Estado Laico e da construção do Estado democrático de direito, direcionado para a formação de um consenso entre as doutrinas morais abrangentes, pela teoria da razão pública de John Rawls, a fim de alcançar e garantir a efetividade do pluralismo político e de uma sociedade mais justa.

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A partir disso, há como objetivo a compreensão dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, a laicidade como um de seus fundamentos, bem como a importância da democracia na construção de sociedades plurais. Outro objetivo desta pesquisa foi estudar a convivência entre doutrinas morais abrangentes e a questão do pluralismo, a ideia de tolerância e o uso público da razão e o acordo razoável para a construção de uma sociedade justa.

Inicialmente, no primeiro capítulo, realizou-se uma análise dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, o qual, nos moldes atuais, pode ser entendido como um Estado que deve respeitar e garantir a efetivação dos direitos fundamentais, estes que abarcam os direitos individuais, sociais e políticos. No Brasil, esse conceito é consagrado pelo art. 1º da Constituição da república de 1988. Realizou-se um estudo acerca de como chegamos à formação desse tipo de Estado, bem como de todos os valores que essa denominação carrega e os frutos que produz.

O segundo tópico do primeiro capítulo abordará a questão do Estado laico, este que surgiu a partir de situações que não se sustentavam mais, como os privilégios do alto clero, garantidos pelo medo do povo em se rebelar contra o que era “santo”. Os indivíduos passaram a conhecer sua autonomia, seu poder racional de contribuir nas decisões relativas ao que deveria ser público. Portanto, há uma abordagem sobre a caracterização do Estado laico, sua evolução na história, bem como alguns problemas atuais – porém, históricos – com relação à interferência dos dogmas religiosos nas decisões políticas.

O último tópico do primeiro capítulo fará uma análise da democracia como fundamento para a construção de sociedades plurais, tendo em vista que este assunto abrange os demais, tratados anteriormente, cingindo-se aos direitos fundamentais protegidos pelo Estado Democrático de Direito, principalmente com relação à participação cidadã diversificada, ao pluralismo e à liberdade religiosa.

No segundo e último capítulo analisa-se o pluralismo político e o exercício do diálogo tolerante e racional dentro de uma democracia, tratando-se do exercício da liberdade humana. Portanto, nesse tópico aborda-se o pluralismo como um fato e consequência da liberdade de pensamento e de expressão, incentivada a partir da criação de instituições democráticas.

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A tolerância é abordada no segundo tópico do segundo capítulo. O conceito de tolerância ainda é muito discutido pelos teóricos, são diversos entendimentos e análises acerca de como praticar a tolerância diante da diversidade de concepções da verdade. A importância e necessidade da concepção desse princípio como garantidor das liberdades individuais surgiu no final da Idade Média, diante dos conflitos religiosos entre católicos e protestantes. É garantidor das liberdades individuais porque visa a assegurar o direito à diferença, tão importante e sensível ao mesmo tempo no momento atual da realidade internacional.

Por fim, a teoria da razão pública de John Rawls é tratada no último tópico do segundo capítulo. Nesse segmento da pesquisa, portanto, parte-se da ideia de que cada indivíduo ou grupo social possui sua própria concepção do que é bom e do que é correto, e essas concepções privadas no âmbito público podem gerar enormes conflitos. A partir disso, surge a teoria da razão pública como uma alternativa a esses conflitos, visto que pressupõe que, para alcançarmos uma sociedade mais justa, deve haver um consenso entre as doutrinas morais abrangentes, consenso este que guiará as decisões políticas de modo que não crie privilégios para grupos dominantes, nem sacrilégios para as minorias.

Para a realização deste trabalho foram efetuadas pesquisas bibliográficas e por meio eletrônico. Portanto, trata-se de uma pesquisa do tipo exploratória, hipotético-dedutiva, na medida em que foram lidos e analisados os materiais colhidos e, a partir deles, foi elaborado o texto de forma reflexiva.

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1 ESTADO, SOCIEDADE E RELIGIÃO

Estado, sociedade e religião são temas polêmicos e carregados das mais diversas teorias. Tal fato não poderia ser diferente, tendo em vista que reflete questões mais íntimas do ser humano, como a fé, e envolve os mais valorosos princípios, como a liberdade, a vida e a igualdade. A essência política da natureza humana fez com que a história fosse escrita da maneira como hoje se apresenta, pesada de tantas experiências, algumas boas, outras ruins. Contudo, mesmo após vinte e um séculos de grandes mudanças, progressos e regressos, ainda tentamos encontrar a melhor forma de conviver com o outro e de alcançar uma sociedade livre e justa.

A partir dessa ideia, o presente capítulo trata primeiramente da formação do Estado Democrático de Direito, trazendo uma análise de como chegamos à formação desse tipo de Estado, bem como de todos os valores que essa denominação carrega e os frutos que produz. Seus pressupostos, portanto, são suas características e seus propósitos para com a sociedade.

Após isso, o capítulo abordará a questão do Estado laico, sua caracterização, sua evolução na história, bem como alguns problemas atuais – porém, históricos – com relação à interferência dos dogmas religiosos nas decisões políticas.

Por fim, o último tópico do capítulo fará uma análise acerca da democracia como fundamento para a construção de sociedades plurais, tendo em vista que este assunto abrange os assuntos tratados anteriormente, cingindo-se aos direitos fundamentais protegidos pelo Estado Democrático de Direito, principalmente com relação à participação cidadã diversificada, ao pluralismo e à liberdade religiosa.

1.1 Estado Democrático de Direito e seus pressupostos.

O Estado Democrático de Direito é retratado a partir de uma construção histórica. Entender o Estado como o vemos hoje exige uma visão aprofundada acerca de conquistas de direitos, de espaço e da cidadania pelas pessoas. Assim como traz Norberto Bobbio,

[...] os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de

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novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez por todas. (BOBBIO, 2004, p. 5).

Para compreendermos o contexto atual em que estamos inseridos, a fim de diagnosticar os direitos a serem conquistados hoje, devemos distinguir certas concepções e conceitos históricos, uma vez que as experiências vivenciadas no mundo devem servir de exemplo para a realidade atual, nas relações pessoais, e, principalmente, na atuação da cidadania, isto é, em nossas decisões políticas.

Bobbio (2004, p. 6), portanto, entende que os direitos não nascem todos de uma vez, como em uma concepção jusnaturalista, mas no momento em que “devem ou podem nascer”, a partir de movimentos da própria sociedade na luta por direitos. A liberdade religiosa, por exemplo, é uma consequência das guerras de religião.

Nesse contexto, relativamente à conquista de direitos e a utopia de uma sociedade justa, questiona-se acerca de quais seriam os requisitos para alcançá-la. Importante para isso é conhecer a formação e a evolução do Estado, para se possa compreender o embasamento das decisões tomadas e se estas têm como objetivo alcançar o justo, ou fortalecer o injusto dentro da sociedade.

Numa visão sucinta, o Estado Democrático de Direito atualmente pode ser entendido como um Estado que deve respeitar e garantir a efetivação dos direitos fundamentais, estes que abarcam os direitos individuais, sociais e políticos. No Brasil, esse conceito é consagrado pelo art. 1º da Constituição da república de 1988.

O Estado nos moldes atuais é o resultado de uma lenta evolução, desde a formação do Estado Moderno, com um norte dado pelas Revoluções Francesa e Americana, e, posteriormente, com as duas grandes guerras mundiais. Portanto, nessa evolução, o Estado passou por algumas fases de transformação com vista inicialmente a limitar seu próprio poder e cada vez mais a garantir a efetivação dos direitos do povo, sendo então denominado como Estado de Direito a partir do nascimento de doutrinas liberais,

o qual tinha como objetivo fundamental assegurar o princípio da legalidade, segundo o qual toda atividade estatal havia de submeter-se à lei. Suas características básicas foram: a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo,

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composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão; b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes legislativo, executivo e judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; c) enunciado e garantia dos direitos individuais. Essas exigências continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito, que configura uma grande conquista da civilização liberal. (SILVA, 2016).

Nesse sentido, a conquista de direitos ocorreu de forma gradual, primeiro com a limitação do poder estatal para que os cidadãos tivessem uma maior estabilidade no exercício de seus direitos, sem ações irrestritas por parte do Estado. Nas palavras de Julia Maurmann Ximenes (2016): “Os detentores do poder passam a ter seu arbítrio cerceado por princípios como o da legalidade, da liberdade e da igualdade individuais.”

José Joaquim Gomes Canotilho (2016) também analisa a evolução desse tipo de organização, que, segundo ele é “um Estado ou uma política-estadual cuja actividade é determinada e delimitada pelo Direito”, ou “uma ordem juridicamente organizada de justiça e paz aponta para certos tipos de organização da cidade (a cidade republicana) e para o consenso/partilha de certos valores e princípios.” De acordo com o entendimento do autor, portanto, o Estado de Direito deve partir de certos valores e princípios consensuais, isto é, que são comuns a todos os sujeitos de determinada sociedade.

Para entender o que é um Estado de Direito é sugestiva a análise do que é um Estado de não direito, este que pressupõe três características fundamentais:

é um Estado que decreta leis arbitrárias, cruéis ou desumanas; (2) é um Estado em que o direito se identifica com a ‘razão do Estado’ imposta e iluminada por ‘chefes’; (3) é um Estado pautado por radical injustiça e desigualdade na aplicação do direito. (CANOTILHO, 2016).

Estado de não direito, portanto, é aquele em que a sociedade se vê a mercê de chefes políticos, ou de um partido, estes que criam leis de acordo com o que aquele líder acredita que deve ser, sem a participação do povo. Dessa forma, segrega, exclui, sob o argumento de que está atendendo aos anseios da nação. O que ampara essa estrutura de poder é o exército, que está sempre à disposição para combater as opiniões “subversivas”. Outra base forte para o Estado de não direito é o próprio medo das leis desumanas incrustado no povo.

Grandes exemplos desse tipo de Estado foram os Estados nazistas e fascistas. (CANOTILHO, 2016). Esse medo, portanto, é transmitido quando o Estado age de forma

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brutal com os “inimigos”, também quando o Estado faz marketing de protetor dos obedientes, em que aqueles que obedecem, podem ter vidas melhores, e aqueles que resolvem deixar o Estado de não direito viverão de forma miserável.

Estado de não direito [...] é aquele que identifica o direito com a “razão do Estado”, com o “bem do povo”, com a “utilidade pública”, autoritária ou totalitariamente impostos. O “direito” é tudo – mas não mais do que isso – o que os “chefes”, o “partido”, a “falange”, decretarem como politicamente correto. (CANOTILHO, 2016).

No Estado de não direito, as “as leis valem apenas por serem leis do poder e têm à sua mão, força para se fazerem obedecer” (CANOTILHO, 2016). O autor questiona até que ponto, ou qual é o limite, da injustiça dessas leis para caracterizar um Estado de não direito. Chega-se no ponto do não direito quando as leis desse Estado comparadas com os princípios fundamentais, como a igualdade, a liberdade e a dignidade da pessoa humana, não se suportam, isto é, não há qualquer compatibilidade entre esses princípios e as leis (CANOTILHO, 2016).

De acordo com o referido jurista, poucos indivíduos atualmente têm a coragem de defender abertamente um Estado de não direito, contudo, há que se ter cuidado com as decisões advindas dos poderes estruturais para que não se aproxime daquelas que caracterizam um Estado de não direito (CANOTILHO, 2016).

A caracterização do Estado de Direito e o Estado de não Direito deve ser entendida conforme a realidade de cada país, principalmente conforme a realidade cultural, em que as diferenças culturais inegavelmente interferem de formas diferentes na questão da formação política e de direitos de cada Estado.

Nesse sentido, cumpre esclarecer que a ideia de um Estado de direito, segundo Canotilho (2016), vem de uma criação cultural ocidental, pois foi a partir do ocidente que se criou a chamada juridicidade estatal, esta que apresta algumas características fundamentais:

governo de leis (e não de homens!) gerais e racionais, organização do poder segundo o princípio da divisão de poderes, primado do legislador, garantia de tribunais independentes, reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, pluralismo político, funcionamento do sistema organizatório estadual subordinado aos princípios da responsabilidade e do controlo, exercício do poder estadual através de instrumentos jurídicos constitucionalmente determinados. (CANOTILHO, 2016).

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Dentro desse sistema complexo, Estado de direito compõe-se:

(1) de um Estado de direito; (2) de um Estado constitucional; (3) de um Estado democrático; (4) de um Estado social; (5) de um Estado ambiental, ou melhor, de um Estado comprometido com a sustentabilidade ambiental. (CANOTILHO, 2016).

O Estado Constitucional abarca, além das normas que limitam o poder estatal, a legitimidade do Estado-constituição dada pelo povo: “o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos.” Nesse sentido, um Estado-constituição é assim considerado somente quando legitimado pelo povo, e essa legitimação é encontrada na democracia, sistema político em que povo exerce soberania (CANOTILHO, 2016).

Além disso, o que difere nesses tipos de Estado (constitucional, democrático e de direito) são os tipos de visões acerca do princípio fundamental da liberdade:

No Estado de direito concebe-se a liberdade como liberdade negativa, ou seja, uma «liberdade de defesa» ou de «distanciação» perante o Estado. É uma liberdade liberal que «curva» o poder. Ao Estado democrático seria inerente a liberdade positiva, isto é, a liberdade assente no exercício democrático do poder. É a liberdade democrática que legitima o poder. (CANOTILHO, 2016).

De acordo com o liberalismo político clássico, a liberdade negativa prevaleceria sobre a liberdade positiva, porque os indivíduos valorariam mais sua liberdade pessoal e de consciência do que sua liberdade política, ou seja, de tomar decisões e ter participação política. Contudo, careceria o Estado constitucional de legitimação por falta de participação popular:

Só o princípio da soberania popular, segundo o qual “todo o poder vem do povo”, assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados serve de “charneira” entre o “Estado de direito” e o “Estado democrático”, possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático. (CANOTILHO, 2016).

Ainda, para garantir a soberania popular, o Estado deve oferecer instrumentos como o direito ao voto, por meio do sufrágio universal, a participação democrática dos cidadãos na resolução de problemas nacionais, etc (CANOTILHO, 2016).

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Dessa forma, percebe-se a forte ligação entre esses tipos de Estados para que haja legitimidade no poder. Ademais, esses pressupostos – características essenciais do governo, seus limites, os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos como fatores centrais –, para caracterizar e legitimar um Estado de Direito, devem estar consagrados em uma constituição feita pela nação, ou pelos representantes da nação: “as ideias de direitos fundamentais consagrados na constituição e de divisão de poderes assumem-se como núcleo essencial de qualquer Estado constitucional.” (CANOTILHO, 2016).

A conquista desses direitos, como observado, ocorreu de forma gradual, primeiro com a limitação e a legitimação do poder estatal para que os cidadãos tivessem uma maior estabilidade no exercício de seus direitos, sem ações irrestritas por parte do Estado. Nas palavras de Ximenes (2016): “Os detentores do poder passam a ter seu arbítrio cerceado por princípios como o da legalidade, da liberdade e da igualdade individuais.”

Contudo, no cotidiano dos cidadãos o surgimento do Estado de Direito não criou uma grande transformação, tendo em vista que as condições em que a população se encontrava, principalmente a situação dos trabalhadores da Revolução Industrial, ainda eram precárias. A necessidade de se ter um Estado que efetivasse os direitos básicos dos cidadãos era visível e urgente:

Aparecem, então, vários tipos de manifestações contrárias ao status quo, buscando dignidade da pessoa humana, um Estado que se responsabilizasse pelo social. Várias vertentes surgem dessas reações como o socialismo, o comunismo, o welfare-state (Estado de Bem-estar social). (XIMENES, 2016).

O surgimento dessas teorias revolucionárias, que pretendiam romper com a ordem hierárquica de poder, esta que criava as mazelas na maior parte da sociedade, acabou auxiliando na construção, embora lenta, de um Estado que possuísse, ao menos teoricamente, o dever de garantir o mínimo existencial para aqueles cidadãos que não pertenciam às classes detentoras do poder, e que, ao contrário, estavam longe de ser protagonistas das decisões políticas do Estado.

Segundo Karine da Silva Cordeiro (2012),

O Estado Liberal, contudo, não conseguiu assegurar o desenvolvimento a que se propôs, fracassando na promoção da justiça social, o que fica evidenciado pela eclosão de diversos movimentos sociais na segunda metade do século XIX e início do século XX, sendo o desencadeado por Marx um dos mais importantes. Conclui-se

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que não basta a igualdade puramente formal que caracterizava o constitucionalismo liberal-burguês. É necessário garantir a igualdade substancial. (CORDEIRO, 2012, p. 23).

Diante dessa concepção, o Estado deixou de ser o grande vilão que ameaçava a liberdade, um dos bens mais preciosos, e passou a ser um garantidor da efetivação dos direitos fundamentais e do bem comum. Com o Estado Social de Direito, portanto, surgiram os direitos fundamentais de segunda geração, conhecidos como direitos econômicos, sociais e culturais, os quais necessitam de uma participação ativa do Estado por meio de políticas públicas (CORDEIRO, 2012, p. 24).

Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana passou a ser um fundamento central do Estado e, com base nisso, os direitos fundamentais adquiriram uma dimensão objetiva, além da dimensão subjetiva. A dimensão objetiva consiste, de acordo com Cordeiro (2012, p.25), numa eficácia irradiante, que influencia todo o ordenamento jurídico. Dessa forma, todas as questões discutidas no âmbito dos três poderes, como na atividade legislativa, nas decisões do judiciário e nas políticas públicas do executivo, passam ser construídas e elaboradas sob a influência dos direitos fundamentais, a fim de garantir o mínimo existencial.

Os direitos fundamentais, portanto, “são o parâmetro de aferição do grau de democracia de uma sociedade. E a sociedade democrática, ao mesmo tempo, apresenta-se como condição para a eficácia dos direitos fundamentais.” (CORDEIRO, 2012, p. 28).

Nessa evolução do Estado Social e da democracia, com vistas a promover o bem-estar do povo, a dignidade da pessoa humana passou a ser basilar de todo o ordenamento jurídico, e a ideia do mínimo existencial surge como uma forma de sua concretização, tendo em vista que a dignidade passou a ser um dever ser, dotada normatividade, como aduz Thadeu Weber (2016):

O reconhecimento e a promoção da dignidade é uma conquista da história, mas ao mesmo tempo é uma construção da razão. Indica um dever ser. É normativa. É uma qualidade intrínseca do ser pessoa. [...] Mencioná-la no prelo e/ou nos artigos iniciais e basilares de uma Constituição, significa estabelecer a inviolabilidade do ser humano como pressuposto de toda a estrutura jurídica e social, reconhecendo-o como sujeito do direito, isto é, como portador de direitos e deveres.

Surge, contudo, uma questão acerca da definição do conteúdo do mínimo existencial. Para isso, é necessário definir alguns parâmetros, como o direito à saúde, à educação, à

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habitação, dentre outros, já que não há como se definir de forma geral e abstrata. (WEBER, 2016)

Weber (2016) faz uma análise a partir da teoria da justiça de John Rawls, em que a garantia do mínimo existencial é pressuposto para o exercício dos outros direitos fundamentais. Somente cidadãos saudáveis, com educação e moradia digna é que podem exercer seus direitos como cidadãos, e, principalmente, como cidadãos iguais. Então, é pressuposto básico na concepção de justiça a garantia constitucional do mínimo existencial instituído partir da dignidade.

Quando se trata de cidadãos, Ralws vai mais além e defende que deve haver condições para o exercício da cidadania em sentido amplo:

Cumpre observar que o foco são as pessoas como cidadãs. Ocorre que esse mínimo social está incorporado ao conjunto dos bens primários. O exercício da autonomia e da cidadania amplia as exigências do ser pessoa. [...] A concepção de pessoa, portanto, também é política. A definição de uma lista de bens primários necessários decorre dessa concepção de justiça. Pode-se, então, falar em um mínimo necessário para a vida política. (WEBER, 2016).

Contudo, ter uma visão tão ampla com relação a isso poderia descaracterizar a ideia de mínimo existencial. Para tanto, deve-se separar “as necessidades básicas como condições de possibilidade do exercício dos direitos fundamentais”, as quais compõem efetivamente o mínimo existencial, dos “direitos e liberdades fundamentais propriamente ditos.” Da mesma forma, o exercício da cidadania é imprescindível para caracterizar uma vida digna, tendo em vista que o homem é um ser político e, portanto, essa participação faz parte de sua essência. A partir desse raciocínio, o mínimo existencial pode ser ampliado para a ideia de bens primários – mínimo social – fundamentada por Rawls (WEBER, 2016).

Nesse sentido, “abaixo de certo nível de bem-estar material e social, de formação e de educação, as pessoas simplesmente não podem participar da vida política e social como cidadãos, menos ainda como cidadãos iguais.” (CORDEIRO, 2012, p. 99).

Portanto, a ideia do mínimo existencial ganhou força nos últimos tempos, principalmente no âmbito do poder judiciário, que passou a determinar em suas decisões uma efetivação dos direitos fundamentais por parte do Estado, como a garantia de uma vida minimamente digna, notadamente no que se refere às questões de saúde, educação e

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habitação. Contudo, é preciso avançar nesse sentido, visto que a mera sobrevivência física dos indivíduos é insuficiente para a garantia de uma vida digna, esta que exige condições para o desenvolvimento das capacidades de forma saudável, da personalidade, e da cidadania, para que os indivíduos possam se reconhecer como dignos.

1.2 A laicidade como fundamento do Estado Democrático de Direito

O surgimento do Estado Laico originou-se a partir de situações que não se sustentavam mais, como privilégios do alto clero, garantidos pelo medo do povo em se rebelar contra o que era “santo”. Os indivíduos passaram a conhecer sua autonomia, seu poder racional de contribuir nas decisões relativas ao que deveria ser público.

Inicialmente, portanto, a religião influenciava todas as decisões do soberano de forma a controlar o povo. Hoje, presencia-se um Estado laico (ao menos normatizado pela Constituição), contudo, para entender como se dá essa laicidade, importante separar alguns conceitos. Segundo Cesar A. Ranquetat Jr. (2016):

Há uma grande confusão na utilização dos conceitos de laicidade e secularização. O senso comum e boa parte dos cientistas sociais, historiadores e filósofos tratam ambos como termos sinônimos que supostamente fariam referência a um mesmo fenômeno histórico e social.

Interessante compreender que uma das ligações do termo “secularização” era com o início das desapropriações de bens da Igreja Católica pelos governos protestantes, também em razão da modernidade e da formação do Estado Moderno (RANQUETAT JR., 2016).

A ciência teve uma grande participação nesse processo. O meio social passou a ter um sentimento de autonomia na medida em que se explicava a vida e a matéria mediante estudos científicos, inclusive com provas do que era dito. Dessa forma, a racionalidade passou a querer controlar o meio e, por consequência, se afastar do que era visto como controle divino da realidade (RANQUETAT JR., 2016).

Há com isso uma mudança de valores. Os que antes vinham da Igreja e de seus ensinamentos, passaram a ser construídos a partir da racionalidade, não mais da fé, ou do

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medo imbuído aos religiosos, surgindo, assim, a ideia da liberdade de escolha e do pluralismo religioso:

A secularização traz consigo uma série de importantes consequências sociais. Talvez a mais importante seja a perda do monopólio religioso da Igreja Católica, no caso brasileiro e de grande parte dos países ibero-americanos e do sul da Europa, que conduziu a liberdade religiosa e ao surgimento do pluralismo religioso. (RANQUETAT JR., 2016).

Dessa forma, a secularização é um processo que vai além da separação entre o Estado e a Igreja, mas separação entre a Igreja e as instituições sociais, portanto, é um processo que deriva da sociedade.

Por outro lado, a laicidade

é uma noção que possui caráter negativo, restritivo. Sucintamente pode ser compreendida como a exclusão ou ausência da religião da esfera pública. A laicidade implica a neutralidade do Estado em matéria religiosa. (RANQUETAT JR., 2016).

Ainda de acordo com Cesar A. Ranquetat Jr. (2016) essa neutralidade do Estado possui dois sentidos. Um deles refere-se à total separação da religião do Estado, o outro “à imparcialidade do Estado com respeito às religiões, o que resulta na necessidade do Estado em tratar com igualdade as religiões.” Portanto, é um fenômeno eminentemente político.

Por ser um fenômeno político, a laicidade, contudo, não se confunde com outros conceitos, como o pluralismo, tolerância e liberdade religiosa, tendo em vista que estas são consequências da laicidade. Ranquetat Jr. (2016) faz essa ressalva citando o exemplo da Grã-Bretanha e dos países escandinavos, em que há liberdade religiosa, pluralismo e tolerância sem a presença da laicidade.

O ideário liberal surge também para promover essa desvinculação entre o Estado e a Religião no intuito de promover a liberdade religiosa e o pluralismo:

A concepção liberal se articulava em torno de três eixos: a) a premissa de que as convicções e práticas religiosas se referem à esfera privada; b) a neutralidade do Estado em matéria religiosa; c) separação entre Igreja e Estado. A religião tem na visão liberal clássica uma função subordinada, sendo a esfera política autônoma e independente. (RANQUETAT JR., 2016).

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Nesse sentido, há uma importante ligação entre a questão da laicidade material, não meramente formal, isto é, com seus efeitos socialmente efetivados, e a construção de uma sociedade justa. Um Estado Democrático de Direito é aquele que deve respeitar todas as religiões e filosofias, baseando-se na ideia de tolerância. Contudo, para que seja um Estado justo, não basta ser considerado laico, mas discussões e decisões políticas não devem ser fundamentadas ou carregadas de morais individuais.

Por outro lado, Hannah Arendt (2016) traz que “todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos.” A partir disso, surge o impasse de como conciliar o fato das atividades humanas condicionadas ao meio social com as particularidades morais de cada indivíduo, já que o homem é um ser naturalmente político.

Essa essência política do homem é o que o difere dos outros animais e, a partir do momento em que se conscientiza disso, passa a pertencer a duas ordens de existência: ao que lhe é próprio, e ao que lhe é comum (ARENDT, 2016).

Duas atividades eram necessárias para formar o homem político: a ação propriamente dita e o discurso. Com o surgimento da polis, na Antiguidade Clássica, essas ações que antes eram vistas como unas, dividiram-se, tornaram-se independentes. O discurso como instrumento político tornou-se forte, passando a ser usado como meio de persuasão (ARENDT, 2016).

Contudo, o que se pretende analisar é que atualmente, por mais que o Estado seja considerado laico, a persuasão realizada no meio político para se alcançar interesses que deveriam ser considerados públicos, acabam partindo de uma argumentação moral individual. Líderes políticos usam de uma persuasão emotiva, na qual envolve questões de fé e de princípios individuas. Esse contexto acaba afetando o exercício do poder pelo corpo coletivo, tendo em vista que suas razões são não públicas, de acordo Rawls. Em razão disso, necessário fazer num primeiro momento uma separação entre esfera pública e a privada, tendo em vista que

As comunidades políticas modernas caracterizam-se não só pó um pluralismo de interesses e de grupos e organizações mas também por um pluralismo muito mais intratável de “concepções de bem” (VITA, 2016).

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Dessa forma, cada indivíduo ou grupo acaba tendo sua própria concepção do que é bom e do que é correto, e essas concepções privadas no âmbito público podem gerar enormes conflitos, porque se for optar por tomar medidas conforme determina certo segmento social em detrimento de outros, sem que haja discussão e um consenso, estes sairão prejudicados em suas diferenças.

1.3 A democracia como fundamento para a construção de sociedades plurais

Vivemos numa sociedade complexa por sua diversidade, composta por muitas culturas, religiões, etnias, interesses, com velozes trocas de informações e com uma população migratória cada vez maior. Além de ser uma sociedade composta por diversidades, é uma sociedade que se reconhece como plural. Esse reconhecimento, contudo, passou a crescer e a angariar importância em tempos mais recentes, pelo fato de que há uma necessidade urgente em se falar na questão da convivência pacífica entre os plurais.

Segundo Estelle Ferrarese1 (2016), entender essa questão da convivência pacífica pressupõe entender as razões dos conflitos, se estas são de ordem cultural, ou se são de ordem econômica. Em uma análise histórica, percebemos que durante os séculos XVII ao XIX, os conflitos eram puramente de ordem econômica, a partir do interesse de construir grandes impérios. Atualmente essa realidade mudou e os conflitos surgem pelas diferenças:

É uma mudança, de fato, pois durante muito tempo não se pensava que este tipo de situação arranharia a convivência. Esta questão tornou-se possível e isto quer dizer que eu posso viver um conflito exatamente porque o outro é o outro, não porque ele quer a mesma mina de ouro que eu. (FERRARESE, 2016).

Assim, para diminuir os conflitos, a referida autora entende que deve haver uma luta pelo reconhecimento de uma paridade, este que consiste em forçar o outro a reconhecer a igualdade, de forma com que esse reconhecimento deixe de ser mera opção para aquele que está em situação de poder, e, por outro lado, dar a oportunidade para aqueles desprovidos do poder de impor a maneira com que concebe essa igualdade (FERRARESE, 2016).

Nesse sentindo, a democracia como um sistema político em que o povo exerce soberania é vista como um caminho na construção de uma sociedade plural igualitária. Dessa

1 Entrevista realizada por Sarah Roberta de Oliveira Carneiro com a professora Estelle Ferrarese, tradutora para o

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forma, é importante tratar da questão conceitual desse sistema para poder observar crítica a realidade democrática das sociedades atuais.

A democracia pode ser reconhecida como um bem em si mesmo, que possui valor próprio e que garante a melhor forma de se construir a sociedade. Por outro lado, a democracia também pode ser entendida como um instrumento com o qual se busca valores e princípios específicos. Contudo, o processo democrático em si “pode ser compreendido como um valor não somente importante, mas essencial para se alcançar uma sociedade plural e, por assim dizer, justa.” (OLIVEIRA, 2016).

O espaço democrático é pressuposto básico para que haja discussão em torno dos interesses conflitantes, com o objetivo de alcançar um consenso, bem como de que a participação cidadã possa evoluir para a construção de uma sociedade mais igualitária:

O paradigma do conflito, nesse âmbito, é tido como um fator positivo, uma vez que determina a própria concepção do dinamismo, deixando sempre em aberta a possibilidade de revisão dos princípios morais e políticos, além de considerar a importância que este efeito traz para a própria formulação de pluralidade. (OLIVEIRA, 2016).

Assim, numa democracia, é saudável e necessária essa troca de ideias e os debates em torno dos interesses e necessidades individuais, sendo esses fatores imprescindíveis para o crescimento político dos cidadãos. Esse entendimento, entretanto, nem sempre é partilhado no meio social, porém, muitas vezes é difundida a ideia de que se deve buscar sempre a supressão dos conflitos por meio de uma aquiescência da minoria às decisões da maioria.

Por outro lado, a democracia pode ser um instrumento/mecanismo para alcançar certos objetivos ou ideais, como, por exemplo, a capacidade dos cidadãos de deliberarem racionalmente acerca de questões políticas fundamentais, “nesta perspectiva, a democracia não é mais o valor que uma sociedade busca, mas um método que melhor expressa e conquista certos valores.” (OLIVEIRA, 2016).

Como síntese disso, pode-se entender a democracia como um caminho escolhido para chegar a uma sociedade justa:

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Neste sentido, a democracia, de modo geral, passa a servir como um processo que atinge mais rapidamente valores substantivos que se tornaram indispensáveis para uma concepção de justiça igualitária e inclusiva. (OLIVEIRA, 2016).

Dentre as várias concepções acerca disso, a democracia deliberativa vê como imprescindível o diálogo entre os cidadãos, fugindo da ideia de uma democracia como uma simples soma de vontades individuais. Ou seja, na democracia deliberativa deve haver uma construção razoável entre indivíduos razoáveis a fim de se chegar a um consenso. Contudo, Oliveira (2016) faz uma crítica no sentido de que os teóricos desse tipo de democracia entendem que deve haver certos requisitos para estabelecer “igualdade entre todos os participantes do discurso afim de que se possa construir uma interação orientada para o entendimento mútuo.” Tais requisitos, portanto, acabariam suprimindo as outras formas de manifestações democráticas dentro da sociedade, isto é, a diversidade.

Na visão de Chantal Mouffe (2016), a democracia hegemônica atual se mostra incapaz de retratar as diferenças e ressaltar a importância do dissenso no âmbito social. Dessa forma, a pensadora belga cria um novo modelo de democracia, o qual chama de “pluralismo agonístico.”

De acordo com essa teoria, há que, primeiramente, fazer uma distinção entre os termos “o político” e “política”. O primeiro refere-se às divergências naturais entre as relações humanas numa sociedade. Já o segundo termo consiste num conjunto de práticas que visam a organizar essa sociedade antagônica, conflituosa, “A política visa a criação de unidade num contexto de conflito e diversidade; está sempre preocupada com a criação de um ‘nós’ pela determinação de um ‘eles’.” (MOUFFE, 2016).

Contudo, diverso do que preceitua a teoria da democracia deliberativa, o pluralismo agonístico

assevera que a tarefa primária da política não é eliminar as paixões nem relegá-las à esfera privada para tornar possível o consenso racional, mas para mobilizar aquelas paixões em direção à promoção do designo democrático. Longe de pôr em perigo a democracia, a confrontação agonística é sua condição de existência. (MOUFFE, 2016).

Portanto, a crítica reside, segundo a autora, no fato de que o consenso democrático é temporário, a partir de uma “hegemonia provisória”, pois a regra numa democracia plural sempre será o conflito no âmbito político, tendo em vista que se trata de um campo com

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diversidade de ideias. Ainda, o consenso gerado na democracia refere-se apenas aos princípios “éticos-políticos constitutivos”, e, mesmo assim, por haver diversas interpretações nesse sentido, esse consenso pode ser considerado um “consenso conflitual.” (MOUFFE, 2016).

Interessante a observação da autora no sentido de que vivenciamos uma apatia política muito grande nas sociedades democráticas liberais. Isso se deve pela supressão da própria atividade política, e, em seu lugar, passou a ocupar de forma abrangente a moral, a ética, os valores familiares e a necessidade do consenso. Diante dessa mutação, o judiciário surge como uma instituição técnica que resolve os conflitos advindos de onde deveria estar sendo exercida a atividade política, bem como a confrontação agonística. Assim, “diante da crescente impossibilidade de enfrentar o problema da sociedade de uma maneira política, é a lei que é acionada para prover soluções para todos os tipos de conflito.” (MOUFFE, 2016).

A abordagem “agonística” da democracia, portanto, surge com o intuito também de reconhecer as formas de exclusão existentes e recepcionar as diferenças – o pluralismo – sob uma visão política, discutindo-as, e não as disfarçando com a moralidade, ou neutralizando-as:

Tal pluralismo está ancorado no reconhecimento da multiplicidade de cada um e das posições contraditórias a que esta multiplicidade subjaz. Sua aceitação do outro não consiste meramente em tolerar as diferenças, mas em celebrá-las positivamente porque admite que, sem alteridade e o outro, nenhuma identidade poderia se afirmar. Este é um pluralismo que valoriza a diversidade e o dissenso e não tenta estabelecer uma esfera pública a partir de sua eliminação, uma vez que reconhece neles a real condição da possibilidade de uma vida democrática a ser conquistada. (MOUFFE, 2016).

Assim, conceber a democracia como fundamental para a manutenção de uma sociedade plural vai além de uma visão superficial desse modelo político. Dentro dele, contudo, surgem diversas versões de como construir uma sociedade efetivamente plural, baseada no respeito aos conflitos de ideias e de princípios.

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2. PRESSUPOSTO PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE JUSTA: REVISITANDO RAWLS

Por pressuposto entendem-se as circunstâncias ou fatos/atos necessários para alcançar aquilo que se almeja. Então, quais são os pressupostos para a construção de uma sociedade justa? Esse questionamento é corriqueiramente discutido e analisado, principalmente no meio acadêmico, berço das mais diversas teorias sobre a justiça. Essa pesquisa voltou-se principalmente para o entendimento de um dos teóricos da justiça, John Rawls, o qual, em sua caminhada teórica, dedicou-se a desenvolver um caminho para uma sociedade justa, alicerçado em princípios.

O presente capítulo, portanto, fará uma abordagem ampla sobre algumas características necessárias para a configuração de uma sociedade justa, ou que busca por justiça, tais como: o fato do pluralismo e a sua aceitação, a tolerância como princípio garantidor e protetor do pluralismo.

A partir disso, a teoria da razão pública traz a concepção do consenso dentre as doutrinas morais abrangentes, no intuito de garantir que as decisões sobre questões fundamentais de direito não se configurem injustas e discriminatórias.

2.1 A convivência das doutrinas morais abrangentes: o fato do pluralismo

A existência de diversas doutrinas morais abrangentes (filosóficas, morais, religiosas...) sempre foi um desafio para a efetivação da paz social. A experiência histórica de uma religião ou de uma identidade cultural sobrepondo-se às demais resultou em guerras catastróficas e dizimação de povos inteiros. Contudo, essas dominações históricas não ocorreram por razões únicas de fé, ocorreram, sobretudo, por questões culturais, econômicas e de poder.

Essas questões, dentre várias outras, acabam gerando o que podemos chamar de identidades morais dentro da sociedade. Atualmente, entretanto, vivenciamos um contexto extremamente globalizado o que acaba dificultando o entendimento acerca da convivência entre o pluralismo moral e as diferentes concepções ético-políticas. Se por um lado – ou em certos lugares – conseguimos perceber algumas evoluções na convivência pacífica entre os

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diferentes, em outros presenciamos intermináveis conflitos e radicalismos extremistas que impedem a paz social.

Segundo Leno Francisco Danner (2017),

A característica central de uma sociedade democrática moderna, para Rawls, está em que ela é marcada pelo pluralismo ou, em outras palavras, pelo multiculturalismo. E este, por sua vez, é o resultado de uma sociedade livre. Cada um de nós, bem como os mais variados grupos sociais, possui diferentes modos de ser, diferentes concepções religiosas, filosóficas e morais. Não estamos mais unificados – como aconteceu, por exemplo, no período medieval – em torno de uma única doutrina abrangente, seja esta religiosa, filosófica ou moral. (DANNER, 2017).

A atualidade, portanto, não comporta mais a obrigação da singularidade religiosa diante desse pluralismo que presenciamos. Segundo Claude Geffré (apud GOMES; OLIVEIRA, 2017), há a disseminação de uma consciência de que todas as religiões comportam ambiguidades, “pois são objetivações relativas de uma realidade absolutamente maior, inabarcável e imanipulável.”

Rawls também faz uma análise acerca do pluralismo no âmbito internacional. Cada povo possui características próprias, assim como cada cidadão possui característica diversa dentro da sociedade nacional. Assim, como também há uma afinidade internacional dentre os povos, faz-se necessária a distinção entre os direitos humanos e os direitos de cada cidadão pertencente a uma sociedade nacional plural. A partir disso, o referido filósofo acabou classificando cada tipo de Estado de acordo com a forma ou ausência de aceitação desses direitos:

os povos liberais razoáveis (aqueles que aderem, numa maior ou menor proporção, aos princípios do Estado democrático de direito); os povos decentes (povos não-liberais que não negam os direitos humanos, mas os reconhecem e os protegem); Estados fora da lei (regimes que se recusam a aquiescer a um Direito dos Povos razoável, recorrendo à guerra e ao terrorismo para promover seus interesses não-razoáveis); sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis; os absolutismos benevolentes (povos que honram os direitos humanos mas negam aos seus membros um papel significativo nas decisões políticas. (GOMES; OLIVEIRA, 2017).

Cada tipo desses Estados pode ser exemplificado no contexto mundial atual. O que se verifica, também, é que essas situações estão intimamente ligadas ao fato do pluralismo e a sua aceitação.

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Nesse sentido, para o teólogo Greffré, a teologia hermenêutica é um grande instrumento para alcançar o respeito ao pluralismo religioso, isso porque o próprio sentido da palavra está no diálogo e na constante interpretação dos desígnios divino. Houve, portanto, um afastamento da ideia de supremacia do cristianismo sobre outras religiões, como ocorria tão fortemente na idade média, apesar de sua tradição religiosa ainda ser forte nas relações sociais (GREFFRÉ apud GOMES; OLIVEIRA, 2017).

Nesse sentido,

O pluralismo religioso emerge, portanto, como um novo paradigma teológico que nos convida a reinterpretar algumas das verdades fundamentais do cristianismo a partir da experiência histórica contemporânea, que concilia ao mesmo tempo secularização, ateísmo, indiferença religiosa, retorno ao religioso e concepções religiosas diversas que divergem da Bíblia. (GOMES; OLIVEIRA, 2017).

Para tanto, é necessário manter e respeitar as diferenças sem perder identidade. Segundo Oliveira e Gomes (2017), nem sempre é acessível à conciliação entre as verdades religiosas, contudo, o cerne deve ser sempre o diálogo.

O pluralismo é justamente isso: o exercício do diálogo tolerante e racional dentro de uma democracia. É o exercício da liberdade humana. Para tanto, é necessário elaborar um entendimento de justiça social que seja aceito e compartilhado pelos cidadãos que partilham de uma democracia. Essa concepção não deve ser elaborada a partir de uma doutrina moral abrangente, isto é, uma doutrina moral não pode se sobrepor às demais, não pode ser um princípio basilar único, caso contrário não haverá um pluralismo e, assim, não haverá justiça social (DANNER, 2017).

Contudo, segundo Danner (2017), há a necessidade de se ter uma base comum para a construção de uma concepção de justiça, bem como para normatizar as relações sociais. Nesse sentido, o entendimento do filósofo John Rawls é de que a construção de uma concepção de justiça social deve partir de um consenso entre as doutrinas morais abrangentes. Somente a partir de um consenso razoável e sobreposto é que poderão ser criadas normas justas.

Além disso, há um segundo ponto a ser considerado, que consiste no poder político existente dentro de uma democracia:

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Ao menos em teoria, cada um de nós tem a mesma “dose” de poder; aliás, em uma sociedade democrática, somos todos livres e iguais. Logo, nada mais óbvio – e justo – que a concepção de justiça social seja uma construção coletiva, entre estes cidadãos livres e iguais. (DANNER, 2017).

Essa concepção de justiça social, entretanto, é uma concepção política e não metafísica, isto é, ela não pode se tornar uma das doutrinas abrangentes, pois deve ser independente destas. Observando algumas democracias atuais vistas como exemplares, percebe-se que há uma preocupação a partir da lei em primar pela igualdade, independentemente das doutrinas morais de cada um. Formalmente, portanto, o presidente da república possui os mesmos direitos e liberdades que qualquer outro cidadão, isso porque todos estão ligados a uma norma comum: a constituição.

Há outro ponto que merece destaque: para que a lei suprema de uma nação possa viger efetivamente é necessário que o povo cumpra de forma natural com preceitos básicos, os quais nascem dos princípios básicos da justiça social, como a tolerância e o repúdio à escravidão, por exemplo (DANNER, 2017).

A tolerância ainda é um conceito que deve ser estudado e evoluído quanto à sua aplicabilidade no meio social. Contudo, a escravidão é totalmente intolerável e o seu repúdio pode ser visto como algo mais concreto e com a aplicabilidade mais perceptível, materialmente falando, já que é um fator histórico extremamente marcante, o que acaba não dando tanta margem a interpretações. Quanto à questão da tolerância, a sociedade acaba dividindo tudo no que é tolerável e no que é intolerável, e isso acaba gerando diversas discussões e entendimentos.

Relativamente aos preceitos básicos referidos, portanto, o pluralismo acaba sendo um dos princípios basilares da democracia, e também a partir dele será construída a concepção de justiça social, razão pela qual deve haver uma separação das decisões de âmbito público das concepções morais:

O multiculturalismo não mais permite a pretensão de uma doutrina abrangente de querer dominar o poder político e, por conseguinte, a própria sociedade como um todo. Aliás, a partir dele, a argumentação, na esfera pública, deve se dar a partir de “razões políticas”. (DANNER, 2017).

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Portanto, o campo político não deve ser usado como instrumento da moral, porém, deve ser visto e vivenciado como uma esfera independente em que há acordos razoáveis entre os cidadãos, sem a predominância da motivação moral.

A hermenêutica política emerge nesse espaço de razão pública onde se dá o consenso sobreposto: como doutrinas religiosas e concepções abrangentes do bem conflitantes e incompatíveis podem se mostrar razoáveis, na esfera pública, de forma a permitir sua coexistência pacífica? O liberalismo político busca acomodar tal pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis através do consenso sobreposto, por exemplo, quando todas as partes subscrevem a concepções minimalistas de direitos humanos. (GOMES; OLIVEIRA, 2017).

É evidente que não há como se despir da orientação moral na esfera pública, ou realizar a separação total entre a doutrina moral e a motivação das decisões políticas. Contudo, há que se buscar a coexistência pacífica, o que Rawls chama de consenso sobreposto entre as doutrinas razoáveis. O próprio repúdio à escravidão referido anteriormente é um exemplo de consenso das doutrinas razoáveis. Nesse sentido, não se pode aceitar no meio público uma doutrina “não razoável”.

De acordo com o filósofo Hermano Roberto Thiry-Cherques (2017), Rawls teve uma trajetória marcada pela busca de fundamentos do que é justo, com vista a “construir uma ética objetiva”, um acordo razoável. Diante disso, concluiu que a sociedade não está submetida a regras, mas a princípios. Deve haver, contudo, uma regulamentação desses princípios para que haja efetividade prática da justiça, visto que justiça é um conceito que admite várias interpretações e aplicabilidades.

A ideia de um construtivismo pluralista emerge, portanto, de um acordo acerca desses princípios da justiça, que estabeleceria

um ato coletivo, por agentes livres, racionais e iguais, que abstraem sua posição socioeconômica particular. Pessoas, que, ignorando o que o futuro possa lhes reservar e desejos de favorecer os seus próprios interesses, chegariam a um pacto em preceitos necessariamente justos. (THIRY-CHERQUES, 2017).

A teoria da justiça, consequentemente, deve ser pluralista para ser efetivamente justa, sendo que a referida ordenação deve partir do princípio da liberdade e, após, do reequilíbrio das desigualdades: “a teoria propõe uma explicação hipotética, em que uma assembleia de pessoas livres se reúne para escolher os princípios que devem presidir a estrutura da sociedade.” (THIRY-CHERQUES, 2017).

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Portanto, a ideia de uma sociedade justa parte do pressuposto de que os cidadãos devem escolher de forma consensual os princípios que ordenarão as condutas sociais, e que se farão presentes nas decisões políticas. Para tanto, os cidadãos devem ser livres, e o reequilíbrio das desigualdades é necessário como forma de acolher o fato do pluralismo e efetivar a teoria da justiça.

Nesse mesmo sentido, Thiry-Cherques (2017), trata que “A justiça é dada, antes de tudo, pela liberdade de opinião e de consciência, igual para todos e que impera acima dos interesses econômicos, das aspirações político-sociais, e das convicções religiosas.”

Contudo, é extremante importante que essa decisão razoável e consensual acerca dos princípios respeite o fato do pluralismo, de forma que não haja uma “tirania da maioria”, expressão usada pelo filósofo John Stuart Mill (1016, p. 16):

é preciso também a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes, contra a tendência da sociedade de impor como regras de conduta, e por outros meios que não as penas civis, suas próprias ideias e práticas aos que dela divergem, contra sua tendência de tolher o desenvolvimento e, se possível, de impedir a formação de qualquer individualidade que não esteja em conformidade com seus usos, e de obrigar que o caráter de todos seja talhado pelos moldes do seu.

Contudo, segundo Gustavo Hessmann Dalaqua (2017), o utilitarista John Stuart Mill possui concepções diferentes acerca dos princípios de justiça do filósofo John Rawls. Este entende que existem princípios basilares, como a liberdade, por exemplo, a partir dos quais serão construídos os mecanismos da justiça. Mill, por sua vez, não concebe nenhum princípio como imutável, todos devem, ou deveriam, ser analisados em cada caso, concretamente, pois há uma constate transformação social.

Importante entender também que a ideia de que a não aceitação dos diferentes, daqueles que não possuem a mesma identidade ou mesmas concepções políticas, também é vista como um princípio moral, o qual deve ser seguido como forma de conduta ética. É fato que esse tipo de princípio é colocado muitas vezes como o mais importante, que somente a partir dele é que haverá um caminho certo a ser trilhado, o único verdadeiro. É o que Mill chama de princípio da servilidade:

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Outro grande princípio determinante das regras de conduta que são impostas pela lei ou pela opinião, tanto para ação quanto para a omissão, é a servilidade dos seres humanos perante as supostas preferências ou aversões de seus senhores seculares ou de suas divindades. Essa servilidade, embora essencialmente egoísta, não é hipocrisia; ela dá origem a sentimentos de repulsa inteiramente genuínos, e foi o que levou os homens a queimares bruxas e hereges. (MILL, 2016, p. 19).

Essa servilidade ainda é muito presente nas sociedades atuais, seja no meio religioso, que determina condutas morais, ou no meio social, que apresenta outros tipos de senhores seculares, como o consumo, por exemplo. Dessa forma, é grande a dificuldade de se criar uma nova consciência de que para as decisões políticas em âmbito público – criação de leis, por exemplo – devem ser motivadas por princípios democráticos, a fim de buscar um benefício a todos alcançável.

Catherine Audard (2006, p. 126-128) traz um interessante conceito sobre ética pública, que, segundo ela, trata-se de um

consenso sobre um certo número de valores que permitirão legitimar as normas coletivas às quais devemos nos submeter enquanto cidadãos e, portanto, obedecer sem a intervenção da força [...] não é uma visão de mundo relativa a um grupo, a uma comunidade particular e, como tal, está desprovida de força normativa. Ela é, ao contrário, uma construção que implica a participação de todos.

Segundo ela, a fragilidade democrática atual advém da falta de compreensão e respeito pela “individualidade moral na pessoa do sujeito e do cidadão.” Nesse sentido, não pode haver uma confusão entre o pluralismo de comunidades ou grupos com o pluralismo “democrático”, “que resulta do exercício da liberdade de pensamento e de escolha, da autonomia moral reconhecida aos cidadãos.” (AUDARD, 2006, p. 127).

Percebe-se, com isso, que existem distinções relativas ao conceito de pluralismo, as quais devem ser consideradas no almejo de alcançar uma compreensão das democracias pluralistas atuais e de seus pontos fracos. Essas distinções surgem também a partir de uma análise da natureza do pluralismo, que, tempos atrás, era concebido a partir de comunidades e sociedades tribais. Havendo uma compreensão no sentido de que o pluralismo estava relacionado a diferentes grupos, comunidades, tribos (AUDARD, 2006, p. 129).

Atualmente, contudo, devido a uma grande expressão da liberdade individual nas democracias ocidentais, o pluralismo passa a ser concebido a partir do indivíduo, criando outras formas de cidadania e participação política. Portanto, importante que haja cuidado para

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não analisar essa questão a partir de um olhar “holístico”, tendo em vista que são análises que não se confundem: a noção de pluralismo inserida numa sociedade democrática, com instituições democráticas, do pluralismo presente nas sociedades tribais, em que não há democracia, mas uma constante pacificação e concentração de poder naquele que realiza as negociações comunitárias, como ocorre no mundo árabe, por exemplo (AUDARD, 2006, p. 132).

Audard (2006, p. 132) frisa que o exercício da liberdade acabou estimulando ainda mais a evolução e reinvenção cultural. Segundo ela, “as culturas são ao mesmo tempo constituídas e constituintes, feitas, mas em processo incessante de se fazer e desfazer para se refazer.”

O pluralismo, portanto, surge de uma constante evolução e reinterpretação individual e cultural, que só é possível com o exercício da liberdade, em que há uma troca do indivíduo para com o meio cultural, transformando-o, e do meio cultural para o indivíduo, também auxiliando na construção de sua identidade:

Não há procura da verdade e de auto-explicação de si de maneira solitária; essa procura é sempre uma atividade social no sentido mínimo de uma atividade partilhada de tomada de palavra e de escuta. Consequentemente, a proteção da liberdade de pensamento e de expressão cria novas condições para o desenvolvimento de grupos e de culturas humanas. (AUDARD, 2006, p. 133).

Diante dessa construção, Audard (2006, p. 133) realiza uma crítica ao comunistarismo, referindo-se a esse posicionamento como um determinismo sociológico, visto que os aliados a essa corrente tendem a referir-se à identidade coletiva como constitutiva da identidade individual, levando a crer que o indivíduo é incapaz de se posicionar e de se construir a partir de uma crítica elaborada em sua subjetividade, isto é, individualmente.

Com vistas a evitar esse determinismo, é significativo que haja o fortalecimento das instituições democráticas para que o indivíduo possa participar consciente e criticamente do debate público, a partir de valores comuns. Tal característica surge com o Estado “moderno, multinacional e liberal.” (AUDARD, 2006, p. 133).

Portanto, o pluralismo contemporâneo, mais especificamente das democracias ocidentais, é fruto de uma construção histórica a partir do exercício das liberdades individuais

Referências

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