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Os "Malavoglia" de Giovanni Verga: o provérbio na escrita literária da Sicília do século XIX

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL

CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

OS MALAVOGLIA

ESCRITA LITERÁRIA DA SICÍLIA DO SÉCULO XIX

UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL

CAMPUS CHAPECÓ

CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

ELIANE CARLA BACEGA

OS MALAVOGLIA DE GIOVANNI VERGA: O PROVÉRBIO NA

ESCRITA LITERÁRIA DA SICÍLIA DO SÉCULO XIX

CHAPECÓ 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL

CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

: O PROVÉRBIO NA

ESCRITA LITERÁRIA DA SICÍLIA DO SÉCULO XIX

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ELIANE CARLA BACEGA

OS MALAVOGLIA DE GIOVANNI VERGA: O PROVÉRBIO NA ESCRITA

LITERÁRIA DA SICÍLIA DO SÉCULO XIX

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de História, da Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Chapecó, como requisito para a obtenção do grau de Licenciada em História.

Orientador: Prof. Dr. Délcio Marquetti.

CHAPECÓ 2017

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RESUMO

Esta pesquisa analisa o romance histórico Os Malavoglia escrito entre 1877 e 1881 pelo escritor italiano Giovanni Verga (1840-1922). Trata-se de um romance ambientado na Sicília, Itália, que traz a história da família Malavoglia, pescadores da remota aldeia de Aci Trezza, quando a Europa na segunda metade do século XIX estava agitada pela industrialização e urbanização e a Itália passava por conflitos internos devido a sua campanha de unificação. A obra que foi um marco do início do Verismo, movimento italiano inspirado no naturalismo francês, traz além da crítica social a linguagem popular siciliana, promovendo a mistura dos níveis de linguagens da tradição literária culta e da tradição oral popular. Com isso, o objetivo é compreender o uso que o autor fez dos provérbios na escrita da narrativa, verificando as possibilidades históricas.

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ABSTRACT

Cette recher analisé le roman historique des Maravoglia écrit entre 1877 et 1881 par l'écrivain italien Giovanni Verga (1840-1922). Il se tratait d'est une romance qui se déroulait à Sicilia, en Italie, que racontait l'histoire de la famille Malovoglia, pêcheurs dans le village reculé de Aci Trezza, quand l'Europe dans la moitié du XIXème siècle était agitée par l'industrialisation et l'urbanisation pendant qie l'Italie connaissait des conflits internes dû par sa campagne d'unification. L'oeuvre qui était la marque du commencement du Verismo, le mouvement italien inspiré dans le naturalisme français, apporte en plus de la critique social, le langage populaire sicilienne, en promouvant le mélange des niveaux de langages de la tradition littéraire du culte et de la tradition orale populaire. Avec cela, l'objectif est comprendre l'usage que l'auteur fait des proverbes dans l'écriture de la naration, vérifiant les possibilités historiques.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...08

2 A ITÁLIA E A TRAJETÓRIA DE VERGA...15

2.1 A CONSTRUÇÃO DO VERISMO...21

3 OS MALAVOGLIA...27

3.1 O USO DOS PROVÉRBIOS...32

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS...44

REFERÊNCIAS...46

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1 INTRODUÇÃO

Ao falar do Direito à Literatura, Antonio Candido supõe que talvez não haja equilíbrio social sem a literatura por entender que é um fator indispensável de humanização ao atuar em grande parte no subconsciente e no inconsciente, com importância então que equivale à das formas conscientes de aprendizado como a educação familiar, grupal ou escolar. Em relação à natureza da literatura, às distingue em três faces: 1) é a construção de objetos autônomos com estrutura e significado; 2) uma forma de expressão que manifesta as emoções e a visão de mundo dos indivíduos e grupos; 3) uma forma de conhecimento, com incorporação mesmo difusa e inconsciente (CANDIDO, 2011).

Toda obra literária é um objeto que requer uma construção e a sua capacidade de humanizar residiria nisso. Neste sentido, todas as sociedades humanas promovem suas construções conforme aquilo em que acreditam e ao que lhe convêm. Para o autor:

Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles. Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante. (CANDIDO, 2011, p. 177-178).

A literatura é uma forma de expressão das sociedades e culturas, construída por estas com um sentido e função que, com o passar do tempo, são então ressignificadas, mas sem perder seu valor. É uma arte que possui uma linguagem própria, capaz de passar para esta absolutamente tudo o que pode ser percebido pelo ser humano, que faz parte dele e do espaço que o rodeia, além de tudo aquilo que está no seu íntimo e pode ser criado pela sua mente.

Ela se diferencia de outras produções sociais escritas, ao passo que, para transmitir sua mensagem não tem necessidade de ser fiel a realidade, podendo utilizar-se de múltiplos recursos, pois:

[...] a literatura não documenta o real nem constitui representação semelhante aos discursos científico, filosófico, político, jurídico e outros. Nestes últimos, as metáforas e outros recursos imaginativos são controlados ou mitigados pela intenção de objetividade, que se manifesta no discurso referencial, isto é, comprometido com a veracidade da realidade exterior. (FERREIRA, 2012, p. 66).

No entanto, como vimos acima, mesmo o fabuloso fora construído e pertence a uma sociedade e tempo determinado, caracterizando-se como um produto, que por assim ser

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também pode nos dizer muito sobre esta, inclusive suas criações mais fictícias. Segundo Ferreira “[...] toda ficção está sempre enraizada na sociedade, pois é em determinadas condições de espaço, tempo, cultura e relações sociais que o escritor cria seus mundos de sonhos, utopias ou desejos, explorando ou inventando formas de linguagem” (FERREIRA, 2012, p. 67). Foi baseado nisso que a historiografia ocidental, em sua renovação ocorrida no século XX, inicialmente na França e depois se estendendo a outros países, ao ampliar seu repertório de fontes, abarcou também a literatura. Tendo sido colocada em pauta uma “História- problema”, orientada para a compreensão da complexidade e da totalidade das experiências humanas, os historiadores passaram a dar ênfase aos processos sociais e econômicos e, em seguida, também aos aspectos mentais das civilizações; o que exigiu uma postura interdisciplinar (FERREIRA, 2012, p. 63).

História e literatura, desde então, têm trabalhado juntas dentro da História Cultural que abriu um leque de possibilidades para novos territórios a serem explorados, novas abordagens e olhares mais sensíveis. A produção literária revela-se com forte potencial tanto para os estudos históricos como sociais, uma vez que momentos históricos que originaram significativas transformações nas sociedades humanas foram observados e reproduzidos em diversos gêneros literários. Do mesmo modo, parte da nova literatura, a moderna e a contemporânea, passou a observar o cotidiano e as realidades sociais, além dos espaços burgueses já bem conhecidos dentro desta, indo ao encontro dos vencidos e desajustados da sociedade e realizando verdadeiros trabalhos sociais e antropológicos. Nicolau Sevcenko traz outra reflexão ao considerar que enquanto a historiografia procura o ser das estruturas sociais, a literatura fornece uma expectativa do seu “vir-a-ser” e fala, portanto, ao historiador sobre uma história que não aconteceu, sobre possibilidades que não vingaram e planos que não se concretizaram, um testemunho simples, porém, sublime dos homens vencidos (SEVCENKO, 2003, p. 29-30). Além disso, a literatura muitas vezes antecipa-se a tratar de questões, sociedades e momentos históricos enquanto estão sendo vivenciados e que a historiografia só dará atenção mais tarde.

É com este entendimento que olhamos para a literatura e a vemos ser capaz de nos dizer muito, com adequada abordagem e embasamento teórico como suporte. O trabalho com esta fonte pode ser muito produtivo e capaz de fornecer múltiplas possibilidades. Percebemos que parte das produções literárias auxiliam a responder incógnitas da história social, fornecendo informações de eventos e fatos ou períodos específicos dos quais não sobreviveram outras fontes e registros, ou quando são escassos. Além disso, elas podem nos

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trazer uma ótica diferente de outras fontes como as oficiais, bastante relevante a depender do que se está buscando. Por este motivo e concebendo a literatura da forma explanada, é que viemos neste presente trabalho pensar história através das fontes literárias. A literatura tem uma capacidade desmedida de nos encantar e envolver, desconcertar e intrigar; o livro Os

Malavoglia do escritor italiano Giovanni Verga nos deixou inquietos e percebemos a

necessidade de pesquisar a respeito para melhor entendê-lo. A obra insere-se no gênero do romance histórico e será aqui nossa fonte estudada.

O romance histórico é um bom exemplo da literatura que espelhou momentos históricos de grandes transformações nas sociedades humanas, pode trazer fatos históricos à ficção usando e refletindo-os como pano de fundo da trama que envolve os personagens, mostrando reflexos e experiências e ainda podendo apresentar alegorias. Como mostra Regina Zilberman (1997) ao analisar as obras brasileiras Esáu e Jacó (1904) de Machado de Assis, e

Triste fim de Policarpo Quaresma (1916) de Lima Barreto, que estas refletem os primeiros

anos da República. Para Edgar de Decca esta relação do gênero com a história tem longa data. A moderna historiografia, fundada sob as premissas da cientificidade, teria nascido junto com o romance na emancipação do sujeito proporcionada pelo pensamento iluminista do século XVIII. Fora somente ao longo do século seguinte que estes foram se distanciando cada qual com diferentes pretensões (DECCA, 1997, p. 198). Ainda assim, para ele ambos partilham desde suas origens o mesmo ideal:

[...] buscam encontrar o sentido da experiência humana que é histórico, por excelência, não obedecendo a qualquer sentido de ordem transcendental. A diferença entre a historiografia e o romance não está portanto naquilo que ambos perseguem, mas no modo de investigar tais objetos. A historiografia direcionou-se para o campo das ciências e durante o século XIX, acabou firmando um compromisso estreito com o positivismo e a verdade científica, acreditando na objetividade do método e da teoria para a apreensão do mundo real. Caminho diferente acabou percorrendo o romance, na busca de apreensão do real, acreditando mais na força da imaginação e da subjetividade. (DECCA, 1997, p. 199).

Romance e historiografia podem deste modo ter o mesmo objeto, olhar para a mesma coisa e tomar para si, o que os vai diferenciar é a forma como cada um o abordará, a sua linguagem narrativa e sua apreensão sobre este. Nas palavras de Decca: “[...] a historiografia e o romance são modos de narrar eventos humanos com o objetivo de extrair os seus significados” (DECCA, 1997, p. 200).

Para este autor, existem diferentes modalidades de romance histórico e o que nos interessa nesta pesquisa é o que entende como romances que têm pretensão de serem testemunhos de sua própria época, narrativas ligadas às próprias origens do romance na sua

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fase realista. Aponta que alguns desses mais lembrados romances expressaram a pobreza nas cidades industriais, como as narrativas de Dickens na Inglaterra, na França em Comédia

Humana de Balzac e Os Miseráveis de Victor Hugo; além de Helena e Iaiá Garcia de

Machado de Assis, no Brasil (DECCA, 1997, p. 201). Vale lembrar também o escritor Jorge Amado que abordou em muitos dos seus romances a vida urbana e rural brasileira ao longo de sua trajetória histórica, a exemplo de Suor, Cacau (1934) e Mar morto (1936). Segundo Decca, romances como estes pretendem-se históricos em sua força de denúncia das duras realidades vividas por vastos setores da sociedade, e ao fazerem a história do tempo presente preenchem uma lacuna deixada pela pesquisa historiográfica, antecipam-se a ela na representação das realidades históricas e lançam o olhar sobre os sujeitos sociais que a historiografia só dará atenção tempos depois (DECCA, 1997, p. 202).

Entendemos, deste modo, Os Malavoglia (1881) de Giovanni Verga como um romance histórico no qual o autor desenvolveu uma história de seu tempo presente. Objetivamos compreender o uso que o autor fez dos provérbios na escrita da narrativa, uma vez que são de uma quantidade significativa e permeiam toda a obra. Buscamos assim, verificar as possibilidades e vinculações históricas deste uso dentro da produção literária, com a problemática espacial e temporal da Sicília do século XIX, enquanto contexto e espaço em que o autor encontrava-se e que poderia legitimar tal escolha de modelo narrativo. Neste sentido, esta pesquisa exercita o diálogo entre história e literatura e adentra ainda na linguística, que se ocupa do estudo da linguagem humana em seus desdobramentos e manifestações.

Embora obras literárias de vários países, épocas e autores, há algum tempo venham sendo exploradas pela historiografia, esta tem privilegiado questões que percorrem contextos sociais e econômicos, questões estas que também interessam na obra de Verga. A narrativa em alguns momentos vertiginosa de Verga permite-nos pensar seus personagens não apenas enquanto sujeitos/sofredores de sua própria época, mas em termos da linguagem que empregam, o que nos permite adentrar ainda mais em seus universos mais íntimos.

A obra Os Malvoglia inaugurou o Verismo italiano, uma corrente artística inspirada no naturalismo francês que, no final do século XIX e início do XX, viu possibilidades de a literatura representar objetivamente a realidade:

O Verismo como vertente italiana da escola naturalista francesa, herdou a opção pela representação realista da realidade em seus estratos mais profundos e abrangentes, com a finalidade de compreender as forças que condicionam a vida humana e geram os movimentos histórico-sociais. [...] É dessa perspectiva que Giovanni Verga, assim como os outros escritores da primeira geração verista, adota como objeto de representação literária a vida nas províncias meridionais, regida por estruturas e

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costumes arcaicos, afligida por antigas mazelas sociais e vítima de seqüelas do processo de unificação italiana. (ANDRADE, 2006, p. II).

O livro aqui analisado traz a história dos personagens que compõem a família Malavoglia, pescadores da remota aldeia de Aci Trezza na Sicília, cuja existência captada no romance recria para o autor a realidade dos vencidos, daqueles que na tentativa de ascender socialmente são engolfados pelo progresso. A narrativa busca abordar com fidelidade, conforme o pensamento verista, o momento histórico no qual os personagens vivem, quando a Europa na segunda metade do século XIX estava agitada pela industrialização e urbanização e a Itália passava por conflitos internos, devido sua campanha de unificação.

O autor Giovanni Carmelo Verga era italiano e nasceu em 1840 na Catânia, costa oriental da Sicília, sua família era grande proprietária de terras, pertenciam à alta burguesia e eram bastante influentes. Desde o início de seus estudos, passando pelo breve período em que cursou Direito, da experiência como soldado, dos anos dedicados ao jornalismo até a carreira literária, teve influência e inspiração republicana e liberal, que não menos importante também vieram de casa e perpassaram às suas obras. Como afirma Andrade: “a família, o mestre, as leituras, a experiência como soldado e jornalista militante são elementos significativos na produção de Giovanni Verga” (ANDRADE, 2006, p.05).

Este estudo toma a obra Os Malavoglia como fonte com Cenas da vida siciliana (2001) também de Giovanni Verga como auxiliar, ao se complementarem ajudando na compreensão. Este último trata-se de uma coletânea que reúne dezoito novelas de Verga escritas no período de sua conversão ao Verismo, nos prestigiando com a gestação da sua obra-prima, Os Malavoglia,precursora do movimento. De título original Novelle, a publicação que utilizamos aqui teve tradução coordenada por Mariarosaria Fabris, com ilustração de Paulo Monteiro e foi publicado no ano de 2001 pela Berlandis & Vertecchia editores como parte da Coleção Letras Italianas. Constituímos a pesquisa a partir da obra Os Malavoglia de Giovanni Verga publicada pela editora Abril Coleções em 2010, com tradução e notas de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade e edição e texto complementar Vida

& Obra de Heitor Ferraz.

Com isso, iniciamos este presente trabalho realizando uma breve síntese do contexto histórico, social, econômico e cultural da Europa do século XIX, através dos estudos do historiador Eric Hobsbawm em A Era das Revoluções (1961) e A Era do Capital (1977) prestando especial atenção ao espaço onde se constituía a Itália e as transformações políticas, econômicas e culturais pelas quais passava. Concomitantemente, no capítulo 1, intitulado “A Itália e a trajetória de Verga” trazemos a vida e obra do autor articulada e engajada como foi

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ao momento histórico, com o auxílio do que escrevem Heitor Ferraz (2010) no apêndice sobre vida e obra deste na obra estudada aqui e publicação da Abril Coleções; Anna Paula de Freitas Andrade em sua tese de doutorado intitulada Os Malavoglia: narrador e sua criação (2006); e de Mariarosaria Fabris, no prefácio da coletânea de novelas do escritor Cenas da vida

siciliana (2001).

Concebendo Os Malavoglia como marco do movimento verista, entendemos que sua inspiração no naturalismo francês foi responsável por uma virada decisiva na carreira literária do autor e na própria literatura italiana. Ainda no primeiro capítulo dedicamos o subtítulo “A construção do Verismo” ao processo de construção do movimento italiano por seus precursores Luigi Capuana e Giovanni Verga, seus ideais e inspirações, o processo de escrita de Os Malavoglia como obra prima deste e sua publicação em 1881. Ao final, destacamos a aceitação inicial do público e crítica em relação à obra, sua redescoberta vinte anos depois juntamente com o fim da vida do autor, sua repercussão na literatura italiana e de modo geral até a atualidade. Utilizamos para isso artigos de professores e estudiosos da teoria literária como Vargas e Umbach (2016), Andrade (2006; 2010) e Guimarães (2007), além da escrita do próprio Verga nas novelas que antecederam a obra estudada (Verga, 2001) e o que escreveu no prefácio da mesma (Verga, 2010).

Além da forte crítica social, o escritor trouxe para o romance a linguagem popular siciliana, promovendo como afirma Andrade, a mistura dos níveis de linguagens da tradição literária culta e da tradição oral popular, vinculando forças sociais vivas e organizando-as ativamente no interior do romance (ANDRADE, 2006, p. IV). Estando marcado pelo expressivo uso de provérbios, no segundo capítulo que tem o título homônimo ao romance, nos debruçamos mais diretamente sobre a obra e buscamos perceber seu uso na narrativa como uma construção artística através do crítico literário Antonio Candido em O mundo

provérbio (1993) e Literatura e sociedade (2006); bem como de Andrade (2010) em Giovanni Verga e a construção do Verismo e Guimarães (2007), que trata das Marcas sicilianas no romance I Malavoglia de Giovanni Verga; analisando assim a obra como um todo em sua

composição e natureza.

Para a realização da análise histórica, no subtítulo “O uso dos provérbios” nos valemos novamente de Antonio Candido agora com o texto O direito à literatura (2011) e da historiadora Natalie Zemon Davis que no capítulo VIII “A sabedoria proverbial e os erros populares” do livro Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna (1990), realiza um ensaio sobre as coletâneas de provérbios e de práticas e crenças populares

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dos camponeses registrados por eruditos que tiveram usos diferenciados, transformados, passaram da fala rural comum para o uso de não-camponeses. Também nos servimos da linguista Maria Lucia Mexias-Simon que trabalha O provérbio como discurso de dominação (2012) e os hitoriadores Peter Burke que fala sobre A cultura popular na Idade Moderna (2010) e Hobsbawm em Nações e nacionalismo desde 1780 (1990), entre outros que auxiliaram ao longo do trabalho.

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2 A ITÁLIA E A TRAJETÓRIA DE VERGA

Consideramos conveniente iniciarmos o nosso estudo fazendo uma breve síntese do contexto histórico, social, econômico e cultural da Europa do século XIX, prestando especial atenção ao espaço onde se constituía a Itália e para a vida e obra do autor aqui estudado.

Giovanni Verga, ao escrever Os Malavoglia, não sentiu necessidade de descrever a aldeia de pescadores e seus espaços, a “casa da nespereira” ou o mar a cuja beira se encontram, foram particularmente caracterizados por pequenos adjetivos espalhados ao longo da história, mas nunca descritos. Assim o fez, possivelmente, por conhecer muito bem aquele lugar e lhe interessar ali os personagens, mas de fato não pretendia escrever do mesmo modo como vinha fazendo. Giovanni Carmelo Verga era italiano e nasceu em 2 de setembro de 1840, na Catânia, costa oriental da Sicília, bem próximo à aldeia de pescadores onde ambientou a família Malavoglia em sua narrativa.

Ao contrário dos personagens, a família do autor era grande proprietária de terras na região e de grande influência. Seu avô paterno fora deputado do parlamento siciliano e líder da Carbonária de Vizzini, uma sociedade revolucionária e oculta que lutava por ideais liberais, enquanto a família da mãe pertencia à burguesia catanesa. A mãe, Caterina Di Mauro era considerada uma intelectual, condição rara entre as mulheres da época e o pai, Giovanni Battista Verga era descendente de nobres e um liberal (FERRAZ, 2010, p. 308-309).

Verga iniciou seus estudos no instituto de Dom Antonio Abate, um poeta romântico e patriota de ideais republicanos, que teria forte influência na vida do jovem. Aos 16 anos escreveu sua primeira narrativa de cunho histórico Amore e Patria (1856-7), sobre a insurreição de 1848 contra os Bourbon que vinham exercendo domínio sobre a Sicília desde 1816 até 1860, na qual o próprio professor Abade combatera (ANDRADE, 2006, p. 4). Naquele momento, desde o Congresso de Viena (1814-15) o território da península itálica era dividido em sete Estados, cada qual sob o comando de uma família real: o Reino Sardo-Piemontês na parte Noroeste era governado pela família Savóia, uma dinastia italiana, e então permanecia autônomo e soberano; o Reino da Lombardia e os ducados de Parma, Modena e Toscana eram dominados pelos Habsburgo da Áustria, ocupando a maior parte do Nordeste e Centro; os Estados Pontifícios estavam sob autoridade da Igreja Católica no Centro; e o Reino de Nápoles ou das Duas Sicílias ao Sul, governado pela família dos Bourbon, da França.

O autor e sua família vivenciaram um período de grandes transformações na Europa, estiveram envolvidos e tiveram suas vidas moldadas pelas alterações que vieram a acontecer

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no espaço em que se encontravam. A insurreição de 1848, embora tenha surgido como uma revolta autônoma na Sicília, fazia parte de uma revolução muito maior; a Revolução Francesa de 1789 a 1799 estimulou vários outros levantes nos anos que se seguiram. Hobsbawm (1961) define três ondas revolucionárias principais no mundo ocidental entre 1815 e 1848: a primeira em 1820-4 que na Europa ficou limitada ao Mediterrâneo com Espanha (1820), Nápoles (1820) e Grécia (1821) como epicentros que, a exceção da grega, teve todas as insurreições sufocadas. A segunda onda ocorreu entre 1829-34 e afetou toda a Europa a oeste da Rússia e o continente norte-americano. De maior relevância do que a primeira:

De fato, ela marca a derrota definitiva dos aristocratas pelo poder burguês na Europa Ocidental. A classe governante dos próximos 50 anos seria a “grande burguesia” de banqueiros, grandes industriais e, às vezes, altos funcionários civis, aceita por uma aristocracia que se apagou ou que concordou em promover políticas primordialmente burguesas, ainda não ameaçada pelo sufrágio universal, embora molestada por agitações externas causadas por negociantes insatisfeitos ou de menor importância, pela pequena burguesia e pelos primeiros movimentos trabalhistas. (HOBSBAWM, 1961, p. 85, aspas no original).

O ano de 1830 em curso foi notável para a industrialização e urbanização do continente europeu e Estados Unidos na história das migrações humanas, sociais e geográficas, nas artes e na ideologia. Mais que isso, marca o aparecimento da classe operária como uma força política autoconsciente e independente na Grã-Bretanha e na França, e dos movimentos nacionalistas em grande número de países da Europa. Foi o início das décadas de crise no desenvolvimento da nova sociedade, que se concluiriam com a derrota das revoluções de 1848 e o salto econômico depois de 1851 (HOBSBAWM, 1961, p. 85- 86).

Assim, a terceira e maior de todas as ondas revolucionárias ocorreu em 1848, iniciada pela França na visão de Hobsbawm, o centro natural e detonador das revoluções europeias, que derrubou a monarquia e proclamou a república em 24 de fevereiro deste ano, espalhando-se de forma rápida e ampla, teria sido a primeira revolução potencialmente global (HOBSBAWM, 1977, p. 26). Ela afetou tanto as partes desenvolvidas como as atrasadas do continente europeu, todas as insurreições despontaram quase que ao mesmo tempo e foram igualmente vitoriosas e derrotadas rapidamente, seus governos foram vencidos ou reduzidos à impotência e com exceção da França, todos os antigos comandos voltaram ao poder, inclusive com mais força; os revolucionários se espalharam em exílio. Para Hobsbawm (1977), todas as revoluções de 1848 tiveram muito em comum: seus destinos estavam cruzados, possuíam um estilo e sentimento comuns, uma atmosfera romântico utópica e uma retórica similar, levando os franceses a criar para o momento a denominação de quarente-huitard e que ficou conhecido como “Primavera dos Povos”. Assim, “[...] apesar de ser visivelmente uma

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importante realização, 1848 aparece como a revolução da moderna história da Europa que combinou a maior promessa, a maior extensão, o maior sucesso inicial imediato e o mais rápido e retumbante fracasso” (HOBSBAWM, 1977, p. 30).

Em relação aos italianos, o historiador considera que tinham uma visão muito limitada do nacionalismo e por isso incluíram em seu projeto povos que não se sentiam italianos. Tentaram fazer então o que o chanceler austríaco Metternich descreveu como sendo “uma mera expressão geográfica”, uma Itália unida (HOBSBAWM, 1977, p. 28). Mas, se todas as revoluções tiveram muito em comum, inclusive a motivação de seu fracasso, faltava apontar uma: “elas foram, de fato ou enquanto antecipação imediata, revoluções sociais de trabalhadores pobres” (HOBSBAWM, 1977, p. 31).

Em 1860, Giuseppe Garibaldi liderou a luta pela libertação do Reino das Duas Sicílias do domínio dos Bourbon e, para tal, instituiu a “Guardia Nazionale” com serviço militar obrigatório. Giovanni Verga, que então cursava direito na Universidade da Catânia, serviu durante quatro anos na I Legião. Da mesma forma que os personagens ’Ntoni e Luca da família Malavoglia foram recrutados pela Marinha em 1863 e 64, aproximadamente. Em 1861 o autor deixou a universidade e se dedicou intensamente ao jornalismo quando, ao lado de seu antigo professor Antonio Abade e Niccolò Niceforo, fundou e dirigiu Roma degli

italiani, Italia contemporanea e L’independente, jornais engajados na luta republicana e

unionista da Itália (ANDRADE, 2006, p. 4-6).

Para Andrade, a família, o mestre, as leituras e a experiência como soldado e jornalista militante, são elementos significativos na escrita do jovem Verga, que passa a publicar romances de fundo histórico com ambientes modernos e aventuras amorosas; mas que retratam fases e cenas dos conflitos de unificação e bastidores de grupos revolucionários secretos, como o Carbonari da qual fizeram parte seu avô paterno e o comandante Garibaldi (2006, p.5). São as histórias Amore e pátria (1856-7) já citado, I carbonari della montagna (1861-2) e Sulle legune (1863). Para Arnold Hauser:

São romances inspirados em acontecimentos de projeção nacional e relevância histórica. O autor se interessa pela problemática político- social de sua pátria e seu tempo; e está sintonizado com tendências artísticas vindas da França, que desde as primeiras décadas dos Oitocentos atuam na formação de uma literatura pautada em idéias socialistas e interessada pelas questões críticas do século. (HAUSER, A. 1969, p. 453-454 apud ANDRADE, 2006, p. 5).

A Europa ocidental, da segunda metade do século XIX, viu sua população concentrar-se nos grandes centros urbanos. Como explica o escritor e historiador Arnold Hauconcentrar-ser, o processo de urbanização andava em ritmo acelerado, o capitalismo já estava em todas as

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relações sociais e uma série de mudanças transformava radicalmente a vida cotidiana das grandes cidades. O arsenal tecnológico e industrial inseriu uma série de inovações nos setores de transporte, comunicação, comércio, alimentação, vestuário e outros, ao mesmo tempo em que ocorre o aprimoramento das técnicas de imprensa que incrementa a circulação de material jornalístico e literário, que Saint- Beuve chamou de “industrialização da literatura”. Com isso, surge um mercado editorial abrangente e promissor que passa a exigir uma profissionalização da categoria literária (HAUSER, A. 1969, p. 11-13 apud ANDRADE, 2006, p. 5-6). Os novos tempos demandavam aperfeiçoamento e inovações também no campo do lazer, cultura e educação, ao menos pelas classes mais elevadas.

Na Itália, as cidades que viviam este momento eram Florença e Milão, os polos urbanos mais receptivos ao progresso, cidades em que a vida urbana era agitada, produtiva e aberta às novas tendências artísticas e culturais vindas do estrangeiro, principalmente da França (ANDRADE, 2006, p. 06). Giovanni Verga desde o abandono dos estudos de direito na universidade, havia se dedicado à escrita jornalística e literária, abraçando a carreira de escritor e, a partir 1865, passou a viajar constantemente para Florença. Muito bem recebido, logo foi introduzido nos circuitos culturais e artísticos, sendo apresentado a escritores, músicos, atores e ativistas políticos. Foi numa destas estadias na cidade que conheceu o escritor siciliano Luigi Capuana, iniciando uma duradora amizade fortalecida pela reciprocidade de convicções literárias (ANDRADE, 2006, p. 06); relação frutífera que mais tarde faria de Capuana o teórico do Verismo inaugurado por Verga. Heitor Ferraz afirma, ao contrário, que Verga se mudou para Florença, na qual começou de fato uma carreira literária, escrevendo então os romances Una preccatrice (1865) e Storia d’uma capinera (1871) que cativou os leitores e lhe rendeu reconhecimento, antes de se mudar em 1872 para Milão (FERRAZ, 2010, p. 309-310).

Esta grande transformação e expansão econômica que foi ocorrendo a partir de 1848, até o início da década de 1870, tornou o mundo capitalista e uma minoria significativa de países “desenvolvidos” transformaram-se em economias industriais. Com isso, os governos tiveram um tempo para respirar e os revolucionários, por outro lado, foram destroçados (HOBSBAWM, 1977, p. 45-47). Ainda assim, Hobsbawm acredita que com estas transformações na Europa ocidental:

As reivindicações políticas do liberalismo, radicalismo democrático e nacionalismo, apesar de excluírem a “república social”, viriam a ser gradualmente realizadas nos 70 anos seguintes na maioria dos países desenvolvidos, sem maiores distúrbios internos, e a estrutura social da parte desenvolvida do continente iria provar a si

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mesma ser capaz de resistir às explosões catastróficas do século XX [...]. (HOBSBAWM, 1977, p. 45, aspas no original)

Os problemas sociais haviam sido, por algum momento, esquecidos ou minimizados e o pleno emprego e imigração oferecidos eram suficientes para reduzir pressões de descontentamentos da massa trabalhadora. Mas os problemas políticos permaneceram e por mais que fossem para cada governo, essencialmente questão de política doméstica, devido a naturezas peculiares, questões domésticas e internacionais estavam profundamente interligadas. Hobsbawm afirma que liberalismo e democracia radical, ou, pelo menos, o desejo por direitos e representação não podiam ser separados na Itália e Alemanha das ambições por autonomia nacional, independência ou unificação. O que poderia trazer conflitos internacionais, pois a unificação da Itália exigia a expulsão do Império dos Habsburgo que dominavam a maior parte do norte e à Alemanha também por outras questões. Assim, a unificação de ambas implicava em guerra (HOBSBAWM, 1977, p. 83-84).

Em 1860, o chefe político com maior destaque no espaço italiano era o conde Camillo Cavour em Piemonte ou Reino Sardo- Piemontês. Estes líderes políticos precisavam combinar controle político com diplomacia e controle da máquina do governo. Anti-revolucionário e sem simpatia pelas forças políticas, Cavour buscou separar unidade nacional de influência popular, queria transformar o reino italiano em prolongamento de Piemonte e para tal, precisou mobilizar um aliado externo – a França – para expulsar a Áustria, mas acabou imobilizado quando o processo de unificação foi além do que Napoleão esperava. Cavour havia se encontrado diante de uma Itália dividida com a metade superior unificada sob comando do Estado e a metade inferior unificada pela guerra revolucionária liderada por Giuseppe Garibaldi, no mesmo ano. Segundo o historiador Hobsbawm, Cavour conseguiu persuadir Garibaldi a entregar o poder ao rei piemontês e em relação ao movimento siciliano afirma:

A expedição siciliana de Garibaldi, que rapidamente conquistou o sul da Itália, perturbou Cavour, mas embora sendo uma conquista significativa, seria impossível determinar qualquer ulterior conseqüência, dada a situação criada por Cavour e Napoleão. Em nenhum momento a esquerda italiana conseguiu concretizar a república democrática italiana, que era vista como o complemento essencial à unidade. (HOBSBAWM, 1977, p. 87-88).

Entre 1858 e 1870 surgiu o Reino da Itália, “em resumo, com a exceção da Inglaterra, todas as ‘potências’ europeias foram substancialmente – em muitos casos até territorialmente – modificadas entre 1856 e 1871, e um novo grande estado, como cedo viria a ser reconhecido, tinha sido fundado: a Itália” (HOBSBAWM, 1977, p.91). Seu processo de

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unificação tinha se completado, Roma tornava-se a capital e Vítor Emanuel II era proclamado rei. Na pratica, o Norte que se industrializava continuaria a explorar o Sul rural, onde a nova ordem econômica e social do capitalismo se tornava mais aguda. Para os Sicilianos:

Do ponto de vista político, a passagem do Reino das Duas Sicílias dos Bourbon para o Reino da Itália dos Savóia não traz nenhuma modificação para as massas populares, frustrando qualquer expectativa de resgate social e não conseguindo abafar aquele sentimento de desconfiança em relação aos poderosos. (FABRIS, 2001, p. 14)

Mariarosaria Fabris aponta a partir disso, na obra que coordena, Cenas de Vida

siciliana (2001), as novelas de Giovanni Verga: Assim é o rei, Carne vendida e Liberdade que

representam bem esta temática política. Da mesma forma, em Os Malavoglia, o que a escritora fala fica bem visível: não há qualquer mudança para a vida dos habitantes da aldeia de Aci Trezza, suas expectativas com a revolução foram frustradas ao não lhes trazer qualquer melhora na condição de vida e a desconfiança e repúdio em relação aos funcionários governamentais é expressa pelos personagens em diversos momentos. Nos dois trechos a seguir, com a cobrança de novos impostos, os moradores se escondiam em suas casas para não encontrarem os cobradores e reprovavam os que “comiam o pão do rei”:

E quando passava Dom Michele ou qualquer um dos que comiam o pão do rei e usavam quepe com galões, olhavam para eles com os olhos brilhantes e corriam a trancar-se em casa. Na aldeia reinava uma grande desolação, e pelas ruas não se viam nem sequer as galinhas; nem mesmo o mestre Cirino dava sinal de vida e deixava de tocar o meio-dia e as ave-marias, pois também comia o pão da Prefeitura, com aqueles doze tarì por mês que recebia como contínuo municipal, e temia que dessem cabo dele, como quem bajulasse o Governo. (VERGA, 2010, p. 207, grifo no original).

Daí, o boticário já não falava de cátedra e, quando vinha dom Silvestro, ia pilar seus argumentos no almofariz, para não se comprometer. Pois todos os que vivem metidos com o governo e comem o pão do rei são gente que não merece confiança. (VERGA, 2010, p. 291).

Neste período, logo após a unificação, em 1872, Giovanni Verga chegava em Milão onde residiria por vinte anos, sem deixar de passar longas temporadas na Sicília. Segundo Ferraz (2010), logo que chegou, passou a frequentar os principais salões literários, como o da condessa Clara Maffei e se aproximou de toda uma geração de literatos. Sua primeira fase de escrita romântica seria concluída ali com Eva (1873), Tigre reale (1875) e Eros (1875) (FERRAZ, 2010, p. 310). Seu novo círculo social o leva ao contato com a literatura francesa moderna, em especial as obras de Balzac, Zola, Flaubert, os irmãos Goncourt e Maupassant; levando-o a abraçar o naturalismo, “[...] cujos princípios de representação direta da realidade e do ambiente social, objetividade e impessoalidade o ajudaram a livrar-se do subjetivismo e

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do psicologismo do período anterior” (FABRIS, 2001, p.12.). Para Andrade (2006), é o momento em que:

Uma nova geração de escritores concentrada no eixo Milão-Florença, cujos representantes mais perspicazes são Luigi Capuana e Giovanni Verga, começa a trabalhar ativamente na construção do Verismo, procurando elaborar um método de representação literária realista, orientado pela estética do Naturalismo francês, mas ajustado aos costumes da realidade italiana, verificáveis nos processos sociopolíticos e culturais da atualidade. (ANDRADE, 2006, p. 10).

Para além das novas influências e inspirações a que Verga estava cercado, a campanha de unificação italiana ainda fazia ouvir seus ecos, a nova organização política continuaria a ter um rei no governo e, se não em definitivo, mas por longo período, o autor viveria no Norte industrializado e urbano e sentiria mais do que nunca o contraste com a sua Sicília rural. O momento histórico pedia uma mudança na forma de escrever e um olhar sobre os sujeitos sociais que ao longo do processo estavam sendo esquecidos.

2.1 A CONSTRUÇÃO DO VERISMO

O continente europeu viveu um século XIX turbulento, de profundas mudanças no âmbito social, econômico, cultural e político, neste novo quadro de ideias que surgiu – ideologias, doutrinas, movimentos políticos e sociais – a produção artística também começou a mudar. A arte literária deixou de lado o Romantismo com seus mitos idealizados do amor, a natureza e o heroi para acreditar num progresso científico, no resgate do objetivismo e impessoalidade, na crítica social, na substituição dos herois e homens ilustres, dignos de figurar nas páginas da história, por pessoas comuns e do mundo das classes sociais altas para as classes sociais mais baixas. Propostas que deram origem, na França, na segunda metade do século, ao Realismo com Madame Bovary de Gustave Flaubert (1857) e ao Naturalismo com

Therese Raquinm de Emile Zola (1867).

O Naturalismo representou, segundo Vargas e Umbach, a última evolução do Realismo oitocentista e podia ser vista, sob o plano criativo e artístico, como a tradução da filosofia positivista (VARGAS; UMBACH, 2016, p. 239). Tendo se difundido em muitos países, o seu foco era, em geral, os ambientes metropolitanos e as classes sociais, desde o proletariado até a alta burguesia, que estavam ligadas às cidades e ao seu desenvolvimento; buscava a representação da realidade de modo profundo e abrangente, a fim de compreender as forças que regulam as questões espirituais, econômicas, culturais da vida diária e geram os

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movimentos histórico-sociais (ANDRADE, 2010, p. 48). No Brasil, a corrente naturalista chegou no final do século XIX com a publicação dos romances O mulato (1881) e O cortiço (1890) de Aluísio de Azevedo, com o último trazendo um retrato da realidade brasileira daquele momento através das relações e comportamentos dos personagens.

Na Itália, que passava por um processo conturbado de unificação política, com sua industrialização e urbanização ainda se desenvolvendo tardiamente e de forma desigual nas regiões Norte e Sul, os descompassos não impediram que o movimento nas artes chegasse à península. O Naturalismo contagiou-a recebendo contornos próprios de uma adaptação italiana, que daria origem ao Verismo. Para Guimarães, na busca pela verdade, os escritores italianos se voltaram para as experiências regionais, inaugurando uma nova forma de interação entre a arte e o universo contemporâneo: narrando a miséria, o atraso, as dificuldades e as injustiças sociais, o Verismo privilegiou as descrições dos ambientes e das comunidades de pequenas províncias do Sul da Itália, em que pesava o atraso econômico e a cultura das cidades não predominava (GUIMARÃES, 2007, p. 09). Assim, por mais que tenha nascido das ideias do Naturalismo francês, eles se distinguiram da seguinte maneira:

Enquanto o segundo [Naturalismo] era desenvolvido em uma sociedade industrializada e em um contexto predominantemente urbano, o primeiro [Verismo] limitava-se ao âmbito rural, atrasado sob o ponto de vista econômico e cultural. Além disso, ao passo que os naturalistas franceses propagavam certa crença no progresso, a ideologia presente nos textos veristas mostrava-se fortemente pessimista, sendo que quaisquer esforços para melhorar a situação das personagens, predominantemente campesinos, pequenos agricultores ou pescadores, pareciam inúteis. (VARGAS; UMBACH, 2016, p. 240, colchetes acrescentados).

A literatura verista se apropriou de temas e motivos culturais populares, do uso da linguagem falada regional na prosa literária, da descrição dos costumes e do cotidiano do homem comum, acreditando na possibilidade de a literatura representar objetivamente a realidade através da imparcialidade e da impessoalidade, advindas do aparato científico naturalista. Desenvolveu um enredo narrativo de acordo com princípios de dois sistemas filosóficos relevantes do século XIX: o positivismo de Auguste Comte e o pessimismo de Arthur Schopenhauer.

Foi a vida rústica e difícil das províncias da Sicília que atraiu os veristas, tornando-se o principal objeto de exposição nos romances, ainda que não tenha se esgotado em seus limites, mas espalhando-se por toda Itália. Não por acaso, foram os sicilianos Giovanni Verga e Luigi Capuana, juntamente com o napolitano Federico De Roberto, os maiores expoentes do Verismo. Segundo Vargas e Umbach, o fundador do movimento é, reconhecidamente, Verga – um fiel discípulo do naturalismo de Émile Zola – com os romances I Malavoglia (1881) e

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Mastro-don Gesualdo (1889), a coletânea de contos Vita dei campi (1880) e a novela Novelle rusticane (1883) (VARGAS; UMBACH, 2016, p. 240).

Em 1870 Verga e Capuana, que participavam da vida artístico-intelectual de Milão divulgando materiais literários naturalistas, já começavam a pensar o Verismo mantendo intensa correspondência entre si (quando estavam em cidades diferentes) e com outros literatos, em que discutiam as novas ideias e as maneiras de aplicá-las às suas próprias produções e ao contexto italiano. Os dois trabalharam juntos na sua construção e, segundo Andrade,

o plano de elaborar uma versão nacional da literatura naturalista assumia importância capital na vida dos dois escritores sicilianos, e sua atuação, juntamente com os colegas mais chegados, fez que o verismo começasse a adquirir contornos próprios. Luigi Capuana, chamado “profeta do naturalismo”, empenhou-se em promover a obra e as concepções de Zola. Escreveu uma série de ensaios, estudos e artigos sobre a temática naturalista, e é autor de Giacinta, publicado em 1879 e reconhecido como o primeiro romance verista. (ANDRADE, 2010, p. 48, aspas e itálico no original).

Como pudemos ver, Capuana também atuou como escritor, tendo escrito inclusive a primeira obra verista, Giacinta (1879), e servido de intermediário entre a cultura naturalista europeia. Mas é como teórico que é consagrado, para Guimarães: “Capuana foi o mentor do Verismo, crítico principal do novo movimento e seu teórico por excelência. Verga foi o gênio artístico e criador, que pôs em prática em suas narrativas as teorias discutidas por Capuana” (GUIMARÃES, 2007, p. 13). Como nosso foco nesta pesquisa é o escritor Giovanni Verga, nos ateremos às suas produções.

Em 1874, Verga publicou o conto Nedda, era sua primeira tentativa de escrita como verista, que assinalava seu processo de transição. Foi preciso mudar seu modo de escrever abandonando o furor romântico, deixando de lado os ambientes da alta sociedade e os temas sentimentais, com suas mulheres fatais e destruidoras, artistas desiludidos, nobres corrompidos e paixões artificiais, que haviam caracterizado sua primeira fase literária. Seguindo os pressupostos veristas, se volta para o mundo popular da Sicília, sua terra natal e, em alguns casos, para Milão onde residia, para então analisá-los metódica e minuciosamente em seus aspectos históricos e sociais.

Logo no início do conto, podemos perceber que ele ainda tem muito do romantismo pelo modo como faz uma longa introdução à história repleta de lirismo. Ainda assim, não deixa de ser uma sucessão de fatalidades que resignam a personagem a uma vida de sofrimento. O narrador sentado em uma poltrona em frente à lareira descreve detalhadamente

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a fogueira e o fogo trepidando o faz deixar a mente vagar e recordar de uma história que inicia como um bom e velho romance a descrever a estação, o clima ou o tempo:

A lareira sempre foi aos meus olhos uma figura retórica, feita para emoldurar os afetos mais ternos e serenos, assim como o raio de lua beija as cabeleiras loiras. [...] Desconhecia o passatempo de remexer as brasas e a volúpia de sentir-me inundado pelo reflexo da chama; não compreendia a linguagem do graveto estalando pirraceiro ou resmungando ao flamejar; não tinha os olhos afeitos aos misteriosos desenhos das faíscas saltando como pirilampos pelos tições enegrecidos, nem às formas fantásticas que a lenha assume ao carbonizar-se, ou às mil gradações de claro-escuro da chama azul e vermelha lambendo quase tímida, acariciando graciosamente, para depois arder com acintosa petulância. Após ter-me iniciado nos mistérios das pinças e do fole, apaixonei-me perdidamente pela voluptuosa preguiça da lareira. Largo meu corpo sobre essa pequena poltrona ao lado do fogo, [...] E, numa dessas peregrinações errantes do espírito, o crepitar quiçá demasiado próximo da chama fez-me recordar outra chama gigantesca que eu vira arder na imensa lareira da fazenda do Pinheiro, ao sopé do Etna. Chovia, e o vento uivava enfurecido; as vinte ou trinta mulheres que colhiam as azeitonas da propriedade deixavam secar suas roupas molhadas pela chuva diante do fogo [...]. (VERGA, 2001, p. 21-22).

Neste trecho, é possível perceber que o narrador cria um espaço para si e para o leitor onde irão permanecer ao longo da narrativa, ele se distingue do mundo a que vai narrar mantendo uma certa distância. O que poderia ser o método encontrado pelo escritor para demonstrar um tratamento literário sério daquela realidade que se quer expressar. Mesmo assim, o conto já apresenta as técnicas naturalistas de composição com o toque italiano: o personagem principal é uma camponesa, Nedda, que vive com a mãe doente em condição de subsistência, sem dinheiro para os remédios desta ou mesmo para o pão de cada dia, vivendo de trabalhos temporários que nem sempre tem. Verga descreve as dificuldades da vida no campo, o trabalho pesado e o tratamento desumano que restava e a que estavam sujeitas as pessoas mais humildes, a igreja que ao invés de aliviar as penas das pobres criaturas as repreende; a miséria e as privações que deformavam e endureciam o corpo, a alma e a inteligência.

São os problemas da sua Sicília do século XIX sobre os quais Giovanni Verga começa a falar. Outros contos que assinalam etapas deste processo de transição e construção verista foram reunidos nas coletâneas Primavera e atri racconti (1876) e Vita dei Campi (1880). Entre 1875 e 1880, o escritor teria trabalhado concomitantemente nestes contos e num ambicioso projeto que abrigaria cinco romances veristas, o Ciclo dei Vinti ou Ciclo dos

Vencidos: I Malavoglia, Mestre Dom Gesualdo, Duquesa de Leyra, Deputatado Scipioni e Homem de Luxo. Durante cinco anos de trabalho intenso, Verga se dedicou especialmente na

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contos para preparar os leitores para uma nova óptica literária inédita, fazendo antecipações e ajustando o foco para um novo objeto artístico. Como afirma Andrade:

Além desses contos, as várias etapas de criação de Os Malavoglia substanciam a representação do escritor em busca do narrador impessoal perfeito, ao mesmo tempo que dão uma amostra de suas reflexões e sobre o significado e a funcionalidade das proposições artísticas, de caráter naturalista, que iriam revolucionar a literatura italiana nas últimas décadas do século XIX. (ANDRADE, 2010, p. 50, itálico acrescentado).

O conto Fantasia levou os leitores a imaginar a remota comunidade de pescadores de Aci Trezza na costa da Sicília, perceber a vida vagarosa e difícil daquela população “de pele mais dura do que o pão que comem, quando o comem, já que o mar nem sempre é gentil [...]” (VERGA, 2001, p.180); a casa da nespereira, um velho pescador e sua família. Segundo Andrade, “a narrativa sustenta um jogo sutil de lentes entre a fantasia da burguesia e a realidade crua dos miseráveis. A primeira não enxerga a segunda a olho nu, e esta, por sua vez, ofusca-se bestificada perante a miragem da opulência burguesa” (ANDRADE, 2010, p. 51). Com isso, o autor delineou o espaço onde se daria a história dos personagens da família de pescadores Malavoglia e ainda apresentou-os ao leitor.

O romance verista foi publicado por Giovanni Verga em fevereiro de 1881 e em seu prefácio, diz tratar-se de um “estudo sincero de desapaixonado” sobre a luta humana nas mais baixas esferas sociais, na busca pela satisfação das necessidades materiais. E, assim, explica o que pretendia de seu projeto:

Em Os Malavoglia trata-se tão somente da luta pelas necessidades materiais. Satisfeitas essas, a procura torna-se avidez de riquezas e será encarnada num tipo burguês, Mestre Dom Gesualdo, emoldurado no quadro ainda restrito de uma pequena cidade de província, cujas cores porém começarão a ser mais vivas, e o desenho mais amplo e variado. Depois tornar-se-á vaidade aristocrática na Duquesa de Leyra; e ambição no Deputado Scipioni, para chegar ao Homem de Luxo, que reúne todas as cobiças; todas essas vaidades, todas essas ambições, para compreendê-las e sofrê-las, ele as sente no sangue e é consumido por elas. (VERGA, 2010, p. 07-08, grifos no original).

A primeira edição de Os Malavoglia não alcançou a repercussão esperada, em verdade não teve nem ao menos o sucesso das anteriores e Verga queixou-se do fracasso da obra ao amigo Capuana. A crítica permaneceu silenciosa e o público leitor indiferente, tendo sido necessários vinte anos para que a obra fosse “descoberta” no início do século XX, a partir de um ensaio de Benedetto Croce; quando os jovens literatos passaram a segui-lo como precursor de uma nova literatura que, se engajava na realidade social da Itália moderna. Passada a Primeira Guerra, foi reconhecido como “mestre do verismo” e o romance como clássico da literatura italiana. Em sua tese de doutorado, defendida em 2006, Ana Paula Freitas de Andrade afirma que:

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O silêncio da crítica e a indiferença do público leitor, que perduraram mais de vinte anos, podem ser creditados tanto ao caráter vanguardista atribuído à obra, como a uma série de preconceitos que sempre marcaram as relações entre norte e sul da península, e foram exacerbados durante o processo de assimilação das diversidades sócio-econômicas e culturais da Itália recém-unificada. Certamente, a língua criada por Verga para narrar as desditas da família Malavoglia, resultado de uma ousada “sicilianização” do italiano, desgostava a crítica predominantemente conservadora da época, e afastava o público, acostumado ao italiano como padrão literário. (ANDRADE, 2006, p. 02, aspas no original).

Tendo passado um bom tempo esquecido depois da publicação em 1881, o escritor voltou ao cenário literário após ter seu conto Cavalleria rusticana interpretado no teatro em 1884. Em 1889 publicou o segundo livro do Ciclo dos vencidos, Mastro Don Gesualdo, abandonando o projeto em seguida. Depois de vinte anos em Milão, Verga voltou à Sicília em 1893 na qual se estabeleceu em sua terra natal com certo isolamento e manteve alguma produção. Com sua obra redescoberta em 1903 e passada a guerra, os seus 80 anos, em 1920, foram celebrados em cerimônia pública na Catânia e em Roma, sendo-lhe concedido cargo de senador. Infelizmente, apenas dois anos depois, Giovanni Verga veio a falecer em decorrência de uma paralisia cerebral.

Em 1940, a casa da família na Catânia foi transformada em centro de pesquisa, “Casa Museo Verga”, preservando seus manuscritos, cartas, sua biblioteca e objetos pessoais. Em 1948, Luchino Visconti, um dos mais importantes diretores de cinema italiano, rodou La

Terra Trema, filme inspirado em Os Malavoglia de Verga. E, em Aci Trezza na Sicília, na

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3 OS MALAVOGLIA

Neste segundo momento, procuramos explorar a obra Os Malvoglia em sua composição, a fim de compreender com o auxílio crítico literário de Antonio Candido e Mexias- Simon e dos teóricos da historiografia Natalie Zemon Davis, Peter Burke e Eric Hobsbawm, o uso feito por Giovanni Verga dos provérbios na escrita da narrativa.

Entendemos a partir de Antonio Candido que o valor e o significado de uma obra não dependem dela exprimir ou não certo aspecto de realidade ou, por outro lado, que as suas operações formais, lhe garantindo particularidade a tornaria independente de quaisquer condicionamentos sociais. Para o autor, a integridade da obra e sua compreensão dependem da fusão de:

[...] texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO, 2006, p. 13-14, grifo no original).

Ao analisar uma obra literária é preciso ir em busca de suas intimidades e, dessa forma, investigar tudo aquilo que de algum modo poderia ter interferido ou atuado na estrutura interna. Para Candido, se levado em consideração o fator social, e aqui vamos entender também o fator histórico, seria possível determinar se ele fornece apenas a matéria que serve de veículo para a criação do autor ou se faz parte da constituição daquilo que é essencial na obra enquanto uma obra de arte (CANDIDO, 2006, p. 14). Compreendemos assim, que ao abranger na pesquisa a investigação histórica, abrimos possibilidade para observá-la também como formadora da estrutura literária da obra, permitindo trabalhá-la junto aos fatores estéticos. E ainda, conforme o crítico, que não se trata de afirmar ou negar o quão evidente pode ser um fato literário, mas averiguar se é algo realmente decisivo ou apenas aproveitável para entender a obra.

Através de um exemplo bem humorado, ocorrido na produção do livro O homem de Aluísio de Azevedo, Candido chama a atenção para uma questão elementar:

O primeiro passo (apesar de óbvio deve ser assinalado) é ter consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese.[...] Esta liberdade, mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão da fantasia, que as vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva; e tal maneira que o sentimento da verdade se constitui no leitor graças a esta traição metódica. Tal paradoxo esta no cerne do trabalho literário e garante a sua eficácia como representação do mundo. Achar, pois, que

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basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la é correr o risco de uma perigosa simplificação causal. (CANDIDO, 2006, p. 21-22, grifo no original).

A produção artística em geral goza da liberdade de criar e fundir realidade com ficção e a literatura como uma arte é da mesma forma, diferente da historiografia que exige a pesquisa científica, o que ainda assim não quer dizer que sejam opostas, como vemos em Esteves (2007) e Pesavento (1998):

O discurso literário constitui-se em uma mediação social, pois é um sistema simbólico de comunicação, assim como a história nutre-se da experiência humana, buscando registrá-la pela mediação da palavra. No entanto, o discurso ficcional não possui nenhum comprometimento com o real vivido, não exige a rigor o trabalho com a pesquisa documental, ofício que compete ao historiador, o que também não significa que seu discurso seja o avesso do real, “mas uma outra forma de captá-lo, em que os limites de criação e fantasia são mais amplos que aqueles permitidos ao historiador. (PESAVENTO, 1998; ESTEVES, 2007 apud MACHADO, 2010, p. 64, aspas no original)

No entanto, mesmo aquela literatura que se propõem a captar e ser fiel à realidade, como é o caso aqui das produções veristas, vão realizar, na verdade, “adaptações” da realidade conforme o resultado que se deseja e o que, em verdade, faz parte da natureza do trabalho artístico. Os Malavoglia do escritor italiano Giovanni Verga intencionou trazer a realidade social do interior da Sicília com exatidão e seriedade, através de uma observação que fosse rigorosa, impessoal e objetiva. O escritor descreveu, no prefácio do livro, o seu método de criação literária, assinalando que:

Quem observa tal espetáculo não tem o direito de julgá-lo; já é muito se consegue retirar-se um instante para fora do campo da luta para estudá-la sem paixão e restituir a cena nitidamente, com as cores devidas, de modo a dar a representação da realidade como ela foi, ou como deveria ter sido. (VERGA, 2010, p. 09).

Ele escreveu o livro entre 1875 e 1880 quando morava em Milão, mas a história se passa no início de 1860, tendo como primeira referência temporal o ano de 1863 e seu final pressupõe entre os últimos anos da década de 1870. Verga era soldado da Guarda Nacional e jornalista entre 1860 e 1865, um dos períodos mais conturbados da unificação italiana, especialmente para a Sicília, que depois de derrubar o domínio dos Bourbon, enfrentou bandos de camponeses rebelados em virtude da miséria. Esta face da unificação foi exposta no conto A amante de Gramigna (1880), em que registra uma narrativa popular que ouviu nas ruas, como explica no início. A história expõe a presença do banditismo mostrando a caçada militar a um líder rebelde, Gramigna, sobre quem correm muitas lendas que o tornam um semi- heroi popular e seduzem Peppa que larga a mãe e o casamento arranjado para fugir com ele. Este e os demais contos citados, podemos encontrar no livro Cenas de vida siciliana (2001), conforme referência.

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Deste modo, entendemos que o escritor desenvolve a história em grande parte a partir daquilo que ele vivenciou do momento histórico e social pelo qual passava a Itália no início da sua campanha de unificação e daquilo que ainda se sentia no país enquanto escrevia, dado o fato de ter publicado a obra apenas duas décadas depois. Ele traz no romance a condição social e política do momento histórico e era esta realidade que pretendia restituir nitidamente, “de modo a dar a representação da realidade como ela foi, ou como deveria ter sido”, nas palavras do escritor.

Verga expõe através da escrita, por meio do narrador, a vida de uma comunidade pobre de pescadores de um local remoto com suas lutas diárias, ofícios, costumes, crenças e intrigas, uma sociedade onde o público e o privado se fundem e a nova ordem econômica do capitalismo começa a se estabelecer entre as relações; um mundo fechado onde reina a estagnação, de modo que nada ou pouca coisa se modifica. O núcleo central da história é a família Malavoglia que vive ali na casa da nespereira buscando sustendo da pesca com seu barco “Providência”, uma família patriarcal de oito membros organizada em torno do Patrão ’Ntoni (avô), com Bastiano (filho) casado com a Maruzza (nora) e seus filhos: ’Ntoni (o mais velho com 20 anos no início da história), Luca, Filomena ou simplesmente Mena, Alessi e Lia; todos envolvidos na vida da casa e da pesca. A vida da família passa ao longo da narrativa numa sucessão de tragédias que os faz perder o pai Bastiano e o segundo filho Luca no mar (na pesca e durante batalha naval pela marinha, respectivamente), a casa em decorrência de uma dívida, a mãe numa epidemia de cólera, o barco e por fim o próprio Patrão ’Ntoni; além de outros problemas que somados, acabam por dispersar a família.

A família da narrativa, na verdade, possui o sobrenome Toscano, mas é conhecida pela aldeia e chamada pelo narrador ao longo de toda a história pelo epíteto “Malavoglia”, o que foi apenas citado na primeira página, mas sem esclarecimentos ou lembrança do fato que deu origem ao apelido. Todavia, não é por acaso, como uma crença popular esta nominação recai sobre os membros da família pesando como um destino sobre quem o carrega, embora o próprio narrador reconheça que o apelido não condiz com o real comportamento da família: “[...] todos boa e brava gente do mar, bem ao contrário do que parecia pela alcunha, como sói acontecer” (Verga, 2010, p. 13).

Ao longo dos episódios da trama, o contexto social e político siciliano vai se desenhando pela alusão que os personagens fazem a personalidades do cenário político, como aos Bourbon, a Franceschello (o rei Frederico II deposto em 1860), a Giuseppe Garibaldi (líder da revolução) e Vittorio Emanuele II (rei do Reino da Itália após a unificação). Também

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pelos eventos como o serviço militar obrigatório a que são chamados os dois primeiros filhos do casal,’Ntoni e Luca, sendo que o segundo morre em uma batalha naval que ocorreu em 1866 em Lissa e motivo pelo qual vapores se dirigiam para Siracusa e Messina; a revolta dos moradores da aldeia com os impostos cobrados sobre o piche e o sal e em relação aos funcionários do governo; a construção de uma estrada de ferro na Sicília que ocorre a partir de 1860, em que o personagem Luca foi trabalhar e a epidemia de cólera que mata a mãe Maruzza e teria se alastrado pela região em 1867, embora na história tenha acontecido mais tarde.

A partir disso e daquilo que vimos anteriormente com Antonio Candido, compreendemos que Giovanni Verga ao produzir Os Malavoglia desenvolveu um romance de cunho histórico, que expressou um momento histórico específico da história da Itália e fez alusão a personagens reais desta, no entanto, a história em si é fictícia. A família Malavoglia com todos os seus integrantes e os demais moradores da aldeia de Aci Trezza foram criados pelo autor, para expressar e viver aquele momento que ele queria capturar. O único personagem que abre possibilidade para ter existido é o Patrão ’Ntoni, por estar fortemente marcado pela forma como a história gira em seu torno e como deixa traços em cada episódio da narrativa com seus provérbios de uma sabedoria acumulada. Através de suas pesquisas, Andrade diz neste sentido que:

Em carta de setembro de 1875, ele comunica ao editor Emílio Treves que estava trabalhando num “esboço marinheiresco” intitulado Padron’ Ntoni (texto que deu origem ao romance). É bem provável que, conforme o escritor relatou ao jornal Tribuna em 1911, a origem desse esboço remonte a um “acaso verídico” que lhe ocorrera. Segundo a entrevista, Verga conta que certa vez caiu-lhe em mãos um jornal de bordo que narrava as peripécias de um capitão em seu veleiro [...]. (ANDRADE, 2010, p. 59, aspas e grifo no original).

Podemos considerar ainda que, como tratado no primeiro capítulo deste trabalho, a obra fazia parte de um projeto do autor, algo pensado e planejado anteriormente que pretendia expressar os ideais veristas e se fazer inovador. Outra questão é que para tal, Verga não trabalhou sozinho na sua produção, Luigi Capuana o auxiliou muito com seus trabalhos teóricos, pesquisas e sugestões. A questão de como trazer a língua popular siciliana para dentro da obra, proposta do Verismo, exigia uma solução linguística que deu muito trabalho aos dois, como podemos perceber a partir de Andrade:

Enquanto escrevia o romance, Verga trocava idéias sobre o seu trabalho com Capuana, pedindo sugestões de ditos e injúrias da tradição oral, bem como indicações de antologias e dicionários de provérbios e modos de falar do dialeto siciliano. Havia algum tempo, Capuana dedicava-se à pesquisa de clássicos da literatura italiana, de narrações populares e provérbios sicilianos, a fim de definir as perspectivas ideológico-verbais de uma língua literária que representasse com autenticidade o mundo popular das províncias meridionais, e fosse compreendida

Referências

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