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Urbanismo e saneamento

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Academic year: 2021

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Urbanismo e saneamento no início do século XX e

seus reflexos no quadro atual

Ricardo de Sousa Moretti

A urbanização e seus impactos nas condições de saneamento ambiental na virada

do

século XIX

No início do século XX as poucas cidades de maior porte no Brasil estavam situadas no litoral ou próximas à costa: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Belém entre outras. A constelação de cidades, fundadas no ciclo de mineração dos séculos anteriores era predominantemente de pequeno porte. A partir do final do século XIX deflagra-se a alteração desse cenário, como reflexo de vários fatores, entre eles da expansão do plantio do café e da construção das ferrovias. A abolição da escravatura e a chegada dos imigrantes trazem mudanças radicais no cenário social e um grande contingente populacional para as áreas urbanas.

São Paulo pode ser considerado um símbolo desse processo: de 23 mil habitantes em 1874, passa para 239 mil no início do século XX e a 580 mil na década de 20 (LANGENBUCH, 1971, p. 77). Várias cidades, situadas no eixo do plantio de café ou nas rotas de sua comercialização, experimentam rápida transformação. A segunda metade do século XIX é marcada por uma grande migração interna de escravos, principalmente da região nordeste para a região sul do Brasil, onde florescem os negócios associados ao café. A população escrava no Estado de São Paulo passa de 21.000 em 1823 para 156.612 em 1872, conforme indicado na tabela 1. A partir da libertação dos escravos, parte se desloca das fazendas onde trabalhavam, em busca de novas condições de vida nas cidades. Do ponto de vista de crescimento da população urbana, ainda mais marcante é a chegada dos imigrantes. Segundo dados do Memorial do Imigrante, entre 1870 e 1939, chegam ao Estado de São Paulo, através do porto de Santos, um total de 2.429.711 imigrantes. Em um período de apenas 5 anos, de 1895 a 1899, chegam ao estado 219.333 imigrantes italianos; é um número relevante, quando se considera que a capital do estado tinha 239 mil moradores, no início do século XX. Os imigrantes que vieram para substituir os escravos nos trabalhos do campo encontram condições de trabalho muito parecidas com as da escravidão e também buscam a cidade, na primeira oportunidade.

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Tabela 1- Número de escravos no Brasil e em alguns estados do sul e sudeste, ao longo do século XIX

Fonte: STEIN (1957, p.295) e VIOTTI (1966, p.205-7). In: GRAHAM, e HOLANDA FILHO. Migrações internas no Brasil 1872-1970. São Paulo, IPE/USP, 1984

Mesmo com essa rápida expansão, no final do século XIX as cidades são ainda pequenas e compactas. A moradia popular se dá na área central das cidades, em cortiços, e os deslocamentos são predominantemente feitos a pé e a cavalo. As dificuldades de transporte de mercadorias fazem com que quase todos os produtos consumidos sejam produzidos no próprio local ou trazidos de pequenas distâncias.

Quanto aos serviços de saneamento, ainda não se disseminaram os serviços públicos de distribuição de água, mas já são encontrados em algumas cidades, com melhores recursos, os chafarizes públicos para abastecimento de água. A água é trazida das minas e fontes, dos poços e, nas cidades maiores, vendida por escravos, conforme ilustrado na figura 1. A pequena quantidade de água utilizada condiciona os hábitos de higiene e predominam os banheiros fora da residência, sem utilização de água para carreamento dos dejetos. O banho é feito nos rios, e quando dentro da residência, usualmente com o apoio de bacias e pequenas banheiras. Os resíduos domésticos são praticamente todos orgânicos e, predominantemente, reciclados no próprio lote da residência, parte na alimentação de animais criados nos quintais.

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Figura 1- Pretos de ganho. Chamberlaim, 1822 (In VERDE, 2004 p.36). Transporte de água feito por escravos, para venda nas casas.

A condição sanitária das maiores cidades e as condições de suporte para tratamento de doenças são precárias. A transmissão de doenças através de micro-organismos e a importância da assepsia ainda são questionadas. A introdução dos princípios da assepsia na prática médica e hospitalar é relativamente recente. O obstetra húngaro Ignaz Phillip Semmelweis (1818-1865) fez a relação entre a falta de higiene dos médicos que faziam os partos com as mãos infectadas pelo contato com cadáveres nas salas de autópsias e o grande número de morte de parturientes por febre puerperal. Em 1865, o médico inglês Joseph Lister introduziu nos hospitais a prática da assepsia, que consistia em desinfetar o ferimento, os instrumentos cirúrgicos, as mãos do médico e até mesmo o ar por meio de uma máquina spray com uma mistura de ácido carbólico. (SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL, 2006 p.53 apud IAMAMURA, 2006, p.24). O esclarecimento sobre as origens e transmissão das doenças evoluiu significativamente com os estudos do químico francês Louis Pasteur (1822-1895) que, em 1864, constatou a existência de microorganismos no ar, demonstrando que eram a causa das doenças endêmicas e epidêmicas e não as emanações miasmáticas dos ambientes impuros das cidades. Os estudos de Pasteur fornecem as bases para o progresso da ciência da imunologia e a criação das vacinas. (IAMAMURA, 2006, p.24)

Surgem as primeiras vacinas, que são objeto de descrédito e receio, mesmo por parte dos técnicos da área da saúde. Neste contexto proliferam-se as epidemias e, em paralelo, os esforços públicos para sua prevenção. Os primeiros códigos sanitários, do final do século XIX, são percussores das normas urbanísticas e trazem orientações relativas ao tamanho de ruas, condições de drenagem, localização de atividades potencialmente problemáticas à saúde pública etc. O Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 (Decreto nº 233) contém disposições relativas à captação de água para abastecimento, destinação de esgotos e de lixo, ocupação de terrenos úmidos e pantanosos e sobre as condições de funcionamento de prédios de acesso público. Contém também um conjunto de exigências relativas às vias de circulação e às edificações residenciais, que irão interferir no padrão de ocupação urbana que se verifica até hoje. Os dois primeiros artigos do Código de 1894 ilustram o alcance urbanístico da legislação sanitária:

"Artigo 1º - Todas as ruas nunca deverão ter menos de 16mde largura e as avenidas nunca menos de 25, sempre que a topografia local permitir; travessas de pequena extensão podem ser toleradas com 10m de largura.

Artigo2º- Os passeios das ruas ocuparão cada um pelo menos o espaço correspondente à sexta parte da largura das ruas".

As epidemias que assolaram o Brasil nas últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX influenciaram a abordagem técnica sobre o manejo das águas. Indiretamente, reforçaram na população o temor pelas várzeas, mangues e diversos tipos de terrenos úmidos e águas paradas, considerados, de forma genérica, indutores de algumas doenças epidêmicas. Foram tremendos os impactos das epidemias nesse período.

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Em algumas cidades, parcelas expressivas da população pereceram com as doenças, como no caso de Fortaleza, que perdeu cerca de 20% de sua população com uma epidemia de varíola. O presidente Rodrigues Alves, que deflagrou diversas iniciativas de caráter higienista, morreu de gripe espanhola e perdeu um filho com a febre amarela. Dos 340 tripulantes do navio italiano “Lombardia” que atracou no Rio de Janeiro em 1895, 333 foram atingidos pela febre amarela e 234 morreram (LEE, 2006, p.104). O temor das epidemias e sua associação com as águas paradas fizeram com que se difundisse no meio técnico e na população uma expectativa de rápido afastamento das águas de chuva. Esse temor vai impulsionar os paradigmas de obras de urbanização, de ocupação dos lotes urbanos e, especificamente de implantação de obras hidráulicas.

O sanitarismo e o contexto das proposições da arquitetura moderna- 1900 a 1930

As três primeiras décadas do século XX podem ser consideradas como o período de apogeu do transporte sobre trilhos e de gradativa introdução do transporte sobre pneus. O trem vai alterar a possibilidade de transporte de mercadorias e de pessoas, encurtando distâncias, viabilizando o consumo de materiais produzidos a distâncias que, anteriormente, eram consideradas proibitivas. As cidades modelam-se e se desenvolvem no entorno das estações de trem. Nas maiores cidades brasileiras, o bonde passa a ser um meio usual de transporte de passageiros e nessas cidades encontra-se uma ocupação relativamente compacta e adensada do território. Um dos fatores desse adensamento eram as dificuldades e custos de abertura de novas linhas de bonde. Parte significativa da população de baixa renda vivia em cortiços, nas áreas centrais. Só mais tarde a moradia de aluguel, predominante nas primeiras décadas do século XX, vai ser substituída pela ideologia da casa própria, na sua maioria auto-construída na periferia dos grandes centros. Na década de 20, 78% dos domicílios residenciais eram alugados. Este número passa a ser de 38% na década de 70. No início do século XX os cortiços eram considerados vetores de epidemias, áreas sombrias da cidade. O Código Sanitário do Estado de São Paulo, de 1894, já os proibia e determinava que as vilas operárias se estabelecessem longe das áreas centrais. O Código de Edificações do Município de São Paulo de 1934 (Código Arthur Saboya), que vigorou por dezenas de anos e serviu de modelo para a elaboração de códigos de edificações de diversas outras cidades brasileiras acompanha, em linhas gerais, os princípios urbanísticos previstos no Código Sanitário estadual. Merece destaque, no Código Arthur Saboya, a abordagem sobre os cortiços:

"Artigo 293 - Entende-se por cortiço o conjunto de duas ou mais habitações que

se comuniquem com as vias públicas por uma ou mais entradas comuns, para servir de residência para mais de uma família. Parágrafo 1º Excetuam-se desta disposição os hotéis e casas de pensão que funcionarem com licença da prefeitura.

Parágrafo 2º Não se acham também incluídos na categoria de cortiços os prédios de apartamentos que satisfaçam aos dispositivos deste Código".

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As regras estabelecidas pelo Código Artur Saboya ilustram o pensamento urbanístico das primeiras décadas do século XX. Definem-se as opções de tipo residencial oficial: residências unifamiliares e prédios de apartamentos. Toda forma de habitação multifamiliar que não seja o prédio de apartamentos é considerada cortiço, ao mesmo tempo em que o cortiço é proibido, como sinônimo de risco social e sanitário. Isso explica a manutenção de barreiras, existentes por décadas na legislação, à implantação de pequenos agrupamentos de residências em um mesmo lote. O modelo sanitário da edificação "sadia" é o da residência unifamiliar, totalmente isolada no meio de um lote relativamente grande e com acesso direto a uma via de circulação de veículos de 14 m de largura.

Persistem nas cidades brasileiras, nas primeiras décadas do século XX, os problemas das epidemias e as mesmas tendem a afetar, de forma mais aguda, as camadas mais pobres da população. Algumas dessas epidemias podem ser diretamente associadas às grandes concentrações urbanas- a pandemia de gripe espanhola entre 1918 e 1919, por exemplo, provocou 35.240 óbitos, sendo que destes, 12.388 no estado do Rio de Janeiro e 12.386 no Estado de São Paulo. Segundo Bertolli Filho, o coeficiente de mortalidade boi bem superior entre os grupos menos favorecidos. (BERTOLLI FILHO, 2003, p.72-73, apud IAMAMURA, 2006 p.28). Em São Paulo, em 1918, em apenas 45 dias foram registrados 8 mil óbitos pela epidemia de febre espanhola.

O problema das epidemias trouxe consigo um grande esforço de melhoria das condições sanitárias e de saúde pública da população. Os esforços de Osvaldo Cruz, no Rio de Janeiro, entre os quais se insere o célebre episódio da campanha pública de pagamento por ratos capturados pela população; as obras de drenagem das águas pluviais e servidas conduzidas por Saturnino de Brito em diversas cidades brasileiras; as grandes campanhas de vacinação ocorridas no Rio de Janeiro, que desembocaram na Revolta da Vacina, são exemplos nesse sentido. Também, como parte desse esforço, devem ser lembradas as obras de sistemas públicos de tratamento e distribuição de água potável, que se disseminaram nas primeiras décadas do século XX. Em alguns municípios, como em Campinas, as obras de abastecimento são acompanhadas por obras de afastamento dos esgotos. Porém, face à relevância do efeito do abastecimento público de água nas condições de saúde pública, essa obra atinge um percentual bem mais elevado da população que as obras de afastamento de dejetos. Até os dias de hoje, na absoluta maioria das cidades brasileiras, vivenciamos o descompasso entre as redes de água potável e as redes de esgoto.

A provisão farta de água potável de boa qualidade vai alterar, gradativamente, os hábitos de higiene. Vai viabilizar a difusão do carreamento dos dejetos sanitários por via hídrica. Conforme relatado por Rosália Iamamura (Iamamura, 2006, p. 37-39), o vaso sanitário sifonado, que hoje é utilizado, foi criado por um cidadão inglês, sir John Harrington, em 1596. Seu invento ficou esquecido e a idéia só foi retomada em 1775, por Alexander Cummings, que registrou a patente de um vaso sanitário com descarga e vedação de odor, com um sifão na forma de S. É no início do século XX que esse tipo de aparelho passa a ser fabricado em escala e sua utilização é recomendada pelos higienistas.

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Do ponto de vista da saúde pública pode ser considerado revolucionário o avanço trazido pelo sistema público de abastecimento de água potável, tanto na ótica do consumo de água de qualidade, como do ponto de vista do afastamento dos dejetos humanos1. Porém, amplia-se

radicalmente a quantidade de dejetos gerados pela atividade humana. Antes do fornecimento público de água potável, os esgotos domésticos eram alguns poucos litros por habitante, que se infiltravam facilmente na terra. A partir da expansão dos sistemas públicos de água e da utilização do meio hídrico para afastamento, o esgoto doméstico ultrapassa uma centena de litros por pessoa. Complica-se sua infiltração no solo, em especial nos lotes de pequenas dimensões. Quando canalizado, o esgoto é muitas vezes lançado sem tratamento nos corpos d’água, e assim, na ótica ambiental, ampliam-se os impactos, e o raio da área que pode potencialmente ser afetada pelos dejetos humanos quando contaminados.

Figura 2- Na medida em que a água é trazida mais próxima da residência, diminuindo o tempo gasto para a sua obtenção, o consumo tende a aumentar. Fonte: Cairncross, 1990

Nas primeiras décadas do século XX surgem os veículos motorizados, com motor a explosão, movidos por petróleo. A possibilidade de utilização do caminhão, do trator, do automóvel, cria novas possibilidades e perspectivas para as obras de terraplenagem e para as obras civis, em geral. É um momento de grande crescimento das cidades e também de crescimento das obras de saneamento, cunhadas no pensamento higienista, de afastamento das águas paradas. Os terrrenos úmidos, as várzeas, os mangues, os fundos de vale e os terrenos onde se encontravam águas paradas eram vistos como um risco a ser afastado. Introduz-se, no meio técnico, um paradigma de obra de drenagem das águas pluviais, que permanece até hoje. As obras de engenharia foram focadas no esforço de impermeabilizar e “drenar”. Através de tubos, canais, calhas, canaletas e sarjetas as obras visam livrar-se rapidamente das águas de chuva 1 Há estudos indicando que a quantidade de água disponível é tão ou mais importante do que a questão da qualidade da água em termos de impactos na saúde pública. A dificuldade na obtenção de água em mínimas quantidades é altamente prejudicial, pois afeta a capacidade de manter uma higiene pessoal adequada para evitar a transmissão de doenças (Cairncross, 1990).

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precipitadas. Passado quase um século da implementação generalizada desse modelo, pode-se agora avaliar sua insustentabilidade, quando se observam os problemas crescentes de enchentes que assolam nossas cidades. Há que se lembrar que um único lote impermeabilizado, de 300 m2,

gera por ocasião de uma precipitação de 60 mm, um montante de 18.000 litros de água, em um período que algumas vezes não ultrapassa uma hora. Uma residência gera cerca de 500 litros de esgotos, em um período de 24 horas. As vazões das águas de chuva tendem a ser centenas de vezes maiores que das águas servidas.

A gradativa introdução dos veículos com motor à explosão vai trazer novos problemas para as cidades. Durante séculos predominou, em todo o mundo, uma forma de produção da cidade, em que as edificações eram produzidas no alinhamento de frente dos lotes, ou seja, o desenho da quadra, no seu contato com a rua, era praticamente feito pelo contínuo da fachada das edificações. As janelas das edificações situavam-se imediatamente junto aos passeios de pedestres. Essa forma das cidades, que convive mal com o ruído e a fumaça da crescente frota de veículos, vai ser duramente criticada nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, que ocorrem na década de 30. Esses encontros vão dar origem à Carta de Atenas, que propõe e defende uma nova forma de produção da cidade, com edificações soltas no meio de grandes quadras abertas, com livre circulação do ar, do sol e de pessoas no meio aos edifícios.

Figura 3- Rua no sítio arqueológico de Pompéia, na Itália. Durante dezenas de séculos foi usual a construção de edificações no alinhamento de frente dos lotes, junto à via pública, ou seja, as edificações conformavam as quadras. Foto: Ricardo Moretti.

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Figura 4- Rua junto à praça, na cidade de Antonina- PR, em que as edificações também definem as quadras. Essa forma de implantação das edificações vai ser questionada pelas propostas modernistas, debatidas nos Congressos Internacionais de Arquitetura, que acontecem na década de 30. Foto: Ricardo Moretti..

Os desafios da sustentabilidade

Entre os desafios a serem enfrentados pelo planejamento das cidades estão a contenção e a redução dos principais impactos associados ao processo de urbanização. Neste texto serão focalizados os impactos associados ao saneamento ambiental, em especial aqueles que dizem respeito à gestão das águas e dos resíduos na cidade.

As cidades, atualmente, se caracterizam por um “metabolismo linear”, que demanda grande quantidade de insumos, produzidos fora de seu território, para sua sobrevivência: água, energia, alimentos, produtos minerais, entre outros (ROGERS, 2001 p. 31). As cidades tornaram-se reféns de um contínuo “abastecimento” e basta que se interrompa a linha de fornecimento de algum destes insumos, para que se instaure o risco de colapso. Vale lembrar os impactos da interrupção do fornecimento de energia elétrica durante algumas horas, ocorrido em várias cidades brasileiras em novembro de 2009, que levaram inclusive à interrupção do fornecimento de água potável. Por outro lado, estes insumos que chegam às cidades são processados e geram resíduos que são lançados, em grande quantidade, no solo, na água e no ar.

ENTRADA SAÍDA

Alimentos, Energia, Mercadorias Resíduos sólidos e líquidos, dispostos no solo, água e ar

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Figura 5- Metabolismo linear da cidade, com alta dependência externa e nível de poluição

No aspecto referente à água, verifica-se uma contradição de raiz, quando se constata que parte das cidades é abastecida por mananciais superficiais, que recebem água proveniente de córregos, ribeirões e rios que cruzam áreas urbanas. A conurbação e crescimento da população urbana, juntamente com as deficiências das obras de saneamento, ampliaram a extensão e gravidade desse problema. Dejetos humanos diluídos em grande quantidade de água são conduzidos para redes de esgotos ou, irregularmente, para tubulações de águas pluviais, e são lançados, freqüentemente sem tratamento, em cursos d´água que, poucos quilômetros adiante, serão utilizados como mananciais de abastecimento de água potável. Essa situação amplia significativamente os custos de tratamento da água e, principalmente, os riscos de problemas de saúde pública. A decisão de priorizar o abastecimento de água, deixando para um segundo momento a solução dos esgotos, adotada décadas atrás, foi a opção possível em um cenário de poucos investimentos em saneamento e na perspectiva imediatista de resguardo da saúde pública, já que o fornecimento de água potável traz uma importante redução das doenças de veiculação hídrica. Porém, esta opção leva a um momento crítico, imediatamente antes da construção dos sistemas de tratamento de esgotos. No momento, no Estado de São Paulo, tem-se uma situação crítica do ponto de vista da contaminação dos cursos d'água urbanos por esgotos. O abastecimento público com água potável já se aproxima de 100%, tem-se um percentual elevado da população atendida por redes de esgoto e um baixíssimo percentual de esgotos tratados. A SABESP, concessionária estadual que atende com água potável uma população de 22,5 milhões de pessoas, coleta um volume de esgotos correspondente a 68,2% do total de água consumida, mas trata um volume de esgotos correspondente apenas a 42,8% do total de água que é consumida (PMSS, 2006 p.6 e p.17). Ou seja, os dejetos humanos são diluídos em grande quantidade de água e conduzidos por tubulação diretamente para os cursos d'água. Parte significativa dos mananciais de água potável recebe contribuições de córregos que cruzam áreas urbanas. Tende a crescer o aporte destes contribuintes na medida em que se expande e se espraia a área urbanizada. Essa tendência evidencia, de forma inequívoca, a importância da recuperação dos cursos d’água urbanos.

Na ótica da saúde pública, por exemplo, é um risco constante a captação de água para abastecimento público em locais que recebem sistematicamente a contribuição de cursos d’água que são, muitas vezes, apenas constituídos por esgotos. Por mais cuidadoso e sofisticado que seja o tratamento da água para abastecimento, o gradativo comprometimento da qualidade da água dos mananciais é um risco presente e crescente

Nesta situação crítica estão hoje várias áreas urbanizadas e conurbadas, em especial nas regiões mais populosas das regiões sul e sudeste onde, embora estejam em curso grandes investimentos nas obras de tratamento de esgotos, têm-se mananciais de água potável seriamente comprometidos pelos lançamentos de esgotos domésticos. A precária

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condição de infra-estrutura encontrada nos bairros periféricos agrava os impactos da urbanização: a água de chuva carrega consigo grande quantidade de sedimentos provenientes das áreas ainda não consolidadas, provocando assoreamento dos cursos d’água e potencializando os problemas de enchentes. O transporte de sólidos em um bairro em que a urbanização ainda não foi completada chega a ser mil vezes maior que em um bairro já consolidado.

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Figura 6. Imagem de satélite mostrando a área urbanizada na RMSP e entorno. A área mais industrializada e urbanizada do Estado de São Paulo coincide com aquela onde há predomínio da utilização de mananciais superficiais para abastecimento.

Fonte:

www.comitepcj.sp.gov.br

A consolidação da “ferida geotécnica” encontrada nos bairros periféricos constitui assim uma medida de forte impacto social, pelo benefício trazido para seus moradores, mas também para a questão ambiental de forma geral e para a prevenção das enchentes. Nas áreas com urbanização consolidada o problema muda de matiz: as águas de chuva “lavam” a poluição do ar e toda sorte de poluentes e resíduos existentes nas ruas e áreas impermeabilizadas e atingem os cursos d’água.

Encontram-se algumas situações de alta fragilidade e risco nos grandes aglomerados populacionais. Para se avaliar a dimensão dessa fragilidade, pode-se afirmar que muitas das grandes cidades teriam que ser evacuadas caso viesse a ocorrer uma paralisação do fornecimento de energia elétrica, por alguns poucos dias. A pane do abastecimento de energia elétrica é dramática para uma cidade que depende unicamente de motores elétricos para operar os sistemas de recalque de água, já que leva ao desabastecimento de água. Foi o que se verificou em várias cidades brasileiras, por ocasião da pane do abastecimento de eletricidade ocorrido em 2009, em decorrência de problemas na linha de transmissão proveniente de Itaipu. Em uma situação limite, em que o problema de abastecimento de energia elétrica perdure, pode-se chegar à inviabilidade de permanência dos moradores.

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A deterioração da qualidade dos cursos d’água afetados pela ocupação urbana amplia os gastos e a energia envolvida no tratamento de água e também condiciona a utilização de mananciais cada vez mais distantes, que demandam escalas crescentes de energia nos sistemas de bombeamento. No estado da Califórnia, as agências de água consomem 7% do total de energia – uma dessas agências é a maior consumidora do Estado, com uma média de 5 bilhões de KWh por ano (National Resources Defense Council, 2004 p. 2). A necessidade de melhorar os córregos, ribeirões e rios urbanos reveste-se assim de uma importância na dimensão da saúde pública e também na racionalização do consumo energético. A dependência de mananciais distantes, que demandam quantidades significativas de energia para viabilizar o abastecimento de água e a existência de grande concentração humana nas áreas de mananciais potencializam os riscos de situações emergenciais de desabastecimento de água.

Figura 7- Lixo e esgotos em córrego situado na área de mananciais- Represa Guarapiranga. Foto: Ricardo Moretti.

Na ótica da sustentabilidade é necessário romper o “metabolismo linear” de funcionamento das cidades, buscando-se a produção de parte dos insumos utilizados na cidade, dentro de seu próprio território. Por outro lado, é necessário reduzir a quantidade de resíduos e promover sua reutilização e reciclagem. Visa-se assim diminuir a chamada “pegada ecológica”, ou seja, reduzir as áreas que são ambientalmente impactadas para viabilizar a

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produção daquilo que é consumido nas cidades bem como reduzir as áreas afetadas pelos resíduos que são gerados no seu território.

Aproveitamento das

fontes locais de energia, alimento etc.

Menor entrada de insumos Menor geração de resíduos

Redução, reutilização e reciclagem dos resíduos

Figura 8- “Metabolismo circular” da cidade, que visa reduzir a dependência de produtos trazidos de fora e reduzir a geração de resíduos

Interessante abordagem sobre a sustentabilidade foi adotada no Peru, na preparação as Agendas 21 em cada município: é necessário sublinhar o respeito, como um conceito fundamental. Respeito entre as espécies, na medida que o homem não é a única espécie que habita o planeta. Respeito aos direitos das gerações futuras, considerando a necessidade de se utilizar os recursos naturais de forma a não comprometer a possibilidade das gerações futuras de também o fazerem. Respeito às diferenças de raça, de credo, de sexo, de idade, de condição social, considerando a necessidade de reconhecer, assumir e respeitar as diferenças que caracterizam o ser humano. Em suma, respeito ao direito de todos a uma vida digna.

A lógica de redução do consumo faz parte da dimensão ecológica da sustentabilidade, também chamada de agenda verde. A agenda marrom trata da dimensão sócio-econômica da sustentabilidade, ou seja, do direito de todos ao consumo. É clara a necessidade de incluir e integrar essas duas dimensões. O desenvolvimento sustentável é definido como aquele que atende às necessidades presentes de todos a uma vida digna sem deixar de considerar o direito das gerações futuras de também terem suas necessidades atendidas. O atendimento às necessidades de todos é questão fundamental: é difícil convencer um cidadão que tem dificuldades de obter o que comer na próxima refeição da importância de resguardar os direitos das gerações futuras.

No saneamento ambiental, os conceitos de sustentabilidade se aplicam de diversas maneiras, entre as quais estão incluídos:

- o reconhecimento da água como um bem de todos;

- a proteção e recuperação da qualidade da água superficial e subterrânea; - proteção e recuperação dos terrenos de fundo de vale, várzeas, terrenos alagadiços, encostas e áreas ambientalmente frágeis, de modo geral;

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- a conservação e uso racional da água, buscando reduzir a necessidade de aporte de água de locais distantes dos pontos de consumo;

- a redução dos resíduos líquidos e sólidos gerados, seu tratamento, sempre que possível na escala local, e sua reutilização. Um dos exemplos dessa reutilização é no paisagismo produtivo e na agricultura urbana, para a produção de alimentos.

Curiosamente, a água de chuva que poderia ser vista como a vilã nos grandes aglomerados populacionais, poderia ser a solução para diversos problemas, entre eles o de fornecimento de água potável. A questão de abastecimento de água se atrela, em muitos aspectos, ao manejo das águas pluviais. Consideramos plenamente justificáveis os esforços no sentido de utilização das águas da própria bacia hidrográfica e, sempre que possível, buscando-se a utilização das águas que são geradas pelo processo de impermeabilização associado à ocupação do território. Usualmente cita-se a região metropolitana de São Paulo como exemplo da dificuldade de obtenção de água em grandes cidades situadas na parte mais alta de uma bacia hidrográfica, onde são limitados os volumes dos recursos hídricos existentes. Essa dificuldade tornaria inexorável a importação de água de outras bacias. Consideramos que é necessário introduzir alguns outros elementos a esse debate. No município de São Paulo tem-se uma precipitação média anual de 1530 mm (média 1980 a 2001-fonte

http://ww1.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade- consultado dia 03 de

outubro de 2008). Em uma localidade com essa precipitação, uma superfície impermeabilizada de 36 metros quadrados permite captar água correspondente a 151 litros por dia, que é a média de consumo per capta diária nacional. Ou seja, se fosse possível captar água de chuva com qualidade aceitável, a área impermeabilizada da cidade seria suficiente para abastecer seus habitantes. Não é assim tão simples, pois é difícil captar água de chuva com qualidade aceitável em um ambiente fortemente poluído. A água de chuva, quando escorre por superfícies impermeabilizadas, carrega poluentes e contaminantes. Mesmo a água de chuva captada diretamente do céu apresenta problemas de qualidade, em uma localidade com grande poluição do ar. Gradativamente haverá dificuldade crescente na obtenção de água potável nas grandes cidades. Espera-se que, também gradativamente consiga-se melhorar as condições de poluição do ar e limpeza urbana de forma a reduzir a fragilidade e a insustentabilidade dos sistemas de abastecimento de água, a partir da utilização dos nossos próprios recursos hídricos. Isso viabilizaria a solução do problema de água potável e também das enchentes.

Ainda no caso brasileiro, uma ocupação mais racional e mais densa das regiões servidas por infra-estrutura urbana, com a reversão do processo de esvaziamento das áreas centrais da metrópole, poderia ‘aliviar’ um pouco a enorme pressão populacional de assentamentos informais sobre as áreas de mananciais e de preservação ambiental nos cinturões das metrópoles brasileiras.

Ao tratar da poluição, entra inevitavelmente em cena o automóvel e o modelo de transporte motorizado individual. Pode-se dizer que o século XX foi o século do automóvel, símbolo mais vigoroso e desejado da sociedade moderna. Nenhum outro bem simbolizou tão bem o fetiche de consumo, nesse período. Símbolo de conforto e status, indutor de dinâmicas de vitalidade econômica. Também fonte de poluição, de ruído, de estresse e

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elemento estruturador de parte da escravidão no modo de vida moderno. Nas águas interfere como elemento que dificulta seriamente o aproveitamento das águas de chuva. Em outra escala, interfere na impermeabilização do solo necessária para sua circulação e estacionamento. Para que se possa avaliar o impacto dessa impermeabilização, pode-se tomar como exemplo os estacionamentos. Nos projetos de habitação popular os estacionamentos ocupam áreas que chegam a ser 40% maiores que aquelas reservadas às edificações. Através da análise dos projetos de um campus universitário e de um grande centro de compras no município de Campinas, constatou-se que as áreas de estacionamento respondem, respectivamente, por 26% e 60% das áreas impermeabilizadas, em ambos os casos ultrapassando significativamente as áreas das projeções das edificações. Se por um lado os estacionamentos são grandes responsáveis pela impermeabilização, por outro, constituem hoje uma das mais promissoras possibilidades para ampliar as áreas permeáveis das cidades. É confortável estacionar debaixo de árvores e existem várias alternativas técnicas de pisos permeáveis nos locais em que os veículos são estacionados. Aqui novamente é necessário enfrentar resistências, pois a implementação de “estacionamentos-parque” esbarra com o arraigado anseio de circular e estacionar em terrenos asfaltados e drenados.

Figura 9- “Estacionamento-parque”, em Pirenópolis. A ampliação da vegetação e a utilização de pisos drenantes em estacionamentos é parte do elenco de medidas de contenção das águas de chuva na fonte, que permite reduzir a vazão dos canais e cursos d’água. Foto: Ricardo Moretti

A prevenção, redução ou eliminação dos problemas de enchentes demandam obras hidráulicas. Difíceis, muitas vezes caras. Mais que isso, porém, exigem mudanças na forma de uso do solo, na gestão das águas, no modelo de transporte. A implementação das soluções pressupõe mudanças culturais, que demandam tempo e um espaço mais abrangente de debate nos meios de comunicação. Em especial, a solução dos problemas de enchentes através do aproveitamento das águas de chuva

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como fonte de água potável no próprio local em que ocorreu a precipitação pluviométrica, é uma questão de tempo, tecnologia, opção de investimentos e, principalmente, avanço no sentido de redução da poluição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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