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DIAS GOMES, DR. GETÚLIO E O TEATRO MUSICAL: ENGAJAMENTO, SONORIDADES E ENCENAÇÃO NO BRASIL SOB A DITADURA MILITAR

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RESUMO > Este artigo aborda a importância política do teatro musical na obra de Dias Gomes. Tomando por base Dr. Getúlio, sua vida e sua glória (1968)/Vargas (1983), enfatizo como característica fundamental a mistura entre música, dramaturgia engajada e encenação. Examinar este musical equivale a revisitar, de certa forma, o momento vivido no Brasil que essa peça denuncia e subverte, como nos possibilita uma aproximação com estilos narrativos diferenciados de representação do poder institucionalizado.

Palavras-chave:

Dias Gomes; teatro musical; engajamento.

KÁTIA

RODRIGUES P

ARANHOS

DIAS GOMES, “DR.

GETÚLIO” E O TEATRO

MUSICAL: ENGAJAMENTO,

SONORIDADES E

ENCENAÇÃO NO BRASIL

SOB A DITADURA MILITAR

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Dias Gomes, “Dr. Getúlio” e o teatro mu-sical: engajamento, sonoridades e

encena-ção no Brasil sob a ditadura militar1

Kátia Rodrigues Paranhos

> Teatro e música

A prática do teatro musical no Brasil remonta à segunda metade do século XIX, sobretudo às três últimas décadas. Gênero de vigência instável, que tem conhecido momentos produtivos seguidos por períodos menos ricos, o musical conheceu uma de suas fases mais férteis no país durante as décadas de 1960 e 1970. Nesses anos, o teatro brasileiro frequentemente se organizou sob o formato de espetáculo cantado para responder de modo crítico ao regime militar instaurado em 1964. As soluções estéticas mobilizadas nessas peças reeditaram as práticas nacionais da farsa e do teatro de revista, assimilaram influências estrangeiras (como dos alemães Erwin Piscator e Bertolt Brecht e do musical americano) e, acima de tudo, afirmaram caminhos artísticos originais capazes de envolver o público. Vale realçar que os textos musicais registraram instantes históricos, ao mesmo tempo em que fixaram tendências que transcenderam aquela conjuntura específica, deixando lições estéticas às quais se pode voltar hoje, entre elas, as estratégias épicas, isto é, as narrativas (por exemplo, a maneira de a música se inserir no enredo) e os diálogos em verso.

> Dias Gomes em cena O dramaturgo e escritor Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu no bairro do Canela, em Salvador, Bahia, no dia 19 de outubro de 1922 e faleceu aos 76 anos, em 18 de maio de 1999, vítima de acidente de carro na cidade de São Paulo. Escreveu sua primeira peça A comédia dos moralistas aos 15 anos de idade, em 1937. Embora não tenha sido encenada, a obra foi premiada em 1939 num concurso do Serviço Nacional de Teatro e publicada no mesmo ano pela Fênix Gráfica da Bahia, a expensas de um tio entusiasta, Alfredo Soares da Cunha. Ela foi seguida por Esperidião (1938), Ludovico (1940), Amanhã será outro dia (1941) e O homem que não era seu (1942). Em 1942, o jovem autor conhece a sua primeira realização teatral de sucesso com Pé de cabra, produzida e encenada pelo ator Procópio Ferreira e exibida em diversas capitais brasileiras entre 1943 e 1944. A peça foi proibida na estreia, no dia 31 de julho de 1942, por ser considerada marxista. Liberada mais tarde, serviu para caracterizar Dias Gomes como comunista muito antes de ele ingressar de fato no Partido Comunista Brasileiro2.

1 Este artigo integra pesquisa

financiada pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Fapemig (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais).

2 “A curiosidade pelo marxismo,

despertada pela censura do DIP a minha peça de estreia, seria no ano seguinte por minha filiação ao Partido Comunista” (DIAS GOMES, 1998, p. 93). Dias Gomes se manteve nas fileiras do PCB dos anos de 1940 até a década de 1970, sendo membro de seu comitê cultural e secretário geral do Instituto Brasil-Cuba.

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a difusão da dramaturgia nacional-popular. O seu marco de fundação está na realização do musical Opinião, com Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia), cuja direção coube a Augusto Boal, do Teatro de Arena. A experiência fez tanto sucesso que o grupo recebeu o nome Opinião. Entre os envolvidos, os mais atuantes foram Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha), Paulo Pontes, Teresa Aragão, Armando Costa, João das Neves, Pichin Plá e Denoy de Oliveira.

A estratégia adotada pelo Opinião tomava como fundamental o envolvimento das camadas populares num processo de conscientização revolucionária, “buscando como que numa catarse cívica o encontro entre atores e público, cúmplices de um ritual de protesto” (MOSTAÇO, 1982, p. 77). O grupo propunha o musical como formato mais apropriado para uma “plataforma político-cultural”, tanto no conteúdo quanto na forma, para a construção de uma “frente ampla de resistência democrática à ditadura” (COSTA, 1987, p. 102). Posição esta também “partilhada pela maioria da direção do Partido Comunista Brasileiro (PCB), contrária ao enfrentamento armado” (RIDENTI, 2000, p. 127).

Ao lado de Ferreira Gullar, ex-cepecista e membro do PCB, Dias Gomes escreveu Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, que conta com duas histórias paralelas. No plano da representação do que acontece, a escola de samba - com Simpatia, Tucão, Marlene, passistas e músicos - ensaia o enredo sobre a trajetória de Getúlio Vargas, com maior destaque aos momentos finais de sua vida. No plano da representação do acontecido, as cenas da vida do Getúlio, ensaiadas na quadra da escola, materializam-se à frente da plateia. Trata-se, portanto, de encenação dentro da encenação, teatro dentro do teatro, numa linguagem marcadamente metalinguística. Por sinal, o ator que representava Getúlio Vargas também atuava como Simpatia. O mesmo recurso era utilizado com Alzira Vargas/Marlene; Autor/Moleque Tião; Gregório Fortunato/Bola Sete; Bejo Vargas/ Quibe; e Oswaldo Aranha/Gasolina.

Para muitos críticos a trajetória de Dias Gomes pode ser definida em dois períodos: o das “peças da juventude”, nas décadas de 1940 e 1950, e o do “pagador de promessas”, a partir de 1960, com a encenação da peça no Teatro Brasileiro de Comédia/TBC em São Paulo. Para o dramaturgo, a produção dele poderia ser “dividida” em duas fases: “a primeira, de 1942 a 1944, na qual viveu do contrato de exclusividade com Procópio Ferreira e a segunda, em que buscou o rádio, a televisão e novamente o teatro como meios de produção e de sobrevivência” (DIAS GOMES, 1981, p. 25). Deixando de lado o critério norteador da “maturidade” literária e política do autor, que examino em outro trabalho3, neste artigo abordo a importância política do teatro musical na obra de Dias Gomes. Tomo por base Dr. Getúlio, sua vida e sua glória (1968)/Vargas (1983), enfatizando como característica fundamental a mistura entre música, dramaturgia engajada e encenação. De passagem ainda comento as peças As primícias (1978) e O rei de Ramos (1979).

> “Dr. Getúlio”

Em 10 de agosto de 1968 estreou em Porto Alegre, no Teatro Leopoldina, Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, sob a direção de José Renato e música de Silas de Oliveira e Walter Rosa. A peça foi encenada pelo Grupo Opinião. Fundado imediatamente após o golpe de 1964, o grupo carioca contava com artistas ligados ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE), que naquela ocasião encontrava-se na ilegalidade, e com outros interessados nas discussões sobre o teatro de protesto e sobre

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Ao final da peça, as duas tramas se entrelaçam e a morte de Getúlio, a personagem do enredo, será também a de Simpatia, o presidente da escola que lutava para manter o seu posto, conquistado pelo voto, com o bicheiro Tucão, o ex-presidente, que não aceitava a derrota na eleição que fez de Simpatia o novo líder. Marlene, ex-amante de Tucão e atual namorada de Simpatia, encarna outro motivo do ódio entre os dois homens.

Já na primeira rubrica da peça é indicado o seguinte: “A ação transcorre, toda ela, na quadra da escola de samba. É um grande pátio, onde não há móveis, utensílios de qualquer natureza. Apenas um praticável onde fica a bateria” (GOMES, 1972, p. 681, v. 2). Na maior parte das vezes, a bateria introduz o samba-enredo que recorrentemente volta a ser executado ao longo da peça, permanecendo em silêncio para dar lugar ao ensaio em que se conta parte da trajetória de Getúlio Vargas. Ela ainda toca nos momentos finais, tendo uma função decisiva para promover uma atmosfera sonora de suspense sobre o desfecho da vida de Getúlio e de Simpatia, vítimas de um golpe. Nesse sentido, “está muito evidente o paralelo estabelecido com o golpe de 1964” (GULLAR, 2006, p. 144-145).

Na diferenciação entre o factual e o ficcional muda-se a estrutura dos diálogos. Em prosa estão os diálogos dos personagens baseados na vida real - Getúlio, seu irmão Benjamim, Alzira Vargas e Carlos Lacerda. Em verso, as falas do autor, que assume as funções de um narrador, e as conversas de

Simpatia e Tucão. Dessa forma, produziu-se o seguinte efeito paradoxal: as cenas do enredo, da dramatização de momentos da vida de Getúlio Vargas, ganham aspectos realistas, enquanto as que correspondiam à vida das personagens da escola conquistam um tom lúdico, que os versos e as músicas lhes atribuem.

Para Dias Gomes, Ferreira Gullar e os integrantes do Opinião a peça misturou “arte popular, experimentalismo estético e engajamento político ao incorporar o humor e a musicalidade das escolas de samba para estabelecer a promoção da conscientização social e da luta popular contra as injustiças sociais” (SCHWARCZ, 1999, p. 123).

Ferreira Gullar havia escrito em parceria com Vianninha, para o Grupo Opinião, a farsa musical em verso Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come4 , baseada na literatura de cordel.

Com Dias Gomes, ele mesclou prosa e verso no drama musical Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, cujo título remete ao samba-exaltação do enredo da escola de samba da peça. Essa peça, assim como outras de Dias Gomes, incorpora traços do teatro épico brechtiano dentro de uma estrutura predominantemente dramática: o tempo (a duração de um ensaio), o lugar (a quadra), e a ação (a disputa entre o atual e o ex-presidente da Escola pelo poder e pela mulher que, sintomaticamente, trocou o segundo pelo primeiro). Entretanto, “o aprofundamento psicológico, outra característica fundamental do drama, é negligenciado em favor da mistificação de Getúlio Vargas e da importância da tomada de consciência e da luta popular” (COSTA, 1987, p. 105).

Sem dúvida prevaleceram a complacência e a recusa em abordar de frente um assunto como o mito Getúlio Vargas, ainda mais se considerarmos que o golpe de 1964 foi associado ao golpe militar de 1945, no qual ele havia sido deposto, e que a autodenominada “Revolução de 1964” assumiu um claro e manifesto sentido político antigetulista/ antipopulista5. Nessa perspectiva, falar de Getúlio era fazer descer goela abaixo dos

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4 Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come

foi publicada em 1966 pela editora Civilização Brasileira. O “bicho” deu início à coleção Teatro Hoje coordenada por Dias Gomes.

5 Sobre o populismo ver WEFFORT, 1978 e

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[...] que acreditou ter visto na peça a materialização de um importante processo de pesquisa experimental, chegando alguns, como Maria Helena Kühner, a divisar nela um caminho para o teatro político ou, como Anatol Rosenfeld, a classificá-la como uma ‘uma das mais brilhantes peças políticas da atualidade’ (COSTA, 1987, p. 103 ).

[...] toda a tragédia histórica do país. E o Brasil de hoje é, sobretudo, o resultado de sua ditadura, de suas contradições aparentemente incompreensíveis, sua habilidade política nem sempre coerente, seu governo oscilando entre o trabalhismo e o fascismo, entre a aceitação do capital estrangeiro e as paralelas campanhas pela liberdade econômica do país. [...] Acredito na possibilidade de comunicação da peça para uma plateia popular, mas para Copacabana Dr. Getúlio [...], certamente não passa de um divertimento esquerdizante e engraçadinho. Culpa, é evidente, da plateia, não do texto, que leva adiante uma pesquisa formal séria e de excelentes resultados. [...] A importância e os acertos conseguidos na pesquisa de uma estrutura teatral popular conferem um valor especial na dramaturgia brasileira, a esta primeira aproximação com a figura de Getúlio Vargas, realizada por dois intelectuais que mais se empenham numa

renovação efetiva do teatro nacional8.

popular à morte de Getúlio”. Nesse sentido, “as duas paixões-e-morte, urdidas na mesma trama carnavalesca e sangrenta, resultam na tapeçaria fabulosa da realidade brasileira” (CALLADO Apud GOMES e GULLAR, 1968, página sem numeração)7.

Para o diretor, ator, jornalista e ensaísta, Fernando Peixoto, Dr. Getúlio resumia

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militares e civis golpistas um tema indigesto, algo que adquiria, mesmo que por vias oblí-quas, um caráter desafiador. Seja como for, o mito não foi enfrentado segundo as exigên-cias do teatro épico. No samba-enredo de Silas de Oliveira e Ferreira Gullar eviden-ciam-se elogios rasgados ao então presiden-te, à “revolução de 1930”, “às leis trabalhistas e à Previdência Social” supostamente cria-das pelo “estadista”6, ou a “Getúlio [que] já coberto de calúnias e de glória/ meteu uma bala no coração: saiu da vida para entrar na história/e daquela carta derradeira o povo fez sua bandeira, na luta pela emancipação” (GOMES e GULLAR, 1968, p. 10-11).

Dr. Getúlio foi recebida com grande entusiasmo pela crítica,

Para Antônio Callado, autor do prefácio da peça publicada em 1968, “[...] a encarnação de Getúlio em Simpatia e o es-forço de Simpatia para representar Getúlio dão uma dignidade inesperada à morte de Simpatia e uma espécie de religiosidade

Em certa medida, a encenação e a montagem diferenciada sobrepunham qual-quer tipo de discussão mais aprofundada sobre o significado dos governos Vargas na sociedade brasileira. Ao contrário, o nacio-nalismo, o denominado “novo desenvolvi-mentismo”, e a criação das leis sociais, se de um lado assustavam os golpistas de 64, de outro, alimentavam os sonhos de boa parte do imaginário de esquerda.

6 Para uma análise crítica envolvendo a

associação estabelecida entre Getúlio Vargas e o mito da doação da legislação trabalhista, ver PARANHOS, 2007.

7 Paulo Francis se perguntava: “existirá coisa

mais ‘popular’ do que Vargas numa Escola de Samba?”. Para o então crítico de teatro, “a concepção dos autores é também um avanço sobre a maioria dos textos de teatro popular” (FRANCIS Apud GOMES e GULLAR, 1968, orelha do livro Dr. Getúlio, sua vida e sua glória).

8 Crítica de Fernando Peixoto publicada no

Correio da Manhã em 3 de outubro de 1968 e republicada em PEIXOTO, 2002, p. 215-217.

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Em 1983, ano do centenário do nascimento de Vargas – quando a ditadura vivia seus estertores, porém ainda subsistia, por mais cambaleante que estivesse –, Dr. Getúlio voltou à cena numa versão intitulada Vargas, estreando em 3 de outubro no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro9. Basicamente é o mesmo tema, a mesma proposta formal, com algumas alterações na coreografia, cenários, figurinos e, principalmente, na concepção cênica de Flávio Rangel e na música de Edu Lobo e Chico Buarque. O samba-enredo da dupla famosa reedita, mais uma vez, velhos argumentos:

Cabe registrar a crítica, de outubro de 1977, de Sábato Magaldi a Vargas:

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9 GOMES, 1992, v. 4, p. 33-35. No elenco

estavam, entre outros, Paulo Gracindo (Getúlio Vargas/Simpatia); Osvaldo Loureiro (Tucão); Isabel Ribeiro (Alzira Vargas/Marlene); Grande Otelo (Autor/Moleque Tião); Milton Gonçalves (Gregório Fortunato/Bola Sete); Jorge Chaia (Bejo Vargas/Quibe); e Zózimo Bulbul (Oswaldo Aranha/Gasolina). Vale lembrar que na época o governador Leonel Brizola entendeu que a peça era omissa em relação ao papel de João Goulart e deliberadamente falaciosa. Criou-se uma polêmica no Rio de Janeiro em torno do espetáculo. Chegou-se até mesmo a aventar a possibilidade de Brizola retirar o apoio financeiro à peça. Mas a melhor defesa da peça foi feita pelo ator Paulo Gracindo (que fez Simpatia e Getúlio nessa montagem) em declaração ao jornal O Globo, 6 de outubro de 1983: “[...] a peça é um hino de amor a Getúlio e dá toda a dimensão da sua grandeza moral” (Apud COSTA, 1987, p. 44).

10 Música de Edu Lobo e Chico Buarque Apud

GOMES, 1992, v. 4, p. 42-43.

Foi o chefe mais amado da nação Desde o sucesso da revolução Liderando os liberais Foi o pai dos mais humildes brasileiros Lutando contra grupos financeiros E altos interesses internacionais Deu início a um tempo de transformações Guiado pelo anseio de justiça E de liberdade social E depois de compelido a se afastar Voltou pelos braços do povo Em campanha triunfal

Abram alas que Gegê vai passar Olha a evolução da história Abram alas pra Gegê desfilar Na memória popular Foi o chefe mais amado da nação A nós ele entregou seu coração Que não largaremos mais Não, pois nossos corações hão de ser nossos A terra, o nosso sangue, os nossos poços O petróleo é nosso, os nossos carnavais Sim, puniu os traidores com o perdão E encheu de brios todo o nosso povo Povo que a ninguém será servil E partindo nos deixou uma lição A Pátria, afinal, ficar livre Ou morrer pelo Brasil Abram alas que Gegê vai passar Olha a evolução da história Abram alas pra Gegê desfilar

Na memória popular10 .

Para a grande parte daqueles que viveram sob a ditadura do Estado Novo e das que sucederam nos últimos anos, é preciso fazer doloroso esforço mental ao ouvir “o chefe mais amado da Nação” a propósito de Vargas, que acaba de estrear no Teatro João Caetano do Rio de Janeiro. O certo é que Dias Gomes e Ferreira Gullar conseguiram escrever um bom texto, Chico Buarque e Edu Lobo compor uma bonita música, e Flávio Rangel realizar, com sólido elenco central e belos cenários de Gianni Ratto e figurinos de Kalma Murtinho, um espetáculo de qualidade. O exercício de isenção comporta ao menos duas

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Na passagem da década de 1950 para a posterior, o teatro épico brechtiano, de certa forma, tornou-se padrão de uma parcela da dramaturgia militante. Todavia, Dias Gomes não produziu uma ruptura mais intensa com os formatos dramáticos, como a que estava presente em outros grupos teatrais formalmente mais radicais, como o Teatro de Arena e posteriormente o CPC e o Opinião. Ele acabou buscando para as suas peças um lugar entre as formas épicas e as dramáticas.

Nesse “entre-lugar”, as peças dele combinaram características de uma e de outra estética teatral, formando, mais uma vez, um híbrido entre o tradicional e o moderno do ponto de vista das vanguardas artísticas da época. Suas peças eram o resultado da combinação de vários estilos dramatúrgicos que, ao coexistirem, permitem várias formas de identificação e de interpretação.

Essa hibridação de matrizes estético-culturais distintas (dramáticas e épicas) fazia parte da perspectiva lukácsiana adotada pelo Comitê Cultural do PCB nos anos 1960, que Dias Gomes integrava11. Nos movimentos artísticos simpáticos ao comunismo, a hibridação ficou evidente como estratégia de estabelecimento de uma comunicação popular mais direta e intensa. Era necessário que os artistas engajados se apropriassem de aspectos da cultura popular (imaginários, valores, crenças, formas simbólicas e materiais, personagens típicos e folclóricos) para poderem, de algum modo, promover a identificação, a conscientização e, pretensamente, a reação política das camadas populares ao capitalismo e a suas formas perversas de dominação.

Para Dias Gomes

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11 Sobre a perspectiva lukácsiana ver

FREDERICO, 1998 e COSTA, 1987.

fases: distinguir o sanguinário ditador, que manchou o país de 1937 até a deposição em 1945, do presidente eleito pelo voto popular e que se matou num gesto de indiscutível grandeza trágica; e acreditar que a figura de Getúlio Vargas estava à margem do “mar de lama” de seu governo constitucional. Para quem guarda um rancor indissociado da tentativa de estupro de sua adolescência, é quase impossível aceitar a imagem simpática proposta pela montagem. Uma coisa, porém, é a ideologia, e outra a arte. [...] O achado de Vargas é a narrativa dos episódios finais da vida do presidente, feita à maneira de enredo de escola de samba, durante os ensaios para o desfile de carnaval. O recurso do metateatro ajudou demais os propósitos dos dramaturgos. [...] Texto, música e dança se conjugam de forma perfeita, sem nenhum hiato. [...] [A montagem] representa um marco na afirmação do musical brasileiro (MAGALDI, 2014, p. 966-967).

[...] mesmo os autores mais importantes da época [anos 1940 e 1950], o Oduvaldo Vianna pai, o Gastão Tojeiro, por exemplo, que eram uma espécie de continuadores de Martins Pena, [...] que buscavam os tipos que eram tidos como brasileiros, [...] na verdade [eram] superficiais. Estes tipos não eram aprofundados e a realidade que se apresentava era uma realidade romântica, com uma abordagem pitoresca, procurando-se o lado pitoresco. . Não se mergulhava dentro do homem,

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Há que se destacar que entre os vários modos de aproximação com o público, um dos mais eficazes certamente era a utilização da música nos espetáculos. Os primeiros indícios de música e ação dramática nas peças de Dias aparecem no Pagador de promessas com a roda de capoeira, depois o tema do Bumba-meu-boi na Revolução dos beatos e o samba do Bola Sete na Invasão. Já as canções de O berço do herói são claramente reveladoras da influência brechtiana: não visam falar apenas ao sentimentalismo fácil ou provocar a exaltação emocional, mas estão organicamente integradas à ação e ao pensamento, fazendo avançar a trama ou comentando-a criticamente. Assim, Brecht contribuía com sua teorização e o exemplo de sua dramaturgia para derrubar os preconceitos em relação ao musical, inclusive do próprio Dias. De fato, a música não precisava, “diluir e abafar a força das idéias” (GOMES, 1992, p. 9).

A mesma posição havia chegado, por volta dessa época, a grande maioria dos autores, encenadores e grupos ou companhias que constituíam a vertente mais atuante e progressista do teatro brasileiro. Dramaturgos como Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Vianninha, Ferreira Gullar, Paulo Pontes, João das Neves, entre tantos outros, “engajaram-se na tentativa de criar um tipo de teatro musical que fosse ao mesmo tempo popular e autenticamente brasileiro” (PARANHOS, 2012, p. 78).

Dr. Getúlio, se por um lado não desconstrói o mito, como citado anteriormente, por outro, abre uma janela pouco explorada pela literatura teatral: o enredo de escola de samba como estrutura básica do gênero dramático-musical, ou seja, um modo próprio de organizar e desenvolver a narrativa dramática, libertando-a da rigidez do encadeamento casual das cenas e atendo-se, brechtianamente, aos momentos capitais e mais expressivos da ação dramática. Neste caso, o texto teatral destina-se explicitamente a comentar a realidade político-social. O centro do debate é o golpe militar de 1964 (João Goulart X Getúlio Vargas). Recurso intencional, explorado habilmente pelos autores, faz com que os personagens da escola de samba, sendo ficcionais, falem sempre em versos rimados, enquanto os personagens históricos falam em prosa coloquial.

Em 1978, a Civilização Brasileira publica As primícias – uma alegoria político-sexual em sete quadros, que permanece ainda inédita nos palcos. Nesta fábula, que recebeu os tratamentos musicais de Denise Emmer, Carlos Lyra e Paulo César Pinheiro, os personagens, Lua e Mara, os servos, se rebelam contra o senhor feudal e suas imposições e determinações. Escrita ainda num período de intensa repressão e de rigorosa censura, a peça combina texto e música que, em algumas situações, parece querer suprir o grito das palavras impronunciáveis e dos sentimentos que eram coagidos a se manterem velados.

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dentro da realidade. Isso só começou a existir na dramaturgia [...] a partir dos anos cinquenta em diante. Até então havia aquele negócio do homem do campo brasileiro, do caipira, valorizado, dando lições ao homem da cidade, aquelas coisas que caracterizam um certo tipo de teatro dos anos trinta, vinte, por aí. Mas isso não ia ao fundo das coisas, não se buscava a verdade do homem brasileiro dentro da sua realidade, dentro da sociedade em que vive, seus conflitos, sua forma de ser e de pensar, com os seus desejos e pretensões. Não se perguntava sobre os problemas deste homem, sobre quem o esmaga. Essas perguntas não eram feitas de modo algum. Abordava-se apenas o pitoresco da coisa (DIAS GOMES, 1981, p. 38 - grifos meus).

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A volta aos palcos se dará com a comédia musical O rei de Ramos em 11 de março de 1979, inaugurando o novo Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, sob a direção de Flávio Rangel e música de Chico Buarque e Francis Hime com extraordinário sucesso de público, ao lado de a Ópera do malandro, escrita por Chico Buarque e com direção de Luís Antônio Martinez Corrêa. A peça conta a história de uma disputa entre contraventores, Mirandão e Brilhantina, rivais ferozes. Os bicheiros esbarram no amor inesperado de Taís, filha de Mirandão, e Marco, filho de Brilhantina.

Examinar esses musicais, de certa forma, equivale a revisitar o momento vivido no Brasil, que essas peças denunciam e subvertem, enquanto nos possibilitam uma aproximação com estilos narrativos diferenciados de representação do poder institucionalizado. Nesse sentido, entendo que o discurso musical afeta o espectador não só por meio dos parâmetros sonoros, mas igualmente pela sua capacidade de sugerir imagens e de inventar espaços e lugares ao criar figurações cênico-dramáticas.

Por fim, entendo como pertinente a discussão que envolve o contraponto entre as linguagens musicais e plásticas na composição da polifonia intrínseca do teatro de Dias Gomes. Disso decorre, mais especificamente, o interesse em analisar a conjunção da música e da obra teatral como “expressões de engajamento” (BENTLEY, 1969, p. 86) e de intervenção sonora, que fluíam nos palcos e para fora deles nos tempos difíceis da ditadura militar brasileira, que ainda mostraria fôlego para perdurar, com maior ou menor força, por longos 21 anos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

Dias Gomes, “Dr. Getúlio”, and musical theater: engagement, sonorities, and staging in Brazil under the military dictatorship

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This article addresses the political importance of musical theater in Dias Gomes’ work. Based on Dr. Getúlio, sua vida e sua glória (1968) (Dr. Getúlio, his life and his glory)/Vargas (1983), I stress the mix of music, politically engaged dramaturgy, and staging as a fundamental characteristic. Discussing this musical means revisiting in a way the moment experienced by Brazil that this work denounces and subverts, and it allows a parallel with different narrative styles that represent the institutionalized power.

KEYWORDS

Dias Gomes; musical theater; engagement

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