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Controvérsias Meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore

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Academic year: 2021

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Gustavo Leal Toledo

Controvérsias Meméticas: a ciência dos

memes e o darwinismo universal em

Dawkins, Dennett e Blackmore

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ILOSOFIA

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

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Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

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Gustavo Leal Toledo

Controvérsias Meméticas:

a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore

Tese de Doutorado

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

Orientador: Oswaldo Chateaubriand Filho

Volume I

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Gustavo Leal Toledo

Controvérsias Meméticas:

a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovado pela Comissão Examinadora abaixo assinada:

Prof. Oswaldo Chateaubriand Filho

Orientador Departamento de Filosofia -PUC-Rio

Prof. Luiz Carlos Pinheiro Dias Pereira

Departamento de Filosofia - PUC-Rio

Prof. João de Fernandes Teixeira

Universidade Federal de São Carlos Profa. Karla de Almeida Chediak Universidade do Estado do Rio de Janeiro Prof. Ricardo Francisco Waizbort

Fundação Oswaldo Cruz

Paulo Fernando Carneiro de Andrade

Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio

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parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Gustavo Leal Toledo

Graduou-se em Filosofia na UERJ (2002) com a monografia “As Críticas a Filosofia Dualista da Mente”. Cursou mestrado em Filosofia na PUC-Rio (2003-2005), obtendo título de mestre com a dissertação “O Argumento dos Zumbis na Filosofia da Mente: são zumbis físicos logicamente possíveis?”. Fez o doutorado na mesma instituição, onde obteve o título com a presente tese. Foi bolsista do CNPq nos primeiros dois anos da tese e recebeu a Bolsa Nota 10 da FAPERj nos últimos 2 anos. Participou e organizou diversos congressos, seminários e simpósios nas mais variadas áreas da Filosofia, tendo publicado no Brasil e no exterior. Atualmente é professor Adjunto da UFSJ.

Ficha Catalográfica

CDD: 100

Toledo, Gustavo Leal

Controvérsias meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore / Gustavo Leal Toledo; orientador: Oswaldo Chateaubriand Filho. – 2009.

2 v. : il. ; 30 cm

Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Inclui bibliografia

1. Filosofia – Teses. 2. Memes. 3. Memética. 4. Darwinismo universal. 5. Filosofia da biologia. 6. Cultura. 7. Filosofia da ciência. I. Dawkins, Richard. II. Dennett, Daniel. III. Blackmore, Susan. IV. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. V. Título.

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Para minha esposa Luana, meus pais, Elson e Regina, e meus memes.

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Agradeço ao meu ex-orientador Sergio L. de C. Fernandes que me ensinou a ser o que sou. Ele provavelmente não concordaria com nada nesta tese, mas mesmo assim devo tudo o que está escrito aqui a ele.

Agradeço ao meu orientador Oswaldo Chateaubriand, que me abrigou quando Sergio se aposentou e que tinha o direto de mudar todo o meu modo de trabalho, mas decidiu respeitar e confiar em alguém que ele praticamente nem conhecia.

Aos professores da banca, pela leitura paciente de uma Tese que ficou com mais do que o dobro do tamanho que ela teria originalmente.

A todos no Departamento de Filosofia da PUC-Rio, professores e funcionários, pela atenção, esforço e cordialidade que sempre demonstraram.

À Luana Leal pela paciência, amor, carinho, pelas leituras e correções.

Aos meus pais, Elson e Regina, pelo total apoio na minha vida e pelas correções.

Aos meus amigos pelas dicas, pelo carinho e pelas conversas. Em especial à Raquel Anna Sapunaru pelas leituras, e a Roger Oleniski, pelas leituras e discussões.

Aos meus memes por terem feito todo o trabalho sem me importunar com o processo

Agradeço ao Cnpq pela bolsa concedida durante dois anos, que possibilitou a aquisição do material necessário para a pesquisa.

Agradeço à Faperj, pela bolsa do programa Bolsa Nota 10, concedida nos dois últimos anos da Tese.

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Gustavo Leal Toledo; Oswaldo Chateaubriand Filho. Controvérsias Meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore. Rio de Janeiro, 2009. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O conceito de memes surgiu em 1976 com Richard Dawkins como um análogo cultural dos genes. Deveria ser possível estudar a cultura através do processo de evolução por seleção natural de memes, ou seja, de comportamentos, idéias e conceitos. O filósofo Daniel Dennett utilizou tal conceito como central em sua teoria da consciência e pela primeira vez divulgou para o grande público a possibilidade de uma ciência dos memes chamada "memética". A pesquisadora Susan Blackmore, 1999, foi quem mais se aproximou de uma defesa completa de tal teoria. No entanto, a memética sofreu pesadas críticas e ainda não se constituiu como uma ciência, com métodos e uma base empírica bem definida. A presente tese visa entrar nesta discussão, analisando todas as principais críticas que foram feitas com o objetivo de analisar se a memética poderia de fato ser uma ciência e também que tipo de ciência ela seria.

Palavras-chave

Memes, Memética, Darwinismo Universal, Filosofia da Biologia, Cultura, Filosofia da Ciência, Richard Dawkins, Daniel Dennett, Susan Blackmore

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Gustavo Leal Toledo; Oswaldo Chateaubriand. Memetic Controversies: the science of memes and the Universal Darwinism of Dawkins, Dennett and Blackmore. Rio de Janeiro, 2009. Phd Thesis – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The concept of memes was created by Richard Dawkins in 1976 as an analogue of genes. It suggests the possibility of studying culture through a process of evolution through natural selection of memes, that is, of behaviors, ideas and concepts. The concept became central for the philosopher Daniel Dennett, who employed it in his theory of consciousness and made the possibility of a science of memes called “memetics” known to the general public. Researcher Susan Blackmore, 1999, came very close to a complete defense of such theory. However, memetics was the target of heavy criticism, and could still not establish itself as a science, with specific methods and a well-defined empirical base. The present work aims to engage in this discussion, examining the main critics and seeking to establish whether memetics could in fact be a science, and, if so, what kind of science it would be.

Keywords

Memes, Memetic, Universal Darwinism, Philosophy of Biology, Culture, Philosophy of Science, Richard Dawkins, Daniel Dennett, Susan Blackmore.

(10)

Introdução...13

1- Excursões pela Biologia Evolutiva...26

1.1 - Um Esboço de uma Teoria...32

1.2 - O Esqueleto da Evolução: o darwinismo universal...42

1.3 - A Carne da Evolução...50

1.3.1 - Seleção Artificial e Seleção Inconsciente...51

1.3.2 - Espécies-Anel e Poliploidia...53

1.3.3 - Uniformitarianismo e Registro Fóssil...56

1.3.4 - Homologias e Analogias...58

1.4 - Darwin contra Lamarck?...61

1.5 - Evolução Epigenética: um pouco mais além dos genes...65

1.6 - Mendel contra Darwin?...71

1.7 - “Uma vez tendo galgado a escada mendeliana, é preciso jogá-la fora”?...75

1.8 - Evo-Devo...79

1.9 - Diversidade e Variação...82

1.10 - Cladismo: criando histórias...90

1.11 - Juntos Somos Um...96

1.12 - Quem Seleciona o Quê?...102

1.12.1 - Seleção de Espécies...104 1.12.2 - Seleção de Grupo...106 1.12.3 - Seleção de Parentesco...107 1.12.4 - Seleção de Indivíduo...109 1.12.5 - Seleção de Genes...111 1.13 - O Fim do Passeio...115

2- Dawkins com Pitadas de Gould...116

3- Memes e Memética, um Início...138

3.1 - Richard Dawkins e o Nascimento dos Memes...140

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4 – Naturalizando o Comportamento e a Cultura...191 4.1 - Etologia...193 4.2 - Fenótipo Estendido...195 4.3 - Sociobiologia...198 4.4 - Psicologia Evolutiva...203 4.5 - Ecologia Comportamental...210 4.6 - Efeito Baldwin...214 4.7 - Herança Epigenética...218 4.8 - Darwinismo Social...220

4.9 - Teorias da Co-evolução: Fedelman e Cavalli-Sforza, Richerson e Boyd...223

4.10 - Final...238

5- Antropologia: amor e ódio...240

5.1 - Você Tem Sede de Quê?...246

5.2 - Cultura...249

5.3 - Antropologia e Memética: um breve diálogo...253

5.4 - Paleontologia: o nascimento do homem e do meme...262

6 - Todos Juntos Somos Fortes...269

6.1 - Lingüística Histórica...271

6.2 - Quanto Mais, Melhor: economia, história, publicidade e propaganda...288

7 - Tentando em Frente aos Neurônios-Espelho...292

8 - Imitação...302

8.1 - Quem Imita, Quando Imita, o Que Imita?...304

9 – Filosofia da Ciência, um Sobrevôo sobre o Labirinto: exceções, palaetiologia e comunidade ...320

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9.3 - O Pensamento Populacional...336

9.4 - Falsificando Popper...343

9.5 - Popper na Biologia...348

9.6 - Ciências Históricas...352

9.7 - Quanto Mais, Melhor!...358

9.8 - Uma Mão Corrige a outra: Willian Whewell e a Palaetiologia...361

10 - Uma Análise Crítica das Críticas...367

10.1 - Dan Sperber e a Comunicação...370

10.2 - Até Onde Vai a Analogia?...381

10.3 - Problema da Unidade... 387

10.4 - Problema Ontológico...393

10.5 - Problema da Mistura...396

10.6 - Problema da Homologia...402

10.7 - Problema da Velocidade e da Fidelidade...405

10.8 - Problema do Genótipo e Fenótipo do Meme...413

10.9 - Lamarckismo: ser ou não ser, eis a questão...417

10.10 - Problema do Sujeito do Meme e da Criatividade...420

Conclusão...428

Bibliografia...439

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Tabela 1: memes na internet...156

Tabela 2: genealogia de um poema...227

Figura 1: história do algarismo romano para 50...280

Figura 2: história do algarismo romano para 500...280

Figura 3: história do algarismo romano para 1000...280

Figura 4: história dos algarismos árabes 5, 6, 7, 8 e 9...281

Tabela 3: Lei de Grimm...282

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Saímos de casa para comprar uma calça porque precisamos estar bem vestidos para o trabalho, mas por que é aquela calça que nos faz ficar bem vestidos e não qualquer outra? Por que precisamos ficar bem vestidos no trabalho? Por que precisamos usar calças? Ou pior, cuecas! Como é possível que coisas tão fúteis como calças, brincos, caixas de som, grampeadores, piscinas, móbiles e dicionários, viraram necessidades? Por que eles parecem tão vantajosos para nós, mesmo quando ficamos deprimidos, angustiados, ansiosos se não conseguimos adquiri-los? Por que comportamentos tão desnecessários como rezar, comprar, jogar peteca, casar e defender teses de doutorado nos parecem ser a coisa mais importante que podemos fazer com nossas vidas?

Compramos sem saber o verdadeiro motivo pelo qual compramos, estudamos sem saber o verdadeiro motivo pelo qual estudamos. Todos nossos costumes, nossas idéias, nossas crenças, todas as palavras que usamos até mesmo para pensar, tirando raríssimas exceções, nos são anteriores e nos foram passadas por outros. Mas mesmo assim elas nos parecem tão próximas, tão íntimas, que é através delas que nos definimos e é por elas que vivemos e até mesmo morremos. Passamos nossa vida inteira procurando um carro mais novo, uma casa melhor, um título acadêmico, um campeonato. Somos nossa cultura e tudo indica que é ela que está no controle. Mas simplesmente dizer que a cultura nos supera, que é anterior e mais forte do que nós, uma super-estrutura, não é o suficiente, pois ela muda, e muda constantemente. Novos comportamentos e novos produtos surgem e também desaparecem todos os dias. Este processo de mudança parece ser largamente devido ao ser humano. Quando tratada em seu desenvolvimento a cultura parece dever tudo ao ser humano e ser submissa a ele. É ele que inventa, divulga, vende, ensina, compra, aprende, ou então desiste de comprar ou esquece. É neste momento que surge a questão que nos leva ao meme: como se dá o processo de desenvolvimento e evolução da cultura?

Tratar este processo como sendo de responsabilidade dos homens, como se eles é que decidissem o desenvolvimento da cultura, iria contra tudo o que acabamos de ver: a cultura é anterior até mesmo à capacidade de pensar do

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homem. Afinal de contas, não houve um homem que decidiu qual calça é mais formal, que decidiu qual música nos soa melhor, qual deus devemos adorar. Os costumes mudam, mas não mudam por uma decisão consciente, um decreto de um sujeito livre. Mesmo naqueles poucos casos onde de fato houve um decreto, como uma lei que obriga um determinado costume, ainda assim restam as perguntas: por que aceitamos cumprir tal decreto? Poderíamos ignorá-lo, mesmo sofrendo as conseqüências. Mas, principalmente, por que este homem decidiu decretar este costume e não qualquer outro? Mesmo neste raro caso onde um traço cultural muda, literalmente, por um decreto de alguém, ainda assim entendemos que este traço lhe é anterior e, de certa maneira, superior.

O que nos faz escolher um programa de televisão e não o outro, um livro e não o outro, uma calça e não a outra? A resposta imediata é “porque gostamos mais deste do que do outro”. Mas isso não responde coisa alguma, pois a nossa capacidade de gostar precisa, ela mesma, de uma explicação. O conceito de meme surge aqui para dizer algo bem simples: a programação da televisão muda tendo em vista uma melhor adequação ao nosso gosto. O que parece óbvio é, na verdade, um modo novo de explicar a mudança cultural. Não somos nós o motor das mudanças culturais, não decidimos de antemão o que vai mudar, o que será aceito e o que será esquecido. A cultura muda. Um comportamento, um conceito, uma idéia de uma pessoa nunca é idêntica ao de outra pessoa. A variação é a regra. No entanto, a cultura é passada de pessoa para pessoa, herdamos nossa cultura, incluindo suas variações. Dentre estas variações, eventualmente surgem novas idéias, novos comportamentos, que se adequam melhor à nossa estrutura cognitiva, que gostamos mais, achamos mais bonitos, mais interessantes, mais úteis, mais agradáveis, mais fáceis de entender e de lembrar. Estas variações serão mais facilmente passadas, enquanto variações ruins dificilmente se propagarão. Tais variações poderão sofrer novas variações e assim por diante, até que um dia elas estejam tão diferentes que será quase impossível saber de onde elas surgiram. Isso significa que se queremos perguntar qual o motivo de um determinado traço cultural, devemos responder dando a narrativa histórica de seu desenvolvimento, que não será nada mais do que a história de como as variações que surgiram durante seu desenvolvimento se mostraram mais adaptadas à mente de seus propagadores. Tais traços culturais foram chamados de memes.

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O conceito de “meme” foi criado por Richard Dawkins no último capítulo de seu famoso livro O Gene Egoísta (1976). Um meme seria o análogo cultural do gene, ou seja, idéias, conceitos, comportamentos que passariam de pessoa para pessoa através da imitação e de outras formas de aprendizado social. Toda a cultura, todos os comportamentos sociais, todas as idéias e teorias, todo comportamento não geneticamente transmitido, tudo que uma pessoa pode imitar ou aprender com uma outra pessoa é um meme. Na definição de Susan Blackmore, considerada por Richard Dawkins e Daniel Dennett como a principal defensora dos memes, “memes são instruções para realizar comportamentos, armazenadas no cérebro (ou em outros objetos) e passadas adiante por imitação” (Blackmore, 1999, p.17. Minha tradução1).

O principal “ambiente” dos memes seriam as mentes, em particular a mente dos seres humanos, pois poucos animais são capazes de aprendizado cultural. Ficaria em aberto a questão se os memes poderiam também estar em livros, cds, computadores etc. ou se estes casos seriam somente o efeito dos memes que habitam as mentes. Como há um número limitado de mentes e como em cada mente há um espaço limitado, não só no que diz respeito ao controle do comportamento, mas também no que diz respeito à memória, os memes competiriam para “infectar” as mentes. Competição aqui significa somente que alguns memes seriam mais eficazes em se instalar do que outros, ou seja, algumas idéias seriam mais comuns do que outras. Estes memes seriam mais eficazes porque estariam melhor adaptados ao seu ambiente, em outras palavras, dada a mente de uma pessoa, alguns comportamentos, idéias e conceitos são mais prováveis de se fixarem simplesmente porque eles se adaptam melhor àquela pessoa do que os outros memes competidores. O que define a adaptação de um meme a uma mente particular seriam as estruturas cognitivas desta pessoa, bem como sua relação com os outros memes que já estão lá. Uma vez fixado, esta pessoa se comportaria de modo a passar este meme para outros.

Durante todo este processo alguns memes podem sofrer modificações, que podem torná-los ainda melhor adaptados à mente de outras pessoas e, portanto,

1 As citações em inglês foram traduzidas para o português com o intuito de permitir a leitura do

presente trabalho para um público maior. No entanto, foi feita uma tradução livre. Para aqueles que lêem inglês, recomendamos que leiam as próprias citações em inglês que estão organizadas por capítulo no Anexo I.

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mais eficazes em se replicar. Os memes mais eficazes em fazer cópias de si mesmos se tornarão mais comuns, os menos eficazes tenderão a desaparecer. Eventualmente estes memes mais eficazes poderão sofrer novas mutações que os tornem ainda mais eficazes. Este processo onde mutações tornam algo mais eficaz de se replicar é o que se convencionou chamar de “seleção natural”. Já este outro processo no qual as mutações vão se acumulando é o que se chama de “evolução”. Teríamos, então, uma evolução dos memes por seleção natural assim como acontece com os genes.

Deste modo, a cultura seria tratada como se desenvolvendo e evoluindo por conta própria. A vontade, os desejos, as necessidades e as capacidades dos seres humanos ao invés de comandarem o desenvolvimento e a mudança cultural seriam o “pano de fundo”, o ambiente que cria a pressão seletiva para a cultura. Nas palavras de Dawkins “o que não levamos em conta anteriormente é que uma característica cultural poderá ter evoluído da maneira como o fez simplesmente porque é vantajoso para ela própria” (Dawkins, 2001, p. 221) 2.

Ao contrário de ser uma proposta contra-intuitiva ela é, na verdade, bastante comum. Em todos os ramos da arte, por exemplo, os artistas costumam tratar suas criações como tendo vida própria e tratam a si mesmos como sendo o meio pelo qual elas surgem. É comum que eles digam que não sabem como sua arte surge, ela simplesmente surge e eles lhes dão vazão. Mas não precisamos ficar restritos às artes. Em um mundo globalizado diariamente entramos em contato, seja pessoalmente ou através de noticiários, com pessoas que seguem determinadas culturas que nos parecem comandá-las. Religiões extremistas parecem estar mais no comando do que a vontade pessoal, levando até ao suicídio, algumas vezes coletivo. Nacionalismos levam ao ódio e à guerra. Até mesmo pessoas que seguem religiões mais abertas parecem não saber o motivo pelo qual seguem determinadas regras. Mas de maneira nenhuma devemos ficar restritos às religiões. As propagandas que ocupam um imenso espaço em todos os meios de comunicação não têm o intuito de informar ou desinformar algo sobre um determinado produto, mas sim de determinar nosso comportamento. Elas não estão lá em nosso benefício, mas em uma forte ligação do benefício do produto e delas mesmas.

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A capacidade de explicar a mudança cultural através de histórias que mostrem a adaptabilidade seqüencial e gradativa de um de seus traços às estruturas cognitivas humanas é o que uma ciência dos memes deve fazer. Tal ciência foi chamada de memética e mesmo antes de surgir já se encontra sobre forte escrutínio. Escrutínio esse que, como veremos, é descabido por várias razões diferentes.

Duas são as principais diferenças entre a memética e as outras abordagens da cultura. Em primeiro lugar, uma ciência do estudo dos memes poderia se basear nos métodos da genética, da biologia evolutiva e da epidemiologia para desenvolver um verdadeiro programa rigoroso de pesquisa da cultura humana. Em segundo lugar, a memética nos permite estudar o desenvolvimento da cultura sem um questionável “sujeito da escolha” capaz de “decidir” que comportamento seguir ou que idéia adotar. Tal sujeito seria, na melhor das hipóteses, só mais uma parte do ambiente dos memes.

A memética seria uma ciência capaz de aplicar a perspectiva do meme. Tal perspectiva é semelhante às narrativas históricas adaptacionistas comuns na biologia evolutiva. Ao estudar um meme deve-se mostrar o que o torna um bom replicador, ou seja, o que o faz adaptado a uma determinada mente. É nisto que a memética se diferencia de outras teorias que normalmente são confundidas com ela, a saber, o Darwinismo Social, a Sociobiologia, a Psicologia Evolutiva e o chamado efeito Baldwin. No entanto, a única relação que a memética tem com estas teorias é o fato de que todas elas estão incluídas dentro do panorama geral do Darwinismo Universal, que visa aplicar a estrutura da seleção natural a outros campos fora da biologia ou à biologia de outros planetas. Mas em muitos casos a memética é até mesmo oposta a estas teorias! O fato é que o estudo dos memes não pode ser considerado mais uma versão do determinismo genético, muito pelo contrário, a memética é oposta ao determinismo genético justamente por mostrar que muitos comportamentos são passados por transmissão cultural e não pelos genes. A perspectiva do meme significa que são os memes, assim como os genes, que querem3 ser passados e não as pessoas que os querem passar.

3 É claro que está sendo usado aqui o que Dennett chamaria de Postura Intencional: os memes e os

genes não querem realmente nada, apenas se reproduzem com maior ou menor eficácia, mas podemos tratá-los como se quisessem. Durante todo este trabalho esta “postura” será utilizada, pois

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Como era de se esperar, a memética sofreu várias críticas que a impediram de se desenvolver, pois um estudioso desta área tem sempre que responder a uma infinidade de questões para justificar o seu trabalho, ao invés de fazer como um pesquisador comum e simplesmente trabalhar. Quase não há trabalho empírico que se auto-intitule como memética e assim será enquanto os defensores desta área acreditarem que há muito trabalho conceitual a fazer. Dentre as principais críticas à memética podemos citar as seguintes.

Entre as críticas específicas, uma das mais comuns é que não sabemos a ontologia dos memes, significando que não sabemos ainda do que eles são feitos, qual é o seu substrato físico. Outra também bastante comum é que não sabemos qual é o critério de unidade dos memes. Seria, por exemplo, uma música só um meme ou um conjunto de memes? Outra crítica diretamente relacionada a esta é a que diz que os memes se misturam de modo que os torna relevantemente diferente dos genes. Também temos o problema de se a memética é realmente darwinista ou é, na verdade, lamarckista. Uma das críticas mais importantes, e que causa boa parte da repulsa ao conceito de meme, é sobre o papel do sujeito livre na evolução cultural.

Além destas críticas, existem problemas levantados pelos próprios defensores da memética ainda em busca de respostas. Há a discussão de se memes podem ser passados só por imitação ou também por outras formas de aprendizado social. Há o problema da velocidade da mudança cultural ser exageradamente rápida de modo a comprometer a fidelidade da transmissão e, assim, impedir a evolução. Há o problema de como distinguir se traços culturais semelhantes são cópias um do outro ou desenvolvimentos independentes.

Há ainda críticas mais gerais, como a da cientificidade de uma disciplina histórica da cultura. Pode a memética ser realmente uma ciência? Que tipo de ciência ela seria? A memética teria uma base empírica ou é só uma análise conceitual? Além disso, há o problema da relação da memética com as ciências humanas que sentiram sua área invadida. Qual seria a relação da memética com estas diversas áreas? Sem contar com o forte preconceito que tais áreas, mais especificamente a antropologia, têm com qualquer tentativa darwinista de trabalhar a cultura.

ela é mais simples e mais intuitiva, mas a linguagem mentalista para tratar de genes e memes não deve ser tomada literalmente.

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Focar em só uma crítica destas, mesmo em só um conjunto, seria permitir que a memética permanecesse estagnada. Se bem entendidas, todas estas críticas estão intimamente ligadas dentro da questão “como é possível uma ciência dos memes?”. Não é possível nem mesmo chegar nesta questão mais geral sem abordar algumas destas questões particulares que estão em seu caminho. Por este motivo, o principal trabalho que deve ser feito é uma limpeza geral no terreno conceitual para permitir que a memética respire e só então possa mostrar se tem potencial ou não. A questão aqui não é que devemos resolver todos estes problemas, mas apenas afastá-los o suficiente para que a pesquisa empírica seja iniciada, e só aí poderemos analisar se a memética tem futuro como uma ciência da cultura. Só será possível discutir se a memética é uma ciência ou não quando ela tiver abandonado as questões conceituais, que serão analisadas aqui, e começado a tratar de questões empíricas.

A presente tese visa apresentar a memética, levantando todas as suas principais questões e, principalmente, inserindo-a dentro de um panorama mais amplo ao qual ela pertence. Por este motivo grande parte do trabalho será dedicado a apresentar temas que são importantes para a memética, seja porque fazem parte de seu fundamento, seja porque deram motivações às críticas.

Como a memética pretende ser uma ciência darwinista da cultura, inseri-la dentro de suas discussões exige uma abordagem multidisciplinar que vai desde a biologia até a antropologia cultural, utilizando a capacidade crítica da filosofia como única disciplina capaz de ligar pontos tão diversos em um todo coeso. Para possibilitar uma boa compreensão da memética é preciso compreender bem diversas outras teorias que serão, na medida do possível, explicadas aqui.

Para permitir toda esta longa caminhada, iniciaremos com um capítulo dedicado exclusivamente à biologia. Infelizmente hoje, 150 anos após a publicação da Origem das Espécies por Charles Darwin, ainda é preciso explicar a teoria da evolução e pior, mostrar que ela está correta! Veremos que talvez o motivo que faz tal teoria ser tão mal ensinada é a sua própria simplicidade estrutural. Já o motivo que faz com que seja tão atacada é porque ela mostrou um modo onde podemos ter projeto sem a necessidade de um projetista. Assim sendo, tal capítulo se iniciará por uma breve análise abstrata e conceitual da teoria da evolução por seleção natural, que pretende deixar mais clara não só a sua simplicidade, mas também a própria base do que se convencionou chamar de

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Darwinismo Universal. No entanto, dada a abragência deste tema só será possível fazer uma análise mais geral.

Feito isso, será necessário mostrar, contra os críticos, que o darwinismo não se resume a uma análise abstrata, mas que tem forte conteúdo empírico e que já foi provado das mais diversas maneiras. Já de posse de conceitos da teoria da evolução, poderemos analisar vários assuntos da biologia que nunca seriam entendidos sem ela. Será apresentado um pouco da história da biologia, assim como alguns desenvolvimentos recentes. Incluem-se aí análises de áreas como a biologia evolutiva do desenvolvimento, conhecida como evo-devo, as teorias da herança epigenética, alguns avanços da biologia molecular etc. Dado este arcabouço teórico, poderemos tratar de questões mais gerais, como qual é a unidade de seleção (genes, indivíduos, parentesco, grupo ou espécies)? Todas estas questões são bastante complexas e exigem um aprofundamento que não será dado aqui. Apenas nos interessará conhecer o suficiente para que possamos fazer uma análise da memética e de suas críticas.

Uma vez de posse de alguns conceitos da biologia, será possível entrar em questões que se fizeram bastante presentes no debate atual por causa da popularidade de dois grande biólogos: Richard Dawkins e Stephen Jay Gould. Este será o tópico do segundo capítulo. O fato é que eles travaram publicamente um grande debate sobre determinadas questões internas da biologia. Acontece que Gould gostava de retratar a si mesmo como crítico do darwinismo adaptacionista e como oposto a Dawkins, então tal debate tomou proporções descabidas. Mas foi Dawkins quem criou o conceito de meme e Gould era um crítico dos “exageros do darwinismo” dentre os quais inclui o darwinismo universal que ele chamou, pejorativamente, de ultradarwinismo. Mostraremos que, ao invés de tentar escolher um lado, a melhor resposta à Gould é perceber que não há uma verdadeira oposição aqui. O que Gould propõe é perfeitamente compreensível dentro da ortodoxia darwinista. Deve ficar claro de antemão que Gould nunca foi um crítico da teoria da evolução por seleção natural, ele apenas defendia que alguns processos ainda não tinham tido a sua devida importância reconhecida, e muitas vezes ele estava correto em relação a isso.

Cabe ressaltar que muitos dos problemas filosóficos levantados pela biologia serão apresentados, mas não serão propriamente resolvidos, no máximo algumas indicações serão dadas. O motivo é que a biologia serve aqui apenas como base

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teórica para entendermos a memética e, principalmente, para responder algumas críticas que foram direcionadas a esta. Por este motivo, embora boa parte do presente trabalho se ocupe da biologia, ela não é o alvo do que está sendo buscado aqui.

Só depois de uma melhor compreensão da teoria da evolução, e de algumas questões mais específicas da biologia, será possível entender, no terceiro capítulo, o conceito de meme, bem como entender como deveria proceder a memética. Desde o surgimento do conceito de meme muito material foi publicado sobre este assunto. Infelizmente, com a grande quantidade veio também a baixa qualidade. Grande parte dos autores não parecem muito preocupados em entender a memética e ficam somente maravilhados com a idéia dos seres humanos como robôs comandados por memes perigosos. Há algo de fascinante na capacidade de comandar a mente alheia. Para fugir desta gama de compreensões equivocadas, o capítulo sobre memética focará somente nos seus três principais autores, que servirão de referência para todos os outros: Richard Dawkins, que foi o criador do conceito de meme; Daniel Dennett, que desenvolveu melhor este conceito, dando-lhe toda sua fundamentação filosófica e discutindo pela primeira vez a memética; e por último, Susan Blackmore, que em seu livro The Meme Machine (1999) fez a análise mais desenvolvida que temos da memética até agora. Será feita uma análise crítica de tais autores, mostrando que nem mesmo em Blackmore temos uma memética bem desenvolvida. Outros autores que trataram sobre os memes aparecerão em outros capítulos, mas só na medida em que forem necessários. Nenhum deles faz, junto destes três, a base para o que está sendo trabalhado aqui, com a possível exceção do filósofo da biologia David Hull, que também fez um bom desenvolvimento sobre este tema.

Uma vez explicada a memética é comum que muita confusão surja, principalmente entre críticos de outras abordagens darwinistas da cultura que insistem, erroneamente, em assimilar a memética a algumas outras teorias que lhe antecederam. Para deixar clara a completa novidade que é a memética em relação a estas novas áreas, o quarto capítulo terá como tema distingui-las todas entre si. As teorias que serão apresentadas são as seguintes: etologia, fenótipo estendido, sociobiologia, psicologia evolutiva, ecologia comportamental, efeito Baldwin, herança epigenética, darwinismo social e teorias da co-evolução entre genes e cultura. Dada esta enorme lista fica claro que não será possível uma visão

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aprofundada de seus problemas. Tais teorias serão apresentadas, mas visando somente distingui-las da memética e nada mais. Ficará claro que a grande maioria delas não é memética por tratar a cultura como geneticamente direcionada. No entanto, como uma espécie de efeito colateral de distinguir estas teorias da memética, ficará claro também que muitas delas podem contribuir de diversas formas para o desenvolvimento desta. A psicologia evolutiva, por exemplo, nos auxilia na compreensão do ambiente do meme. Já a ecologia comportamental está fazendo testes rigorosos que mostram como a imitação pode subjugar o instinto no comando de determinados comportamentos. Talvez o mais interessante será ver que as teorias da co-evolução como propostas por Cavalli-Sforza e Feldman, e por Richerson e Boyd, podem ser entendidas como sendo memética.

Tendo deixado claro o que a memética é e o que ela não é, será necessário tratar de alguns conceitos e começar a levantar algumas críticas que ela tem que responder. Dois dos conceitos mais importantes para a memética são imitação e

cultura, este último será tratado no quinto capítulo. Além de levantar a origem de

tal conceito, será necessário entrar na complicada tarefa de defini-lo. Como ele já é tratado pela antropologia, e como a memética pretende estudar praticamente o mesmo objeto que esta área estuda, este capítulo será dedicado a ela. Analisaremos alguns poucos conceitos de cultura na busca por algum que possa ser usado pela memética, também entraremos no embate que normalmente se dá entre a antropologia e o darwinismo, procurando a sua origem e seus mal-entendidos. Feito isso, tentaremos amenizar tal debate procurando conceitos da própria antropologia que tenham seus correlatos na memética ou que possam ser usados nesta, com o intuito de iniciar um diálogo entre estas duas áreas. Finalmente sairemos da antropologia cultural para tratar da antropologia física, especificamente da paleontologia, pois o estudo da evolução do ser humano pode nos mostrar como a cultura foi decisiva na história evolutiva que nos levou ao

Homo sapiens.

Uma vez apresentado o fato de que a memética se beneficia dos conceitos e descobertas da antropologia, veremos que ela pode se beneficiar também de muitas outras áreas do conhecimento, algumas mais antigas do que o próprio darwinismo. Neste sentido, o sexto capítulo focará em uma área específica que é a lingüística, mais propriamente a lingüística histórica, ou diacrônica. Veremos que muitos dos trabalhos desta área, incluindo suas famosas leis da mudança

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lingüística, e a sua datação pela glotocronologia, podem ser considerados como muito similares ao que a memética pretende fazer. Neste sentido ela não só tem a aprender com esta área, mas pode, no futuro, tratar a lingüística como sendo uma parte de si mesma. Na verdade, não só a lingüística e a antropologia têm fortes ligações com a memética, mas também a economia, a história, a sociologia, o design e a publicidade e propaganda etc. A memética pode jogar um novo olhar sobre todas estas áreas, mostrando que na verdade elas não são distintas e que uma tem muito a se beneficiar da outra. Assim, a memética poderia encontrar aqui não só estudos já desenvolvidos que poderiam ser entendidos à sua luz, mas também a sua base empírica.

No entanto, quando se fala em base empírica da memética os críticos logo lembram que não sabemos qual é o substrato físico dos memes. Veremos várias respostas a este problema no último capítulo, mas antes mesmo disso será apresentado, no sétimo capítulo, um dos mais recentes e revolucionários estudos das neurociências: o sistema espelho. Tal sistema é formado pelos neurônios-espelho que, ao que tudo indica, são a base da nossa capacidade de imitar e de compreender os outros. Deste modo, seriam de extrema relevância para o estudo da memética. Os neurônios-espelho poderiam ser a mais nova base empírica da memética e poderiam explicar porque alguns comportamentos são mais fáceis de imitar do que outros.

De posse da estrutura neurológica da imitação será possível estudar, no oitavo capítulo, este outro conceito tão fundamental para a memética. Além de suas definições, entraremos nas questões mais propriamente meméticas. Discutiremos principalmente quais são as diferentes formas de aprendizado e quais animais são capazes de transmitir cultura. Além disso, uma das discussões mais importantes para esta área é se os memes só podem ser passados por imitação ou também por outras formas de aprendizado social.

Já de posse de determinado conhecimento nas mais diversas questões que envolvem a memética, e a biologia, será finalmente possível tratar das questões epistemológicas aqui envolvidas. Este será o alvo do nono capítulo, o qual dependerá de uma boa compreensão de tudo o que foi passado nos capítulos anteriores. O foco principal deste capítulo será perceber que as chamadas ciências históricas não foram devidamente tratadas pela filosofia da ciência, que só tratou detalhadamente das chamadas ciências físicas ou ciências da natureza. Para isso,

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será questionado o conceito de normatividade na epistemologia, bem como o pouquíssimo espaço que foi dado à biologia em suas análises da ciência em geral. Tendo como óbvio que a biologia está hoje entre o que há de melhor nas ciências, serão apresentadas várias de suas idiossincrasias em relação às ciências naturais, principalmente o chamado Pensamento Populacional, que nos traz um modo completamente novo de ver o papel do acaso, da probabilidade e estatística nas ciências. Veremos que a biologia traz uma nova visão sobre o papel da exceção, o que implica na dificuldade em utilizar a teoria de Karl Popper nesta área. Dado como certo que as ciências históricas precisam de uma nova epistemologia para ser compreendidas, veremos que elas trazem um novo modo de fazer ciência baseado em narrativas históricas empiricamente fundamentadas e na união entre diversas disciplinas diferentes. Tal novo modo é melhor compreendido pelo o que o filósofo da ciência do séc. XIX, William Whewell, chamou de Palaetiologia.

No décimo e último capítulo, já tendo analisado os problemas mais gerais que são levantados pela memética, e também já tendo uma visão melhor de como a memética deveria funcionar e qual o seu lugar dentre as ciências, será finalmente possível tratar de algumas críticas mais particulares que surgiram ao longo dos anos. Todas as principais críticas que foram feitas contra a memética serão levantadas aqui e serão analisadas, normalmente de várias maneiras. Serão analisadas as boas críticas do antropólogo Dan Sperber, bem como várias outras críticas que foram categorizadas como: críticas a unidade do meme, o problema da analogia, o problema da ontologia do meme, o problema da mistura, a questão do genótipo e fenótipo do meme, o problema da homologia na memética, a questão do lamarckismo e, por último, a questão do sujeito do meme e da criatividade. Algumas das análises apresentadas aqui foram indicadas em outros lugares, mas não foram desenvolvidas, já outras são mais específicas do presente trabalho. Deverá ficar claro que o problema aqui não é responder todas estas críticas, mas questionar se elas realmente precisam ser respondidas.

No que se segue a maioria dos capítulos foram divididos em seções temáticas para permitir uma leitura mais objetiva do texto. A ordem dos capítulos escolhida foi pensada com o intuito de introduzir um leitor interessado, mas que não conhece nada sobre o assunto. No entanto, os capítulos também foram pensados para serem largamente independentes entre si, de modo que possam ser lidos em qualquer ordem, ou mesmo pulando algum capítulo que não interesse.

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Por este motivo, os conceitos ou idéias presentes em um capítulo, mas que foram explicados em outro, normalmente contam com uma rápida explicação e com a indicação de em que seção ele foi explicado melhor. Permite-se, assim, que o leitor siga o seu caminho pessoal dentro do tema, levando em considerações que há capítulos mais pesado e difíceis, como o primeiro, o quarto e o último, e capítulos mais leves a fáceis, como o quinto, o sexto e o oitavo. Muitos temas diferentes foram tratados, e o leitor pode, a partir de qualquer um deles, iniciar o caminho que o levará aos outros.

Toda esta longa caminhada em dez passos permitirá ao leitor se inserir nas principais discussões envolvendo a memética, não só no sentido restrito de quais são os problemas da memética, mas também no sentido amplo de como ela se enquadra dentro das ciências, qual a sua relação com a biologia e também com as diversas ciências humanas e como ela deve proceder para iniciar o seu trabalho empírico. Tratando tanto dos seus problemas internos quanto das suas relações externas, o presente trabalho tem a pretensão de analisar filosoficamente uma parte relevante das críticas que foram apresentadas contra a memética, além de analisar algumas questões mais gerais que ela levanta. No entanto, ele não se restringe a uma apresentação do tema, pois é antes de tudo uma defesa da memética contra seus críticos e até mesmo contra seus defensores pessimistas.

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A filosofia é importante para a biologia porque suas excitantes conclusões não se seguem apenas dos fatos. Ao mesmo tempo, a biologia é importante para a filosofia porque essas excitantes conclusões dependem, na verdade, dos fatos biológicos.

Sterelny & Griffths, 1999, p. 5. Minha tradução.

A ligação da memética com a biologia é controversa, mas inquestionável. Até que ponto as questões e as propostas levantadas a favor e contra a memética dependem de uma dada interpretação da biologia é um tema que será abordado no último capítulo do presente trabalho (seção 10.2). Por hora, faz-se necessário a apresentação e a discussão de uma série de questões relacionadas com a biologia e a filosofia da biologia que serão imprescindíveis para a compreensão dos temas tratados. No que se segue não será feita uma separação rigorosa entre os fatos da biologia como ciência e as interpretações da filosofia da biologia. Tentar fazer tal separação não nos traria nenhum benefício significativo. Na biologia - provavelmente até mais do que nas outras ciências ditas “duras” - esta separação é ainda mais difícil de fazer por motivos que serão apresentados no nono capítulo (seção 9.6).

A biologia é hoje uma área extremamente vasta. Até mesmo o estudo mais restrito sobre a evolução é amplo o suficiente para que uma só pessoa não seja capaz de compreender as suas inúmeras questões com a profundidade desejável. O presente capítulo tratará exclusivamente dos temas da biologia evolutiva que auxiliarão na compreensão da memética e, principalmente, na compreensão das críticas feitas contra a memética. Por este motivo os temas tratados se encontrarão irremediavelmente fragmentados. Fizemos um esforço para que, sempre que possível, os assuntos abordados fossem ligados entre si, evitando a aparência de um apanhado desconexo de teorias e fatos. No entanto, em alguns casos a ligação entre duas teorias exigiria uma digressão desnecessária e improdutiva. Nestes casos, um salto entre uma teoria e outra foi inevitável, mas com o desenvolver dos

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temas nos próximos capítulos todos os assuntos apresentados aqui se mostrarão úteis e serão indispensáveis para a compreensão dos argumentos que se seguirão.

Várias questões atuais da filosofia da biologia serão levantadas e apresentadas, outras tantas serão ignoradas. O fato de algumas questões serem ignoradas de maneira nenhuma implica que sua importância não é reconhecida. Somente significa que elas não foram aqui consideradas relevantes para esclarecer questões relacionadas à memética. Entre as questões ignoradas estão algumas das mais importantes dentro da biologia como, por exemplo, da existência real ou nominal das espécies, do surgimento do sexo, dos diferentes conceitos de espécie, etc. Especificamente sobre esta última questão, o conceito de espécie utilizado aqui será em grande parte o conceito mais comum entre os evolucionistas que é o Conceito Biológico de Espécie (CBE). Nas palavras de seu criador, que não se proclama como tal, este conceito pode ser resumido da seguinte maneira: “Espécies são grupos de populações naturais intercruzantes permanecendo reprodutivamente isoladas de outros grupos” (Mayr, 2006, p.29).

No entanto este conceito está longe de ser uma unanimidade e junto com ele existem pelo menos cerca de 20 outros (cf. Wilson, 1999, p.78), sendo que ao menos um deles será tratado mais longamente aqui, a saber, o conceito filogenético de espécies proveniente do cladismo (seção 1.10). Outra questão muito importante que será ignorada diz respeito as críticas feitas ao evolucionismo como um todo que foram propostas, principalmente, por movimentos religiosos e pelo Design Inteligente. Tais críticas normalmente se baseiam em uma péssima compreensão da biologia e sobre tudo em um deplorável conhecimento das questões levantadas pela filosofia da ciência. Por mais que se tente dizer o contrário, não há hoje em dia nenhum questionamento sério sobre a veracidade da evolução e da seleção natural.

No que se segue será apresentado algo que Sterelny e Griffiths chamaram convenientemente de “visão recebida da biologia” (1999, p.22. Minha tradução), ou seja, a visão mais comum e mais estudada do evolucionismo. Não é exatamente uma visão que esteja linha por linha em algum manual canônico e sim uma visão espalhada por inúmeros manuais e artigos tanto de biologia quanto de filosofia da biologia. A própria importância do evolucionismo para a biologia como um todo faz parte desta dita “visão recebida” e está muito bem representada na famosa frase de Dobzhansky “nada em biologia faz sentido se não for à luz da

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evolução”. É a perspectiva mais geral da evolução que une áreas como a fisiologia, a taxonomia, a embriologia, a citologia, a genética, a sistemática, a zoologia, a etologia, a ecologia e muitas outras. A grande influência que Darwin teve foi, em grande parte, justamente devido ao fato de que pela primeira fez foi possível ver como áreas separadas do estudo da vida estavam ligadas entre si. Deste modo, a evolução pode ser considerada como o fio que costura todas as demais áreas da biologia em um todo coeso.

Dizer que a biologia só faz sentido através da evolução não é o mesmo que dizer que só é possível estudar biologia se você for primeiro um perito em evolução. Para deixar isso mais claro Ernst Mayr faz a seguinte separação:

A biologia na realidade consiste em dois campos bem diferentes, a biologia mecanicista (funcional) e a biologia histórica (Mayr, 2005, p.39).

A biologia funcional trata principalmente com a parte física e química dos seres vivos e é neste sentido que ela é chamada de mecanicista. Embora tais seres tenham, é claro, uma origem evolutiva, ela pode ser ignorada em certos estudos. A biologia funcional se preocupa só com o momento presente da história da vida sem questionar como tal ser chegou neste momento presente. Já a biologia histórica é eminentemente evolucionista e se preocupa com o acontecimento histórico de como algo chegou a ser o que é hoje. Uma vez separada a biologia funcional da biologia histórica, podemos, ainda seguindo Mayr, subdividir esta em cinco grandes teorias que formam um todo coeso, são elas “evolução propriamente dita, descendência comum, gradualismo, multiplicação das espécies e seleção natural” (Mayr, 2005, p.115)4.

A evolução propriamente dita é a constatação de que as espécies mudam, se transformam. Ela está em oposição à antiga visão das espécies como tendo sido criadas por Deus do modo como se encontram hoje. Uma vez constatada a veracidade da evolução, ainda falta descobrir o processo pelo qual esta se dá, a grande descoberta de Darwin e Wallace foi justamente este processo nomeado de

seleção natural. Em oposição a ela está a famosa herança de características

adquiridas de Lamarck e outros.

4 Gordon Graham (2005, p.42) faz uma separação em 3, são elas, a evolução, a seleção natural e o

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O gradualismo já é um detalhe do processo da seleção natural. Ele nos diz, como Darwin gostava de afirmar, que a natureza não dá saltos. Em oposição, encontramos o saltacionismo. A versão mais famosa do saltacionismo é muito posterior à época de Darwin, são os “monstros promissores” de Goldshimdt: este acreditava que a evolução se dava aos saltos quando grandes anomalias genéticas subitamente apareciam. Que grandes saltos acontecem é hoje inegável, não há também muito questionamento sobre o fato de que a seleção natural poderia atuar através de grandes saltos. O saltacionismo só não tem um papel relevante na evolução por causa da improbabilidade gigantesca que uma grande transformação dê origem a um ser viável vivendo justamente no ambiente que lhe é propício. Seria esperar que a evolução operasse através de milagres e mais milagres!

Para deixar isso mais claro o grande biólogo R. A. Fisher usou a imagem de um microscópio que estamos tentando focalizar melhor (cf. Dawkins, 2005, p.156): um ajuste bem pequeno tem 50% de chance de melhorar o foco, já um movimento grande muito provavelmente vai piorar o foco, mesmo que esteja na direção correta, pois tenderá a passar do foco! Com os seres vivos, dizia Fisher, é exatamente a mesma coisa: estes já estão bem adaptados a um determinado ambiente, esperar que uma grande mudança crie um outro ser também bem adaptado seria esperar por um milagre.

A multiplicação das espécies também foi apontada por Darwin com a idéia de “árvore da vida” para mostrar que as espécies dão origem a outras espécies diferentes de uma maneira ramificada, espécies dando origem a espécies filhas. Esta idéia se opõe a uma visão transformacionista linear onde as espécies evoluem, mas sem ramificação. Já a descendência comum é uma continuação natural da multiplicação das espécies se voltarmos no tempo. Ela indica que esta ramificação toda das espécies começou em um único ponto de origem. Podemos acreditar na multiplicação das espécies sem acreditarmos na origem comum, as espécies poderiam ter tido múltiplas origens. Mas é difícil acreditar na origem comum sem acreditar na multiplicação das espécies, embora seja possível, pois se o gradualismo for negado podemos imaginar que a separação entre as espécies se deu por saltos, quase como criações independentes, um tipo de geração espontânea das espécies. Parece ter sido esta a opinião de Hugo de Vries e outros, que veremos ainda neste capítulo (seção 1.6). No entanto, há algo de inconsistente em acreditar que todas as espécies tiveram uma origem comum, mas que as

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espécies não se originaram umas das outras por ramificação. Seria mais razoável concluir que se a multiplicidade de espécies que encontramos hoje teve a mesma origem comum, então é porque umas espécies deram origem a outras.

Uma outra importante teoria darwinista, não colocada por Mayr dentro das cinco já apresentadas, é a da variação intraespecífica. Antes de Darwin era comum acreditar que a única diferença relevante era aquela entre uma espécie e outra, as diferenças dentro de uma mesma espécie eram consideradas como erros insignificantes na cópia de um original comum a todos. Mas Darwin deixou claro que isto estava errado ao dizer inúmeras vezes dentro da Origem das Espécies que “as espécies são apenas variedades bem trabalhadas e definidas” (2004, p.70). Para ele não havia nenhuma diferença essencial entre a variação dentro de uma determinada espécie e a variação entre espécies, dando origem, assim, ao que é chamado hoje de Pensamento Populacional. Nas palavras de Douglas Futuyma:

A substituição do essencialismo pela ênfase sobre a variação, feita por Darwin – que Mayr chamou de pensamento populacional – foi a base de sua teoria e sua mais revolucionária contribuição à biologia (Futuyma, 2002, p.7).

Hoje em dia é difícil ver a separação entre estas seis teorias, sendo que o próprio Darwin chamou a sua teoria de “um longo argumento” (Darwin, 2004, p.481). Mas tais teorias só se uniram definitivamente na chamada “Nova Síntese”, que se deu entre 1930 e 1940, ou seja, praticamente 80 anos depois de Darwin ter publicado a Origem das Espécies. Na época de Darwin, e logo após a sua morte, estas teorias se encontravam separadas e acreditar em algumas delas não implicava em acreditar nas outras. O caso paradigmático é o de Lamarck, que acreditava na evolução e no gradualismo, mas não na seleção natural e nem na multiplicação das espécies. Muitos, inclusive, se consideravam contrários a Darwin. Na maioria das vezes a sua oposição era contra o princípio de seleção natural, este sim tipicamente darwinista. Mas mesmo alguns auto declarados darwinistas, como Thomas Huxley e Charles Lyell, encontravam problemas com a seleção natural e com o gradualismo (cf. Mayr, 2005, p.128).

O que então unia a visão dos que se autop roclamavam darwinistas era “a rejeição à idéia de criação especial” (Mayr, 2006, p.99), ou seja, era a convicção de que todos os processos envolvidos eram processos naturais, sem intervenções divinas. Em outras palavras, o que os unia era o seu professado naturalismo

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materialista. Pode parecer estranho, mas foi principalmente Darwin quem

naturalizou a natureza. Para usar os termos de Daniel Dennett, podemos dizer que

o que unia os darwinistas era o seu repúdio aos skyhooks (ganchos imaginários) e a colocação de gruas (guindastes) no local. Um skyhook seria uma espécie de gancho proveniente diretamente do céu para auxiliar em algum trabalho de suspensão qualquer. Já uma grua é um guindaste comum que faz o mesmo trabalho que o skyhook, mas tem a sua base firmemente colocada no chão. Nas palavras de Dennett:

Skyhooks são elevadores milagrosos, não-sustentados e insustentáveis. Gruas não

são menos eficientes como elevadores, e possuem a óbvia vantagem de serem reais (Dennett, 1998, p.78).

Um skyhook é uma solução milagrosa e ad hoc para um problema qualquer como, por exemplo, dizer que as espécies são distintas “porque Deus quis assim”. Já uma grua é uma solução fundamentada em princípios naturais e tão justificados quanto eles podem ser. É uma explicação através de argumentos razoáveis e empiricamente defensáveis. A rejeição dos skyhooks nas explicações naturais era justamente o ponto de toque dos primeiros darwinistas, e ainda é o laço que reúne todos os darwinistas de hoje.

Estes fatos históricos nos ajudam a compreender melhor o cerne do darwinismo, mas os detalhes da história não são relevantes para o presente trabalho. O darwinismo que será tratado aqui é o darwinismo proveniente do que foi chamado de “visão recebida”, que por sua vez tem a origem na chamada “Nova Síntese”, unindo a evolução gradualista por seleção natural de Darwin com a genética mendeliana. No que se segue, será primeiro apresentado um esboço abstrato da teoria da evolução por seleção natural com o intuito de deixar claro os principais pontos e a simplicidade de tal teoria. Após tal esboço, se seguirá uma atenção maior aos fatos da biologia de nosso mundo, que corresponderão a maior parte do presente capítulo.

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1.1

Um Esboço de uma Teoria

O “ingrediente” fundamental da evolução é, segundo Richard Dawkins, o que ele chamou de replicador (cf. Dawkins, 2001, p.36): o replicador é um ente capaz de fazer cópias de si mesmo. Ele é o ser que tem descendentes e é nele que podemos dizer que a seleção natural age. Os primeiros replicadores provavelmente foram algo parecido com o RNA, mas não necessariamente. Eles eram capazes de copiar a si mesmos. Sendo assim seus descendentes herdavam suas características e, portanto, também eram capazes de copiar a si mesmos. A hereditariedade é uma característica fundamental dos replicadores. Entretanto, mesmo os replicadores que são capazes de fazer boas cópias de si mesmos eventualmente erram no processo e criam seres diferentes de si. Tais erros, que foram chamados de mutações, acontecem por acaso, ou seja, eles não são direcionados para nada. É preciso deixar claro aqui que acaso não quer dizer que elas não são causadas por nada. Existem inúmeros fatores que causam a mutação, os mutágenos e as substâncias radioativas são as mais conhecidas. Mas o importante é que nenhuma destas influências é capaz de discriminar qual é a mutação necessária para um determinado indivíduo em determinado ambiente. Deste modo, tais mutações são cegas “no sentido de que surgem sem levar em conta as necessidades dos organismos no momento” (Ruse, 1995, p.35).

Eventualmente, um erro na replicação pode criar um replicador mais potente. Dawkins enumera três características que tornam um replicador mais potente, a saber: a fecundidade, que é a capacidade de fazer um maior número de cópias de si mesmo; a longevidade, que é a capacidade de durar mais no tempo e, por isso, fazer mais cópias de si mesmo; e a fidelidade, que é a capacidade de evitar erros durante o processo de cópia, o que garante um maior número de cópias iguais a si (cf. Dawkins, 2001, p.38). De imediato podemos perceber que o que realmente importa é a capacidade de fazer boas cópias de si mesmo.

Falta ainda um fator muito importante, para um replicador fazer cópias de si mesmo ele precisa de “nutrientes” que são adquiridos no meio ambiente. Sem tais “nutrientes” ele não poderia se replicar. É neste ponto que entra a chamada seleção natural, uma vez que o número de “nutrientes” é finito. Se este não fosse o caso até mesmo um péssimo replicador conseguiria o que precisa para criar seus

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descendentes. É por isso que Michel Ruse nos diz que “se não estiverem nascendo mais indivíduos do que podem sobreviver e reproduzir não poderá haver seleção” (Ruse, 1995, p.41). É a possibilidade de escassez de “nutrientes” que cria a “luta pela sobrevivência”. Tal concepção, que Darwin recebeu de Malthus, é central no darwinismo: significa que um replicador que tenha uma mutação que lhe dá uma vantagem sobre os outros vai tender a ter mais descendentes. Um replicador tem mais descendentes do que os outros porque é mais apto a viver em um determinado ambiente. Esta é a chamada “sobrevivência dos mais aptos”, expressão que teve origem com Herbert Spencer e foi posteriormente adotada por Darwin. No entanto, nem sempre “sobrevivência dos mais aptos” é uma boa imagem da evolução. Quando não há muita pressão evolutiva como, por exemplo, mudanças climáticas ou a chegada de um novo predador, uma melhor imagem poderia ser a “eliminação dos menos aptos”. A diferença aqui está no fato de que no primeiro caso só um grupo seleto de mais aptos sobrevive, já no segundo caso só os piores adaptados morrem, mas a grande maioria ainda sobrevive. No caso da “eliminação dos menos aptos” uma gama considerável de variedades dentro de uma população ainda permanece existindo.

O que torna os seres mais ou menos aptos são as suas mutações, mas é claro que uma mutação só pode ser considerada uma vantagem em um determinado ambiente. Portanto, de nada adianta ser um predador se não há nada para ser caçado, de nada adianta uma proteção contra o frio em um lugar quente etc. O importante é saber que tais vantagens são vantagens porque ao possuir uma delas o replicador será capaz de ter mais descendentes que, por sua vez, também as herdarão. Tais descendentes inclusive poderão ter novas mutações que lhes auxiliem ainda mais a ter mais descendentes. Assim, as mutações vão se acumulando. Isto é o que Dennett chamou de “acumulação de projeto” (Dennett, 1998, p.71). É justamente este processo de acumulação de mutações que se deu o nome de evolução. Mas é preciso deixar claro que não são os organismos que evoluem e sim as populações. A evolução é um processo eminentemente populacional que se dá através da seleção das variações entre indivíduos de uma população. É neste sentido que ela pode ser vista como a “mudança em freqüências gênicas em uma população” (Dawkins, 2005, p.126). Alguns genes se tornam mais comuns no acervo genético (gene pool) de uma determinada

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população e outros se tornam mais raros. Esta mudança é o que chamamos de evolução.

A evolução se dá pela seleção natural que nada mais é do que uma diferença no sucesso replicativo. Nas palavras de Trivers “seleção natural se refere ao diferente sucesso reprodutivo na natureza, onde sucesso reprodutivo é o número de descendentes produzidos que sobrevivem” (Trivers, 1985, p.15). Aquele que tem uma vantagem, que lhe possibilita se replicar mais, torna-se mais comum na população, ou seja, deixa mais descendentes. Aqueles que se replicam menos tornam-se mais raros e talvez venham a se extinguir. O último fator que falta para completar este processo é o tempo para que todo ele se realize.

No caso do nosso mundo os replicadores são feitos de DNA. São eles que sofrem as mutações e são eles que transmitem as informações da hereditariedade. Mas hoje em dia não mais nos encontramos naquele “caldo primordial” onde os primeiros replicadores surgiram. Embora ainda existam DNA que se repliquem livremente, como o caso dos vírus, a maioria do DNA de nosso mundo se encontra dentro dos organismos vivos. Na maior parte estes organismos são unicelulares, porém muitos são pluricelulares. Em tais organismos o replicador, que é o DNA, é chamado de genótipo e o efeito que este genótipo, e também o ambiente, têm no organismo é chamado de fenótipo. É através do fenótipo que os organismos se relacionam entre si e com o meio ambiente.

No começo da vida na Terra alguns replicadores criaram uma membrana para se proteger, depois outros criaram a habilidade de romper esta membrana, outros criaram a capacidade de se mover para poder fugir ou para poder atacar e assim por diante. Em um determinado momento dois replicadores trabalharam em conjunto e, fazendo isso, cada um aumentou o número de cópias de si mesmo. “A seleção favoreceu genes que cooperam entre si” (Dawkins, 2001, p.70). Tudo isso, segundo Dawkins, são “veículos” que os primeiros replicadores criaram para sobreviver e é exatamente isso que todos os organismos de hoje em dia são, máquinas de sobrevivência dos genes.5

Embora a mutação se dê ao acaso, podemos observar que a seleção natural não é um processo aleatório, muito pelo contrário, é um processo selecionador

5 David Hull criou o termo “Interactor” (interagente) para substituir o termo veículo de Dawkins,

no entanto, seguiremos aqui a interpretação de Sterelny e Griffiths e estes dois termos serão considerados como intercambiáveis (Sterelny & Griffiths, 1999, p.40)

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bastante rigoroso onde não ser selecionado normalmente significa morte ou, pelo menos, significa que o indivíduo não será capaz de contribuir com seus descendentes para uma determinada população. A confusão da evolução com um processo aleatório é umas das confusões mais comuns, mas a aleatoriedade só está presente no surgimento das mutações, o que se segue daí é um rigoroso processo diferencial. É neste sentido que a evolução “conserva o acaso” como dizia Jaques Monod em seu livro com um título que fazia menção justamente ao problema aqui tratado, a saber, O Acaso e a Necessidade. Mais recentemente tornou-se comum falar deste processo como uma “catraca”: “as mutações são adicionadas, mas nunca são retiradas, daí a analogia com a catraca” (Sterelny & Griffiths, 1999, p.207. Minha tradução). O “efeito catraca” nos mostra que a evolução se dá através de retenção de pequenos passos graduais. É justamente esta a impressionante força da seleção natural: ela pode acumular todas estas pequenas “sortes” de modo que, com o tempo, o produto final parecerá incrivelmente improvável. Grande parte das críticas dirigidas à evolução se dá justamente pela falta de compreensão deste “acúmulo de pequenas sortes”.

A idéia de que a mutação é um processo aleatório talvez tenha a sua origem em outra idéia errônea, a saber, de que a seleção natural fica esperando as mutações ocorrerem para que possa atuar. Esta é uma imagem comum da evolução, mas está em grande parte errada. É claro que a seleção natural pode atuar em mutações que acabaram de surgir dentro de uma população, mas o mais comum é que aquela população já conte com uma grande variabilidade e inúmeras mutações onde a seleção natural atue, se for o caso. Como já vimos ao falar da divisão realizada por Mayr da idéia de Darwin em cinco teorias, a sexta, que foi acrescentada aqui, é justamente a da variabilidade intraespecífica. Esta sexta idéia é essencial para a compreensão da seleção natural.

Ainda é fácil encontrar nos dias atuais pessoas que acreditam que todas as zebras ou todas as lulas são praticamente iguais. Mas isso não é verdade, elas são tão distintas entre si como nós somos distintos uns dos outros. Cada uma é um indivíduo. O motivo de elas serem tão parecidas é duplo: há o fato delas sofrerem uma pressão seletiva maior, causando uma maior mortalidade nos seres que se diferenciam muito dos demais. Mas há também o fato de que julgamos baseados em nosso uso comum dos cinco sentidos. Um ser que seja visualmente muito semelhante ao outro será considerado como idêntico, mesmo que o cheiro deles

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