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Velhos no cativeiro posse e comercialização de escravos idosos

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Academic year: 2021

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Velhos no cativeiro

posse e comercialização de escravos idosos

José Flávio Motta

Old People in Captivity:

Ownership and Trade of Aged Slaves

Palavras-chave: escravos idosos ; posse de escravos ; tráfico interno de escravos ; Bananal ; Piracicaba ; economia e demografia da escravidão.

Resumo:

Neste artigo nossa atenção é dedicada às pessoas que vivenciaram o cativeiro até uma etapa mais avançada de suas vidas, no Brasil do século XIX. Mais especificamente, trabalhamos esse contingente de escravos velhos com base em dois recortes distintos (inclusive da perspectiva temporal), cada um deles aplicado ao estudo de uma determinada localidade paulista. O texto é dividido em três partes. Na primeira, procedemos à definição da faixa etária que entendemos mais adequada para identificar os cativos idosos analisados: 50 ou mais anos de idade. Na segunda, preocupamo-nos com a caracterização do conjunto dessas pessoas (seu “estoque”, por assim dizer) existente em Bananal na abertura do Oitocentos (1801); privilegiamos tanto variáveis demográficas como econômicas (sexo, idade, estado conjugal, origem, tamanho do plantel de escravos, atividades realizadas nos respectivos domicílios, relações de família etc.). Na terceira parte do artigo, estudamos a participação dos cativos de mais idade no fluxo de escravos comercializados na localidade de Piracicaba (Constituição). Examinamos as transações registradas naquele município no período 1861-1887 e enfocamos algumas características das pessoas idosas que compuseram ditas transações, a exemplo de suas aptidões/ocupações e de sua negociação isolada ou em conjunto com pessoas de suas famílias. Enfatizamos a proporção de idosos nos distintos tipos de tráfico (local, intra e interprovincial) durante essa etapa derradeira da escravidão no Império brasileiro. O texto completa-se com nossas considerações finais, às quais se seguem o rol das referências bibliográficas efetuadas.

Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu (MG), Brasil, de 29 de setembro a 3 de outubro de 2008.

Professor do Departamento de Economia da FEA/USP, do Programa de Pós-Graduação em Economia do IPE-FEA/USP e do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH/USP; membro do N.E.H.D.-Núcleo de Estudos em História Demográfica da FEA/USP, e do HERMES & CLIO-Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica da FEA/USP. E-mail: jflaviom@usp.br. Este texto é resultado de pesquisa presentemente vinculada a uma bolsa de produtividade concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

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Velhos no cativeiro

posse e comercialização de escravos idosos

José Flávio Motta

Sobre velhos e escravos

Nestes princípios do terceiro milênio, resta assentado com nitidez o recorte etário definidor da população da assim chamada “terceira idade”. De fato, cá no Brasil, por exemplo, em 2003, no Dia Internacional do Idoso (1º de outubro), o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 10.741, dispondo sobre o Estatuto do Idoso. Em seu Artigo 1º, a lei explicita a faixa etária a abranger as pessoas contempladas: 60 (sessenta) ou mais anos. 1 No site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, os dados tabulados do Censo de 2000 permitem verificar que, numa população residente de 169.799.170 pessoas, pouco menos de 9% (14.536.929) compunham o contingente de idosos. Essa proporção repete-se ao tomarmos isoladamente os números para o Estado de São Paulo: 3.316.957 indivíduos com 60 ou mais anos de idade numa população residente de 37.032.403 habitantes.

Seria o caso de trabalharmos com esse mesmo recorte etário para o século dezenove? Como seria de esperar, dados do Primeiro Recenseamento Geral do Império referentes à Província de São Paulo revelam, comparados aos do Censo de 2000, uma participação menor das pessoas mais velhas: 5,8%. 2 No cálculo deste último porcentual, porém, estamos nos atendo à população livre: 39.191 pessoas com 61 anos ou mais, num total provincial de 680.742 indivíduos livres. 3 No que tange aos escravos, os informes censitários ressentem-se

Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu (MG), Brasil, de 29 de setembro a 3 de outubro de 2008.

Professor do Departamento de Economia da FEA/USP, do Programa de Pós-Graduação em Economia do IPE-FEA/USP e do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH/USP; membro do N.E.H.D.-Núcleo de Estudos em História Demográfica da FEA/USP, e do HERMES & CLIO-Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica da FEA/USP. E-mail: jflaviom@usp.br. Este texto é resultado de pesquisa presentemente vinculada a uma bolsa de produtividade concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

1

A preocupação com as pessoas de idade mais avançada não é, evidentemente, apenas brasileira. O artigo 2 da Political Declaration que acompanha o Madrid International Plan of Action on Ageing ⎯documentos resultantes da Second World Assembly on Ageing, realizada sob os auspícios da ONU em 2002⎯, evidencia dita preocupação: “We recognize that the world is experiencing an unprecedented demographic transformation and that by 2050 the number of persons aged 60 years and over will increase from 600 million to almost 2 billion and that the proportion of persons aged 60 years and over is expected to double from 10 to 21 per cent. The increase will be greatest and most rapid in developing countries where the older population is expected to quadruple during the next 50 years.” (United Nations, 2002, p. 1).

2

Para esses dados da província paulista, servimo-nos das tabulações constantes de Bassanezi (1998).

3

Para a grande maioria das províncias do Império, o Recenseamento foi realizado em 1º de agosto de 1872. Não foi o que ocorreu em São Paulo, onde a data do censo foi aos 30 de janeiro de 1874. Cabe observar que o cômputo das pessoas com 60 anos elevaria decerto o porcentual mencionado; se, dos 32.871 indivíduos livres com idades entre 51 e 60 anos, 3.287 (10%) tivessem 60 anos completos, aquele porcentual elevar-se-ia de 5,8% para 6,2%.

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dos efeitos dos mais de 20 anos desde a extinção do tráfico transatlântico de cativos, em 1850, e também da libertação do ventre da escrava, em setembro de 1871. Eram, à época do censo, 14.408 escravos com 61 ou mais anos de idade na província paulista, numa população cativa de 156.612 pessoas, ou seja, 9,2% de idosos. Caberia, pois, reformularmos a questão que abre este parágrafo: seria o recorte etário dos 60 anos ou mais o mais adequado para identificar os “escravos da terceira idade”?

Para responder esta questão, lembremos que, pouco mais de uma década após o

Recenseamento Geral e ainda no reinado de D. Pedro II, aos 28 de setembro de 1885, foi

promulgada a Lei nº 3.270 regulando a extinção gradual do elemento servil. Ela passou para a história como a Lei dos Sexagenários. Abaixo reproduzimos alguns parágrafos de seu Artigo 3º, que tratava das alforrias e dos libertos:

§ 10 – São libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos.

§ 11 – Os que forem maiores de 60 e menores de 65 anos, logo que completarem esta idade, não serão sujeitos aos aludidos serviços, qualquer que seja o tempo que os tenham prestado com relação ao prazo acima declarado.

§ 12 – É permitida a remissão dos mesmos serviços, mediante o valor não excedente à metade do valor arbitrado para escravo da classe de 55 a 60 anos de idade. [ este valor arbitrado era de Rs. 200$000 para homens e Rs. 150$000 para mulheres – JFM ]

§ 13 – Todos os libertos maiores de 60 anos, preenchido o tempo de serviço de que trata o § 10, continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimentá-los, vesti-los, e tratá-los em suas moléstias, usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles, salvo se preferirem obter em outra parte os meios de subsistência, e os Juízes de Órfãos os julgarem capazes de o fazer. 4

Assim sendo, os dizeres da Lei dos Sexagenários sancionam, em uma primeira aproximação, o procedimento de tomarmos a idade de 60 anos como “piso” definidor do contingente de idosos para o qual voltamos nossa atenção neste artigo. Mesmo porque a participação relativa dessas pessoas no conjunto dos cativos naqueles anos próximos à abolição da escravatura era relativamente expressiva. De acordo com Robert Conrad, para o Império como um todo, “as estatísticas oficiais colocavam o número de cativos de sessenta

anos ou mais em 90.713, mas apenas 18.946 pessoas foram registradas como sexagenárias em 1886 e 1887”. 5 Levando em conta não chegarem a 750 mil os escravos contabilizados na matrícula de 1887, as estatísticas oficiais mencionadas apontariam para uma participação aproximada de 12% dos cativos idosos. Este último porcentual, ressalvemos, via-se inflado pelos cerca de três lustros de vigência da Lei do Ventre Livre.

4

Apud Mendonça (1999, p. 413).

5

Conrad (1978, p. 279). Em nota de rodapé, esse autor fornece suas fontes para tais informes: Gazeta da Tarde, de 13 de abril de 1885; Correio Paulistano, de 16 de setembro de 1887; e o Relatório do Ministério da Agricultura, de 13 de maio de 1887.

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Por outro lado, é mais que evidente o colossal hiato entre os objetivos do Estatuto do Idoso, “destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior

a 60 (sessenta) anos”, 6 e as poucas obrigações impostas aos ex-senhores dos escravos sexagenários libertados, transcritas acima no § 13 da Lei nº 3.270. Não pretendemos cometer a temeridade de comparar documentos produzidos em contextos tão díspares. Mas vale a pena rememorarmos as palavras de Caio Prado Júnior sobre a lei de setembro de 1885: “uma

estrondosa gargalhada repercutirá pelo país. Ninguém levou a sério o que a reação escravocrata pretendia apresentar como uma larga e generosa concessão.” 7

A esse entendimento de Caio Prado parece corresponder, por exemplo, a relevância adquirida pelos cativos idosos no delineamento do padrão das alforrias sintetizado por Jacob Gorender. Aplicável não apenas ao ocaso do período escravista, uma das características definidoras de tal padrão seria o “elevado porcentual de velhos e inválidos em geral entre os

alforriados”. Figuravam, por conseguinte, os velhos, entre os cativos “que os senhores jogavam na rua sem precisar passar por escrito o atestado de sua crueldade”. Gorender faz

referência aos inúmeros e contundentes testemunhos,

como os de Vilhena, Koster, Saint-Hilaire, Cunha Mattos, Maria Graham, Debret e Correa Júnior, que revelam o quanto constituía prática generalizada, desde o Nordeste a Minas Gerais e Goiás, na Corte do Império e no Vale do Paraíba da época do café, a de libertar os escravos velhos e inválidos, deixando-os ao desamparo e eliminando dos custos do engenho, da fazenda ou da casa residencial, os gastos com servidores inutilizados. 8

Dessa forma, não se nos afigura como um absurdo aventarmos que, ao explicitar o “público-alvo” da Lei nº 3.270, os legisladores tenham fixado um parâmetro o qual, fosse seu objetivo precípuo o benefício dos escravos, poderia ser entendido como demasiadamente elevado. Evitaremos, portanto, na definição utilizada neste artigo do segmento formado pelos idosos, a mera replicação do recorte dos 60 anos, referencial adotado na lei de 1885 e consagrado, em nossos dias, pelo Estatuto do Idoso.

Consideremos, em vez disso, as estimativas de longevidade de escravos no Brasil na segunda metade do século XIX, elaboradas por Pedro Carvalho de Mello. 9 Em especial, tomemos os resultados desse autor para a expectativa de vida do contingente amiúde preferido para a composição dos plantéis de cativos, isto é, os adultos jovens, assim entendidas as pessoas com idades de 15 a 29 anos. Nas estimativas de Mello, os escravos homens com 15 anos teriam uma expectativa de vida entre 29,85 e 32,30 anos; os intervalos correlatos para os homens com 20, 25 e 30 anos igualaram-se, respectivamente, a: 26,76 a 29,18; 24,11 a 26,02; e 21,63 a 23,28 anos. Os resultados para as escravas adultas jovens foram sempre superiores, oscilando entre 1,5 e 2,5 anos a mais em sua expectativa de vida

vis-à-vis as pessoas do sexo oposto. Ou seja, os cativos na faixa etária dos 15 aos 29 anos

teriam uma esperança de vida que, se concretizada, levá-los-ia a uma idade em torno dos 50 anos.

6

Cf. Artigo 1º da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.

7 Prado Jr. (1977, p. 181). 8 Gorender (1985, p. 355). 9 Cf. Mello (1983).

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Em suma, entendemos que a idade de 60 anos é muito elevada para servir como limite inferior da categoria de “escravos idosos” com a qual trabalhamos. Adicionalmente, valemo-nos do trabalho de Mello acima referido, buscando indicações para um parâmetro alternativo. Por fim, e mesmo correndo o risco de incorporar certa dose de arbitrariedade, as indicações selecionadas nortearam nossa opção pelo cômputo, como cativos idosos, daqueles com idades iguais ou superiores a 50 anos. Tal definição será utilizada, ademais, não apenas para a segunda metade do século XIX, mas para o Oitocentos como um todo.

A posse de escravos idosos

O comentário final da seção anterior relaciona-se ao nosso intuito de caracterizar o “estoque” de cativos idosos mediante o exame da escravaria existente na localidade valeparaibana paulista de Bananal em princípios do século XIX. Lá, conforme escrevemos em outro trabalho,

À época em que correspondia à 6ª Companhia de Ordenanças da Freguesia de Areias, na Vila de Lorena, por exemplo, em 1801, dos 124 fogos existentes em Bananal, apenas 4 (3,23%) dedicavam-se à produção de açúcar, além disso de forma não exclusiva. Dos 124 fogos, ainda, 87 (70,16%) estavam voltados precipuamente às lavouras de arroz, feijão, milho e mandioca, sendo que em tão-somente 7 deles mencionava-se a comercialização de excedentes. Por outro lado, naqueles 4 fogos que produziam açúcar viviam 208 (21,27%) dos 978 habitantes da 6ª Cia. de Ordenanças da Vila de Lorena em 1801, enquanto 621 indivíduos (63,50%) daquela população estavam nos 87 fogos em que se produzia unicamente para subsistência. 10

Bananal, como se sabe, tornar-se-ia um dos principais municípios cafeeiros do Império do Brasil. Não obstante, o manuseio das listas nominativas dos habitantes da localidade permitiu-nos encontrar, para aqueles primeiros anos do Oitocentos, apenas alguns registros esparsos de uma modesta produção cafeeira. Assim, houvemos por bem designar o período inicial de disponibilidade daquelas fontes manuscritas para o caso de Bananal ⎯1799-1804⎯ de “anos pré-cafeeiros”. 11

Na Tabela 1 fornecemos a distribuição, em números absolutos e porcentuais e de acordo com diferentes faixas de tamanho dos plantéis, do conjunto da escravaria bananalense em 1801, bem como dos cativos idosos então vivendo na localidade.

Verificamos, de início, que os escravos com 50 ou mais anos de idade correspondiam a tão-somente cerca de um vigésimo (4,5%) do conjunto dos cativos presentes em Bananal. Calculando a razão de sexo desses contingentes, notamos que o predomínio dos homens era bem mais pronunciado entre as pessoas mais avançadas em anos. 12 Assim, dito indicador,

10

Motta (1999, p. 46).

11

Ver, por exemplo, Motta & Nozoe (1994, p. 259-271).

12

Não entendemos que esse predomínio contrarie, necessariamente, as expectativas de vida estimadas por Pedro Mello. Havia sempre o tráfico, “injetando” na população cativa muito mais homens que mulheres. E, talvez, as velhas alcançassem sua liberdade de forma relativamente mais fácil do que os homens velhos (ou, à la Gorender, fossem mais amiúde “jogadas na rua”). Além disso, no caso de Bananal em 1801, no contingente de idosos, a idade média das mulheres (54,80 anos; desvio-padrão = 5,215) era quase dois anos superior à dos

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igual a 138,7 para o total da escravaria, eleva-se a 147,5 se excluídas as crianças com menos de 15 anos, e torna a elevar-se entre os idosos, para 260,0. 13 Ditas crianças correspondiam a cerca de um quarto (25,9%) da população cativa. Sua presença, associada ao próprio perfil da localidade, 14 poderia indicar um pano de fundo relativamente pouco dinâmico em termos econômicos, com menores turbulências a condicionar as possibilidades de formação e ampliação de famílias escravas e, por essa via, a reprodução natural dos cativos. Ademais, se levarmos em conta que a formação de Bananal, às margens do Caminho Novo para o Rio de Janeiro, era relativamente recente, talvez a alta proporção dos homens em comparação às mulheres idosas fosse resultante ainda de um momento anterior de formação de plantéis, eventualmente ocorrido fora da região.

Tabela 1

Distribuição do Total de Escravos e dos Cativos Idosos Segundo Faixas de Tamanho dos Plantéis

(Bananal, 1801) Faixas de Tamanho dos Plantéis Total de Escravos Nº % Cativos Idosos Nº % 1 a 4 37 9,2 0 - 5 a 9 50 12,5 5 27,8 10 a 84 314 78,3 13 72,2 Total 401 100,0 18 100,0

Fonte: Listas nominativas dos Habitantes de Bananal, 1801.

As 401 pessoas computadas na segunda coluna da Tabela 1 distribuíam-se por 44 proprietários de escravos. Os plantéis unitários eram 15, mais de um terço (34,1%) do conjunto dos plantéis; constituíam, de fato, a posse modal. Mas nenhum desses senhores de um único cativo era proprietário de pessoa idosa. Também não o eram os senhores de 2, 3 e 4 escravos. A maioria dos velhos (72,2%) vivia em plantéis com 10 ou mais componentes, embora numa participação menor do que a observada para o total dos escravos (78,3%). Por fim, mais de um quarto (27,8%) dos idosos estava nas posses formadas por 5 a 9 cativos, proporção que não atingia metade disso (12,5%) no conjunto da escravaria.

homens (52,92 anos; desvio-padrão = 3,303). Finalmente, é necessário ter em mente a ressalva explicitada na próxima nota.

13

É oportuno salientar que o número relativamente reduzido dessas pessoas não pode ser esquecido como elemento a condicionar os comentários que fizermos sobre elas, o que, todavia, não deve ser entendido como um impedimento absoluto ao avanço da análise. Afinal, aqueles 18 velhos eram a totalidade dos cativos idosos na população considerada.

14

“(...) os pastos e as roças, entremeados às matas nativas, constituíam os elementos a tipificar a paisagem bananalense. Em meio a esse quadro no qual se sucediam em desalinho os pequenos plantios e os capinzais, destoavam as poucas unidades produtivas voltadas ao fabrico do açúcar e aguardente.” (Motta & Nozoe, 1994, p. 261-262).

(7)

Em princípio, se os escravistas pudessem determinar sem restrições a composição de seus plantéis, é plausível sugerir, como resultado, o predomínio dos adultos jovens do sexo masculino obtidos pelo recurso ao tráfico humano. 15 Uma vez formadas, com o passar do tempo as escravarias poderiam ser aumentadas pelo acréscimo de novos elementos de fora ou pela reprodução natural. Essas duas possibilidades poderiam concretizar-se isolada ou conjuntamente e, claro, seriam em parte ou completamente compensadas pelo decréscimo de outros tantos cativos, seja mediante transações diversas (vendas, doações, dações in solutum etc.), seja pela ocorrência de mortes, fugas ou manumissões. São esses processos, postos em funcionamento, que subjazem às considerações que fizemos acima sobre as razões de sexo. A eles também cabe recorrermos para comentar os informes da Tabela 1, sopesadas igualmente as idades médias dos escravistas fornecidas na Tabela 2.

Tabela 2

Idades dos Escravistas em Geral e dos Proprietários de Cativos Idosos Segundo Faixas de Tamanho dos Plantéis

(Média, Mediana e Desvio-Padrão; Bananal, 1801) Faixas de Tamanho

dos Plantéis

Idade, Escravistas em Geral Média Mediana Desvio

Idade, Senhores de Idosos Média Mediana Desvio

1 37,93 37,00. 8,972 - - -

2 a 4 44,88 41,00 22,643

5 a 9 49,75 46,00 12,430 53,00 51,00 13,115

10 a 84 49,08 50,00 16,850 48,67 46,00 15,253

Total 44,64 41,00 15,510 50,11 51,00 13,896

Fonte: Listas nominativas dos Habitantes de Bananal, 1801.

As idades médias relativamente mais baixas dos proprietários de plantéis unitários e daqueles possuidores de 2 a 4 cativos sugerem que seus escravos “precisariam de mais tempo” para alcançar os 50 anos. Em verdade, os informes da Tabela 2 remetem-nos a dois fatores que atuavam de maneira imbricada. De um lado, o ciclo de vida daqueles escravistas: os inseridos nas duas últimas faixas de tamanho eram em média cerca de onze anos e meio mais velhos do que os detentores de um único cativo. Ou seja, com o passar dos anos, com base em uma ou mais atividades produtivas, talvez um bom casamento, eventualmente algum tino para os negócios e uma pitada maior ou menor de sorte, os indivíduos poderiam aumentar seu estoque de escravos. De outro lado, a longevidade dos escravistas, independentemente do acúmulo patrimonial, era também um condicionante importante da presença de cativos em idade mais avançada. Escravistas longevos, mantendo os escravos adquiridos ao longo de suas vidas, tenderiam a possuir cativos mais velhos. É possível que as

15

Tal assertiva não implica, é óbvio, que os escravos idosos não fossem objeto de comercialização, como bem veremos na próxima seção deste artigo.

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terceira e quarta faixas de tamanho, na Tabela 2, ilustrem bem este fator. É importante lembrarmos, claro, serem apenas 9 os escravistas com cativos idosos, meia dúzia deles na quarta e só três na terceira faixa de tamanho. Por fim, as estatísticas para os totais corroboram nossas assertivas: os proprietários de cativos velhos tinham idades em média 5,5 anos superiores às do total de escravistas; idade mediana dez anos mais elevada; e desvio-padrão indicando menor dispersão em torno da média.

Do total de 401 escravos anotados no recenseamento de Bananal em 1801, 229 (57,1%) eram africanos. Essa participação dos cativos oriundos da África superou os três quartos (77,8%) entre as pessoas idosas. Uma discrepância decerto não inesperada, tendo em vista que o primeiro desses porcentuais leva em conta o contingente das crianças e, como se sabe, crianças compuseram fração relativamente diminuta no que respeita à distribuição etária dos africanos para cá trazidos pelo tráfico negreiro. 16

No que respeita à atividade produtiva, verificamos que 8 (44,4%) dos 18 escravos avançados em anos residiam em domicílios dedicados exclusivamente ao cultivo de gêneros de subsistência (milho, arroz, feijão e mandioca), em especial para autoconsumo e eventualmente com a comercialização de excedentes. Outros 8 cativos velhos eram propriedades de senhores de engenho, ainda que os subprodutos da cana-de-açúcar não fossem a produção exclusiva nesses casos. Por fim, os dois idosos restantes (11,1%) eram de uma fazendeira, que “meteo gado vacum que vendeo no Rio”; além da criação de gado, os cultivos de subsistência igualmente integravam a produção desse domicílio. Há uma nítida separação do tamanho dos plantéis onde viviam esses 18 escravos segundo tais atividades produtivas. Assim, a fazendeira (28 cativos) e os senhores de engenho (27, 40 e 84) possuíam, todos, mais de 25 escravos. Por sua vez, os plantéis dos agricultores eram todos formados por menos de 20 indivíduos (5, 7, 8, 12 e 18). A distribuição dos cativos idosos por atividade produtiva dos domicílios em que viviam mostrou-se, ademais, bastante próxima da verificada para o conjunto de Bananal em 1801: 43,9% dos escravos localizados em fogos onde se produziam derivados da cana-de-açúcar, e 54,9% em domicílios de agricultores e criadores de animais. 17

Os solteiros eram minoria (38,9%) entre os cativos velhos, 6 homens e 1 mulher. Outros 7, também 6 homens e 1 mulher, eram casados. As idosas predominavam entre os viúvos; eram 3, havendo apenas um viúvo do sexo masculino. Casados ou viúvos perfaziam, pois, mais de dois quintos (61,1%) dos escravos com 50 anos ou mais. Considerada a totalidade da escravaria bananalense com idade superior aos 14 anos, a proporção de casados ou viúvos reduzia-se a dois quintos (40,4%). 18 Vale dizer, quanto maior o tempo de convivência no cativeiro, maiores as chances de estabelecer laços familiares, afirmação a qual, é claro, estaria sempre condicionada à maior ou menor estabilidade dos plantéis. Essa estabilidade, por seu turno, vincular-se-ia ao ciclo econômico e ao ciclo de vida do proprietário. Como avançado anteriormente, no que respeita ao estabelecimento de laços familiares, vivenciava-se, na Bananal de 1801, uma etapa relativamente pouco turbulenta, decerto aproveitada pelos cativos lá existentes.

16

Ver, por exemplo, entre outros, Gutiérrez (1989).

17

Cf. Motta (1999, p. 128).

18

(9)

Não obstante, a supremacia de homens e o limitado elenco de opções respondiam, em boa medida, pela inexistência de casais em que ambos os cônjuges fossem idosos. 19 Para dois dos idosos casados, um homem e uma mulher, localizamos os cônjuges, mas não pudemos identificar nenhum filho presente. Em ambos os casos, esses casais eram uma entre várias famílias em seus respectivos plantéis. Seus proprietários eram do sexo masculino, senhores de engenho, um com 84 e o outro com 27 escravos. Dos dois idosos em questão, o homem, africano de 51 anos, era casado com uma cativa crioula de 40 anos; a mulher, igualmente africana de 51 anos, tinha por cônjuge um africano de 45 anos.

Os 5 outros idosos casados, todos homens, tinham idades variando entre 51 e 57 anos (média de 53,2). Eram três africanos e dois coloniais. Suas esposas tinham idades entre 21 e 41 anos (média de 31,8) e eram todas africanas. 20 Três desses casais integravam aquele mesmo plantel com 27 pessoas de propriedade do senhor de engenho referido no parágrafo anterior. Cada um desses três casais possuía um filho presente: três meninos, com idades iguais a 7, 11 e 10 anos. Os dois casais restantes viviam em domicílios de agricultores dedicados aos cultivos de subsistência, um com 5 e o outro com 18 escravos. Esses dois casais possuíam, cada um, dois filhos, num caso um menino de 7 anos e uma menina de 13, no outro duas meninas, uma com 6 anos e a outra com 2 meses de idade.

A idade média dos quatro idosos viúvos igualou-se a 58 anos. Dois deles (entre os quais o homem) eram africanos, as demais coloniais. Não identificamos filhos presentes para nenhum. Uma das senhoras era propriedade de um senhor de engenho detentor de 40 cativos. A fazendeira, ela própria uma viúva de 41 anos de idade, arrolava duas idosas viúvas entre seus 28 escravos. O único viúvo do sexo masculino vivia num plantel formado por 8 integrantes, num domicílio onde eram cultivados gêneros de subsistência. Por fim, os sete idosos solteiros tinham, em média, 51,7 anos. Todos eram oriundos da África. Dois tinham senhores de engenho por proprietários, vivendo, respectivamente, em plantéis com 27 e 84 integrantes. Os 5 restantes, entre os quais a única idosa solteira, compunham plantéis mais modestos (12, 12, 5, 7 e 8 cativos), cujos senhores eram agricultores de subsistência.

A comercialização de escravos velhos

Aos 5 de dezembro de 1885, Gabriel Antonio Ferreira vendeu, por dois contos e duzentos mil réis, três escravos para Vicente Osias de Sillas. O comprador residia na cidade de Casa Branca e o vendedor no termo de São João da Boa Vista, ambas localidades paulistas. Os cativos transacionados eram João, de 35 anos, e o casal David e Maria, ele africano e ela crioula, respectivamente com 62 e 27 anos de idade. Na escritura o Tabelião informava: “Acompanha a escrava Maria seus filhos ingênuos de nomes Joaquim, Vicência,

19

Não será demais lembramos, por exemplo, o comentário feito por Stuart Schwartz em seu Segredos internos: “Havia, por exemplo, uma política em geral não escrita mas amplamente praticada de restringir o universo social do cativo, confinando-o, quando possível, ao perímetro do engenho, fazenda de cana ou unidade escravista. Tal política limitava drasticamente as oportunidades familiares para os escravos, especialmente em propriedades menores, onde havia poucos parceiros disponíveis ou onde podiam ser parentes consangüíneos.” (Schwartz, 1988, p. 313).

20

Para o total da população cativa, a diferença entre as idades médias de maridos e esposas igualou-se a 8,08 anos para os casais com filhos, e a 5,65 anos para os casais sem filhos presentes (cf. Motta, 1999, p. 340).

(10)

Elias, Delfina, Maria e Domingas, todos averbados na Coletoria desta cidade”. Ao término

do documento, ao que parece, deu-se conta do “inconveniente” representado pela idade do africano! Procedeu-se ao acréscimo, pois, de um “Em tempo: o escravo David é apenas

vendido os seus serviços e não a sua pessoa, visto ser maior de sessenta anos como consta da matrícula acima transcrita”. Embora haja sempre a possibilidade de avançarmos uma

interpretação equivocada, é difícil não reputarmos um efeito meramente “semântico” da Lei dos Sexagenários, datada de menos de dois meses antes do registro descrito, sobre a venda daquele cativo avançado em anos.

Se nossa intenção na seção anterior era identificar algumas características do “estoque” de escravos idosos em uma localidade paulista específica ⎯Bananal em 1801⎯, agora nos voltamos para o exame do “fluxo” desses cativos velhos, desta feita em outra dada localidade da Província de São Paulo. Em verdade, concentramo-nos na parte desse fluxo decorrente de transações diversas, mormente compras e vendas. Nossas fontes documentais, portanto, são os registros de transações envolvendo escravos efetuados em Constituição (Piracicaba) nas décadas derradeiras do período escravista brasileiro. 21 Não obstante, a venda mencionada no parágrafo anterior, objeto de escritura lançada em Casa Branca, pareceu-nos muito oportuna para abrir nossa discussão acerca da comercialização de escravos velhos. Uma vez que ainda não atingira os 65 anos em dezembro de 1885, David, apesar de “liberto” pela Lei 3.270, não se livrou da obrigação dos três anos de serviços “a título de

indenização pela sua alforria”, conforme disposto no § 10 do Artigo 3º da lei, por nós

anteriormente transcrito.

Piracicaba, ao longo da segunda metade do Setecentos e, em especial, na primeira metade do século XIX, teve sua economia intensamente vinculada ao desenvolvimento da atividade açucareira paulista. Nos 27 anos contemplados nesta seção ⎯1861-1887⎯, o município vivenciou o avanço da lavoura cafeeira. Ainda que o progresso do cultivo da cana-de-açúcar, em meados da década de 1850, tornasse Piracicaba em certa medida resistente àquele avanço, com o passar dos anos mostrou-se inequívoco o crescimento da produção de café. 22 Assim sendo, o movimento da “onda verde” cafeeira, proveniente do Vale do Paraíba e demandante do Oeste histórico da Província de São Paulo, conforma o pano de fundo do tráfico humano aqui analisado.

Na Tabela 3, indicamos os totais de escravos e o contingente de cativos idosos objeto das transações registradas em Piracicaba no período selecionado. Os 27 anos em tela foram segmentados em quatro intervalos menores. Nessa segmentação seguimos, em linhas gerais, a caracterização realizada por Gorender do comércio interno de escravos pós-extinção do tráfico transatlântico. 23 A essa caracterização acrescentamos a divisão dos anos de 1870 em

21

Em 1769 foi criada a Freguesia de Santo Antonio de Piracicaba, elevada à “categoria de Vila em 1822, sendo substituído o seu primitivo nome pelo de Constituição, e foi elevada a cidade em 1856” (LUNÉ & FONSECA, 1985, p. 462). Apenas na segunda metade do decênio de 1870 o nome do município foi alterado para Piracicaba. Pelo restante deste artigo, referir-nos-emos à localidade em questão sempre por este último nome.

22

Cf. Petrone (1968, p. 163).

23

“Os anos cinqüenta foram marcados pela grande prosperidade européia, que suscitou extraordinária demanda dos produtos de exportação dos países escravistas sobreviventes (Brasil, Cuba e Estados Unidos). (...) É de supor que a força maior de atração das regiões cafeeiras encontrou resistência por parte dos plantadores de cana-de-açúcar, algodão e tabaco do Nordeste. A intensa transferência de escravos nordestinos para o Sudeste cafeeiro deve ter ocorrido (...) às custas dos setores onde o escravo era menos rentável do que nas plantagens exportadoras ou mais fácil de ser dispensado: escravos domésticos, artesãos e outros escravos urbanos, escravos empregados na pecuária.

(11)

duas partes (1870-1873 e 1874-1880), procurando melhor captar o impacto das discussões prévias e da vigência inicial da Lei do Ventre Livre sobre aquele comércio.

Tabela 3

Escravos Idosos e Total de Cativos Transacionados Segundo Ano do Registro

(Piracicaba, 1861-1887) Períodos Escravos Idosos

Nº % Total de Cativos 1861-1869 1870-1873 1874-1880 1881-1887 Total 23 23 30 37 113 5,8 7,3 5,4 8,8 6,7 399 314 557 422 1.692

Fonte: Escrituras de transações envolvendo escravos, Piracicaba (1861-1887).

De início, considerado todo o período 1861-1887, percebemos que os idosos perfizeram 6,7% do total das pessoas comercializadas. 24 Ao considerarmos a informação sobre o sexo dessas pessoas, notamos que a razão de sexo igualou-se a 182,9 para o conjunto e elevou-se a 242,4 se computados apenas os velhos. Vale dizer, se os homens eram mercadoria mais freqüentemente transacionada do que as mulheres, essa disparidade entre os sexos tornava-se significativamente maior quando o objeto do comércio era avançado em anos.

Notamos, ademais, que a maior participação dos idosos (8,8%) ocorreu no período 1881-1887, quando a imposição de elevados tributos à entrada de escravos na província {...}

“Os anos sessenta foram marcados pela confluência de dois movimentos inversos. A Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861-1865) abriu o mercado inglês ao algodão brasileiro, o que beneficiou os plantadores nordestinos. (...) Enquanto isso, a produção cafeeira do Sudeste diminuiu o ritmo de crescimento, afetada pela crise bancária de 1864 e por alguns anos de cotações baixas. (...) Os plantadores nordestinos se encontraram, então, em melhores condições para disputar a mão-de-obra escrava de suas regiões e o tráfico em direção ao Sudeste sofreu decréscimo de intensidade.

“Nos anos setenta, o boom algodoeiro se desvaneceu e a produção cafeeira retomou vigoroso impulso ascensional. A Lei do Ventre Livre de setembro de 1871 arrefeceu o movimento abolicionista e deu ao regime escravocrata renovada estabilidade política. Tais fatores conduziriam o preço do escravo ao ponto mais alto do século XIX, no Sudeste cafeeiro, alcançando o escravo masculino na força da idade, entre 20 e 25 anos, mais de 2:000$000 no final da década dos setenta” (Gorender, 1985, p. 326-328).

24

Não obtivemos o informe da idade de 28 cativos. Se os excluíssemos, o total reduzir-se-ia para 1.664, e a participação dos idosos alçar-se-ia a 6,8%.

(12)

limitou sobremaneira o comércio interprovincial e quando, afinal, evidenciou-se o caráter moribundo da instituição escravista. 25 A segunda mais alta participação dos idosos (7,3%) foi atingida nos anos próximos à promulgação da Lei do Ventre Livre (1870-1873), nos quais o tráfico de cativos ressentiu-se das incertezas então presentes em termos do destino das mercadorias humanas; o arrefecimento então havido foi sentido também nas transações interprovinciais: “naqueles anos fundamentais para o evolver da legislação abolicionista, os

negócios com escravos em Constituição estiveram em especial concentrados nos limites da própria localidade.” 26

Em contrapartida, as menores participações dos idosos foram observadas nos anos de 1860 (5,8%), nos quais o ritmo do comércio de cativos foi expressivo, ainda que relativamente menos intenso, por exemplo, do que na década de 1850. E, principalmente, no período 1874-1880 (quando computamos a menor daquelas participações: 5,4%), anos em que o tráfico interno sem dúvida vivenciou seus melhores dias. Nesses dois momentos foram alcançadas, para aquele comércio, as maiores contribuições dadas pelos negócios entre distintas províncias do Império.

No cômputo das escrituras registradas em Piracicaba, valemo-nos do informe sobre o local de moradia dos contratantes para segmentarmos as transações em três tipos: “locais” (residência na própria Piracicaba e em seu termo); “intraprovinciais” (envolvendo contratantes moradores em outras localidades paulistas); e “interprovinciais” (envolvendo contratantes residentes nas demais províncias do Império). 27 Nos Gráficos 1 e 2, respectivamente para o total de cativos negociados e para o contingente formado pelos idosos, apresentamos as participações relativas desses três tipos de comércio, calculadas para cada um dos quatro intervalos temporais considerados.

A informação acerca do local de moradia dos contratantes não constou da totalidade dos documentos compulsados. Por conta disso, no Gráfico 2, não consideramos 4 idosos transacionados nos anos de 1860 e outros 2 nos de 1880. 28 Neste intervalo de 1881-1887, também não contabilizamos 5 velhos, parte do grupo de 19 indivíduos comprados, em maio de 1883, pelo Dr. Estevam Ribeiro de Souza Rezende, morador em Piracicaba. Embora essas 19 pessoas houvessem sido matriculadas naquele mesmo município, o local informado de moradia da vendedora, a Condessa de Cambolas e Marquesa de Palarin, era a França. Outro morador em Piracicaba, José Emygdio da Silva Novais, atuou na venda como procurador da Condessa. Não acreditamos que esses 19 indivíduos tenham estado na França nos cerca de

25

“The Rio Bill levied a registration tax of 1:500$ on slaves brought from other provinces, and was passed in mid-December, 1880. The Minas bill created a tax of 2:000$, and was passed in late December, 1880. The São Paulo bill also created a tax of two contos, and became law on January 15, 1881.” (Slenes, 1976, p. 124-125). O mencionado “caráter moribundo” da escravidão é ilustrado pela queda dos preços dos cativos, em especial a partir de 1883 (ver, por exemplo: sobre o crash do tráfico interno de escravos no Brasil, Slenes, 2004, p. 356-361; sobre o comportamento dos preços de cativos em algumas localidades paulistas, entre elas Piracicaba, Motta, 2007).

26

Motta (2006, p. 31).

27

Não podemos descartar a possibilidade de que o critério utilizado, em alguns casos, tenha implicado aventarmos movimentações de cativos diferentes das que efetivamente ocorreram. Não obstante, não cremos que tais casos ⎯os quais, se existentes, decerto abrangeram uma minoria das pessoas negociadas⎯ comprometam os resultados de nossa análise.

28

No Gráfico 1 não foram computadas 87 pessoas negociadas no intervalo 1861-69, 11 em 1870-1880 e 31 no período 1881-1887. No total, 129 escravos, isto é, 7,6% do contingente de cativos registrados nas escrituras analisadas (cf. Motta, 2006 e 2007).

(13)

dez anos entre a matrícula e a venda em questão; todavia, mesmo assim, optamos por não computar 11 (9,7%) dos 113 idosos na construção do gráfico em tela.

Percebemos, com clareza, que o comércio de velhos não era um ramo do tráfico entre províncias. Durante os 27 anos considerados, apenas um idoso foi adquirido de outra unidade do Império. Foi Luis, de 50 anos, natural de Santa Catarina e matriculado naquela província, em São Sebastião de Tijucas, vendido por João Francisco Furtado, também residente naquela localidade. Manoel Ferraz de Arruda Campos, morador em Piracicaba, atuou como procurador de Furtado nessa venda registrada em julho de 1874. O negócio envolveu cinco escravos além de Luis, cujos proprietários, todos representados por Manoel, residiam em Lajes e São José, duas outras localidades de Santa Catarina. 29 O comprador, Pedro Ferraz de Arruda Campos, de Piracicaba, era decerto parente do procurador dos vendedores.

Gráfico 1

Escravos Negociados Segundo Tipo do Tráfico (Piracicaba; Anos de 1860, 1870 e de 1880) 0 % 20 % 40 % 60 % 80 % 100 % 18 61/69 1870/73 1874 /80 18 81/87

Local Intr aprovincial Interprovincial

Fonte: Escrituras de transações envolvendo escravos, Piracicaba (1861-1887).

Nas décadas de 1860 e de 1870, sempre mais de 85% dos idosos foram transacionados localmente. Essa proporção por pouco não chegou à totalidade (95,6%, 22 em 23 cativos velhos negociados) nos anos em torno da libertação do ventre da escrava; anos esses nos quais as transações locais também alcançaram a maior participação (76,6%) no conjunto das pessoas comercializadas. Para o intervalo 1881-1887, as distribuições mostradas nos Gráficos 1 e 2 tornam-se mais assemelhadas. De fato, por um lado, a tributação pesada na entrada de cativos na província paulista fez com que esse comércio como um todo, e não apenas o tráfico de velhos, se tornasse um ramo não contemplado do comércio entre províncias. Por outro, o passar dos anos após a libertação dos nascituros, além das eventuais fugas e alforrias,

29

(14)

decerto tornavam, pouco a pouco, relativamente mais elevadas as idades dos escravos remanescentes. A Tabela 4 corrobora esse comportamento ascendente mediante o cômputo das idades médias e medianas.

Gráfico 2

Escravos Idosos Negociados Segundo Tipo do Tráfico (Piracicaba; Anos de 1860, 1870 e de 1880) 0 % 20 % 40 % 60 % 80 % 100 % 18 61/69 1870/73 1874 /80 18 81/87

Local Intr aprovincial Interprovincial

Fonte: Escrituras de transações envolvendo escravos, Piracicaba (1861-1887).

Tabela 4

Idades dos Escravos em Geral e dos Cativos Idosos, por Períodos

(Média, Mediana e Desvio-Padrão; Piracicaba, 1861-1887)

Períodos Idade, Escravos em Geral Média Mediana Desvio

Idade, Cativos Idosos Média Mediana Desvio

1861-1869 21,84 20,00. 12,793 53,04 50,00 5,588

1870-1873 23,38 20,00 14,745 55,17 55,00 6,900

1874-1880 25,46 24,00 11,982 55,23 55,00 4,599

1881-1887 29,98 27,00 13,137 59,65 59,00 6,321

(15)

Considerando tão-somente as transações intraprovinciais, notamos que os negócios com idosos refletiam, também, outro comportamento válido para o conjunto dos cativos registrados nas escrituras. Trata-se da distribuição daquelas transações entre as que significaram a entrada de pessoas em Piracicaba e as que implicaram a saída de escravos do município. Ilustrando com o caso das compras e vendas, no primeiro grupo radicam os negócios nos quais o contratante residente em Piracicaba estava comprando; no segundo, quem comprava era o contratante morador em alguma outra localidade da Província de São Paulo. Observamos, no Gráfico 3, que nos anos de 1860 e, sobretudo, nos de 1870, as entradas superaram folgadamente as saídas para o conjunto das pessoas negociadas. Entre os idosos, não houve saídas. Já nos anos de 1880, tal movimento é revertido, e a maioria absoluta (69,9%) dos cativos nesse tráfico intraprovincial saiu de Piracicaba. 30 Para o caso dos idosos reproduz-se o movimento geral: 57,1% deles foram transacionados para fora da localidade no intervalo 1881-1887.

Gráfico 3

Escravos em Geral (EG) e Cativos Idosos (CI) "Entrados" e "Saídos" pelo Tráfico Intraprovincial

(Piracicaba; Anos de 1860, 1870 e de 1880) 0% 20% 40% 60% 80% 100% EG 61/69 EG 70/80 EG 81/87 . CI 61/69 CI 70/80 CI 81/87 "Entrados" "Saídos"

Fonte: Escrituras de transações envolvendo escravos, Piracicaba (1861-1887).

30

Trabalhando especificamente com o tráfico no período 1881-1887, e contemplando as localidades de Areias, Piracicaba e Casa Branca, localizadas, respectivamente, nas Zonas Norte, Central e Mogiana na regionalização proposta por Milliet (1939), verificamos o seguinte: “Ademais, a consideração das áreas de origem e de destino dos indivíduos que, naqueles anos, mudavam de proprietários em negócios de âmbito provincial, forneceu-nos indicações bastante nítidas do sentido da movimentação majoritária daquelas pessoas, da Zona Norte para a Central, e daí para a Mogiana e a Paulista. Como esperado, esse trânsito refletia o esforço da cafeicultura para sanar sua grande demanda por mão-de-obra, esforço que, no caso da mão-de-obra compulsória, perdurou, ao menos em sua fração identificável nos livros notariais compulsados, até poucos meses antes do 13 de maio de 1888.” (Motta, 2007, p. 16).

(16)

Para menos de dois quintos dos escravos idosos (37,2%), obtivemos a informação acerca da atividade produtiva para a qual era considerado apto. Com a exceção de uma senhora, apta para serviços domésticos, todos os demais foram vinculados ao serviço da roça. Para dois deles, um homem e uma mulher, ao serviço da roça era acrescida outra qualificação: ele era descrito também como pedreiro e ela como cozinheira. Considerando o total das mais de cinco centenas de cativos negociados para os quais era descrita a ocupação, igualmente verificamos o largo predomínio dos roceiros. Computadas as pessoas exclusivamente vinculadas ao serviço da roça, verificamos que perfaziam 84,8% dos homens e 62,0% das mulheres; no caso destas últimas, os serviços domésticos atingiam um porcentual também expressivo (19,7%).

Dos 80 idosos do sexo masculino, três quintos (60,0%) foram negociados junto com ao menos uma pessoa com a qual compartilhavam algum vínculo familiar, fosse essa outra pessoa também escrava ou uma criança ingênua necessariamente acompanhando sua mãe quando esta era negociada. Para as 33 idosas, essa proporção chegou aos dois terços (66,7%).31 Contados, pois, os 70 velhos (48 homens e 22 mulheres) negociados “em família”, ampla maioria (75,7%) integrava casais (51,4% sem filhos; 24,3% com filhos). No conjunto dos 1.692 escravos negociados em Piracicaba, aqueles que o foram “em família”, como esperado, não atingiram proporção similar à verificada para os idosos, ainda que fosse também bastante expressiva (35,9%). 32

Foi também inferior, para o conjunto das pessoas negociadas em família, o porcentual daquelas integrando casais (61,8%), comparado àqueles três quartos (75,7%) observados para os idosos. Mas há aqui uma diferença significativa, no que diz respeito aos casais com filhos. No primeiro desses porcentuais, esses filhos foram computados (os escravos, embora não os ingênuos); no segundo não. Por conta disso, a segmentação daqueles 61,8% mostrou-se muito mais equilibrada entre os casais sem filhos (32,3%) e os com filhos (29,5). Vale dizer, um idoso, se presente num dos negócios considerados, seria, com maior probabilidade, transacionado com alguém de sua família; também com maior probabilidade, esse alguém seria seu cônjuge e/ou seu filho, todavia (é óbvio!) decerto não seria seu pai.

Por fim, um último comentário relativo aos preços dos idosos. Quando as transações envolviam mais de um cativo, era comum que o valor da escritura fosse referente ao conjunto negociado. Além disso, após a libertação dos nascituros, a menção aos ingênuos, cujos serviços eram transferidos como direito do vendedor ao comprador da mãe, torna difícil

31

Naquelas últimas décadas de vigência da escravidão no Brasil, como se sabe, produziu-se uma legislação com vistas a coibir a separação entre cônjuges e entre pais e filhos cativos. Foi o caso do Decreto nº 1.695, de 15 de setembro de 1869, que em seu artigo 2º dispunha: “em todas as vendas de escravos, ou sejam particulares ou judiciais, é proibido, sob pena de nulidade, separar o marido da mulher, o filho do pai ou mãe, salvo sendo os filhos maiores de 15 anos” (Collecção das Leis do Império do Brasil, 1869, p. 129-130). Da mesma forma, na Lei Rio Branco, o artigo 4º, § 7º, estabelecia um novo limite de idade para as separações das crianças: “Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos é proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges, e os filhos menores de 12 anos, do pai ou mãe” (Luné & Fonseca, 1985, Anexos, p. 59).

32

Sobre a negociação de escravos “em família”, por exemplo, com fundamento em dados de oito das maiores fazendas de Paraíba do Sul, na província do Rio de Janeiro, e mediante a utilização de inventários post-mortem como fontes documentais, Fragoso & Florentino (1987, p. 164) observaram que “dos 1171 escravos comprados até 1872, nada menos que 33,6% estavam unidos por laços de parentesco de primeiro grau (casais com filhos e mães solteiras e seus rebentos), dado que aponta na direção da existência de um mercado de famílias na região” (negritos no original). Para uma crítica da sugestão aventada pelos autores citados ver, por exemplo, Andrade (1998). Este último, que estuda dois municípios cafeeiros da Zona da Mata de Minas Gerais (Juiz de Fora e Muriaé), baseou-se, tal como nós nesta seção, em escrituras de transações envolvendo cativos.

(17)

nesses casos determinar se aquelas crianças não teriam alguma influência no valor do negócio. 33 Uma vez que muitos dos velhos foram transacionados “em família”, às vezes com ingênuos presentes, e outros ainda (a exemplo do catarinense Luis, anteriormente mencionado) junto com escravos que não eram seus familiares, a quantidade de preços “aproveitáveis” foi muito reduzida. Assim sendo, apenas para não deixarmos de fornecer alguma idéia dos preços relativos, tomamos os escravos com 50 ou mais anos para todo o intervalo 1861-1887. Conseguimos 10 informes de preços cuja média, em termos nominais, igualou-se a Rs. 565$000. Como podemos observar na Tabela 5, essa média nunca atingiu nem a metade dos preços médios nominais dos escravos homens com idades entre 15 e 29 anos, e reduziu-se a pouco mais de um quarto dos preços médios desses adultos jovens na etapa de maior intensidade do tráfico interno no Brasil.

Tabela 5

Preços Médios Nominais dos Escravos Homens Adultos Jovens

(Piracicaba, 1861-1887)

Períodos Número de Escravos Preços médios (em réis)

1861-1869 1870-1880 1881-1887 49 93 22 1:819$388 2:053$763 1:184$091 Fonte: Escrituras de transações envolvendo escravos, Piracicaba (1861-1887).

Considerações finais

Trabalhando com localidades distintas envolvendo diferentes momentos do século XIX, pudemos evidenciar amplo conjunto de características do “estoque” e do “fluxo” de escravos idosos na capitania, depois província paulista. O “estoque” foi examinado mediante o cômputo da escravaria de Bananal em 1801, conforme arrolada na respectiva lista nominativa dos habitantes. Era um momento em que a localidade, de formação relativamente recente, atravessava uma situação econômica de reduzido dinamismo, mormente se comparado ao que, não muito tempo depois, decorreu do avanço da cafeicultura em São Paulo. O “fluxo”, por seu turno, foi estudado através das transações envolvendo cativos e registradas em Piracicaba no período 1861-1887. Com intensidade variando ao longo desses 27 anos, os negócios assentados nas escrituras traziam, provavelmente na maior parte dos casos, a instabilidade e a turbulência para a vida das pessoas transacionadas.

Verificamos que os idosos eram poucos (4,5%) naquela pequena Companhia de Ordenanças da Vila de Lorena em 1801, onde mais de um quarto dos cativos (25,9%) eram crianças com 14 ou menos anos de idade. Eram um pouco mais numerosos nas transações

33

Ainda que não um ingênuo, mas sim um sexagenário, o exemplo de David, com o qual iniciamos esta seção, ilustra o caso dos serviços de uma pessoa liberta pela lei estarem influindo no valor da negociação.

(18)

(6,7%, com um máximo de 8,8% nos anos de 1880), nas quais as crianças mantinham uma participação expressiva de 20,4% (aí não contabilizados os ingênuos). E tanto no “estoque” como no “fluxo”, era largo o predomínio dos velhos do sexo masculino. As razões de sexo igualaram-se, respectivamente, a 260,0 e 242,4, em ambos os casos bem superiores às calculadas para os totais dos escravos. Vale dizer, ainda que em 1801 mais de metade da população cativa (52,1%) participasse de relações de caráter familiar, 34 o efeito pretérito do tráfico na formação e desenvolvimento dos plantéis vinha sendo sempre importante. A ação conjunta e continuada do tráfico e da família resultava naquele “estoque” com razões de sexo crescentes à medida que se elevava a faixa etária das pessoas, culminando naquelas com 50 ou mais anos. De outra parte, na análise do “fluxo”, a razão de sexo de 242,4 evidenciou uma das mercadorias mais evitadas pelos escravistas: a mulher velha.

Ainda quanto ao “estoque”, verificamos a inexistência de idosos nos plantéis dos escravistas com menos de 5 cativos. De fato, evidenciamos a relevância da longevidade dos senhores, e ligada a ela, de seu ciclo de vida e correspondente processo de acumulação, como condicionantes da presença de velhos em suas escravarias. Notamos, outrossim, que o predomínio de africanos era maior entre os velhos (77,8%) do que na população cativa total (57,1%). E observamos que a distribuição dos idosos de acordo com as distintas atividades produtivas praticadas nos domicílios em que viviam (agricultura de subsistência, produção de derivados da cana-de-açúcar e criação de gado) foi muito semelhante à mesma distribuição calculada levando em conta o conjunto dos escravos bananalenses. No que se refere ao estado conjugal, os idosos solteiros eram a minoria (38,9%); além disso, os casados, em todos os casos, eram-no com cônjuges mais jovens e ainda não entrados na faixa etária dos 50 ou mais anos.

O cômputo das escrituras de transações envolvendo cativos mostrou-nos que os negócios com a mercadoria humana avançada em anos foram realizados, sobretudo, no âmbito local, e menos freqüentemente entre contratantes residentes na província paulista. E isto também nas décadas de 1860 e 1870, portanto anteriormente à imposição de imposto proibitivo à entrada de escravos em São Paulo. Assim, mesmo na segunda metade dos anos de 1870, etapa de maior intensidade do tráfico interno de cativos nesses decênios derradeiros do período escravista entre nós, apenas um velho foi identificado como integrando as transações interprovinciais então registradas em Piracicaba.

Especificamente no tocante aos negócios intraprovinciais, verificamos para os velhos um movimento que reproduziu o observado para o conjunto das pessoas transacionadas. No decurso dos anos de 1860 e 1870, as entradas foram superiores às saídas; de fato, não houve velhos “saídos”. Ao contrário, na década de 1880, as saídas tornaram-se mais numerosas. O comércio de escravos em Piracicaba, e o de velhos que dele era parte integrante, respondiam, em especial, às demandas da cafeicultura, em sua arremetida de Átila 35 pelo território paulista, em direção ao oeste da Província.

Por fim, um comentário acerca de uma específica similaridade entre as tabulações referentes ao “estoque” e ao “fluxo” de velhos. Os casados e os viúvos somavam 61,1% dos cativos idosos de Bananal em 1801. Por seu turno, os escravos velhos transacionados “em família”, em Piracicaba no período 1861-1887, correspondiam a 61,9% do total de idosos. Temos, de um lado, o contexto bananalense na abertura do Oitocentos, que sugerimos tenha

34

Cf. Motta (1999, p.312).

35

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sido relativamente pouco turbulento no que tange à formação e ampliação de famílias cativas; de outro, um conjunto de transferências de direito de propriedade em Piracicaba que era, em si mesmo, exemplo por excelência da turbulência do cotidiano no cativeiro, em meio às exigências do desenvolvimento acelerado da lavoura cafeeira de exportação.

Devemos talvez frisar, para o caso de Bananal em 1801, que “relativamente pouco turbulento” não significa não-turbulento. Afinal, é correto afirmarmos que as unidades produtivas escravistas não eram campos de concentração, 36 porém não é menos correto salientar que isto não as tornava minimamente próximas de colônias de férias! Ademais, a proximidade desses dois porcentuais explica-se, sobretudo, assim o cremos, pelas características do tráfico de velhos. Tais características, evidentemente, sofriam o condicionamento da legislação proibitiva da separação de casais escravos pela venda, bem como da separação entre mães e filhos menores. Em suma, talvez esses idosos fossem, numa larga parcela dos casos, tão-somente parte, e muito provavelmente não a mais importante, de um lote de escravos que se negociava. Com o que voltamos ao caso de David, registrado em escritura datada de 1885. Naquela venda simultânea de sua esposa de 27 anos acompanhada de meia dúzia de filhos ingênuos “prestadores de serviços”, além de outro cativo com 35 anos, é dificílimo imaginarmos que o foco do interesse dos contratantes fosse “a pessoa”, ou mesmo, “em tempo”, os serviços daquele africano de 62 anos.

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