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Da Komoidia grega à Art Nouveau europeia: Os usos da história como projeto estilístico

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Academic year: 2021

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Da Komoidia grega à Art Nouveau europeia: Os usos da história como projeto estilístico Gabriela Malesuik Aragão Barros

Graduanda em História pela Universidade de Brasília

A história é um emaranhado de camadas temporais. Camadas as quais o historiador, como um ogro, submerge e vasculha com seu faro em busca de carne humana.1 Essa constante valsa entre diacronismos e sincronismos torna possível analisar rupturas e permanências de diferentes imaginários sociais sobre diversos lapsos de tempo e espaço. É através dessa perspectiva que se faz possível analisar as influências da obra Lisístrata – Greve do Sexo, escrita por Aristófanes e publicada em V a.C., passados 20 anos desde o início da Guerra do Peloponeso; na proposta social e estética da Art Nouveau, movimento artístico e arquitetônico dos anos 1920.

A peça de Aristófanes é, sem dúvidas, um marco literário para a compreensão acerca da conjectura grega durante a Guerra do Peloponeso. Utilizando-se de um tom, à época, cômico e absurdo por abordar sua narrativa através do engajamento político feminino, a trama gira em torno da intervenção das mulheres na política grega, visando dar fim a uma guerra. A estratégia adotada pelas mulheres, advinda da ideia da ateniense Lisístrata, consistia em não ter relações sexuais com seus maridos enquanto estes não dessem fim à sucessão de desgastes econômicos e morais gregos, ocasionados pelos enfrentamentos entre espartanos e atenienses. O lançamento de uma peça desse teor crítico em 411 a.C., quando ainda restavam mais dez longos anos para o fim do embate peloponésio, demonstra não apenas o evidente descontentamento grego com relação às desavenças internas, mas uma série de transformações dentro dessa sociedade se comparada ao período anterior às Guerras Greco-Pérsicas, ao qual se constitui como um marco na mudança comportamental dos helenos.

Faz-se possível observar, em Greve do Sexo, duas grandes vicissitudes típicas do século VI: a disseminação de uma era da racionalidade ocupando forte influência coletiva ao lado do religioso, e uma significativa mudança entre os gregos acerca de suas concepções de guerra. As marcas deixadas pelas Guerras Medas foram profundas, e os sucessivos desgastes entre atenienses e espartanos desde esse período demonstraram, com a implosão da Guerra do

1 BLOCH, 2002.

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Peloponeso, a formação de estratégias de combate diferentes e muito mais destrutivas entre iguais.2 Guerras antes formais, majoritariamente feitas em campo de batalha ou através da

oratória, seguindo uma série de protocolos ritualísticos, desde o respeito ao oponente à brevidade e especificidade dos conflitos, passam ao segundo plano, enquanto manobras de verdadeira desestabilização social, a exemplo do sequestro de trezentos espartanos por parte dos atenienses, bem como as demais estratégias semelhantes ocasionadas pela hybrys, caracterizam o nascimento de um novo tipo de guerra, experimentada pelos gregos após o contato combativo com os persas. Mesmo que a rivalidade entre Esparta e Atenas existisse desde a era arcaica, a corrosão da relação das duas pólis, antes formalmente estável, implode com a formação das Ligas de Delos e do Peloponeso, claros projetos de sustentação hegemônica.

Sobre um espectro microescalar, Aristófanes demonstra tais modificações nos discursos de suas personagens. Chama atenção o intuito dos velhos de queimar o templo em que se encontravam as mulheres sem se preocuparem com a subjugação do grego sobre o próprio grego, implícita em tal atitude. Esse mesmo trecho também expressa a mudança do papel da religiosidade na sociedade. Queimar um templo seria impensável há poucos séculos atrás, ou durante o século VII, quando Pisístrato invadia Atenas e protegia-se dos homens contrários à sua tentativa de golpe dentro do lugar sagrado, onde jamais ousariam mata-lo, por tratar-se de um sacrilégio ao ambiente dos Deuses. No entanto, apesar de ceder um pouco seu espaço no que diz respeito às tomadas de ações políticas, a instituição religiosa ainda se fazia fortemente presente, transparecendo, em Greve do Sexo, através dos rituais e da consulta ao oráculo, mas não em primeiro plano.

Além das mudanças na estrutura da guerra, houve também a revolução intelectual em

Mileto no século V, impulsionando a difusão da filosofia e da medicina. Nesse contexto, os devaneios filosóficos racionalistas aparecem, na Grécia, como uma forma de exaltação da razão e do bom senso. Inúmeras vezes Aristófanes proclama, em sua peça, a necessidade dos homens de enxergarem sua hybrys e buscarem a sophrosyne. Entretanto, para tal processo, fazia-se necessário atravessar a nêmesis, representada, nesse caso, pela figura feminina.

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A representação feminina em Aristófanes, um ateniense de nascença, é parte da ideia de hybrys a qual os gregos estavam imersos. Imaginar mulheres buscando se intrometer nos assuntos da guerra era, para os atenienses, impensável e esdrúxulo, e a presença das mulheres na peça, com esse viés, demonstrava o decadentismo grego, bem como a necessidade urgente de se repensar o sucateamento das relações entre seus pares étnicos, que vinham sendo devastadas conforme a Guerra do Peloponeso perdurava.

Apesar da chacota à mulher, em outros contextos históricos, poder-se-ia interpretar uma síntese da Greve do Sexo, deixando à parte a compreensão do contexto do Peloponeso e da Ática no século VI, e da tomada de poder pelas mulheres em sentido pejorativo, como uma forma de renovação das instituições sociais e dos padrões da sociedade para um avanço consonante à necessidade de melhorias. É dessa forma que Aubrey Beardsley, em 1983, reproduziu imageticamente a Greve do Sexo. Beardsley publicou uma série de ilustrações em referência à obra de Aristófanes3. Como um simbolista e percursor da Art Nouveau, nota-se, em suas obras, a exaltação de padrões de feminilidade expressos nas ilustrações por meio de suas curvilinearidades, tanto no que diz respeito ao aproveitamento do espaço representativo quanto nos detalhes das linhas, aos quais fazem da Art Nouveau amplamente reconhecida. Em Lysistrata defending the Acropolis4, observa-se que a desconcertante ocupação de espaço pelas personagens no mesmo plano diagonal exalta as figuras femininas em detrimento do homem, representado de forma bastante enxuta, se comparado às demais personagens. A expulsão do padrão masculino, substancialmente composto por uma rigidez quadrática5, para

a renovação da estética, agora voltada à leveza da linha e suas possibilidades elásticas através da Art Nouveau, é consonante à tese de Lewis Mumford, que analisa a formação das cidades sobre a perspectiva de gênero. Para Mumford, desde o neolítico, os padrões de rigidez linear são relacionados à representação fálica, enquanto a suntuosidade, ao feminino6.

Para além da questão estética representativa, a Art Nouveau no século XX equivale à nêmesis grega expressa pelas mulheres em Greve do Sexo. A filosofia estilística proposta através do urbanismo e das artes tratou-se de uma reação ao Classicismo Beaux-Arts,

3 University of Adelaide, 2014. Disponível em: <http://ebooks.adelaide.edu.au/b/beardsley/aubrey/lysistrata/>. 4 Ver pág. 5.

5 MUMFORD, 1998.

6 Mumford constrói tal proposição afirmando serem as representações femininas o berço das sociedades sedentárias. Conforme o homem sentiu a progressiva perda de seu espaço protagonista dentro da perspectiva social, começou a instituir, na construção das cidades, padrões de expressão da masculinidade.

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sugerindo a mudança das construções eretas pela leveza das linhas e de um novo pensar acerca das conjecturas.

“(...) Em vez de uma monumentalidade ponderada, propunha-se invenções inovadoras, que exploravam a leveza e delicadeza permitidas pela construção em metal e vidro e se inspiravam na natureza. Como tal, foi um grande passo em direção à emancipação intelectual e estilística da arquitetura moderna.7”.

A história transparece, entre essa comparação temporal, mediante uma de suas facetas mais concretas, a instrumental. O uso de Greve do Sexo por parte de Beardsley expressa, sobre uma microanálise, a vasta gama de possibilidades de exploração das fontes, bem como a identificação dos indivíduos com contextos históricos amplamente distantes para a formulação do eu através do outro. A alteridade permeia, inevitavelmente, a construção do ideário filosófico e artístico, não sendo diferente, portanto, no caso da Art Nouveau. Os processos de ruptura e permanência envolvem sempre uma revisitação do imaginário social a um passado que, de alguma forma, se assemelha às condições presentes e futuras.

7 CURRIS, 2008, p. 54.

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Lysistrata defending the Acropolis, Aubrey Beardsley, 1983. (Disponível em: <https://ebooks.adelaide.edu.au/b/beardsley/aubrey/lysistrata/>.

Referências bibliográficas:

ARISTÓFANES. Lisístrata: A Greve do Sexo. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2003.

BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício de historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

CURTIS, William. Arquitetura Moderna desde 1900.Tradução de Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Bookman, 2008.

DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Tradução de Fátima Murad. São Paulo: Edusp, 2009. MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Tradução de Neil R. da Silva. São Paulo: Martins Fontes,1998.

SHNAPP-GOUBEILLON, Annie; MOSSÉ, Claude. Síntese da História Grega. Lisboa: Asa, 1994.

SICILIANI, Bruna. Bases Mitológicas e literárias do conceito grego de justiça. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 37, n. 1, p. 61-77, jan./jun. 2011.

Referências

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