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A linguagem dos alimentos nos textos bíblicos sentidos para a fome e para a abundância. URI:

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Academic year: 2021

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Autor(es):

Dias, Paula Barata

Publicado por:

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos

Clássicos

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/27939

DOI:

DOI:http://dx.doi.org/10.14195/2183-1718_60_11

Accessed :

19-Jan-2021 08:56:00

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Vol. LX

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA COIMBRA UNIVERSITY PRESS

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A LINGUAGEM DOS ALIMENTOS

NOS TEXTOS BÍBLICOS

SENTIDOS PARA A FOME Ε PARA A ABUNDÂNCIA

PAULA BARATA D I A S Universidade de Coimbra pabadias@hotmail. com

R e s u m o

A literatura cristã, particularmente a monástica, sobrevaloriza a limita-ção dos alimentos como método ascético, e divulgou como positivas algumas estratégias de privação alimentar enquanto fonte de virtude. Esta perspectiva coincide, em larga medida, com o votar dos alimentos à sua condição utilitá-ria, com a depreciação a que geralmente se votam as percepções com origem no gosto, ou com que se considera menor a arte ou a apreciação estética dos alimentos. N o entanto, os textos bíblicos estão repletos de referências à alimentação, não só como realidade incontornável do destino da humani-dade, mas também como fonte de significado espiritual e místico. Este artigo visa ilustrar a riqueza das referências alimentares contidas na Bíblia, explorar os seus significados e, sobretudo, mostrar como o condicionamento alimentar, não necessariamente pelo vector da privação e da renúncia, faz parte da linguagem espiritual do cristianismo.

Palavras-chave: comida, pão, alimentos, fome, saciedade, abundância, Bíblia, literatura cristã.

Abstract

The purpose of this article is to redress an imbalance regarding the way Christian literature deals with the subject of food.There are many references to the importance of fasting or dieting in relation to the ascetic way of life and how this is a virtue. This view coincides, largely, with a widespread contemporary scorn for those who have an aesthetic appreciation of food.

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However, this is a rather one-sided viewpoint as the Bible is also rich in more positive references on the same subject and how it is a source of spiritual and mystical significance. The article explores their meanings and how, not only the denial and renunciation of food is an essential constituent to the spiritual language of Christianity, but also its abundance and indulgence.

K e y w o r d s : food, bread, nourishment, famine, abundance, Bible, Chris-tian literature.

O livro V das Instituições Cenobíticas de J o ã o Cassiano apresenta c o m o título De Spirítu Gastrimargiae "Acerca da tentação da gula". D e entre a lista de combates q u e d e v e m ser conduzidos pelo m o n g e q u e aspira à perfeição, a saber, pela o r d e m e m q u e Cassiano os indica, gastrimargía,

fornícatío, auaritia, ira, tristitia, acedia, uana gloria, superbia, a gula surge c o m o o

p r i m e i r o vício a ser d o m i n a d o1.

O m o n g e marselhês d o séc. IV d . C . foi responsável pela divulgação, n o O c i d e n t e e na literatura monástica latina, d o catálogo dos vícios que ferem o cristão, e e m particular o m o n g e e n q u a n t o cristão mais exigente. Ε u m motivo já sólido da teorização monástica de língua grega, que graças a Cassiano m i g r o u para a cultura latina e p o r esta via está presente, até aos dias de hoje, na cultura c o n t e m p o r â n e a ocidental2.

A o r d e m apresentada n o catálogo pressupõe u m a leitura gradativa ascendente dos combates. Assim, o sucesso da guerra pela perfeição depende

1 P. Barata Dias (2006), " O catálogo dos pecados mortais — a sua presença na

cultura antiga e contemporânea (I— introdução)", BEC 45: 95-102. A linguagem usada por Cassiano é agónica: elatio "dardo"; "certame»" "combate"; agon "competi-ção", uirus "veneno"; spiritus "espírito"; temptatio "tentação"; daemon "demónio";

uitium "fraqueza" são alguns dos termos usados por Cassiano e na literatura latina.

2 Sobre as manifestações concretas do tema na história literária antiga, grega e

latina, e nas literaturas europeias em línguas vernaculares, ver Richard Newhauser (1993) The Treatise on Vices and Virtues in Latin and the Vernacular, Brepols, Typologie des Sources du Moyen Age Occidental n.°VII, 205 pp. Evágrio do Ponto, leitor e discípulo de Orígenes (Capita de diuersis malignis cogitationibus, PG 79, cols 1200--1233; De Octo Vitiosis Cogitationibus, PG 40 cols 1272-1276) é considerado o primeiro autor que sistematizou esta reflexão e a colocou ao serviço da disciplina monástica. Efrém Sírio, no seu Logos Ascéticos (Abel do Nascimento Pena, Efiém

Sírio. Sua recepção no Ocidente Hispânico, FLUL, 2000), também reflecte sobre o

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A linguagem dos alimentos nos Textos Bíblicos 1 5 9

da o r d e m das batalhas. Sendo a luta pela perfeição monástica progressiva, primeiro d e v e m dominar-se as tentações mais fáceis, o u mais primitivas, aquelas que d e c o r r e m da natureza h u m a n a e n q u a n t o espécie viva dotada, antes de t u d o , do instinto da auto-preservação. A gula e a l u x ú r i a estão ligadas ao mais necessário dos impulsos que a n i m a m as espécies vivas q u e é o da sobrevivência: alimentar-se e reproduzir-se são pressupostos básicos não negociáveis da vida.

N a ordenação de Cassiano, há p o r t a n t o u m a evidente interpretação da natureza h u m a n a na sua complexidade biológica e funcional, mas t a m b é m n o seu mapa fisiológico, tal c o m o era c o n c e b i d o pelas ciências a n t i -gas: primeiro, os combates do ventre (gula e luxúria); depois, os combates do coração, mais ligados às manifestações emocionais (avareza, ira, tristeza); finalmente, os combates do intelecto (vaidade e soberba). Cassiano situa-se n u m a linha de desenvolvimento espiritual devedora da religiosidade cristã, mas t a m b é m dos preceitos filosóficos do platonismo, n o m e a d a m e n t e da separação entre o c o r p o e o espírito, entre o sensível e o inteligível, c o m valorização dos segundos c o m o fontes do c o n h e c i m e n t o autêntico. Assim, são vários os pensadores ascéticos cristãos que encararam c o m d e s c o n -fiança as manifestações dos sentidos e m e s m o os dados aportados p o r estes, apresentando u m c a m i n h o até D e u s de progressivo despojamento dos condicionamentos h u m a n o s : fome, sono, frio, m o v i m e n t o , estímulos v i -suais e auditivos, sensibilidade à dor, todas estas barreiras orgânicas do c o r p o foram testadas c o m o etapas a eliminar pelos q u e q u e r i a m estar p r ó x i m o s de Deus3.

Cassiano, c o m o divulgador deste motivo na espiritualidade monástica e n o cristianismo e m geral, deu voz a u m a tendência que ainda é fácil de r e c o n h e c e r na cultura ocidental, e c o m alguns reflexos perversos nos

Prudêncio, Eutrópio de Valência, Alberto Magno, Alcuino, Bernardo de Cluny, entre outros, testemunham a popularidade do tema entre a literatura cristã. (Ver R . Newhauser, op. cit. pp. 21-53). O monge e Papa Gregório Magno foi responsável pela transferência deste tema enquanto proposta edificadora exclusiva do público monástico para a moralidade cristã em geral, na sua magistral obra Moralia injob. Foi também quem fixou o catálogo dos vícios no número de sete, e na ordem que lhe conhecemos hoje, que inverte a de Pascasio e de Cassiano, da catequese cristã actual sob o nome de sete pecados capitais.

3 J. Daniélou (1954), Platonisme et théologie mystique: âoctrine spirituelle de Saint

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nossos dia e que consiste n o desvalorizar da alimentação e n q u a n t o c o m p o r -tamento h u m a n o . D o m i n a r este impulso é o primeiro dos combates porque implica sacrificar o que de mais primitivo existe n o h o m e m . Ε t a m b é m o m e n o s difícil, e a vitória sobre ele, conseguida através da sua redução à essência mínima, manipulando as quantidades e as qualidades dos alimentos ingeridos pelo j e j u m e pela abstinência selectiva, revela u m h o m e m apto para combates c o m adversários mais poderosos e mais dignificantes4.

O q u e é a essência da alimentação, qual é o limiar de s u p o r t e de vida, o estritamente necessário para garantir a sobrevivência saudável d o c o r p o e a energia necessária ao seu funcionamento? Cassiano, c o m o outros teorizadores monásticos, cristãos, o u m e m b r o s de outras religiões, incluiu o disciplinar da alimentação — pelos jejuns, pela selecção d o tipo de alimentos, pela interdição periódica de determinadas qualidades de ali-m e n t o s — na sua prática religiosa, garantindo p o r vários ali-m é t o d o s , e ali-m regra, não c o m p r o m e t e r a premissa da sobrevivência do corpo.

O reduzir da alimentação ao grau zero da sua presença n o quotidiano dos c o m p o r t a m e n t o s h u m a n o s é u m acto complexo, mas não exclusivo da religiosidade antiga, cristã o u outrab: revela p o r u m lado u m a " s e c u n d a r i

-4 Inst. Coen. V, 3, Itaque primum nobis ineundum certamen est aduersus

gastrimar-giatn, quam diximus gulae esse concupiscentiam, et in primis de ieiuniorum modo et escarum qualitate dicturi... (em tradução nossa) "assim, o primeiro combate que devemos

travar é contra a gastrimargia (de gastêr + margem "estômago + enfurecer"), que é a concupiscência da gula, e em primeiro lugar falaremos da quantidade dos jejuns e da qualidade dos alimentos...". O princípio da progressividade dos combates apa-rece bem enunciado em Inst. Coen. V, 10-11, onde se descreve a sequência dos combates: para vencer a luxúria, há que ter derrotado a gula; para vencer a avareza, há que ter dominadas as duas primeiras, e assim progressivamente. Justifica-se então, no final do cap. 11 ...impossibile namque est extingui ignita corporis incentiua,

priusquam ceterorum quoque principalium uitiorum fomites radicitus excidantur... "É que é

impossível que o fogo que incendeia o nosso corpo seja extinguido se, primeiro que tudo, os estímulos dos vícios principais não forem eliminados pela raiz...";

Quantalibet urbs sublimítate murorum et clausarum portarum firmitate muniatur, posterae unius quamuis pamissimae proditione uastabitur. "Por mais altos que sejam os muros, e

por mais sólidas que sejam as portas a protegerem uma cidade, ela será pela traição de um só alçapão secundário, ainda que pequeníssimo, devastada".

3 Para mencionar os caso mais conhecidos de manifestações religiosas

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A linguagem dos alimentos nos Textos Bíblicos \&\

zação" deste aspecto c o m o condicionador da actividade h u m a n a , sobre-t u d o q u a n d o m o sobre-t i v a d o p o r u m desejo de aproximação à divindade; mas, p o r o u t r o lado, a disciplina imposta nos m é t o d o s de controlar esta redução não p e r m i t e obliterar, o u retirar a visibilidade, à importância dos p r ó p r i o s alimentos n o curso da vida h u m a n a . Estes aspectos apresentam n o m u n d o actual os mesmos c o n t o r n o s paradoxais, que e m b o r a estejam despidos de u m a normativa e de implicações religiosas, se assumem c o m a mesma força na sua capacidade de condicionar o c o m p o r t a m e n t o6.

adopção de uma dieta vegetariana; o Dionisismo incluía rituais de ingestão de carne crua. O hinduísmo e o budismo, embora nem em todos os ramos destas antigas religiões tal aconteça, adoptam dietas vegetarianas. O judaísmo e o isla-mismo têm, além de um calendário de jejuns rituais, uma série distinta para cada um de alimentos interditos.

6 A redução do acto de alimentar-se às exigências determinadas pela biologia

e a fisiologia humanas, a disciplina dos jejuns periódicos ou a abstinência de determinados alimentos impõem uma mestria de si próprio, um conhecimento da realidade que pretende domar-se, neste caso da que envolve a escolha e a prepara-ção dos alimentos, que acabam finalmente por trazer para o foco das atenções o próprio objecto que se pretende reduzir, ou repudiar. Assim, todos estamos hoje bem informados quanto à relação entre a dieta e a saúde. Todos conhecemos, por a escola, o médico, os meios de comunicação social nos terem informado, o limiar calórico diário ideal de cada um, de acordo com o sexo, idade e profissão. A pirâmide dos alimentos, ou a proporção correcta das quantidades e qualidades de nutrientes, estão apresentadas com base no princípio do suporte da sobrevivência saudável, que Cassiano também respeitou, ao colocar como limite para os jejuns e abstinência a saúde do corpo. Hábitos sociais instalados como o comer de pé; a comida rápida (a fast food); mesmo as fórmulas milagrosas das dietas sintéticas que promovem a boa forma física, em pílulas ou batidos; as perturbações da anorexia e bulimia; o padrão de beleza ocidental, identificado com a "ausência de gordura"; "baixo peso"; e magreza; a ditadura da boa forma física, são manifestações deste fenómeno que associa o condicionar da alimentação como modo de construir um ideal humano. Michel Lawers, "Santas e anoréxicas: o misticismo em questão", in Jacques Berlioz (1994), Monges e religiosos na Idade Média (Terramar, trad. port.

1996), pp. 219-223, apresenta uma interessante confronto entre o fenómeno con-temporâneo ligado ao culto da privação dos alimentos e as manifestações místicas da Idade Média dos que levavam o jejum ao extremo de só se alimentarem das espécies eucarísticas.

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Cassiano evoca o versículo paulino temptatio uos non adprehendit nisi

humana " N ã o vos sobrevêm n e n h u m a tentação q u e n ã o seja h u m a n a "7

para e x p o r a necessidade de, preliminarmente, enfrentar os c o m b a t e s q u e disciplinam o c o r p o , antes de m e r e c e r a experiência de grauiores pugnae, os combates mais difíceis, os d o espírito. Assim, o c o m b a t e q u e implica domesticar a ingestão de alimentos e o p r ó p r i o apetite é o mais h u m a n o e o mais carnal dos combates. Mais tarde, disciplinadas e sublimadas as necessidades d o corpo, está o h o m e m preparado para provas mais difíceis e mais nobres, as q u e envolvem o espírito e o intelecto. Vemos q u e t a m b é m Cassiano, sem deixar de relegar o alimentar-se para u m plano secundário da dimensão humana, não afasta esta dimensão do plano ascético para o h o m e m . D e o n d e v e m esta ambivalência na consideração d o acto de alimentar-se?

Alimentar-se é, provavelmente, o mais primordial e mais h u m a n o dos c o m p o r t a m e n t o s , na m e d i d a e m q u e a supressão deste agir é i n c o m p a t í v e l c o m a vida. D e entre os m o d o s de relação c o m o exterior p r o p o r c i o n a d o s pelos sentidos de q u e o h o m e m está dotado, este é, s i m u l t a n e a m e n t e , o m e n o s n o b r e , mas o mais vital e o mais necessário à m e c â n i c a da vida, j u n t a m e n t e c o m a respiração. P o d e m o s viver sem os estímulos p r o p o r c i o

-nados pelo sentido da visão, sem a audição, sem o m o v i m e n t o e o sentido d o tacto. P o r é m , privados de água e de alimentos, a m o r t e sobrevêm rapidamente. Acresce a esta constatação o facto de o gosto o u o paladar, os sentidos mais directamente ligados ao acto de alimentar-se, implicarem u m a apropriação í n t i m a d o objecto i n g e r i d o o u saboreado q u e , n o limite, o transforma na substância d o p r ó p r i o agente: p o d e m o s ver, ouvir, tocar, e m e s m o cheirar os objectos d o m u n d o , sem q u e estes sejam transformados o u destruídos, mas para saborearmos o u para nos alimentarmos, c o n s u m i r

-mos e transformar-mos fazem parte d o processo de apreensão d o objecto8.

7 I C o r 10, 13. Apresentamos a nossa tradução para o que é citado por João

Cassiano no passo comentado Inst. Coen.V 16. A tradução apresentada pela Bíblia dos Capuchinhos é "Não vos sobreveio tentação alguma que ultrapasse as forças humanas". A versão da Vulgata (Colunga-Turrado, 1946) apresenta o verbo no conjuntivo "Tentatio uos non apprehendat nisi humana" "que não vos sobrevenha nenhuma tentação que não seja humana". Já o texto em Grego (Nestle-Aland, 1898) salvaguarda, para o verbo em causa, quer o aoristo, quer, em aparato, o conjuntivo aoristo (οΰκ Εϊληφεν ou ού καταλάβη).

8 Ann W Astell ed. (2006), Eatíng Beauty, the Eucarist anã the Spiritual Arts of the Miãdle Ages. Ithaca, 2, "Taste and See", inicia o seu comentário sobre a estética

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A linguagem dos alimentos nos Textos Bíblicos \ 63

Se retirarmos a reflexão do plano estritamente ditado pelos instintos biológicos, veremos que, ligado a cada u m destes sentidos, cuja razão primordial de existir é exclusivamente funcional — a natureza n ã o desper-diça os seus recursos c o m a criação de inutilidades. — está u m a d i m e n s ã o artística e estética, q u e se desenvolveu e se cultivou na história e n a cultura humanas: vemos, e m p r i m e i r o lugar, para localizar os objectos de q u e precisamos, mas t a m b é m para apreciar o céu azul o u a beleza de u m quadro; o u v i m o s para localizar o som de u m c h a m a m e n t o , mas t a m b é m para apreciar u m a sinfonia; m o v e m o - n o s e somos dotados de t a c t o para manipular objectos, mas t a m b é m abraçamos e dançamos. I n g e r i m o s para nos m a n t e r m o s vivos e c o m energia, mas fazemo-lo saboreando e degus-tando, o u seja, desencadeando u m a série de processos orgânicos e químicos complexos que proporcionam sensações de bem-estar e de prazer, as quais estão absolutamente presentes na vida diária da generalidade dos h o m e n s9.

do gosto alertando para a dificuldade em associar este sentido às artes superiores. Cita u m sermão de Nicolau de Cusa (sec. XV) dedicado à celebração da festa da Natividade da Virgem Maria, em que este diz: (sic, apud A. Astell) "And if we pay attention, making use of the more spiritual senses (I. e. a visão e a audição)...thus vision and hearing in different ways comprehend the beautifoul. We do not call a scent a beautifoul, nor a taste, nor anithing that we touch, because those senses (smell, taste, touch) are not so near the ractional spirit; for they are purely bestial and animal. For ali properly human senses are nobler than those of brutes, by reason of union with the intelectual spirit." Cita também Hegel "Smell, taste and touch are excluded from the enjoyment of art".

9 H. R . Schiffman (1990), Sensation anã Perception: An Integrateâ Approach.

N e w York, 156-163. N o cap. 4 deste livro, o autor aborda aquilo a que chama de "sensações primárias" (em oposição com as mais elaboradas visão e audição dos primeiros capítulos) como o tacto, o gosto e o olfacto, que estão presentes nas complexas percepções ligadas ao acto de alimentar-se. A. Roberts (2006), Messengers

ofgod. The sensuous side of spirituality, "Thinking about the senses", pp. 5-26;"tasting",

pp. 109-128. O paladar, sentido proporcionado pelas papilas gustativas situadas na língua, só capta a sensação de doce, salgado, amargo e ácido. A sensação de quente, frio, líquido, pastoso ou rijo pertencem já ao sentido do tacto proporcionado pela pele. A interacção com o sentido do olfacto é que permite a complexidade de sabores que sentimos ao mastigar os alimentos, acto cuja função não é apenas a de reduzir por acção mecânica os alimentos, mas também a de proporcionar o tempo necessário para sobre eles agir o olfacto. Alimentar-se é, por isso, uma acção que leva tempo. Por isso os alimentos ficam "sem sabor" quando estamos constipados.

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N o entanto, temos dificuldade de associar dimensões artísticas o u estéticas claras a esta capacidade de fruição, de tal forma ela se banaliza n o c o m p o r t a m e n t o h u m a n o : a culinária, a gastronomia, m e s m o a arte da perfumaria n ã o fazem parte do catálogo das sete artes, e m b o r a estejam presentes n o quotidiano banal d o nosso dia-a-dia pela p r o d u ç ã o , conser-vação e preparação dos alimentos q u e c h e g a m , e m geral, à nossa mesa transformados de u m m o d o q u e nos dá prazer, ou de q u e gostamos.

A etimologia e a l i n g u a g e m corrente r e p r o d u z e m quer a c o m p l e x i -dade f e n o m e n o l ó g i c a d o acto de alimentar-se, quer a facili-dade c o m q u e se registou a transferência d e categorias entre a sensação e a cognição, entre o instintivo e o consciente e elaborado. O q u e p r e t e n d e m o s dizer e x a c t a m e n t e q u a n d o usamos o verbo "saber", d o verbo latino sapere, q u e significa "saborear; degustar"? Ε quand o dizemos, p o r exemplo, qu e gosta­ mos da Primavera, teremos e m m e n t e o significado latino de gustare, "ingerir, deglutir"?; o u quando actualizamos verdadeiros chavões idiomáti-cos c o m o "gostos n ã o se discutem", o u " é u m a questão de g o s t o " , pensa-remos n a referência subliminar à apreensão através d o paladar, o u tão só na c o m p l e x a paleta d e sentidos envolvida n a p r o d u ç ã o d o c o n h e c i m e n t o e na nossa resposta subjectiva ao m e s m o , manifestada sob a forma d e juízos o u de opiniões?

C o m estas considerações, q u e d e c o r r e m mais de u m a observação das realidades quotidianas e n q u a n t o tais d o q u e de u m a aturada análise teórica, p r e t e n d e m o s de algum m o d o apresentar u m a possível explicação d o q u e c o n s i d e r a m o s ser u m p a r a d o x o q u e está p r e s e n t e n a l i n g u a g e m da espiritualidade, e c o n c r e t a m e n t e nos textos cristãos, c o m o e m Cassiano.

O aperfeiçoamento espiritual d o h o m e m religioso exigelhe o d o m í -n i o sobre o acto d e alime-ntar-se, a frugalidade, a absti-nê-ncia e o j e j u m , isto é, a redução deste c o m p o r t a m e n t o ao estritamente necessário e funcional. C o n t u d o , este d o m í n i o aparece, na o r d e m dos combates, n u m lugar s e c u n -dário, c o m o preliminar e m relação aos combates mais graves e mais difíceis,

Ao contrário do olfacto, sentido extremamente sensível e afectado por várias patologias, o paladar é bastante resistente. Segundo os especialistas, os sentidos do paladar e do olfacto evoluíram como todos os outros na espécie humana, ou seja, para proporcionar uma melhor adaptação ao meio ambiente. Neste caso, o paladar está ao serviço do reconhecimento do que é útil e benéfico para o homem, e que por isso está associado à procura de sensações agradáveis, ou de prazer.

(12)

A linguagem dos alimentos nos Textos Bíblicos \65

o q u e constitui t a m b é m u m a desvalorização da importância do a c t o e m si, apreciação q u e é, e m larga medida, coincidente c o m a m e n t a l i d a d e d o h o m e m m o d e r n o .

N o entanto, a m e s m a l i n g u a g e m da espiritualidade utiliza metáforas e imagens de e n o r m e riqueza q u e associam o acto de alimentar-se à fruição e à felicidade q u e resulta d o m e s m o , l e g i t i m a n d o o c o m o fonte de p e r -cepção mística. D o m e s m o m o d o , o acto de alimentar-se aparece c o m o f u n d a m e n t o de rituais e práticas religiosas, q u e vão desde os sacrifícios pagãos até à Eucaristia p r ó p r i a d o cristianismo. Finalmente, n o p r ó p r i o texto bíblico, são abundantes, nas suas narrativas, motivos e símbolos liga-dos à alimentação, aos p r ó p r i o s bens alimentares e à experiência liga-dos extremos, desde a inanição à saciedade, q u e r c o m o limites da p r ó p r i a h u m a n i d a d e quer c o m o metáforas da superação da mesma.

Conscientes de q u e esta segunda parte d o paradoxo, a q u e n a prática valoriza a presença da l i n g u a g e m relativa à alimentação e aos alimentos c o m o fonte de significação religiosa, está hoje p o u c o presente n a nossa mentalidade e t e m sido m e n o s debatida academicamente, p r e t e n d í a m o s contribuir para a análise d o t e m a através de u m a incursão pelos motivos alimentares e n q u a n t o integrados na linguagem espiritual e religiosa d o cristianismo.

A expulsão d e A d ã o e Eva d o paraíso, s e g u n d o a narrativa d o G e n . 3 , foi provocada pela falta original, ao c o m e r e m o fruto proibido. Eva, apesar de c o n h e c e r a interdição, admira e deseja o fruto de atraente aspecto, antes m e s m o de o valorizar pela sua capacidade de abrir a inteligência1 0. Ingerir

o fruto proibido n ã o decorre da satisfação d o impulso natural da fome (que n ã o existiria n o paraíso), mas da apreciação estética da beleza d o fruto e d o desejo do c o n h e c i m e n t o proporcionado pelo fruto que, segundo a serpente, " t o r n a r i a q u e m o ingerisse semelhante a D e u s " . D o castigo dado aos

10 Gen. 3, 6 Viâit igitur mulier quod bonum esset lignum aâ uescendum, et pulchrum

oculis, aspectuque delectabile: et tulit defructu ãlius, et comedit deditque uiro suo, qui comedit

(Trad. da Bíblia dos Capuchinhos) "Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspecto, e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele ao seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu". O excerto sublinhado não surge na Vulgata (Vulg.), mas a versão grega dos Septuaginta (Sept.) apresenta-o (και ώραΐόν έστιυ του καται/οήσαι).

(13)

faltosos também faz parte o condicionamento alimentar. A serpente está

condenada a rastejar, alimentando-se de terra. Sobre Adão, cai a ameaça da

fome, afastada pela disciplina do trabalho

11

.

A gravidade do que está em causa neste acontecimento maior não se

limita a haver "menos um fruto no pomar de Deus", e o facto de se terem

escrito múltiplas páginas de comentários e exegeses sobre a interpretação

deste passo inicial do Génesis, todas atribuindo aos elementos envolvidos

na narrativa um carácter simbólico é disso prova. N o entanto, é consensual

que se trata de uma narrativa mítica sobre as origens, que pretende

justifi-car o sofrimento, a mortalidade, o trabalho e a sucessão das gerações, ou

seja, um mito que concentra, numa breve narrativa, o curso observável da

vida dos homens.

Após o dilúvio, Noé plantou a primeira vinha e, com os frutos colhidos

produziu vinho, com que se embriagou, num relato cuja sequência

ter-mina por explicar não só a geração de vários povos do Médio-Oriente,

mas também a rivalidade histórica e os conflitos entre eles, fundamentados

na maldição que Noé lançou ao seu filho mais novo, Cam, o pai de Canaã,

por este o ter surpreendido embriagado e despido na tenda

12

. Também por

um prato de lentilhas se alterou a ordem de progenitura entre Esaú e

Jacob, filhos de Isaac e netos de Abraão. Jacob repetiu o engodo quando,

instigado pela mãe, preparou e serviu ao pai um prato de deliciosos

cabritos, fazendo-se passar pelo primogénito, Esaú, o que levou Isaac a

abençoar apenas a Jacob

13

.

A busca de alimento está na base de algumas migrações relatadas na

Bíblia. Já em Canaã, a terra que lhe tinha sido prometida, Abraão desceu

até ao Egipto, levado por "uma grande fome"

14

. U m novo surto afecta

Isaac, o que o leva a fixar-se perto dos filisteus

15

. José, escravo no Egipto,

por ter afastado o espectro das fomes cíclicas que atingiam o país graças ao

11

Gen 6 14; 3, 19 "comerás o pão com o suor do teu rosto".

12

Gen. 10 18-27.

13

Gen. 25, 29 "E disse a Jacob: — Deixa-me comer dessa coisa vermelha, pois

estou muito cansado (...) Jacob disse-lhe: — vende-me o direito de progenitura.

Esaú retorquiu — Que me importa a mim o direito de progenitura se estou a

morrer de fome?".

14

Gen. 13, 10.

15

Gen. 26, 1.

(14)

A linguagem dos alimentos nos Textos Bíblicos \ (fj

seu d o m para interpretar sonhos, recebe os favores d o faraó, o q u e lhe p e r m i t e constituir descendência e instalar a família n o Egipto1 6.

O Livro d o Ê x o d o narra o regresso dos descendentes destes J u d e u s à terra prometida, conduzidos p o r Moisés. As oito pragas q u e assolaram o Egipto, desde as águas d o N i l o convertidas e m sangue até aos gafanhotos, são, na Bíblia, descritas sobretudo pela sua capacidade de g e r a r e m sede, fome e doença entre os egípcios 17. Anunciada a décima praga, o e x t e r m í

-nio dos p r i m o g é n i t o s egípcios, o S e n h o r instrui Moisés sobre o m o d o de p r o c e d e r naquela noite fatal. Este p r o c e d i m e n t o instituiu, entre os Judeus, o ritual da Páscoa: será imolado u m cordeiro sem defeito, e m cada casa. C o m o seu sangue serão pintadas as ombreiras das casas, mas a sua carne deverá ser assada e totalmente consumida nessa noite, a c o m p a n h a d a de pães ázimos e de ervas amargas. N a d a deve ser guardado para o dia seguinte, p o r q u e será o dia da partida. Ε assim testada a fé dos J u d e u s na promessa da libertação1 8.

Por várias vezes, j á durante a errância pelo deserto, D e u s c o l o c o u à prova a confiança d o seu p o v o através d o c o n d i c i o n a m e n t o alimentar. N o segundo mês de p e r m a n ê n c i a n o deserto, levantaram-se os primeiros m u r m ú r i o s contra Moisés e Araão. T e m e n d o s u c u m b i r e m p o r causa da fome, l a m e n t a m ter a b a n d o n a d o "as panelas de carne e o p ã o q u e c o m i a m à v o n t a d e " do E g i p t o . Q u a n d o a ansiedade pela falta de alimentos e pelo risco da sede os atinge, e se levantaram m u r m ú r i o s entre os J u d e u s , o S e n h o r fez cair sobre o deserto u m a chuva de maná, o qual "se parecia c o m a semente de coentro, era b r a n c o e tinha o sabor de b o l o de m e l " , e fez brotar água d o r o c h e d o de H o r e b1 9.

Sustentaram-se deste alimento de o r i g e m divina durante os quarenta anos de errância n o deserto, mas a sua entrega ao p o v o obedecia a u m a

16 Gen. 41. Gen 42. Os sonhos do faraó interpretados por José incluem

também metáforas alimentares: sete vacas gordas devoradas [deuorauerunt eas) por sete vacas magras, sete espigas viçosas absorvidas (deuorantes omnetn) por sete espigas raquíticas. Os laços com a sua família de origem são reatados quando esta fome se estende aos povos vizinhos, levando-os a procurar socorro na prosperidade do Egipto.

17 Ex. 8-10. 18 Ex. 12.

19 Ex. 16, 31...quod erat quasi sémen coriandri álbum, gustusque eius quasi similae

(15)

n o ç ã o de compromisso entre D e u s e o h o m e n s q u e implica o saciar-se, confiando n a entrega quotidiana d o b e m alimentar, mas n ã o ultrapassar esse limite. Açambarcar (cada família recolhe u m a d e t e r m i n a d a quantidade para u m dia), e reservar para o dia seguinte i a m contra as instruções divinas, e revelaram-se inúteis. Assim, e m diversos m o m e n t o s os J u d e u s são vencidos pela tentação d e recolher mais d o q u e a quantia autorizada para aprovisionarem para o dia seguinte, mas n o final d o dia, as m e d i d a s r e c o -lhidas e r a m iguais para t o d o s , e o maná, e n c h e n d o - s e de v e r m e s , torna-se i m p r ó p r i o de ser consumido2 0.

A m o n o t o n i a da dieta t a m b é m constitui u m foco d e tensão entre o p r o g r a m a de D e u s e as expectativas dos h o m e n s : n o v a m e n t e se fizeram l e -vantar m u r m ú r i o s entre os errantes, "atacados p o r desejos desordenados"2 1:

"— Quem nos dará carne para comer? Lembramo-nos do peixe que

comíamos no Egipto, sem nos custar nada, dos pepinos, dos melões, dos alhos porros, das cebolas e dos alhos. Agora, temos a garganta seca. Falta-nos tudo.

Nada mais temos do que maná. (...) — Onde encontrarei carne para todo este povo que me assedia com as suas lágrimas dizendo: — Dá-nos carne para

comer!

N ã o está e m causa o p o d e r nutritivo d o maná, pois a errância n o deserto d u r o u décadas, n e m o seu sabor agradável, pois as comparações usadas evocam sensações d e d o ç u r a e a macieza evocadas p o r dois dos alimentos mais populares e apreciados na Antiguidade, a saber, o m e l e o azeite22.

D e u s p u n e os descontentes p r o p o r c i o n a n d o - l h e s u m a refeição exces-siva e descontrolada d o alimento desejado, a carne, cuja ingestão n ã o tinha sido proibida, desde q u e d e t e r m i n a d a pela disciplina divina2 3. Assim, na

n o i t e anterior à da queda d o p r i m e i r o maná, as mesmas codornizes t i n h a m

20 A errância de Moisés no deserto é narrada nos livros do Êxodo, do

Levítico e dos Números. Ex. 16, 17-20.

21 N m . 11 4-9. Vulg. "flagrauit desiderio"; Sept.'ET\e%\n\aav έττιθυμίαΐΛ 2 2 Ex. 16, 31; N m 11, 7 O maná é descrito como pão ou bolo " O maná era

semelhante ao grão de do coentro e tinha o aspecto de bdélio (tipo de pedra preciosa). O povo dispersava-se para o recolher e depois moía-o em moinhos ou pisava-o com almofarizes; cozia-o numa panela e fazia bolos com ele. Tinha o sabor das tortas feitas com azeite..."

(16)

A linguagem dos alimentos nos Textos Bíblicos \ 59

aparecido n o acampamento, e o povo p ô d e comê-las, dentro d o estrito limite t e m p o r a l fornecido p o r Deus2 4.

Já havíamos vislumbrado esta restrição do t e m p o aquando da última noite passada pelos j u d e u s n o Egipto. Estes foram então advertidos para nada reservar para o dia seguinte pois i r i a m partir. N e s t e passo agora citado, p o d e estar associada à ideia da errância, da viagem do p o v o p e l o deserto, q u e não se compadecia c o m o carregar de reservas alimentares excessivas. Mas, n u m a leitura mais profunda, está t a m b é m e m causa a fé nas promessas de D e u s e a capacidade de se abandonar à providência divina, n u m a manifestação de h u m i l d a d e e de confiança diante d o q u e é superior. Está e m causa, e m suma, a ideia do compromisso e da aliança celebrada entre D e u s e o seu povo.

A m e s m a m e n s a g e m está presente n o N T , particularmente na célebre exortação de Cristo sobre a simplicidade de vida das aves e dos lírios do

campo2 5, mas t a m b é m na formulação precisa da primeira oração, o Pai

Nosso, e m que os h o m e n s são ensinados a pedir apenas o necessário, " o pão de cada dia"26.

23 N m . 11, 19 O relato bíblico destaca a imoderação e o desejo de reservar

para o futuro, o que revela a falta de confiança nas promessas de Deus. " O Senhor dar-vos-á carne a comer. Ε não a comereis durante um dia ou dois, nem durante cinco dias, dez dias ou vinte dias, mas durante u m mês inteiro, a tal ponto que ela vos saia pelas narinas e vos cause náuseas..."; Caíram então codornizes sobre o acampamento, todos as apanharam e comeram-nas, ocupando-se a "expô-las em volta do acampamento". A interpretação do excerto que acabámos de citar ganha em clareza com a Vulg. et siccauerunt eas per gyrum castrorum, corroborada por idên-tica versão nos Sept. Secar a carne é mais do que "expô-la", implica uma intenção de a conservar para o futuro. N m . 11, 33, "A carne estava ainda entre os dentes, ainda não tinha sido engolida, quando a cólera do Senhor se inflamou".

24 Ex. 16 18 "esta tarde o Senhor dar-vos-á carne para comerdes, e amanhã

pão com fartura (...) Ex. 16, 12 Esta tarde, ao anoitecer, comereis carne, e amanhã saciar-vos-eis de pão..."

2D LC 12 22, 24, 29: "não vos preocupeis quanto à vossa vida, com o que

haveis de comer; nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir (...) Reparai nos corvos; Não semeiam nem colhem; não tem dispensa nem celeiro, e Deus sustenta-os (...) Não vos inquieteis com o que haveis de comer ou de beber, nem andeis ansiosos, (...) pois o vosso pai sabe que tendes necessidade delas".

26 Lc. 11, 3 "dai-nos em cada dia o pão da nossa subsistência"; Mt. 6, 11

(17)

Parece-nos óbvio q u e o que está e m causa nesta narrativa n ã o é tanto a ementa proposta p o r Deus ou preferida dos homens, ou sequer u m a história da dieta alimentar dos antigos judeus. A linguagem e os motivos evocados que recolhemos apenas dos primeiros livros da Bíblia e e m passos estrita-m e n t e narrativos, todos do caestrita-mpo seestrita-mântico da aliestrita-mentação, assuestrita-meestrita-m, tal c o m o acontecera n o livro do Génesis a propósito do fruto interdito aos h o m e n s , u m a dimensão metafórica e simbólica coerentes. A narrativa e x p l o -ra a tensão entre a fome, a saciedade, e a abundância c o m o metáfo-ras da própria capacidade de obediência dos h o m e n s a Deus, e da qualidade do compromisso e da confiança instalada entre as duas instâncias.

D e u s faz sempre u m a promessa de abundância, ligada à expectativa de felicidade, vivida n u m j a r d i m paradisíaco " d e saborosos frutos para c o m e r " , o u n u m a terra p r o m e t i d a "país o n d e corre o leito e o mel, de frutos abundantes"2 7. Mas os m o d o s de atingir esta plenitude passam pela

obediência a determinadas regras cuja gramática é a da m o d e r a ç ã o : resistir à ingestão do fruto proibido, não consumir t u d o o q u e se vê, n ã o reservar para o dia seguinte, isto é, não ultrapassar os limites definidos, e m cada compromisso, p o r D e u s . Esta m o d e r a ç ã o não surge, c o n t u d o , c o m o u m fim e m si, mas antes c o m o u m m é t o d o para alcançar a h u m i l d a d e e a sintonia c o m os planos de D e u s .

A mesma gramática está presente n o N o v o Testamento, particular-m e n t e nos Evangelhos, nas narrativas de alguns episódios da vida de Jesus e m e s m o nas parábolas, e m que o R e i n o dos C é u s surge p o e t i c a m e n t e evocado c o m o u m reino de abundância e de saciedade alimentar, u m b a n q u e t e e u m a celebração n o qual não t e m lugar o j e j u m p e r i ó d i c o e ritual das tradições judaicas2 8.

Vulg. panem nostrum quotiâianum da nobis hodie; panem nostrum supersubstantíalem da nobis hodie. O pedido formulado é complexo, e assenta em várias restrições: dá-nos

o pão nosso (e não o dos outros) de cada dia (o que basta para um dia) hoje (e não amanhã, o que obriga a renovar o pedido diariamente).

27 Gen. 2, 9; N m . 13, 27.

28 Mt. 9 14-15 "Porque é que nós e os fariseus jejuamos e os Teus discípulos

não jejuam? — Porventura podem os companheiros do esposo estar tristes enquanto o esposo está com eles?".Também Mc 2 18-22. Lc 6 33-39 A crítica à periodicidade do jejum praticado pelos judeus é feita nos Evangelhos (por exemplo Lc 6 1-4).

As Epístolas e os Actos registam ocasiões de maior conflito em relação aos

(18)

A linguagem dos alimentos nos Textos Bíblicos 171

A parábola da boda do filho do rei é apresentada como "semelhante ao reino dos céus", em que muitos são convidados e não só recusam como maltratam os mensageiros, enquanto outros, menos óbvios, acedem ao convite29. O reino dos céus é também comparado ao pequeno grão de mostarda que, semeado, se converte na maior árvore do horto, aprazível para todos, ou à pequena quantidade de fermento que basta para levedar toda a massa30. Ε ainda semelhante a uma rede que recolhe peixe em abundância, que os pescadores seleccionam já na praia31. Os apóstolos são comparados ao sal da terra, com as propriedades que este elemento apre-sentava na Antiguidade, ou seja, a de permitir a conservação e a salubrida-de dos alimentos e a salubrida-de temperar32.

A parábola bem conhecida do filho pródigo está toda construída em cima destes eixos de sentido: é a fome que motiva o filho perdido a desejar o regresso a casa do pai, e este recebe-o de braços abertos, com u m banquete tão faustoso que desperta críticas no outro filho que sempre lhe tinha sido leal33. As Bem-Aventuranças, verdadeiro testamento de Jesus dado aos seus ouvintes, tornam legítimas as grandes preocupações dos homens, e mostram reconhecer que, entre estas a fome ocupa u m lugar maior, e é para os despojados do conforto dos alimentos que se dirigem as palavras, formuladas em linguagem antitética, mas que curiosamente asso-ciam a ideia da superação da fome à ideia de justiça. O u seja, as duas realidades têm de coexistir num mundo bem ordenado34.

29 Mt 22 1-14. Lc 14 15-24.

30 Mt 13 31-33. Em comum entre estas imagens está a ideia da multiplicação, do crescimento a partir de recursos limitados e da abundância de alimentos.

31 Mt 13, 47-48. 32 Mt 5 13. 3 3L c l 5 11 32.

34 Lc 6 21 "Bem aventurados vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados" e Lc 6 25 "ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome". Em Mt 5 1-12, a formulação não parece referir-se à fome física, mas o vocabulário empregue restaura a metáfora alimentar aplicada à realidade mais abstracta que é a justiça: "Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados". Vulg. Beati qui esuriunt et sitiunt iustitiam quoniam ipsi

saturabuntur: NT Graec. (μακάριοι οι ττζίνωντβς και διψωντβς την δικαιοσύνην

(19)

Jesus Cristo iniciou a sua vida pública nas bodas m a t r i m o n i a i s de Cana, e o seu primeiro milagre resolveu objectivamente u m a situação de carência de v i n h o que ameaçava o sucesso do festim33. E m dois m o m e n t o s

diferentes Jesus se apiedou da multidão que o seguia, expostos à fome, e realiza multiplicações milagrosas de pão e de peixe, c o m que sacia a

multidão3 6. É na celebração da Páscoa judaica, e m redor de u m a mesa, que

Cristo institui a sua Igreja e celebra a primeira Eucaristia, n a véspera de sofrer a Paixão3 7.

O acto de c o m e r e beber, estando Cristo sujeito às mesmas necessidades de todos os h o m e n s , é j u s t a m e n t e usado c o m o sinal claro da h u m a -nidade que Cristo partilha c o m os h o m e n s . Tendo sentido fome, procura figos n u m a figueira à beira do caminho, e não os e n c o n t r a n d o , amaldiçoa a dita árvore, que seca imediatamente, o que deixa os discípulos surpreendi-dos c o m o seu poder3 8. Assim, revela-se, Ressuscitado e m c o r p o e espírito,

aos seus discípulos, partilhando c o m eles alimentos. N a agonia da cruz,

algumas das Suas últimas palavras são para se queixar de sede39.

Finalmente, a própria Eucaristia, instituída c o m o u m ritual de central importância na vida espiritual do cristão, acenta sobre a simbologia do b a n q u e t e solene que reúne, e m partilha, os fiéis a D e u s . O m o d o c o m o nasceu na vida cristã r e m e t e para u m concretismo quase c h o c a n t e e

escandaloso para os não cristãos40, e dessa capacidade de abalar consciências

3 5J o 2 1-10.

36 Mt 14, 15-21; Mt 15 32-38 "todos comeram até à saciedade, e com o que

sobrou encheram sete cestos bem cheios".

37 Mt 26 17-29; Mc 14,12-25; Lc 22 7-30; Jo 13 1-32. 3 8M t 2 1 18-19. Mc 11 12-14.

39 Lc 24, 30, com os discípulos de Emaús. Lc 24 42, diante dos onze "Tendes

aí alguma coisa que se coma? Deram-Lhe uma posta de peixe assado, e tomando-a, comeu-a diante deles". Mc 16,14 "Apareceu finalmente aos próprios onze quando estavam à mesa".Jo 21, 12-13 Jesus aparece aos discípulos pela terceira vez, parti-cipa numa faina especialmente abundante (a ponto de as redes ameaçarem romper--se), após a que prepara o peixe e come com eles. "Tenho sede. (...) Tudo está consumado" As últimas palavras na cruz, segundo Jo 19 28.

40 O ritual Eucarístico parece estar na base das acusações de canibalismo e de

(20)

A linguagem dos alimentos nos Textos Bíblicos 1 7 3

estava ciente Jesus, q u a n d o se apresentou c o m o " o pão da vida", a ser dado e m alimento aos q u e N e l e acreditam. N o s primeiros séculos d o cristia-nismo a Eucaristia, à letra "a B o a Graça", era designada p o r coena Dominica ou mensa Domini (kuriakon detpnon); sacrificium (thusía), oblatio, fractio panis

(klásis tou ártou) o u simplesmente synaxis, termos q u e p e r m i t e m associar

quer a alimentação e convívio que se e n c o n t r a m e m redor de u m mesa de festa.

N e n h u m destes termos restaura a ideia de m o d e r a ç ã o o u de privação. Essa dimensão literal do acto de " c o m e r C r i s t o " nas espécies consagradas e a suspeita de esta ingestão p o d e r ter levado, objectivamente, ao saciar de u m a fome física, foram vividas pelos primeiros cristãos, a p o n t o de o apóstolo Paulo ter tido de alertar a c o m u n i d a d e de C o r i n t o para a n e c e s -sidade de depurar o ritual. A fome do c o r p o deve ser saciada n a casa de cada u m , diz ele41.

A ideia da saciedade, que decorre da ingestão de alimentos suficientes legitimada na Eucaristia, acresce toda a linguagem mística construída, e m segunda instância, sobre esta, que evoca as sensações de prazer e felicidade proporcionados pela doçura do alimento c o n s u m i d o .

Evocamos apenas o exemplo do v. 9 do SI 33 Gustate et uidete

quoniam suauis est Dominus", t r a d u z i d o na liturgia cristã actual para

"saboreai e vede c o m o o S e n h o r é b o m " , u m verso de significado c o m -plexo, que, se p o r u m lado indicia u m convite expresso ao apreciar das obras da criação "saboreai e v e d e os bens que o S e n h o r vos p r o p o r c i o n a " , p o r o u t r o lado p o d e r e m e t e r para a própria fruição proporcionada pela c o m u n h ã o sagrada, isto é "senti profundamente c o m o D e u s é felicidade". N ã o deve ser ainda ignorada a associação entre o acto de degustar e de ver, os dois dependentes de sentidos físicos não só distintos, c o m o valorizados de m o d o diferente, mas q u e aqui c o n v e r g e m para produzir a mesma experiência sinestésica de b e m estar. O u seja, a alimentação, nas suas dimensões de saciar a fome e de proporcionar prazer, ocorre simulta-n e a m e simulta-n t e c o m a apreciação visual da m e s m a realidade que é isimulta-ngerida.

41 I C o r 11 18 27: " O u ç o dizer que quando vos reunis há desarmonias entre

vós (...) Deste modo, quando vos reunis não o fazeis para comer a ceia do Senhor, pois cada um se apressa a tomar a sua própria ceia; e enquanto uns passam fome, outros se fartam. Porventura não tendes casas para comer e beber? O u desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm?

(21)

D e algum m o d o , q u e m saboreia D e u s , vê D e u s e, durante o processo, p o d e sentir, o u c o n h e c e r a sua beleza e b o n d a d e . Poderemos p o r t a n t o , i n t e r p r e -tar esta associação entre o saborear e o ver c o m o formas particulares de potenciar u m a determinada forma de c o n h e c i m e n t o místico.

D o s exemplos citados, retirados d o texto de primeira referência para os cristãos, p o d e m o s constatar a sólida presença da l i n g u a g e m e de m e t á foras que r e m e t e m para o c a m p o semântico da alimentação e da i m p o r -tância desta na vida dos h o m e n s . O facto de a alimentação estar presente c o m o instância de referência metafórica devese, pensamos n ó s , ao r e c o -n h e c i m e -n t o tácito p o r parte dos autores dos textos de q u e , para estes atingirem os seus fins, a linguagem adoptada teria de ser eficaz, isto é p r ó x i m a e familiar aos anseios do receptor. Acresce ainda o facto de a presença destes temas na Bíblia contrariarem, na sua funcionalidade c o m o motivos literários ou espirituais mas t a m b é m na sua d i m e n s ã o concreta, qualquer desvalorização da alimentação c o m o parte fundamental do p r ó -p r i o definir do h o m e m e n q u a n t o tal, -pelo que teremos de encarar atitudes c o m o a de Cassiano c o m o u m a construção teórica posterior da literatura cristã e u m a entre as interpretações possíveis das fontes cristãs.

E m alguns dos episódios relatados, particularmente os de c u n h o his-tórico, n o A T sobretudo, esta realidade constitui-se na própria essência da narração. O s escritores, ao valorizarem a alimentação c o m o m o t o r da acção dos povos, não fazem mais do que r e c o n h e c e r a prosaica realidade da aventura h u m a n a de sempre, que começa, e m p r i m e i r o lugar, pela luta pelos alimentos, pela fuga à fome e à m o r t e q u e ela arrasta. P o r isso, associar o reino dos céus a u m b a n q u e t e o u à abundância de alimentos, ou apresentar a união c o m D e u s através de u m ritual q u e implica alimentar--se, fazem sentido n o quadro dos anseios do h o m e m c o m u m . Esta lingua-g e m foi entendida pelos h o m e n s antilingua-gos certamente, tal c o m o o é pelos h o m e n s de hoje.

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Referências

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