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Método, capitalismo e ideologia a partir de Marx

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PENÉLOPE DINIZ BITTENCOURT NEPOMUCENO

MÉTODO, CAPITALISMO E IDEOLOGIA A PARTIR DE MARX

CAMPINAS 2014

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

PENÉLOPE DINIZ BITTENCOURT NEPOMUCENO

MÉTODO, CAPITALISMO E IDEOLOGIA A PARTIR DE MARX

ORIENTADOR: PROF. DOUTOR ALCIDES HECTOR RODRIGUEZ BENOIT

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do título de Mestra em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas

Este exemplar corresponde ao exemplar definitivo da Dissertação defendida pela aluna Penélope Diniz Bittencourt Nepomuceno e orientada pelo Professor Doutor Alcides Hector Rodriguez Benoit.

Campinas 2014

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RESUMO

O objetivo primordial deste trabalho é, visando à prática, analisar de modo crítico aquilo que Marx denomina como sendo ideologia. Contudo, a apreciação de qualquer temática marxista deve considerar a totalidade na qual se encontra inserida, bem como a relação dialética existente entre seus mais variados elementos. Por isso, começar pelo método, passando pelo sistema, longe de constituir apenas uma escolha, revela-se como exigência basilar que deve nos acompanhar durante toda a empreitada.

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ABSTRACT

The main objective of this work is to analyze in a critical way what Marx called as being ideology, aiming at the practice. However, the attention to any Marxist theoretical framework must consider the entirety in which it is found, as well as the dialectical relation present amongst their most diverse elements. Therefore, starting from the method, passing through the system, far from constituting only a choice, reveals itself as a basic requirement that must accompany us during this undertaking.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 1

CAPÍTULO I - SOBRE O MÉTODO ... 13

1.2-AINFLUÊNCIADEHEGEL ... 24

1.2.1 - A RELAÇÃO DIALÉTICA SENHOR-ESCRAVO ... 28

1.3 - ACERCA DE ALGUMAS CATEGORIAS ESSENCIAIS ... 31

1.3.1-APARÊNCIAEESSÊNCIA ... 36

1.3.2 - ABSTRATO E CONCRETO ... 40

1.3.3 - POSITIVO E NEGATIVO ... 43

1.3.4-UNIVERSALEPARTICULAR ... 48

1.3.5 - NATUREZA E HISTÓRIA ... 51

CAPÍTULO II - PRODUÇÃO DA VIDA ... 57

2.1-VALOR ... 60

2.2 - DINHEIRO ... 66

2.3 - O FETICHE DA MERCADORIA ... 77

2.4-CAPITAL ... 82

2.5 - A ASSIM CHAMADA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA ... 88

2.6 - FORMAÇÃO DAS DUAS PRINCIPAIS CLASSES EM LUTA ... 91

2.7-DIVISÃODOTRABALHOEPROPRIEDADE ... 100

2.7.1 - COOPERAÇÃO, MANUFATURA E MECANIZAÇÃO ... 104

2.7.2 - TRABALHO MATERIAL E INTELECTUAL ... 111

CAPÍTULOIII-PRODUÇÃODA CONSCIÊNCIA ... 117

3.1 - IDEOLOGIA ... 124

3.2 - ELEMENTOS ESSENCIAIS OU CONSTITUTIVOS ... 133

3.2.1-INVERSÃO(VERKEHRUNG) ... 134

3.2.2 - ALIENAÇÃO (ENTÄUSSERUNG) ... 139

3.2.3 - ESTRANHAMENTO (ENTFREMDUNG)... 143

3.2.4-FRAGMENTAÇÃO(ZERSTÜCKELUNG) ... 148

3.3 - ELEMENTOS ACIDENTAIS OU APARENTES ... 153

3.3.1 - LIBERTÉ, EGALITÉ, FRATERNITÉ X DOMINAÇÃO ... 155

3.3.2 - RACIONALIDADE X REALIDADE ... 159

3.3.3-POSITIVIDADEÚNICAXMULTIPLICIDADERELATIVISTA ... 162

3.3.4 – INTELECTUALIDADE BURGUESA X SENSO COMUM . 167 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 181

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Para Claudinha, Índio e Cícero, in memoriam, trabalhadores conscientes e exemplos históricos de combatividade, força e revolução.

Nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta!

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AGRADECIMENTOS

Robson, sem você esse mestrado não seria possível. A sua amizade é samba de morro, cria da classe que só pode contar com ela mesma, exemplo de bumbo que bate fundo no peito, aquilo que de mais verdadeiramente humano a gente pode sentir e ouvir. Obrigada de novo e sempre!

Maria, sua compreensão intuitiva que me dá a coragem que eu preciso nos dias mais difíceis – aqueles de sol a pino, gastos em frente ao computador e em meio aos livros – só pode ser recompensada com muito carinho e amor... em frente a um mar limpinho, cheio de tranquilidade! Bora viajar!

Carmem, Mariana, Caroline e Elaine obrigada pela força que me dão para qualquer estripulia, ideia, invencionice. Obrigada por me mostrarem o que é realmente importante nessa vida e seguirem sendo exemplo de ética, coerência e solidariedade! Amo vocês por escolha, todos os dias.

Alexandre, obrigada pelas correções e pela paciência de reler as contestações às correções! Obrigada, principalmente, por ler essa dissertação, tirando a poeira das estantes acadêmicas e trazendo um pouquinho de vida, conforme seu real propósito.

Juzinho, gracias a la vida que eu tenho um amigo matemático e artista e que faz gráficos bonitinhos pra colocar em meio a um monte de letras! Obrigada!

Obrigada aos amigos Lucas, Matheus, Bia, Felipe, Hugus e Julia, que me convocam a brindar com o filosofante hedonismo carioca, absolutamente imprescindível ao ato de trocar ideias e almas!

Agradeço, ainda, aos pacientes professores que me iniciaram em Marx da forma mais bonita e marxista que há: pela atitude militante! Obrigada, Virgínia, Franklin e Hector.

Agradeço, também, aos funcionários da secretaria da pós-graduação em Filosofia da Unicamp, especialmente à Maria Rita. Foram todos, desde o

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começo, muito solícitos, extremamente prestativos e dispostos a ajudar quando eu me encontrava mais perdida e desesperada! Muito obrigada!

Aos meus colegas, alunos da Unicamp, os quais eu encontrei fortuitas vezes e, alguns, nem cheguei a saber o nome, mas que, ainda assim, graças à solidariedade discente, me ofereceram uma casa pra ficar, me indicaram um lugar pra comer, o melhor ônibus pra se pegar, um sambinha de raiz, ou uma boa discussão política. Obrigada por fazerem eu me sentir tão confortavelmente em casa e por renovarem um pouquinho das minhas esperanças no ser humano.

Um agradecimento especial aos companheiros do MST e ao setor de educação do RJ, à Bia, Elis, Lara, Luana, ao Dudu, aos Sem Terrinha, que me corrigem, na prática, aquilo que eu acho que sei na teoria. Poder viver a luta de classes ao lado de trabalhadoras e trabalhadores conscientes é um privilégio. Ver as categorias e conceitos de Marx sendo utilizados concretamente pela classe a que se destinam para combater e destruir o capital é uma experiência indescritível e a qual eu nunca poderei devolver a vocês como realmente merecem. Obrigada pela oportunidade de estarmos, ombro a ombro, nas trincheiras da revolução.

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Há uma crise sem precedentes na filosofia. Crise de valores, cultural, hermenêutica, da linguagem, de representação, ontológica, conceitual ou propriamente racional? Frente às complexidades do mundo pós-moderno, a razão volta-se para si em busca de ideias que, embora não resultem em uma explicação satisfatória dotada de sentido, desenvolvem-se interiormente em uma infinidade criativa tão diversificada quanto os indivíduos que as elaboram. Dissolvidos os grandes sistemas totalizantes característicos da modernidade, o homem se vê livre das ilusões e utopias que o aprisionavam e se depara com uma multiplicidade de microcosmos envoltos em um caos geral, impossível de ser reorganizado. Voltado para as partes que não compõem um todo, desconstrói coletividades com a mesma rapidez com que acumula informações advindas de todos os lados do globo e que, no contexto geral, servem de suporte ao consenso acerca da fragmentariedade desde sempre existente, mas só agora plenamente manifesta.

Em 1989, pouco antes da disseminação mundial da internet, o arquiteto Richard Wurman, em seu livro Information Anxiety (ROBREDO, 2008), calculava que uma simples edição semanal do jornal The New York Times continha uma quantidade muito maior de informações do que todas aquelas passíveis de serem reunidas por um homem comum vivendo na Inglaterra do século XVII, durante toda a sua vida. A revista Science, em fevereiro de 2011, publica estudo de dois membros da Universidade do Sul da Califórnia (EUA), Martin Hilbert e Priscila López, no qual é estimada a capacidade mundial de armazenar, compartilhar e computar informações mediante a análise de dados provenientes de tecnologias digitais e analógicas, entre 1986 a 2007 (HILBERT & LÓPEZ, 2011). De acordo com a pesquisa realizada, os autores concluem que de 2.6 exabytes de dados de informação existentes em 1986, passa-se a 295 exabytes em 2007, sendo quadruplicados a cada ano. Neste mesmo ano foram transmitidos 1,9 zetabytes de dados por meios de tecnologias como televisão e GPS (as denominadas tecnologias de transmissão de sistemas unidirecionais), o que corresponderia a 174 jornais diários por pessoa.

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Não obstante a gigantesca quantidade de dados reunidos, afirma-se que tal fato é insuficiente para que se resolva ou, ao menos, sejam indicados caminhos destinados à resolução da crise filosófica. Um conhecimento que se apoie tão-somente em elementos quantitativos deveria localizar-se fundamentalmente em outras áreas, e não propriamente na esfera mais dilatada da filosofia. Na verdade, não seria a qualidade das informações acumuladas que resultaria nas fissuras entendidas como possibilidades colocadas para o fim da aporia? É possível negar que, dispondo atualmente de tantas e tão diversificadas fontes, ampliam-se qualitativamente as ideias pelo exercício fundamental da razão? Não seria esta, justamente, a tarefa da filosofia desde o seu início: o estranhamento que impele o pensar? Não é daí que advém sua capacidade de abstração e que diferencia essencialmente o homem? Acaso a grande crise na qual a filosofia se meteu não é resultado, justamente, da crítica qualitativa das certezas solidificadas da modernidade pela relativização aprofundada de suas categorias e conceitos, alcançada pelos pensadores pós-modernos? De que modo, portanto, o filosofar vem a ser a saída para a Filosofia?

Partindo do pressuposto de que este filosofar, sob qualquer de suas formas (artísticas, linguísticas, normativas, culturais), é conditio sine qua non e abertura efetiva para que se ultrapasse o crítico estágio atual, torna-se necessária a utilização de uma metodologia que contribua para tal fim. Da lógica aristotélica, passando pela onto-teologia medieval, pela dúvida cartesiana, pelo imperativo categórico kantiano, pelo cientificismo moderno, até que se alcancem as soluções desconstrutivistas pós-modernas, a razão surge como método geral e inafastável para as abstrações filosóficas. Destinada a variados propósitos, serve de guia, critério de validade, veracidade, certeza e/ou imprecisão. Só por meio dela é possível a criação, a destruição, a recriação, os devaneios, a normatização. É a capacidade racional que, instrumentalizando a reflexão, possibilita ao homo sapiens sapiens reencontrar-se com aquilo que o essencializa e diferencia. Sendo

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método neutro, imparcial, lógico, permite que se formalizem questões e resoluções que respeitem a particularidade de quem as formula.

O otimismo moderno racionalista cede lugar aos desencantos fragmentários da pós-modernidade. A impossibilidade de alcançar o todo do objeto se estende aos diferentes sujeitos. Racionalmente o homem crê em sua capacidade subjetiva, descartando, frente ao estilhaçamento da razão e ao esvaziamento da totalidade, antigos propósitos e construções coletivas. Assim, racionalmente imagina encontrar-se livre e acima dos simplórios estados e conceitos empírico-idealistas que balizaram as buscas e certezas modernas. Extremista, relativiza verdades, categorias, critérios; repele, frente ao espelho, ontologia, história, teleologia, sentido.

Racionalmente procura desvendar as pequenas redes relacionais dentro das quais acredita se encontrar, as mínimas relações de poder que o submetem e submetem outros indivíduos, as estruturas de símbolos e signos que constituem e determinam cada particularidade linguística e, consequentemente, cultural. Racionalmente cria novos mundos que harmonizam lógica e, intersubjetivamente, emissores e receptores, sejam eles homens ou animais, sem que, com isso, se sinta obrigado a utilizar qualquer correspondência com a realidade. Racionalmente, frente à aceleração vertiginosa das mudanças, à complexidade do mundo e à multiplicidade de razões, pensa sozinho, particularizado, compartimentado. O homem racional pós-moderno é-aí sem querer ser.

Por mais que se admitam certas distinções entre as construções teóricas modernas e as micronarrativas filosóficas da atualidade, há, no método utilizado (e não só nele, como oportunamente se demonstrará), uma nítida correspondência que as equipara em forma e conteúdo. O Iluminismo positivo que tem seu ápice no século XVIII creditava à razão humana a capacidade de resolução dos dilemas morais, sociais, políticos e filosóficos enfrentados pela humanidade. Lançando a luz da teoria sobre os problemas e questões (práticos ou

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não), seria perfeitamente possível ao homem, após identificá-los, racionalmente superá-los. A lógica, o formalismo, as regras a serem seguidas serviriam para indicar e balizar o conhecimento até que se alcançasse o estágio ideal. O homem se salvava na e pela razão. O homem do saber se salvava pelo próprio saber.

Aprofundando-se no quadro geral é possível notar que a metodologia proposta acaba por desdobrar-se em uma tautologia que se reproduz de modo abstrato, indefinidamente. O solipsismo no qual se encontrava o pensamento, as justificativas circulares, a autorreferenciação, quando somados ao abandono do universal resultam em teorias que, mesmo excluindo características otimistas típicas da modernidade, não negam, em essência, a primazia do método lógico-racional. O filosofar continua sendo a tábua de salvação da atual crise filosófica.

A crença iluminista contemporânea mantém por base a mesma racionalidade universal lógica positiva, utilizando-se de certas regras e normas de validade para verificar, classificar, conceituar e julgar fenômenos. Excluindo tudo aquilo que não for imparcial, objetivo, neutro, harmônico, será possível adentrar na verdadeira essência da crise filosófica e, por meio da crítica, abrir, para a filosofia, as infinitas possibilidades a que sempre se destinou. Somente assim, livre de quimeras, dogmas, conceitos já superados, pseudo-universalidades, a razão poderá exercer plenamente suas capacidades e fornecer ao homem que conhece o estágio ideal para reconectá-lo ao saber.

A eleição destes critérios normativos, longe de ser aleatória, acaba por manter um sistema que se revela muito mais amplo que as restritas cercas acadêmicas. Conforme se analisará no Capítulo I, método, forma e conteúdo entrelaçam-se enquanto partes de uma totalidade. Rejeitando a fragmentariedade presente nas teses filosóficas e nas ciências predominantes na atualidade, procuraremos demonstrar a falácia de discursos/teorizações que, ao final, explícita ou implicitamente, se propõem a um único objetivo: a manutenção do status quo.

Ignorando a realidade, excluindo a universalidade em prol de particularidades estanques, fazendo prevalecer o formalismo em detrimento do

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conteúdo, rejeitando as condições em que sobrevive a maior parte da humanidade, apregoando uma atemporalidade estagnada em desfavor do movimento histórico, aceitando o dado e revestindo-o de uma aparência de crítica que, ao menor abalo, desponta como aceitação, as preferências metodológicas dominantes parecem pairar, imparcialmente, sobre todas as contradições. Não há nada que se indagar acerca delas. Não há que se interrogar acerca de sua preferência. Elas são aquilo que são: meras e inócuas metodologias destinadas apenas à apreensão de uma substância que – esta, sim – realmente importa. Formas sem maiores conteúdos questionáveis. Ferramentas eleitas tradicional e aleatoriamente por um sujeito, voltadas à instrução e auxílio na tentativa de compreender um objeto.

A aparência de naturalidade que legitima e torna válida a escolha de um método é desfeita tão logo se contraponha um outro que exponha sua verdadeira essência. A partir daí, o método dialético criado por Marx servirá de fio condutor para, primeiramente, realizar uma análise sobre as estruturas que sustentam e são sustentadas pelo conceito de racionalidade lógica dominante, atualmente, na Filosofia e nas ciências ocidentais.

Não seria possível analisar de modo radicalmente crítico um fenômeno utilizando-se dos elementos metodológicos, formais e substanciais fornecidos por este mesmo fenômeno. A coerência ética de Marx presente durante toda a sua vida alcança a teoria e, consistentemente, contribui para sua criação e aperfeiçoamento. Somente uma metodologia própria, externa à coisa a ser analisada (ainda que advinda internamente de sua crítica), com regras e determinações diferenciadoras, é capaz de expor aquilo que se encontra profundamente oculto, camuflado, invertido, em oposição a si mesmo.

Ao apresentar a negatividade presente em cada uma de suas contradições internas, Marx exibe a positividade empacada da razão e, concomitantemente, impulsiona o movimento do real visando à sua superação. A racionalidade universal lógica e positiva, cujo método tem servido por critério de

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verdade e validade nas várias áreas do conhecimento, é recolocada sob seus alicerces reais e considerada resultado de um desenvolvimento histórico concreto. A influência de Hegel, o rompimento com o idealismo, a consideração acerca de algumas categorias tão caras à filosofia que distinguem e individualizam a teoria marxista, permitirão reconsiderar e reavaliar conceitos e atitudes cristalizados dentro da tradição filosófica, e que acabam por se estender, em forma e conteúdo, ao todo social.

Em segundo lugar, a construção de uma teoria que tem por escopo a materialidade e por objetivo maior a destruição completa do sistema capitalista só poderia ser concebida com e por meio de um método que unifique estes elementos como são na realidade. A crítica radical do autor de O Capital, ao superar o idealismo da dialética hegeliana na qual se inspirou, aporta na violenta concretude dos processos históricos que criam, mantém e reproduzem a dominação existente sob o capitalismo. O Capítulo II procurará apresentar, mesmo que de forma extremamente sucinta, alguns conceitos e categorias de Marx, sem os quais se torna impossível abordar qualquer um de seus temas.

Ocultas sob a forma do dinheiro-mercadoria, as relações sociais que inicialmente possuem uma aparência fragmentária, pouco a pouco vão manifestando sua essência. Ao serem trazidas à superfície por um complexo processo de mediações tais relações se mostram, ao final, como constituindo uma mesma unidade sintética: resultado histórico do modo capitalista de produção. Neste capítulo apreciaremos os valores de uma sociedade que tem por base este modo de produção, as relações que encerra, formas de viver e trabalhar, o conteúdo do produzido, seu percurso histórico.

Ao se considerar os indivíduos concretamente, produzindo seus meios de vida e existência de uma forma específica, relacionando-se historicamente como classes em luta, revela-se o movimento fundamental de uma metodologia meta-teórica com base e finalidade práticas, pois, apreendidas as relações de dominação que os submetem, voltar-se-iam para aniquilá-las, libertando-se.

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Compreender o capital deveria, assim, necessariamente, implicar em arruiná-lo. Contrariando a lógica clássica, contudo, a conclusão difere das premissas adotadas.

Os esquemas mentais que procuram adaptar a vida prática às fórmulas ideais previamente concebidas têm aqui o seu fim. Tornada estátua frente aos olhos da Medusa-viva, a consciência não consegue encontrar uma saída para o solipsismo capital no qual se encontra. No momento em que se descobre qualitativamente fortalecida, a filosofia cai prostrada frente à certeza inelutável da crise. Porque o filosofar não salvou a filosofia? Não seria justamente este o momento de a consciência-consciente apresentar soluções?

Novamente o velho idealismo toma a forma de um espírito e se eleva ao céu das abstrações filosóficas. No Capítulo III, a relação dialética entre vida e consciência se intensifica. A falsa fragmentariedade pós-moderna, a circularidade da via racional lógico-positiva, os abismos intransponíveis de um sistema que segrega conhecimento e ação, episteme e onthos, sujeito cogniscente e objeto a ser modificado, quantidade de informação e qualidade teleológica parecem agora ceder lugar a um subjetivismo que caracteriza a crise filosófica como sendo uma crise puramente moral ou patologicamente esquizofrênica. Por que motivos o homem que ama o saber não socorreu a humanidade? Falta-lhe probidade, desejo, vontade, tratamento, normalidade? Não seria, então, a crise da filosofia, na verdade, uma crise dos filósofos?

Não, não é a filosofia-ente-abstrato-metafísico que se encontra em colapso frente ao espelho arrancando os cabelos na falta de ideias, mas sim seus criadores. Perdidos entre a ciência e a arte, o real e a representação, a fluidez moral e o desejo psicanalítico, a esterilidade pessimista e a positividade normativa, os filósofos do novo século fracionam-se sob inúmeras bandeirinhas micro-teóricas, tentando, inutilmente, abarcar um todo contraditória e obstinadamente recusado. Sim, a crise da filosofia é, destarte, uma crise dos filósofos. Ela não pode ser considerada, porém, de ordem moral, subjetiva,

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puramente estrutural, ou qualitativamente criativa, como frequentemente asseveram diferentes pensadores. Não é uma insuficiência de ou por ideias. Caso contrário, cada um, ao se recriar, ao se moralizar, realizar ou se reestruturar já teria dado conta de si.

O colapso, o estranhamento estreito e árduo no qual se encontram só pode ter uma causa que seja, portanto, material, advinda das condições objetivas da sua própria vida, sem que, contudo, a cada uma delas se restrinja, dada a sua característica universalizante. Existindo como excertos de um conjunto maior, de uma sociedade, de um sistema no qual se encontram inseridos, realizam aí suas atividades filosóficas, buscam satisfazer suas necessidades, adquirem sua consciência. A crise da Filosofia é, assim, a crise dos filósofos, de sua consciência, e esta, por sua vez, se constitui em uma crise mais ampla, mais geral, uma crise do sistema, do próprio modo capitalista de produção.

O século XXI surge como um momento histórico no qual, nacional e internacionalmente, há uma inédita e crescente eliminação dos direitos sociais conquistados, precarização das condições de trabalho, aumento colossal do desemprego, destruição e privatização incessante dos bens naturais, exploração de massas de despossuídos, imposição civil, econômica e militar de um imperialismo global hegemônico, concentração ainda maior do capital. A crise estrutural do sistema capitalista exige a intensificação ampliada de sua sanha destrutiva e exploradora. Sua gravidade e profundidade, distinguindo-a das anteriores, expandem suas consequências ao conjunto da classe trabalhadora.

São tais condições gerais de produção que submetem a todos, filósofos e lixeiros, professores e camponeses, carvoeiros e prostitutas, às ordens ditatoriais do capital. Produção da vida e produção da consciência entram, no Capítulo III, em ampla e profunda relação dialética. O conjunto de ideias que contribui para manter e reproduzir o sistema de dominação de uma classe sobre outra é armamento imperioso em tais períodos.

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Elementos essenciais, a inversão, a alienação, o estranhamento e a fragmentação são potencializados sob novas e ofuscantes formas. Elementos aparentes, o consenso, a harmonia, a reforma, a técnica, a especialidade, a democracia, a igualdade, a individualidade, a racionalidade, são preenchidos por uma positividade oca cujo conteúdo destina-se a aniquilar abordagens verdadeiramente críticas, naturalizando a ideologia das classes dominantes. Saber e poder serão investigados sob uma perspectiva histórica que entrelace as diversas manifestações voltadas à legitimação e validação das relações sociais de produção.

Desvendar parte desta superestrutura em sua relação dialética com a base econômica pressupõe, além disso, apontar alguns equívocos na tentativa de se evitar a (farsa da) repetição. Sob o risco de se resvalar em um materialismo exclusivamente empírico (no qual incide grande parte da tradição marxista) ou em um idealismo praticamente religioso (existente na maior parte da filosofia), a mediação deve tomar parte e, por meio de um processo dialético, adentrar nas múltiplas determinações existentes no fenômeno acercando-se de sua síntese para, só então, retornar, sob um novo patamar, à completude da superfície. O método, que retira seu movimento da realidade a qual se propôs a desvendar, impede a fixidez de estruturas, conceitos, tipos e categorias que fracassam à menor tentativa de enquadrá-la. Ao mesmo tempo, essa abertura não significa, conforme já assinalado, a impossibilidade analítica restando-nos meras digressões filosófico-ideais ante a prevalência de um universal abstrato ou de frações incomunicáveis sem a existência de qualquer materialidade.

A ideologia das classes dominantes é um fenômeno real, e, como tal, por sua historicidade e concretude, essencialmente variável, sendo totalmente passível de uma análise que respeite, em forma e conteúdo, suas contradições. Ela não se constitui, tampouco, em um artifício supérfluo do modo capitalista de produção. Disseminando-se através de múltiplos instrumentos ao conjunto da sociedade reproduz, incessante e insistentemente, suas estruturas nas

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consciências dos indivíduos. Os indivíduos, por sua vez, reproduzem-na concretamente em suas relações sociais, recriando-as de acordo com as contradições existentes na realidade e novamente produzindo-as, dialeticamente, no pensamento. É esta sua imprescindibilidade que, imperativamente, nos convida a iniciar, aqui, uma busca teórica com pretensões eminentemente práticas. Ou, colocando de modo abertamente parcial e explicitamente militante: que esta teoria não sirva à interpretação burguesa, mas à revolução proletária.

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CAPÍTULO

I

SOBRE

O

MÉTODO

GREVE DAS DOCAS, INGLATERRA, 1889. (FOTÓGRAFO DESCONHECIDO)

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1.1

-

POR

QUE

COMPREENDER

O

MÉTODO?

A apreensão de qualquer fato, fenômeno, argumento ou conceito exige daquele que pretende realizá-la um mínimo instrumental metodológico. Por mais que seja possível o questionamento acerca da veracidade ou certeza do apreendido, há que se dispor, inicialmente, de um método qualquer que contribua e oriente o processo de conhecimento. Assim, abrir uma lata de coca-cola ou analisar criticamente a teoria de S. Zizek são atos que, para serem realizados, requerem uma ferramenta específica, uma determinada forma de agir, a elaboração prévia de uma metodologia adequada para que se alcance o objetivo, pois, caso contrário, não se sorverá o conteúdo pretendido.

Recolhimento de dados empíricos, sensibilidade, intuição, repetição, dedução, indução, saltos filosóficos foram, e ainda são, alguns dos métodos – cada qual em sua área – considerados válidos, durante toda a história da filosofia ocidental para apreender a realidade, os fenômenos, os argumentos, os conceitos, o homem, o pensamento, o mundo. Desde o espanto inicial grego, passando pela reunião (com suas diferenças específicas da mitologia) entre possibilidade de conhecimento e explicação religiosa dominantes na Idade Média, ao incognoscível kantiano que repercute na aparente fragmentação experimentada na atualidade, as contradições filosóficas aparecem (principalmente para os filósofos) como existentes em si, independentes e até opostas à realidade, pairando, anistórica e abstratamente sob suas cabeças, quando, na verdade, são apenas sua expressão; aparência de uma essência com base real.

Para se compreender, em sua inteireza, o fenômeno da ideologia, torna-se imprescindível, por conseguinte, a utilização de um procedimento que tenha por fundamento esta base real que o constitui. Tal realidade, por sua vez, nada mais significa, como se verá, que o modo capitalista de produção. A exigência maior para sua apreensão será, pois, uma metodologia que se mostre capaz de abarcar os fatos, os fenômenos, os conceitos, as categorias, as relações contraditórias e o movimento, determinantes e determinados, existentes e

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constitutivos deste modo de produção. Serão estas características distintivas essenciais que, por tratarem de singularidades próprias, demandarão, para efeitos de análise, um método também específico.

Analisar e expor esta sociedade, esse movimento do qual é composta a realidade não configurariam, entretanto, atos distintos e, por suas particularidades, exigiriam, cada qual, um método diverso? Decerto que investigação e explanação daquilo que foi investigado serão fases (inter-relacionadas) inseridas em um mesmo processo de conhecimento. Porém, diferenciam-se categórica, metodológica e temporalmente. No primeiro caso, objetiva-se a apreensão detalhada da matéria, a análise das várias modalidades que pode vir a assumir e suas mais intrínsecas relações, seguindo-se – só então – a exposição formal mais adequada daquilo que foi apreendido. Adverte Marx que a modificação deste encadeamento resultará na alteração não apenas do modo de exposição, como, principalmente, do conteúdo daquilo que se expõe, pois pareceria tratar-se de uma construção a priori, pairando abstratamente sobre as cabeças dos homens e descartando a materialidade existente ao assumir uma característica mistificadora do real1.

Assim, a apreciação das contradições históricas reais enraizadas nos antagonismos da sociedade de classes à qual pertencem primará pela aplicação da dialética criada por Marx2 por ser esta a única capaz de apreender metodologicamente estas contradições3. Sua exposição, no entanto, parece, à primeira vista, adotar a forma lógica geral onde vigoram, especialmente, os princípios da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído. Esta forma de

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MARX, K. & ENGELS, F., 1985, p. 21. Posfácio da Segunda Edição. 2

A recusa à denominação criada pela tradição marxista (em especial, de acordo com Benoit, na obra Da lógica com grande L à lógica de O Capital, por Engels) de materialismo histórico e dialético ou, ainda, na separação entre materialismo histórico e materialismo dialético, de Althusser, dar-se-á em razão de Marx nunca ter adotado esta denominação; mais ainda, por não caber, em sua obra, uma epistemologia de tal modo reducionista.

3 “A sociedade capitalista é uma união de contradições. Ela atinge a liberdade pela exploração, a riqueza pela pobreza, o crescimento da produção pela restrição do consumo. A estrutura verdadeira do capitalismo é uma estrutura dialética: toda forma e instituição do progresso econômico cria sua negação determinada, e a crise é a forma extrema pela qual as contradições se expressam”. (MARCUSE, 2004, p.28) (grifo nosso).

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expor, dominante nas ciências, na filosofia e no senso comum, opera, grosso modo, por meio de regras específicas formalmente válidas que, aplicadas a determinadas proposições relacionadas entre si, inferem, necessariamente, uma conclusão verdadeira4. Ou seja, quando, por exemplo, no primeiro parágrafo de O Capital (MARX, 1985, p. 45) afirma-se que:

A - “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’”,

B - “e a mercadoria individual como sua forma elementar”, nada mais lógico que concluir:

C - “Nossa investigação começa, portanto, com a análise da mercadoria”.

A opção de iniciar a apresentação pela forma lógica não é aleatória. Em primeiro lugar, por ser esta a forma historicamente dominante de raciocínio nas sociedades ocidentais, busca-se facilitar a compreensão daquilo que se está investigando. Marx e Engels (1985, p. 23) dirige sua obra a um público específico, a classe trabalhadora: “Aplaudo a sua ideia [de Maurice La Châtre] de publicar a tradução de O Capital em fascículos. Dessa forma, a obra será mais acessível à classe operária, e, para mim, isso é mais importante que todo o resto”. Dar acesso ao conhecimento do sistema que oprime essa classe é abrir as possibilidades para sua superação, pois ela será a única capaz de destruir o modo de produção capitalista. Expressando teoricamente a consciência desta classe, atribui-lhe seu papel histórico de sujeito destinado a extinguir, em teoria e prática, esta dominação.

4

Ao passo que no método criado por Marx “[...] a prática é o critério da verdade [...]” (TSE-TUNG, 1999, p. 25) e o conhecimento dessa verdade é, tal como o movimento de modificação do mundo real, ilimitada, sem fim (TSE-TUNG, 1999, p. 29). Sendo que nas 7ª e 8ª Teses sobre Feuerbach, o filósofo comunista assevera: “Feuerbach não vê, por isso [por dissolver a essência religiosa na humana, idealizando e abstraindo o indivíduo, suas relações sociais e o próprio processo histórico, naturalizando-os] que a “índole religiosa” é, ela mesma, um produto social, e que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence a uma determinada forma de sociedade” [é concretude] “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que levam a teoria ao misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no ato de compreender essa práxis” (MARX, 2007, p. 28-29, grifos do autor).

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17

Em segundo lugar, por se tratar de uma obra, em seu conjunto, eminentemente crítica, propõe-se a denunciar teorias que contribuem para a produção e reprodução do capitalismo. Ao se utilizar, inicialmente, dos mesmos métodos positivos de análise empregados por estas teorias (econômicas, políticas, filosóficas) torna-se visível, pelo movimento do negativo, a sua mais clara insuficiência em lidar com o tema, uma vez que “Na velha lógica, não há transição, não há desenvolvimento (do conceito e do pensamento), não há “conexão interna, necessária” (p. 43) entre todas as partes nem transição de umas às outras” (LÊNIN, 2011, p. 105). Tais formas lógicas, desprezando qualquer conteúdo, demonstram per si total inaptidão para alcançar o todo ou mesmo as partes que o compõem, apresentando-se, ao final, como formas vazias, limitadas, superficiais.5

A aparente reprodução dogmática na forma de exposição, tão logo se aprofunde na investigação, é complementada, em razão de sua incapacidade e positividade legitimadoras do sistema, pela dupla crítica dialética (BENOIT, 1997, p. 1): crítica teórica e crítica social. A ausência de movimento, a anistoricidade, a unilateralidade, os princípios da não-contradição e da identidade presentes nas formas dominantes de conhecimento revelam sua carência para apreender, expor e superar a totalidade do sistema que as determina. Será somente por meio desta dupla crítica dialética concretizada pelo proletariado que se tornará possível apreender a historicidade negativa do movimento do real nas mais variadas configurações assumidas dentro do modo capitalista de produção, realizando-a.

Partindo do mais simples, empírico e abstrato objeto, aquele com o qual a consciência se depara comumente na sociedade todos os dias, o sujeito, por meio de um processo de mediação, estranha o que antes lhe parecia familiar.

5 O que não significa dizer que elas sejam um “envoltório vazio” (LÊNIN, 2011, p. 158). Muito pelo contrário, tanto as formas quanto as leis lógicas são, na realidade, “um reflexo do mundo objetivo” (LÊNIN, 2011, p. 158), pois “A lógica é a teoria do conhecimento. O conhecimento é o reflexo da natureza pelo homem. Mas não é um reflexo simples, imediato, total; este processo consiste em toda uma série de abstrações, de formulações, de formação de conceitos, leis etc. – e estes conceitos, leis etc. (o pensamento, a ciência = a ideia lógica) abarcam relativamente, aproximativamente, as leis universais da natureza eternamente em movimento e em desenvolvimento.” [...], i. e., “As leis da lógica são o reflexo do objetivo na consciência subjetiva do homem” (LÊNIN, 2011, p. 160).

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18

Espantado, continua, passo a passo, decompondo cada uma de suas partes, suas propriedades e relações contraditórias buscando sua essência e aprofundando-se cada vez mais. O objeto apreendido pela sensibilidade, antes estável, seguro e imutável, é dissolvido na complexidade de determinações que, negando suas características iniciais, dão impulso ao movimento metodológico advindo do real, que o exige. O desenvolvimento histórico das categorias segue realizando-se nas abstrações ao mesmo tempo em que as institui e supera, até alcançar o momento propriamente dialético.

Por último, observa-se que o movimento de apreensão de um fenômeno acaba por integrar em um só processo diversos graus do conhecimento, elevando-se da sensibilidade à racionalidade e abarcando, assim, as fases lógica e dialética, pois, “O conhecimento racional depende do conhecimento sensível e este deve se desenvolver em conhecimento racional.” (TSE-TUNG, 1999, p. 23). A base prática une, então, os aspectos exteriores e isolados advindos da percepção sensível ao conhecimento racional atingindo sua essência: as ligações internas do mundo objetivo aprofundadas em conceitos, juízos e contradições. De acordo com Mao:

[...] Todo aquele que quiser conhecer um fenômeno não pode consegui-lo sem se pôr em contato com esse fenômeno, isto é, sem viver (entregar-se à prática) no (entregar-seu próprio (entregar-seio. Era impossível conhecer de antemão as leis da sociedade capitalista enquanto se estava vivendo a sociedade feudal, dado que o capitalismo ainda não havia surgido e faltava a prática correspondente. O marxismo só podia ser produzido pela sociedade capitalista. [...] (TSE-TUNG, 1999, p.17, grifos nossos).

A utilização da lógica dentro da dialética (unida a ela) se revela, então, como imprescindível para que se abarque a unidade composta pela multiplicidade de determinações e contradições que movimentam o mundo, superando-as e criando, desta forma, um método filosófico próprio (LÊNIN, 2011, p. 105). Tautologia, formalismo, univocidade, vacuidade, imobilismo, sofismas e demais consequências lógico-metafísicas são desfeitas tão logo se assuma uma postura propriamente dialética cujo impulso é dado pela negação em seu sentido mais

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amplo. Aberto o método pela constante transformação, abre-se, igualmente, o conhecimento embasado na realidade e que a ela, acrescido do novo, se destina, com vistas a criar tantas outras. Diz Lenin, trazendo Hegel:

Citando, na p. 125, o “famoso” silogismo – “Todos os homens são mortais; Caio é um homem; logo, Caio é mortal” -, Hegel aduz espirituosamente: “Quando se ouve enunciar este silogismo, morre-se de tédio”, o que decorreria da sua “forma inútil”, e faz ainda uma observação profunda: “Tudo é um silogismo, um universal que, pela particularidade, está unido à singularidade; mas é certo que nem todos se compõem de três proposições (126)”. (LÊNIN, 2011, p. 156).

Mais à frente, na mesma página, fazendo um paralelo entre níveis diferentes existentes no ato teórico metodológico de criação de conceitos e no conhecimento da realidade objetiva, ele conclui:

Tal como a forma simples do valor, o ato isolado de troca de uma mercadoria por outra já envolve, numa forma não desenvolvida, todas as contradições fundamentais do capitalismo – assim como a mais simples generalização, a primeira e mais simples formação de conceitos (juízos, silogismos, etc.) denota o conhecimento progressivamente mais profundo, pelo homem, da conexão universal objetiva. É aqui que se deve procurar o sentido verdadeiro, a significação e o papel da lógica de Hegel. (LÊNIN, 2011, p. 156).

e, obviamente, daquela de Marx.

Marx, na Miséria da Filosofia (2009, p.120-125) explicita, a contrario sensu, as relações entre os conceitos, o movimento histórico e a abstração, indispensáveis ao método dialético. Ao erro metodológico da empiria econômica que afirma a fixidez e a eternidade de suas categorias e/ou do idealismo hegeliano que assegura à razão pura a origem do pensamento, assumidos por Proudhon, contrapõem-se as relações de produção engendradas pelo desenvolvimento de cada época. São delas, e não da ideia pura, que provêm, por um ato de abstração teórica, os conceitos destinados a apresentar as relações econômicas e sociais reais. Igualmente, será este movimento histórico existente na realidade quem impedirá a imutabilidade dogmática destas mesmas categorias.

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20

Caso este ato de abstração – tão caro a toda a filosofia – se desligue, por completo, do real, do objeto, e acredite se apartar do próprio indivíduo, a metafísica reduzirá tudo às categorias lógicas. Excluindo de um objeto todo e qualquer acidente que a ele ocorra restariam, em substância, somente elas. Afastando-se progressivamente das coisas, os metafísicos creem aproximar-se delas; examinando-as naquilo que acreditam ser seu estado mais puro, realizam não uma análise, mas uma inversão da realidade criadora destas concepções. Tudo o que há é transformado em categorias lógicas, toda a exterioridade sensível se subsumiria ao mundo metafísico das abstrações representadas por estas categorias. Inclusive o próprio movimento adquiriria a característica da forma puramente lógica da razão pura que explica e implica todas as outras coisas, enredando a filosofia da história na história de sua própria filosofia.

Dado que as contradições filosóficas que fazem parte deste sistema são/expressam nada mais que a realidade que as determina, não será este o método do qual se vale Marx para investigar o modo capitalista de produção. Não poderá ser este o processo de abstração empregado pelo sujeito que analisa. Ademais, não serão estas as categorias destinadas à apreensão do objeto. Conforme já referido, o método dialético apreende o real em seu próprio movimento. O movimento, as categorias, as abstrações, as contradições procedem da realidade. É nela, na sociedade capitalista, que existem e se manifestam e, por essa razão, única e exclusivamente, se mostrarão instrumentos metodológicos válidos e adequados para alcançar a totalidade.

A materialidade inserida por Marx no método dialético transmuta-o em um novo, diferenciando-o e transformando-o em “antítese direta” ao método hegeliano (MARX, 1985, p. 21). A ideia de sujeito autônomo fundador do real é recolocada em sua gênese material: no homem que a cria ao lidar com a realidade. Afirma Marcuse que, para Marx, “(...) o ponto de partida materialista lhe era imposto pelo teor materialístico da sociedade que ele analisava” (2004, p. 237). O exame da sociedade capitalista tem início, portanto, no fato histórico que

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21

constitui as relações materiais e a ordem social vigentes considerados por meio do método dialético que, em seu movimento contraditório, expressa as contradições existentes na própria realidade, visando superá-las.

A exclusão de um materialismo vulgar que se restringe à “empiria dos fatos”, desconsiderando, por completo, a abstração como ferramenta de análise, deve, da mesma forma, ser levada a cabo. Quando Feuerbach (apud MARCUSE, 2004, p. 233-236) limita a filosofia ao ser concreto, ao indivíduo, à natureza que condiciona a existência, expressa nada mais que o conceito de homem e de conhecimento dominantes na sociedade de classes. Seu conteúdo e interesse voltam-se ao ser humano particular existente nesta sociedade e determinado pela natureza, recusando, per se, o universal. Não há mais, aqui, o sujeito ativo do pensamento, espontâneo e autodeterminado, mas surge um eu passivo, receptivo, moldado naturalmente. Ao ignorar, igualmente, o processo histórico e a função material do trabalho que transforma a natureza, acaba por abdicar da sensibilidade como atividade humana prática e por vulgarizar o próprio princípio que lhe serve de base.

Aprofundar o conhecimento acerca da realidade exige que, dialeticamente, se passe do grau da percepção sensível à racionalidade. Restringir-se à sensibilidade do mundo exterior objetivo é desprezar o racional que contribui para que se adentre na essência concreta e nas contradições inerentes aos fenômenos que a compõe. A apreensão de uma totalidade tem início, sim, na materialidade da qual advém, contudo nela não se encerra. Submetendo a experiência ao movimento de abstração preenchido por conceitos e categorias lógico-racionais permite-se abarcar o caráter histórico que se eleva, ativa e constantemente, da prática à teoria, para depois, abastecido das múltiplas determinações encontradas no processo, retornar à realidade objetivando modificá-la.

Libertas das particularidades estanques do materialismo presente na economia política ou do idealismo totalizante hegeliano, as categorias

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(econômicas, filosóficas, políticas) aliadas ao método dialético se prestam, agora, a embasar a apreciação crítica acerca da natureza e existência humanas na universalidade de seu desenvolvimento histórico. Superar a analítica a ela retornando como síntese; reconstruir concretamente o universal; dar vida à análise e aos conceitos apreendidos; inter-relacionar a totalidade, até então dividida em abstrações realizadas pelo sujeito, às partes que a compõe – seriam, precisamente, estes os papéis destinados à dialética de Marx.

Estabelecer e conceituar o valor de troca, por exemplo, exigirá que, saindo da inércia com a qual se apresenta uma mercadoria pela primeira vez à consciência, aprofundando-se em seus elementos constitutivos, manifestem-se suas contradições determinantes. Valor de uso, propriedades corpóreas, distinções qualitativas deverão ser considerados em conjunto com o valor de troca. Este, por sua vez, aparece, inicialmente, em uma relação quantitativa casual e relativa, como fazendo parte, intrínseco à mercadoria, tal e qual seus mais variados e infinitos valores de uso Todavia, esta semelhança, esta expressão, não proclama ainda sua essência. Outra vez, negando esta forma aparente, é induzida a propulsão ao movimento de embrenhar-se na relação dialética existente buscando superá-la – surgindo novas teses, antíteses, sínteses e assim sucessivamente:

Suas propriedades corpóreas [da mercadoria] só entram em consideração à medida que ela lhes confere utilidade, isto é, tornam-nas valores de uso. Por outro lado, porém, é precisamente a abstração de seus valores de uso que caracteriza evidentemente a relação de troca das mercadorias. (MARX, 1985, p. 46-47, grifo nosso).

A empiria do objeto mais aparente e mais positivo do início, ao ser inserida em um processo de mediações por abstração, se revelará como incompletude em meio à complexidade histórica que, por força do negativo, gerará sínteses preenchidas pela concretude das relações existentes. O retorno ao começo, agora sob um novo patamar: “[...] no método dialético, avançar é um retroceder, [...]. O começo pressupõe assim o fim, fim que, na verdade, é princípio,

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23

arché, fundamento originário” (BENOIT, 1996, p. 8), desvela a totalidade da essência mesma do capital como história da luta de classes e da classe trabalhadora como a classe universal destinada à superação que expropria os expropriadores. São precisamente estas contradições existentes na sociedade capitalista que movimentam ambas, realidade e metodologia, ao gerarem e intensificarem sua negatividade propulsora.

Para que se compreendam as relações sociais capitalistas e as contradições concretas que as permeiam, o método de análise a ser utilizado deve acompanhá-las, portanto, em forma e conteúdo. A relação dialética estabelecida entre eles ocorre porque este método entrelaça, une (também dialeticamente) teoria e prática. O método e a obra são ambos instrumentos teóricos que emergem da realidade histórica que funda o modo de produção capitalista, da luta de classes e, ao final, da própria classe trabalhadora. Encerrar-se, portanto, na pura teoria seria abandonar seus próprios fundamentos em prol de uma metodologia positiva dogmatizante típica das classes dominantes, contribuindo, destarte, para a manutenção e reprodução do sistema que critica. Oferecer à teoria um destino eminentemente prático é realizar o método e a obra elevando-os à verdadeira síntese dialética:

Marx foi percebendo, cada vez mais, que o conteúdo era inseparável de uma certa forma ou lexis específica que deveria ser encontrada. [...] Tratava-se de superar o domínio meramente analítico e encontrar um modo de exposição que, de forma imanente, se mostrasse analítico e sintético ao mesmo tempo. [...], ou seja, à forma da dialética superior. (...) Este seria o método que daria vida à matéria (Leben des Stoffs), como afirma Marx no Pósfácio da Segunda Edição de O Capital, ou seja, seria o método que reconstruiria o concreto histórico na teoria a partir de suas determinações mais simples e abstratas, conduzindo-o ao movimento contraditório que transformaria a teoria em vida e em práxis revolucionária. (BENOIT, 2009, p. 27-28).

Modificar a forma de exposição, o método utilizado, é modificar o seu conteúdo – que se presta não somente à apreensão teórica pela classe trabalhadora do sistema de dominação que a submete, mas à prática que dele emerge: a destruição total e violenta de um sistema que tem por fundamento a

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24

violenta expropriação de classe. A dialética de Marx, reunindo tais elementos, possibilita, no movimento do negativo, que se aprofunde a investigação tanto quanto se aprofunda a luta de classes, até que se alcancem suas determinações essenciais na ação concreta. Por tais motivos permite-se afirmar que, extinto o modo capitalista de produção com a passagem da pré-história à história da humanidade, extingue-se, por conseguinte, pela negação da negação, o método destinado a seu entendimento.

1.2

-

A

INFLUÊNCIA

DE

HEGEL

Muito já se discutiu acerca da influência de Hegel nas obras de Marx. Em toda a tradição marxista e antimarxista, na filosofia, e nas ditas ciências sociais, na história, na educação, na economia ou em diversas outras disciplinas o tema é constantemente objeto de debates e controvérsias entre aqueles que se dedicam a estudá-lo. Qual seria o real alcance da filosofia hegeliana em suas apreciações? O constante retorno de Marx a seu pensamento (ainda que com ele tenha rompido por diversas vezes) permitiria afirmar que, ao final, o que há é apenas uma inversão de seus conceitos e categorias? Ou, pelo contrário, este avançar e retroceder estaria contido, em realidade, no próprio método? E, sendo este o caso, é, da mesma forma, digno de questionamento: o método, enfim, é o mesmo (ainda que de cabeça para baixo)?

Afirmar que a dialética de Marx possui influência hegeliana significa dizer que existem pontos de contato entre ambas – e apenas isso. Adotar uma tal postura que transplante, diretamente, todas as características de uma para a outra (ainda que com algumas alterações) significaria comprometer toda a obra. Diversos estudos marxistas apontam, entretanto, para a denominada “inversão da herança dialética hegeliana”6

, compreendendo-a de modo simplificado como mera

6

Que tem em Althusser um de seus principais expoentes; ainda que não se encontre, em seus estudos, uma simplificação, propriamente.

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25

sucessora lógica de uma modificação ocorrida em razão da evolução analítica colocada de forma linear.

Na Introdução aos Cadernos sobre a dialética de Hegel (2011), de Lênin, Lefebvre e Gutterman abordam o tema da inversão sob a ótica da totalidade, incluindo e relacionando no método a forma e o conteúdo que o compõem. Assim fazendo, rejeitam aqueles intérpretes que se utilizam exclusivamente da forma rejeitando o conteúdo hegeliano em prol de um materialismo puro – ao final, tão idealizado quanto o próprio idealismo que buscavam combater. Ainda que hipostasiado, por exemplo, o racional opera em Hegel como um momento da abstração que, não apenas deve ser levada em conta no processo que compõe o método – do particular ao universal e deste retornando ao concreto – como fornecerá, contraditoriamente, a essência objetiva do fenômeno a ser observado. Somente deste modo (quando parte do conteúdo é transferida para a dialética de Marx) há o rompimento dos limites dialéticos aos quais o método hegeliano o submeteu e sua consequente superação, com a incorporação de elementos antigos ao novo criado:

Nestas condições, a “inversão” não pode ser uma operação simples, realizada mediante um único e mesmo procedimento para todas as partes do hegelianismo. [...] A “inversão”, operação delicada e complexa, deve ser considerada, pois, como momento de um processo ainda mais amplo do pensamento. Este momento é essencial na medida em que ele garante a integração e a conservação de todo o acúmulo filosófico anterior. (p. 12 e 14).

Porquanto,

A dialética só se mantém como dialética se não deixa fora dela o materialismo, se se une a ele. Para o idealismo a ideia se exterioriza e se degrada em natureza. Para o materialismo, a natureza se supera e a ideia supõe e envolve as relações da natureza e da sociedade humana, sua luta e sua unidade. (p. 22).

Benoit (2003), no mesmo diapasão, contrariando a tradição estabelecida traça o percurso histórico-filosófico da dialética hegeliana e procura analisar os diferentes conceitos assumidos ao longo de sua movimentação

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26

constitutiva. Sua crítica a determinados autores marxistas se daria em função de equívocos cometidos quando da utilização das categorias aristotélicas de ato e potência na tentativa de se explicarem as transformações consideradas dialéticas. De acordo com ele, a lógica da não-contradição dominante nestes casos impediria, per se, qualquer movimento que infira a proveniência do não-ser do Ser, pois nela a contradição só ocorre entre categorias diversas, nunca no “interior de um mesmo gênero” (BENOIT, 2003, p. 2). O Ser torna-se entidade teológica responsável pela criação da multiplicidade de entes: “pura indeterminação que se desdobra em Nada e deste em vir-a-ser, movimento, Devir” (BENOIT, 2003, p. 2)7

, ao passo que para a dialética de Marx a contradição só é possível, só se dá, com a mesma coisa, dentro e, consequentemente, fora dela. Para ele, não existem dois entes diversos contraditórios, mas apenas diferentes entes que não se negam mutuamente; multiplicidade indedutível de uma unidade suprema.

Marcuse, em Razão e Revolução (2004), ainda que aristotelize, em determinadas passagens da obra, o pensamento hegeliano, é, ainda, fonte indispensável para a compreensão das categorias e do sistema que o compõem. Ele encontra em Hegel e no negativo de seu método uma das teorias mais críticas do idealismo alemão, confrontando-se tanto com as filosofias positivistas posteriores, quanto com a realidade político-social da época. Em fins do século XVIII e início do XIX, as condições miseráveis da grande maioria da população, o absolutismo despótico esclarecido e as influências dos ideais burgueses racionalistas em evidente contraste com o Reich fornecem os subsídios concretos necessários ao surgimento do idealismo na Alemanha.

A ausência da unificação, o atraso na industrialização, a dispersa classe média e os marcantes traços feudais contrastam, visivelmente, com as

7

Lefebvre e Guterman, na Introdução aos Cadernos sobre a dialética de Hegel (2011), de Lênin, ao tratarem da Teoria da Contradição, tal e qual: “Ele [Hegel] abandona a história concreta (fenomenologia) para se instalar na história abstrata da ideia. O começo não é mais a sensação ou a ação; para este desenvolvimento absoluto da ideia é necessário um começo puro – o ser, idêntico ao nada” (p 17, grifos nossos).

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27

sociedades francesa e inglesa da época. O desenvolvimento do capitalismo industrial na França e na Inglaterra apresentava o homem como liberto das necessidades naturais de sobrevivência, aberto às possibilidades de dedicar-se inteiramente à racionalidade e às suas mais variadas potencialidades: “[...] o processo econômico aparecia como o fundamento da razão.” (MARCUSE, 2004, p. 16). O idealismo alemão nasce nesse contexto conflitivo e conta com a inspiração direta dos ideais da Revolução Francesa na construção de seus conceitos fundamentais.

Destes elementos contraditórios surge uma filosofia com aparência de pura teoria, apartada e até mesmo contrária à estrutura miserável existente. Desviados do mundo exterior para o mundo interior, os valores potencialmente dotados de transformação esvaziam-se e transformam-se em pujantes legitimadores da hegemonia social. A grande maioria da população, submetida ao estado de servidão, crê na compatibilidade entre tais formas de submissão externas e na liberdade salvacionista interna. A plenitude e a realização humanas são buscadas em sua essência, na alma, em uma espiritualidade imaculada, na liberdade do pensamento ao invés da ação, restando à sociedade a indiferença dos indivíduos e seu consequente comodismo com a realidade existente.

Não obstante encontremos em Hegel (especialmente em sua Filosofia do Direito) contexto suficiente para a legitimação da ordem estabelecida por meio da adoção do idealismo filosófico e pela ausência da apreciação direta do modelo dominante ao tentar a composição harmônica entre indivíduo e Estado, a tarefa negativa da qual dota a razão acaba por exigir a superação da forma aparente (dada, acidental) das coisas em favor de sua essência, visando restaurar a totalidade, o que acaba por impregnar todo o sistema de um forte conteúdo crítico. As ideias básicas da modernidade que têm início no racionalismo cartesiano encontram em Hegel seu ápice e seu fim. Ao interpretar o mundo como razão, sujeita natureza, história e a própria ordem social a seus ditames, reúne filosofia e

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28

teoria crítica da sociedade e leva a filosofia “ao limiar da negação da filosofia” (MARCUSE, 2004, p. 220).

O abalo das estruturas e certezas do senso comum se configura, então, como seu ponto inicial. Excluindo a religião como solução para os problemas do restabelecimento da unidade e liberdade perdidas – tendo em vista seu caráter historicamente coletivo (social e político) –, surge a necessidade de um instrumento transformador também dotado de tais características. O movimento do vir-a-ser será fornecido pela negatividade de um método que critique e supere a fixidez oposicional “segura” das categorias tradicionais, desestabilizando-as.

A dialética é tida, por conseguinte, como o instrumento capaz de desenvolver e resolver as contradições reais no seio da razão. Por meio da mediação (Vermittlung, processo que diz respeito apenas ao ser vivo, constituindo-o e atualizando-o), a unidade vital entre homem e physis é restabelecida. O saudosismo de uma Grécia Clássica tida como a união perfeita entre o indivíduo e a polis, estendendo-se à cultura e à organicidade política, aparece em Hegel como fim derradeiro de seu sistema, livre desenvolvimento das forças nacionais e do próprio homem, vontade e espírito de um povo. O Volksgeist (espírito de um povo, de uma nação) torna-se a base das leis, totalidade das partes que compõem (ou deveriam compor) o Estado, entidade concreta, não metafísica, sujeito histórico da nação. Compreendida como forma última do saber humano, a filosofia imbui-se do poder de unificação (“die Macht der Vereinigung” (apud MARCUSE, 2004, p. 41)) e destina-se a restaurar a harmonia vital outrora existente entre indivíduo e coletividade, possibilitando o exercício da liberdade em sua plenitude.

1.2.1

-

A

RELAÇÃO

DIALÉTICA

SENHOR-ESCRAVO

Neste ponto teremos que nos deter um pouco mais em Hegel, dado a sua influência direta na construção de alguns conceitos de Marx essenciais à

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29

compreensão do tema aqui proposto, os quais serão tratados em seu devido tempo (trabalho, alienação, reificação, etc.). O pleno desenvolvimento do espírito buscando o exercício livre de suas potencialidades passa por um processo progressivo de conhecimento por meio do qual ele se reconcilia consigo mesmo, pois só é livre o homem que conhece a liberdade, e esta só pode ser conhecida por aquele que é livre. A autoconsciência desta liberdade é alcançada por meio do autorreconhecimento, na satisfação dos desejos, apropriando-se das coisas que a cercam. Deste modo, consciência e mundo, sujeito e objeto, são pares fundamentais para a compreensão da relação dialética estabelecida entre eles.

Quatro etapas progressivas configuram este processo de realização da experiência autoconsciente: a experiência ou senso comum, o conhecimento sensível, a percepção consciente e a autoconsciência. O movimento de superação existente entre elas, ao negar o conhecimento adquirido na fase anterior, impele o sujeito à fase seguinte, na busca pela essência da coisa e, ao final, na busca por sua própria liberdade. A relação entre a consciência e o objeto – e vice-versa – é a todo tempo abalada e cede lugar a novas e mais profundas formas de compreensão. Estas, por sua vez, incidem em ambos e realizam alterações subjetivas e, consequentemente, objetivas, em um incessante percurso destinado ao conhecimento verdadeiro e à realização livre do espírito absoluto.

Não nos ateremos aqui às três primeiras fases. Entretanto, a quarta e última fase exige uma análise mais aprofundada que evidencie, na diversidade desejante, a existência da unidade. O verdadeiro fim dos desejos é um só: o reconhecimento. E este tem como condição de existência o outro, ou seja, só há reconhecimento (satisfação do desejo) de uma autoconsciência por meio de outra autoconsciência. Será esta quem fornecerá àquela o seu sentido, a sua essência original: “O indivíduo só pode tornar-se o que ele é, através de outro indivíduo; sua existência mesma consiste neste ‘ser-por-outro’” (MARCUSE, 2004, p. 107).

O trabalho servirá a Hegel como figura fundamental para explicitar a relação estabelecida entre duas autoconsciências que lutam pelo reconhecimento,

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30

pois lidar com ele e com seus objetos é lidar com aquele que os criou, que trabalhou para produzi-los; é, enfim, lidar com o próprio (outro) homem. Senhor e escravo vêm ao mundo, assim, travando um combate mortal onde visam o reconhecimento de sua autoconsciência e o exercício pleno de suas potencialidades na liberdade. Tratando-se de indivíduos cujas essências são eminentemente diferentes, seria de se supor que somente a destruição de um permitiria a existência vitoriosa do outro. Não é esta, no entanto, a solução dialética.

Afirma Marcuse (2004, p. 107) que “[...] Hegel mostra que os objetos do trabalho não são coisas mortas, mas concretizações vivas da essência do sujeito: ao lidar com tais objetos, o homem está de fato lidando com o homem”. Seja por meio da criação destes objetos, seja pela mera apropriação deles, o concreto produzido é o sujeito autoconsciente (tendo em vista a unificação já restabelecida pela consciência entre os mundos objetivo e subjetivo). A diferenciação e o embate ocorrerão, portanto, nestes dois domínios em conflito: aquele que produz e aquele que se apropria. A relação entre eles, tendo por base a própria relação de trabalho é, desta forma, não natural, mas mediatizada pelas coisas criadas.

Acorrentado ao trabalho, o escravo é por ele determinado em toda a sua existência. Ele é, em sua essência, um trabalhador, “[...] seu ser é o trabalho” (MARCUSE, 2004, p. 108). Não há como separá-lo, por isso, das coisas que produz. Sua consciência é produzida ao trabalhar, ao criar as coisas relacionando-se com elas, e é apenas nelas, em sua coisidade, que relacionando-se reconhece como sujeito. Tornar-se sujeito implica, para ele, tornar-se coisa. E tornar-se coisa é possuir a característica de ser apropriável, é “ser-por-outro”. A verdadeira relação se completa, então, com a apropriação do escravo pelo senhor.

Apropriando-se do trabalho e dos objetos produzidos pelo escravo, o senhor passa a dominá-los. A satisfação de seus desejos é realizada por meio do esforço de outro que lhe fornece as coisas prontas para serem consumidas, sem que necessite produzi-las. Sua positividade na relação advém precisamente desta

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