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PRODUÇÃODAVIDA

REVOLUÇÃO CUBANA, CUBA, 1959 (FOTÓGRAFO RAÚL CORRALES)

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A base real sob a qual se constitui o método dialético criado por Marx é o modo capitalista de produção. Tanto o método de análise quanto o objeto a ser analisado somente serão aperfeiçoados com O Capital – sua última, mais completa e, contraditoriamente, inconclusa obra. Não haveria a consumação e a finalização do método sem os elementos essenciais do capitalismo; ao mesmo tempo, não seria possível compreender o sistema em toda a sua amplitude sem um método especificamente destinado a tal empreitada. O movimento histórico, as contradições mais fundamentais, a realidade constantemente revista expõem o negativo que impulsiona e desloca, a todo o tempo, a aparente segurança das categorias e conceitos pré-estabelecidos. Desvelar os pressupostos do que está posto é o passo inicial, então, não apenas para se investigar criticamente o modo capitalista de produção, como – e aí se revela o objetivo final, programático e revolucionário da obra – para superá-lo.

De acordo com Benoit:

De fato, Marx jamais fez uma filosofia metafísica da história como Hegel, assim como não fez uma teoria positiva da história, à maneira das ciências humanas. Para Marx, a Weltgeschichte está distante tanto das construções hegelianas como daquelas comteanas ou weberianas, e por uma razão bastante simples. Marx, rompendo com a metafísica e positivismo dos saberes burgueses, seguindo uma dialética que “em sua essência é crítica e revolucionária”, ao investigar os modos de produção pré-capitalistas, os investiga ainda e sempre do ponto de vista da negação do presente capitalista posto procurando os seus pressupostos. Assim, a partir da reflexão dialética sobre os outros modos de produção, desvelará a especificidade do modo de produção capitalista e a gênese histórica de cada uma das suas principais contradições e categorias: mercadoria, valor de uso e valor, trabalho abstrato e trabalho concreto, trabalho social e trabalho individual, dinheiro, extração de trabalho excedente, separação dos produtores dos meios de produção e, claro, acima de tudo, a particular especificidade de cada forma efetiva da luta de classes no interior das próprias categorias estruturais de cada modo de produção. (p. 43).

Reconstruindo concretamente o universal por meio do método dialético, Marx revela os limites teóricos das ciências burguesas ao apresentar, em contraposição, um método crítico e revolucionário, analítico e programático no qual a conexão estabelecida entre a forma lógica e a história cria a abertura

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necessária à superação pretendida. Apresentando a realidade a partir da dissolução dialética das categorias que utiliza, gera o movimento que, por meio da totalidade da luta de classes, expõe toda a materialidade do real e uma nova disposição efetiva dos elementos e relações que o compõem; discurso e prática revolucionários, contraditória e constantemente criados pelo proletariado. Seus fundamentos são desconstruídos e reconstruídos até que se abarque a totalidade posta, a luta de classes com todas as suas contradições. Ao final, negam-se, sucessivamente, capitalismo e o próprio proletariado, não em puro logos harmônico, construção homo-lógica, forma sem conteúdo concreto, mas, antes, em método de ação, práxis redescoberta de uma classe em si e para si, revolução que supera sujeito, objeto e conceito.

O conhecimento começa pela prática; e uma vez adquirido o conhecimento teórico através da prática, é preciso levá-lo de novo à prática. A função ativa do conhecimento não se exprime somente no salto ativo do conhecimento sensível ao conhecimento racional, mas também, e o que é ainda mais importante, no salto do conhecimento racional à prática revolucionária. (TSE-TUNG, 1999, p. 24).

Por isso, dar início à investigação do fenômeno da ideologia utilizando- se de algumas de suas categorias fundamentais e reconstruindo o percurso trilhado é exigência indispensável para sua correta compreensão e possível eliminação como resultado concreto da destruição completa do modo capitalista de produção. Ampliadas as sucessivas negações até que se alcance a totalidade contraditória por meio de sínteses dialéticas que se radicalizam (aqui a concepção de Marx de radicalidade exposta na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (p. 151): aquilo que vai à raiz, à gênese estruturante) o que se terá colocado de modo mais eminentemente incisivo será a negação da negação como resultado da luta de classes pela expropriação dos expropriadores (BENOIT, 2003).

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2.1-VALOR

Toda pessoa possui um conjunto de ideias e representações que o constitui como um ser humano dotado de particularidades. Tais concepções são utilizadas para sua sobrevivência, manutenção e, muitas vezes, aprimoramento de sua vida, garantindo-lhe, por meio do trabalho, a satisfação de suas necessidades. Por se tratar de um dentre tantos outros seres humanos, este indivíduo que nasce e vive em sociedade é um ser singular que participa, no entanto, de uma universalidade do gênero, existindo, ainda, dentro de uma determinada coletividade, seja ela tão díspar quanto a comunidade esquimó, kadiwéu ou estadunidense.

Todas elas, por sua vez, possuem valores materiais e espirituais distintivos das outras e comungados, de forma geral, por aquelas pessoas que delas fazem parte, criando, mantendo ou extinguindo estes valores de acordo com a necessidade ou conveniência. A arte na tribo kadiwéu, o iglu para os esquimós ou os dólares na sociedade estadunidense ocupam, na ordem hierárquica do conjunto dos valores estabelecida por seus membros, um patamar superior. Sendo frutos do trabalho humano, resultados concretos da interação e transformação no contato ser humano-natureza, a eles são destinadas determinadas cargas valorativas, “[...] pois é atribuição do sujeito que trabalha conhecer minimamente o complexo causal que é objeto da atividade – o complexo causal desconhecido não pode ser mudado pelo trabalho, não podendo ser, portanto, criador de valoração humana” (RANIERI, 2012, in: MARX, 2012, p. 14) Arte, casa e dólares valem por aquilo que proporcionam, por seu uso ou por aquilo que concebem os membros que compartem das mesmas ideias e representações; podendo não ter valor ou ter valor diverso para os membros de sociedades distintas.

Não obstante, ao compararmos os três objetos, é possível notar que os dois primeiros são passíveis de apresentar seu valor como expresso no terceiro –

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e vice-versa. Uma cerâmica kadiwéu vale US$ 5,00 (cinco dólares), uma casa esquimó no Alaska vale R$ 500,00 (quinhentos dólares); ou uma casa esquimó no Alaska vale 100 cerâmicas kadiwéu porque ambas valem, no total, R$ 500,00 (quinhentos dólares); e, ainda, com essa quantia de dólares em mãos tenho o valor de 100 cerâmicas ou um iglu.

A denominada Teoria do valor analisada nos mínimos detalhes por Marx encontra n´O Capital o aperfeiçoamento necessário para dar início e pautar toda a investigação crítica sobre o modo capitalista de produção. Não se resumindo à pura teoria, ela é a análise de um processo histórico que busca compreender como são criados os valores das mercadorias e do trabalho. Do mais básico valor de uso ao mais complexo problema da queda tendencial na taxa de lucro13, a questão do valor torna-se imprescindível a qualquer estudo que se pretenda realizar dentro da área.

Expor os valores predominantes em uma sociedade significa, portanto, decompô-los até se chegar à gênese do fenômeno para, depois de apreendida sua essência, retornar à superfície sob um novo patamar. Diferenciar o aparente caráter abstrato que expressam e a concretude da base mediante o qual são erguidos é o primeiro passo em direção ao desvelamento do fenômeno que se pretende compreender e da exploração que visam encobrir.

Grosso modo, temos:

1 – “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma “monstruosa14 coleção de mercadorias”, e a

mercadoria individual como sua forma elementar.” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 45);

2 – “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer

13 Afirma Benoit que: “O lucro e a taxa de lucro são formas ilusórias da economia política do capital, são formas ideologizadas da categoria decisiva da sociedade burguesa: a mais-valia gerada pelo trabalho gratuito do operário” (2009, p. 111, grifo nosso).

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Ver opção pela tradução de Franklin Trein no Capítulo 1, tópico 1.3.1, Aparência e Essência, pé de página.

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espécie”. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 45). A mercadoria, por sua característica de satisfazer necessidades, contém um determinado valor: o valor de uso. Esse valor de utilidade de uma coisa é o elemento diferenciador entre as diversas mercadorias. Por possuírem diferentes qualidades (determinadas por sua natureza, ou historicamente, por convenção), as mercadorias distinguem-se qualitativamente umas das outras. Um livro de S. Žižek serve para leitura, uma lata de coca-cola para se beber o líquido contido em seu interior, um iglu para se proteger do frio, uma arte kadiwéu para deleite e apreciação estética. A soma deste ato histórico de se usarem as mercadorias com suas qualidades corporais constitui o valor de uso delas e, assim, o conteúdo material da riqueza.

3 – Afora estes, os valores de uso possuem, ainda, uma segunda característica. Eles “[...] constituem, ao mesmo tempo, os portadores materiais do valor de troca. O valor de troca aparece, de início, como a relação quantitativa, a proporção na qual os valores de uso de uma espécie se trocam contra valores de uso de outra espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no espaço” (O Capital, vol. I,MARX & ENGELS, 1985a, p. 46). Para que haja a troca entre mercadorias tão díspares é preciso que exista algo nelas que as iguale, as torne comuns, propícias e tendentes à relação. Abstraídos os valores de uso das mercadorias – aquela propriedade corpórea qualitativa que as diferencia – resta- lhes este elemento igualador, o valor de troca, que as quantifica dissolvendo suas características distintivas. As propriedades corpóreas das mercadorias (valor de uso) são desconsideradas, abstraídas, ocultadas para cederem lugar a um tipo de valor totalmente independente delas15. Reduzidas a um mesmo valor em comum, elas adquirem a capacidade de intercâmbio; coisas totalmente diferentes são,

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A economia política clássica coloca como questão central de sua análise apenas o valor de troca. Marx, utilizando-se da categoria do valor de uso, não apenas a reinsere no exame necessário do modo de produção capitalista, como também a coloca como arcabouço imprescindível à sua crítica. Por isso, a investigação acerca do processo econômico toma a forma de uma investigação acerca do próprio homem, sua criação dos meios de sobrevivência e satisfação de suas necessidades.

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agora, intercambiáveis entre si, devendo ser considerada apenas a diferença expressa na quantidade. Por tal abstração trocam-se três livros de S. Žižek por quinze latas de coca-cola, ou um iglu por duas cerâmicas kadiwéu. O valor de uso de livros de S. Žižek é o valor de troca de latas de coca-cola, ou A=A e, ao mesmo tempo, A=B. A (três livros de S. Žižek) = A (três livros de S. Žižek), e A (três livros de S. Žižek) = B (quinze latas de coca-cola). Esta é a relação mais simples de valor entre duas mercadorias, ou a forma simples de valor.16 O valor de troca representa, contudo, apenas a aparência contraditória de uma essência que denota a contradição real entre o valor de uso e o valor:

A mercadoria é mostrada, logo no começo da exposição, comportando uma dupla e contraditória determinação: a de valer ao mesmo tempo e na mesma relação como valor de uso e como portadora do valor de troca. [...] Como mercadoria, o produto comporta em seus interior a contradição de ser ao mesmo tempo e na mesma relação valor de uso e não-valor de uso. (BENOIT & ANTUNES, 2009, p. 37-8, grifos nossos).

Marx trará, ao final da análise, o valor de troca como forma de manifestação do valor. Este, sim (o valor), se revelará como antítese interna do valor de uso da mercadoria: “A antítese interna entre valor de uso e valor, oculta na mercadoria, é, portanto, representada por meio de uma antítese externa, i.e., por meio da relação de duas mercadorias [...]” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 63).

4 – “Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho [...]”, mas,

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Por se tratar de forma simples de valor esta relação apresenta dois problemas principais: 1) ela é limitada a duas mercadorias, e 2) institui uma mercadoria específica como equivalente individual. Aprofundando-se na relação, as determinações complexas surgem sob a forma desdobrada do valor ou forma total. Aqui, em decorrência do desenvolvimento histórico das trocas, o número de equivalentes é aumentado. Entretanto, também sob esta forma, surgem mais dois problemas: 1) agora o número de mercadorias se torna ilimitado, ao passo que 2) o equivalente ainda se mostra como particular. Para resolver estes dois problemas é necessário que se inverta a relação. Aparece, assim, historicamente, a denominada forma geral de valor na qual uma mercadoria tem seu valor de uso duplicado sob a forma de equivalente geral representando todas as outras mercadorias. Resultam desta relação a forma dinheiro e a forma preço que, ao final, ocultam e transformam a verdadeira relação social existente entre os produtores e seus trabalhos.

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Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desaparecem, também, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 47).

Para que se reduzam as mercadorias a um mesmo valor comum (o valor de troca), é indispensável que se abstraiam suas qualidades diferenciadoras (o valor de uso). Este ato de abstração só é possível graças ao processo de redução advindo de algo que lhes é coincidente; pois, caso contrário, inexistindo qualquer átomo de identidade, não poderíamos equipará-las. Aquilo que as torna iguais é serem produtos, objetos históricos de trabalho, frutos do processo de modificação empreendida pelo ser humano em seu contato com a natureza dentro de sociedades específicas, mercadorias, portanto.17 Não se troca o ar ou a água do mar, não se trocam folhas secas caídas de uma mangueira ou a luz do sol. Nenhuma destas coisas é intercambiável por qualquer outra, a não ser que, por meio do trabalho humano exercido nestas sociedades e sob suas condições, sejam historicamente transformadas em mercadorias; tal como o nitrogênio líquido para hospitais ou uma música tocada em uma rádio. O trabalho que iguala todas as mercadorias, permitindo a sua troca, não pode ser, da mesma forma, um trabalho específico, concreto, abarrotado de qualidades que o distinguem de outro (“trabalho útil” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 50)), como o trabalho de um filósofo diferiria do trabalho de sua empregada doméstica. Também os mais díspares trabalhos devem ser reduzidos a algo que os iguale e identifique para que seu resultado (a mercadoria) se mostre idêntico e digno de troca. A abstração da diferença cede lugar, uma vez mais, à igualdade comunicante. Todos os trabalhos concretos e suas características diferenciadoras são transformados em um mesmo trabalho abstrato: uma massa disforme de

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O produto de trabalho é, em todas as situações sociais, objeto de uso, porém apenas uma época historicamente determinada de desenvolvimento transforma o produto de trabalho em mercadoria. (MARX & ENGELS, 1985, p. 63).

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trabalho humano em geral. O trabalho que antes se traduzia por “um processo entre o homem e a Natureza [...]”, no qual o homem atuava “[...] por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza [...]” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 149), é abstraído de suas características concretas essenciais e se transforma em outro tipo de trabalho: o trabalho abstrato. Caracterizado tão- somente pelo dispêndio de energia humana fisiológica, pelo consumo de cérebro, sangue, músculos e nervos transformados em força de trabalho, tendo em vista sua indiferenciação qualitativa realizada pela abstração, torna-se exequível por qualquer pessoa em qualquer lugar.

A ausência de qualquer um desses quatro pontos torna inviável a análise acerca dos valores existentes dentro das sociedades onde domina o modo de produção capitalista. A relação dialética estabelecida entre os conceitos de mercadoria, valor de uso, valor de troca e valor, trabalho concreto e abstrato, orientará, assim, o exame das condições e modos pelos quais se cria, se mantém e se reproduz o sistema e, consequentemente, um de seus principais pilares de sustentação: a ideologia.

O valor de uso da cerâmica, do iglu e dos dólares traduz a especificidade de cada um desses objetos, diferenciando-os subjetiva e qualitativamente por servirem a funções e a indivíduos de modos diversos. A importância da arte para a sociedade kadiwéu (o seu valor de uso) admite, quando comparado a um iglu, que seja alocada em uma posição hierarquicamente superior. O mesmo prevalece, a princípio, para a situação contrária, pois a necessidade da casa para um esquimó encontra-se acima das expressões artísticas naquilo que se refere à sua sobrevivência. O trabalho humano concretizado na feitura de um iglu e de uma cerâmica indígena apresenta-se, também, essencialmente diferente. A modificação experimentada pelo homem ao alterar a natureza, criando abrigo ou arte, é peculiar a cada ato, inconfundível,

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portanto. Ao se considerarem os dólares, porém, a situação se torna mais complexa e um tanto quanto enigmática.

2.2-DINHEIRO

Um esquimó, diante de certa quantia de dólares, trocará o objeto de seu trabalho, que lhe fornece abrigo e proteção; da mesma maneira, um índio da tribo kadiwéu se desfará de sua elaborada arte expressa na cerâmica por um punhado de dólares18. Quais os motivos que levam indivíduos de culturas, hábitos e valores tão diferentes a se igualarem frente a um mesmo objeto? Por que, no monstruoso mundo das mercadorias que nos rodeia (e circunda as tribos indígenas ou os esquimós) o dinheiro acaba por se tornar a mercadoria essencial, intercambiável e hierarquicamente superior a qualquer outra? Que propriedades metafísicas ele contém que aparentemente o colocam para além da história e acima das imediatas necessidades humanas?

Materialmente não há valor de uso no dinheiro, no papel moeda19, nas ações ou títulos, letras de câmbio ou cartões de crédito. Não se constrói um iglu ou se pinta o corpo com estes objetos. Exceto pelos metais como o ouro, a prata, o cobre ou o níquel que, por sua maleabilidade, permitem a feitura de artefatos, as

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Obviamente que tais indivíduos devem ser concretamente considerados em suas relações sociais, caso contrário incorre-se em equívoco muito comum de se idealizar a materialidade que possuem transformando-os em entidades metafísicas cuja existência se restringe à consciência de seu criador. Deste modo, a preferência por indicá-los com um artigo indefinido não é aleatória. No contexto a que nos referimos um esquimó ou um kadiwéu somente servirão como exemplos na medida em que qualquer um dos indivíduos cuja origem tenha se dado nestas comunidades já não mais a elas pertençam integralmente (com suas tradições, costumes, modos de vida, ...) dado que já participam do modo capitalista de produção - base que constituirá suas relações sociais sendo, portanto, passível da análise indicada. O caráter global do sistema exposto nestes exemplos é resultado de seu desenvolvimento histórico, atualmente alcançando a quase totalidade das relações sociais mundiais. Tal constatação não exclui, contudo, as diversas formas de resistência e luta destes e de outros povos contra o capitalismo e suas consequências avassaladoras.

19 De acordo com Marx & Engels (1985, p. 109): “a moeda papel é o signo de ouro ou signo do dinheiro”, tendo sua origem na função do dinheiro como meio de circulação de mercadorias. Ela só é signo de valor, no entanto, na medida em que representa quantidades de valor expressas em quantidades de ouro.

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cédulas elencadas não servem a outro propósito exceto meio de troca de uma mercadoria por outra (por mais que se admita a possibilidade de combustão do papel moeda, existem outros materiais, como a lenha ou o carvão, que, além de perdurarem por mais tempo queimando, se mostram menos tóxicos). No entanto, espiritualmente, estes títulos monetários parecem adquirir tamanha importância que se dissolve qualquer materialidade cuja pretensão seja cerceá-los sob alguma conceituação fisicamente humana.

Ainda no primeiro capítulo d´O Capital, no qual Marx aborda a questão da mercadoria e do valor, surge, no subtítulo 3, que trata da “Forma Equivalente”, a figura de Aristóteles como o primeiro pensador a se debruçar sobre o valor e o dinheiro. Ele seria “a figura mais desenvolvida da forma simples de valor” assumida pela mercadoria, a “expressão do valor de uma mercadoria em outra mercadoria qualquer” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 61), i.e, um iglu = 100 cerâmicas kadiwéu = US$ 500,00. Isto por que, como visto, igualar coisas qualitativamente diferentes é exigência para o ato de troca20. Ao se equiparar iglus com cerâmicas ou dólares, abre-se a possibilidade de tais coisas –

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